1. Categorias. Um pouco de teoria da história.

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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA , IMBECILLITAS. AS BEM-AVENTURAÇAS DA
INFERIODADE NAS SOCIEDADES DE ANTIGO REGIME.

1. Categorias. Um pouco de teoria da história. ................................ 3
2. A Ordem. .......................................................................... 26
2.1.
Cosmos. A ordem - uma categoria do político na época moderna.26
2.2.
Consequências institucionais. ____________________________ 29
2.3.
Ordem e estado. _______________________________________ 30
2.4.
Perfeição e diferença. ___________________________________ 31
2.5.
Diferença e hierarquia. Estados, pessoas e individuos. _______ 32
2.6.
Uma ordem universal de criaturas. ________________________ 35
3. Menores. .......................................................................... 41
4. Loucos, pródigos, falidos e viúvas gastadeiras . ......................... 52
5. Mulheres, esposas e viúvas. .................................................. 64
5.1.
Mulheres. _____________________________________________ 64
5.2.
5.1.1. __ Menos dignas. ______________________________ 67
5.1.2. __ Frágeis e passivas. __________________________ 71
5.1.3. __ Lascivas, astutas e más. ______________________ 73
5.1.4. __ Portugal. ___________________________________ 75
Esposas . _____________________________________________ 76
5.3.
Uma comunidade natural. ________________________________ 77
5.3.1. __ Uma comunidade fundada no amor. _____________ 80
5.3.2. __ A economia dos deveres familiares. _____________ 83
5.3.3. __ Marido e mulher: uma igualdade enviesada. _______ 85
5.3.4. __ Uma comunidade de bens e de trabalho. _________ 87
5.3.5. __ A perpetuação da unidade: primogenitura e indivisibilidade
sucessória do património familiar. __________________________ 87
5.3.6. __ Entre a unidade da família e a igualdade dos filhos. _ 89
5.3.7. __ Outras fidelidades domésticas. _________________ 90
5.3.8. __ A força expansiva do modelo doméstico. _________ 91
6. Rústicos. .......................................................................... 95
7. Selvagens e bárbaros . ....................................................... 136
8. Pobres e miseráveis . ......................................................... 159
9. Mobilidade. ..................................................................... 169
9.1.
Introdução. ___________________________________________ 169
 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; e-mail: [email protected]: webpage:
www.hespanha.net .
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1
9.2.
Ordem e vontade. Um mundo relativamente indisponível. ____ 171
9.3.
O equilibrio. __________________________________________ 172
9.4.
9.3.1. __ Honestidade. ______________________________ 172
9.3.2. __ Justiça. ___________________________________ 176
A mudança. __________________________________________ 177
9.4.1. __ Ordem e tempo. ____________________________ 178
9.4.2. __ Obras.____________________________________ 179
9.4.3. __ Graça: gratidão, liberalidade e misericórdia. ______ 182
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2
“Você conhece o meu método,
meu caro Watson. Parte da observação
das coisas insignificantes”, Sir Arthur
Conan Doyle, The Bascombe Valley
Mistery, 1891.
1. Categorias. Um pouco de teoria da história.
O tema deste curso são “categorias”. Podia chamar-lhes “imagens”,
“representações” ou “conceitos”. Escolho a primeira palavra propositadamente.
Categoria remete, na reflexão sobre o conhecimento, para a ideia de modelos de
organização das percepções, da “realidade”, se quisermos. Ou seja, conota uma
capacidade activa, estruturante, criadora (poiética) na modelação do
conhecimento. E este é um sinal metodológico que queria deixar desde já, o de
que pressuponho que estas entidades a que me referirei têm essa capacidade de
criar conhecimento (se não - adianto já toda a provocação ... - de criar realidade).
