No imediato pós-guerra, a sociologia praticada nos Estados Unidos

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No imediato pós-guerra, a sociologia praticada nos Estados Unidos assume o papel
de protagonista da disciplina. Formulações como as divisadas por Talcott Parsons em The
social system (1951), assim como a exploração intensa de técnicas de pesquisa quantitativa
por Paul Lazarsfeld, difundiram-se rapidamente pelas diferentes sociologias existentes,
processo para o qual contribuiu decisivamente a atuação das grandes burocracias
internacionais (como a Unesco), que conferiram verossimilhança à idéia de que estaria
emergindo uma “sociologia mundial”. Conjugando a perspectiva sistêmica de Parsons sobre a
sociedade moderna com o uso de instrumentos de mensuração como o survey surge uma das
mais influentes perspectivas sobre a mudança social: a “sociologia da modernização”. Apesar
de sua variedade interna, podemos caracterizá-la pela proposição de que haveria uma forte
correlação empírica entre variáveis como industrialização, urbanização, secularização e
democratização, o que seria demonstrado através de grandes amostras confeccionadas nos
mais diferentes países. Livros como The passing of traditional society (1958), de Daniel Lerner,
e Political man (1960), de Seymour Lipset, podem ser considerados representativos desta
vertente intelectual.
Neste trabalho, apresentaremos alguns resultados de minha pesquisa de doutorado
– que se encontra em fase de redação final –, cujo objetivo era comparar duas tentativas de
“aclimatação” deste influxo externo representado pela sociologia norte-americana (e pela
“sociologia da modernização”) em contextos periféricos, como o Brasil e a Argentina. Tomando
como universo de análise o conjunto dos textos (no sentido amplo do termo, incluindo
manuscritos, correspondências, marginálias, etc.) de Florestan Fernandes e de Gino Germani,
tentamos perceber em que sentido as suas formulações permitiram, ao longo de um processo
de acumulação intelectual, colocar em perspectiva a suposta “universalidade” das correlações
funcionais entre desenvolvimento econômico e democratização, haja vista o contexto sóciohistórico problemático com o qual tiveram que lidar. Dito de outro modo, através do
esclarecimento das mediações entre sociologia e sociedade, ou melhor, entre os textos dos
autores e os contextos nos quais – e contra os quais – eles simultaneamente escreveram e se
inscreveram, procuramos um ponto de apoio capaz de conferir inteligibilidade às diferenças
específicas que foram se precipitando em relação à matriz norte-americana da “sociologia da
modernização”. Em suma, se a “sociologia do desenvolvimento” de Florestan Fernandes e de
Gino Germani – com todas as diferenças que estas guardam entre si, o que também tentamos
qualificar na pesquisa – se transformou em algo qualitativamente distinto em relação à
“sociologia da modernização” norte-americana, isto se deve ao modo pelo qual eles lograram
incorporar certos aspectos fundamentais das experiências históricas brasileira e argentina no
interior de suas perspectivas sobre a mudança social.
Tendo em vista que a “aclimatação” aqui reconstruída é um processo, temos que
lidar necessariamente com textos de diferentes momentos da produção de Fernandes e de
Germani. Num primeiro momento, na década de 1950, é possível identificar um núcleo
explicativo mais ou menos comum centrado na noção de “demora cultural”, noção cunhada
por William F. Ogburn ainda na década de 1920 e que aparece não só em Fernandes e Germani
mas também em The social system, de Talcott Parsons. A hipótese da “demora cultural”
remetia ao ritmo desigual das diferentes partes ou esferas da sociedade em mudança,
descompasso capaz de gerar tensões e ajustamentos problemáticos, como no caso da
permanência de horizontes culturais arcaicos em meio a processos de metropolização
acelerada. No entanto, como o próprio termo “demora” sugere, esta noção tinha como ponto
de fuga histórico a expectativa de que a própria continuidade da mudança iria assegurar a
“ressincronização” das diferentes esferas da sociedade.
Quando confrontamos as revisões teóricas da noção de “demora cultural” iniciadas
na passagem dos anos 1950 ao anos 1960, começam a se configurar algumas diferenças
significativas tanto entre as formulações de Fernandes e as de Germani quanto entre estas e as
teses da “sociologia da modernização” (Parsons incluído). Esta última, a rigor, pode ser vista
como uma espécie de teoria da “demora cultural” à segunda potência, dotada de técnicas de
pesquisa modernizadas (surveys, análises fatoriais) e amparada numa concepção sistêmica da
modernidade e da modernização – o que a levou, aliás, a uma visão da mudança social muito
mais linear que a prevista pelo próprio Ogburn. Já Fernandes e Germani, por sua vez,
confrontados com os problemas próprios de suas sociedades, tiveram que colocar em questão
justamente esta linearidade – especialmente a hipótese de que “desenvolvimento econômico”
e “democracia” se encontravam altamente correlacionados entre si –, o que divisaram a partir
das noções de “dilema social” e “paradoxo argentino”.