Nisso “categoria” leva vantagem sobre as restantes palavras,
nomeadamente sobre “imagem”, ou “representação”. Tradicionalmente, “imagem”
ou “representação” eram palavras que denotavam alguma passividade. A imagem
era a cópia, ou representação, de uma coisa. Representar, em termos jurídicos,
era “estar em vez de”. Já em termos teatrais – e políticos, no Antigo Regime – era
um tanto mais do que isso: era antes, apresentar algo escondido, mesmo
inevitavelmente escondido; com o que “representar” podia constituir a primeira
visão de uma coisa, uma “apresentação”, como quando apresentamos – tornamos
conhecidas pela primeira vez - pessoas. Do mesmo modo, o reino, como corpo
místico, via-se pela primeira vez (apresentava-se) nas Cortes 1. Com isto, já havia
alguma novidade e criação. Hoje em dia, os historiadores – mesmo aqueles que
não se confessam de bom grado como construtivistas – fazem dos termos
“imagens”, “imaginário” e “representação” um uso que lhes realça, além do
aspecto arbitrário, o seu aspecto poiético. Ou seja, por um lado, sublinham que a
imagem não mantém nenhum vínculo forçoso com a “realidade”, antes sendo
criações autónomas dos sujeitos (colectivos, prefere-se hoje pensar). Por outro
lado, realçam que, uma vez instalados, estes imaginários modelam as
percepções, as avaliações, os comportamentos. Com esta revisão, o termos
convém-me e, por isso o usarei por vezes, para evitar a monotonia do discurso.
Em todo o caso, “categoria” tem uma vantagem suplementar – a de realçar o
carácter orgânico, arrumado, destes quadros mentais. O facto de eles
constituírem conjuntos tendencialmente coerentes entre si, com lógicas internas
de organização e de desenvolvimento. Para além de que, apesar de tudo, me
parece mais forte a evocação da sua natureza activamente organizadora.
Esta remissão para a lógica de organização existe também na palavra
“conceito”. Na sua etimologia está o verbo latino capere, que significa agarrar,
1
Hasso Hofmann: Repräsentation—Studien zur Wort- und Begriffsgeschichte von der Antike bis ins 19.
Jahrhundert. Habilitationsschrift. Schriften zur Verfassungsgeschichte, Band 22. Berlin, 1974; Paolo Cappellini,
“Rapresentanza in Generale - Diritto Intermedio”, in Enciclopedia del Diritto, Milano, Giuffrè, vol. XXXVIII, 1987.
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3
tomar; tal como, no correspondente alemão (Begriff), está o verbo greifen, com a
mesma conotação activa, ao passo que ao sinónimo Auffassung subjaz o verbo
fassen, agarrar, apanhar, tomar. O que me afasta da palavra é o facto de estar
muito embebida por concepções racionalistas; por insinuar um esforço mental
consciente e reflectido, típico dos pensadores e dos filósofos, gente de que não
me vou ocupar muito, enquanto tais, ou seja, enquanto produtores conscientes e
individualizados de ideias. Temo que, se optasse por falar de “conceitos” se
confundisse o meu trabalho com uma empresa de “história das ideias”, concebida
como história de ilusres pensadores e dos seus intencionais pensamentos. E não
é disso que vou tratar. Qualquer grande pensador que aqui apareça aparece sem
galões, reduzido a um soldado raso (eventualmente mais eloquente) de um
grande exército anónimo. É certo que a ideia de uma “história dos conceitos” 2 foi
relançada por Reinhardt Koselleck intenções muito semelhantes às que exprimi 3.
Em todo o caso o peso da palavra “conceito” ainda é, nos discursos usuais,
demasiado para que se utilize sem a preocupação de se ser mal entendido,
aproximando-nos à força de uma história individualista, subjectivista,
intencionalista das construções intelectuais.
O projecto de uma história das categorias tem que combater em duas
frentes.
Por um lado, tem que combater, na frente da “história social”, aqueles que
acham – decerto vacinados pela história tradicional das ideias – que, como a
história se faz de actos humanos e não de palavras é lá, nesse plano dos actos e
comportamentos, que a historiografia tem que assentar arraiais. Claro que esses
homens que agem também pensam e também falam. Mas esse pensar e esse
falar limitar-se-iam a pensar em coisas e a falar de coisas. Por outras palavras,
Os homens construiriam o o pensamento a partir da “realidade”, avaliariam a
realidade em função de “interesses” e, em função da realidade e da sua
avaliação, assumiriam “comportamentos”, uns dos quais eram discursos, com os
quais traduziriam em “palavras” o modo como viam e avaliavam a realidade e a
forma como reagiriam; os quais, de novo, seriam apreendidos por outros como
“realidades”, avaliados segundo outros “interesses” e respondidos com outros
“comportamentos”. “Interesses”, “realidades”, “comportamentos” seriam, termos
sociais, coisas. O resto, incluindo as “palavras”, seriam, nos mesmos termos, não
coisas. Como a história social se devia ocupar de coisas, as ideias e as palavras
não faziam parte dela, por justamente lhes faltar “espessura social”.