A noção de “dilema social” encontra-se melhor desenvolvida por Fernandes no texto
“Reflexões sobre a mudança social no Brasil”, sétimo capítulo de A sociologia numa era de
revolução social (1963). Para Fernandes esta noção se refere a “um tipo de inconsistência
estrutural e dinâmica que nasce da oposição entre o comportamento social concreto e os
valores morais básicos de determinada ordem social”. Esta inconsistência se faria presente não
apenas nos setores “tradicionais”, como a noção de “demora cultural” parecia sugerir, mas
também nos setores mais “modernizados” da sociedade brasileira – e, para Fernandes, este
“dilema” teria se apresentado de maneira decisiva nos embates a respeito da escola pública.
Isto porque, apesar da verbalização de valores modernos por meios das camadas sociais
dominantes, “os sentimentos e comportamentos profundos da quase totalidade das ‘pessoas
cultas’ se voltam contra a modernização”, o que ele denomina de reação sociopática às
mudanças. Neste sentido, os agentes sociais diretamente envolvidos com a mudança social
não teriam sido capazes de lhe imprimir um sentido construtivo, inovador, mas, pelo contrário,
se empenhariam na manutenção do status quo, bloqueando a universalização da “ordem
social democrática”. Além disto, a noção de dilema também remete, de maneira interna, à
questão das “escolhas políticas”, pois a sua “solução” não se daria espontaneamente através
do processo de mudança social – e sim, através da ação de grupos sociais envolvidos na
superação dos obstáculos estruturais.
As formulações de Germani a respeito do “paradoxo argentino” se encontram no
texto “Hacia una democracia de masas”, que faz parte do volume compilado por ele compilado
Argentina: sociedad de masas (1965). A trajetória histórica argentina seria paradoxal porque
em vários sentidos, especialmente no plano da estrutura social, o seu processo de
modernização se aproximaria, segundo Germani ao “dos países de industrialização pioneira,
quer dizer, ao chamado ‘modelo ocidental’”. A pauta de estratificação diferenciada e
complexa, a conformação de uma numerosa classe média e a formação de um proletariado
moderno seriam indícios, para ele, de que “a modernização de aspectos essenciais da
estrutura social ocorreu [...] com rapidez extraordinária”. No entanto, apesar desta
aproximação ao “modelo ocidental” de modernização, o que destacaria a Argentina no
contexto latino-americano, seria justamente neste país que se “apresentariam ‘desvios’ em
certo sentido paradoxais”. Ao enumerar uma série de circunstâncias específicas à seqüência
histórica argentina, como a rapidez das mudanças, o impacto da imigração ultramarina e o
efeito combinado de paralisação do crescimento econômico e migração rural-urbana, Germani
busca elucidar por que a Argentina não logrou incorporar as “massas populares” através de um
sistema de democracia representativa (como teria ocorrido nos países “avançados”), e sim a
partir de um regime nacional-popular, o “peronismo”. Germani chega a dizer que “a profunda
crise política que afeta o país, há mais de trinta anos, constitui um verdadeiro enigma para os
estudiosos da sociologia do desenvolvimento econômico” (pp. 206-207). Enigma cuja
elucidação implicou, no seu caso, uma revisão crítica das visões lineares a respeito da mudança
social.
Com o fechamento político das sociedades brasileira e argentina na segunda metade
da década de 1960, o que levou inclusive à saída de Fernandes e de Germani de seus
respectivos países, a crítica às principais teses da “sociologia da modernização” cobra nova
intensidade, como podemos ver nos diferentes textos de Fernandes sobre o “capitalismo
dependente” e nas análises de Germani sobre a natureza do “autoritarismo moderno”. A partir
destas noções, os autores pretendem explicar por que em determinados contextos sóciohistóricos, como nos países da América Latina, a conexão entre desenvolvimento e
democratização (no sentido amplo do termo) não se pôde cumprir. E, neste passo, a
componente histórica da explicação sociológica passa a ganhar centralidade, haja vista a falta
de linearidade da mudança social nestes contextos não-clássicos de modernização capitalista.
Basta confrontarmos a produção de Parsons nos anos 1970, na qual a explicação
“evolucionista” da mudança social ganha contornos cada vez mais definidos – por exemplo,
em The system of modern societies (1971) –, com livros como A revolução burguesa no Brasil
(1975), de Fernandes, ou em Authoritarianism, fascism, and national populism (1978), de
Germani. Nestes dois últimos, as especificidades das experiências históricas brasileiras e
argentina passam ao primeiro plano da análise. Se a naturalização da componente histórica
implicada nas visões lineares da mudança social parecia verossímil em contextos de revoluções
burguesas clássicas, na periferia a teorização da mudança teria que ser feita quase no limite
das contingências históricas de cada processo de modernização. O que se perdia em
generalidade se ganhava em sensibilidade aos processos sociais concretos, o que permitiu
tanto a Fernandes quanto a Germani colocarem em perspectiva crítica a “universalidade” das
correlações funcionais da “sociologia da modernização”.
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