Hoje já poucos põem as coisas assim. Quase todos percebem que há
mediações, refracções, criação: (i) na passagem da “realidade” à sua
“representação” intelectual; (ii) na identificação dos nossos interesses; (iii) na
2
Hans Erich Bödeker (ed.), Begriffsgeschichte - Diskursgeschichte – Metapherngeschichte, com contributos de
Reinhart Koselleck, Ulrich Ricken, Hans Erich Bödeker, Jacques Guilhaumou, Mark Bevir, Rüdiger Zill und Lutz Danneberg,
Göttingen: Wallstein Verlag 2001 (publ. do Max-Planck Institut für Geschichte). Já o Archiv für Begriffsgeschichte, ed. por
Gunter Scholtz, em colaboração com Hans-Georg Gadamer e Karlfried Gründer (desde 1955), tinha a intenção de constituir
um ponto de partida para um dicionário dos conceitos filosóficos.
3
Cf. Reinhardt Kosellek, Le futur passé. Contribution à la sémantique des temps historiques, Paris, Éditions de
l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990 ; Koselleck, Reinhart, Practice of Conceptual History: Timing History,
Spacing Concepts, Stanfird University Press, 2002 (com prefácio de Hayden White). Fora da Alemanha, uma proposta
semelhante tem sido avançada por J. G. A. Pocock, Q. Skinner [James Tully (ed.), Meaning and Context: Quentin Skinner
and His Critics, Princeton University Press, 1989, 370 pp.) ; Giuseppe Duso , La logica del potere. Storia concettuale come
filosofia politica, Laterza, Biblioteca di cultura moderna, 1999, M. Barberis, Libertà, Bologna, Il Mulino, 2002, Introdução.
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4
avaliação da realidade em face deles; (iv) na formulação de programas de acçãoresposta (reacção).
Mas algumas manhas persistem. Por exemplo, a de, quando se fala na
autonomia e criatividade dos discursos e das sua figuras, se responder com o
facto de que estes não falam por si, mas que são apropriados socialmente. E que,
sendo-o, perdem uma lógica própria e se dobram à lógica dos “interesses” dos
grupos apropriadores. E, com isto, voltamos à vaca fria. Pois os tais “interesses”
voltaram a ser coisas perante as quais as palavras recebidas (“apropriadas”,
tornadas “coisa própria” pelas imperiais coisas) voltaram a perder qualquer
autonomia). Que existe uma sobre-determinação de sentido local sobre o sentido
geral, que falamos, ouvimos, sentimos, avaliamos “em situação” e que isso
redefine os sentidos gerais, parece evidente. Mas que essa redefinição decorra
de “interesses em bruto”, no “estado de natureza”, não mediados por
representações particulares, é uma coisa totalmente diferente.
Outra via de recuperar a soberania das coisas é a de, falando-se em
discursos, se responder com as práticas. As práticas serão, naturalmente, coisas.
Puras e duras. Gestos, gestos cruzados, contra-gestos, contagens, frequências,
viagens, tiros, cópulas, cultivos, Coisas meramente exteriores, sem qualquer
interioridade. Uma vénia já é duvidoso que o seja; uma palavra, quase nunca;
uma ideia, isso jamais. Se houver um qualquer interior na prática, ela já deixa de
ser prática e passa a representação. De modo que a tal dialéctica entre práticas e
representações, entre práticas e discursos, é uma quadratura do círculo. É, na
verdade, uma maneira de simular alguma abertura às representações, por quem,
na verdade, crê que elas cantam ociosamente, enquanto as práticas,
afanosamente, constroem a história. Bondosamente, sugere-se agora que a
formiga para às vezes um bocadinho para ouvir a cigarra. Mas segue,
imperturbada, a sua lida.
***
Num texto de síntese 4, Koselleck sistematiza algumas das razões da
autonomia da história dos discursos.
A primeira delas parece banal; mas contém mais de razão que aquilo que
aparenta. Trata-se do uso de conceitos técnicos ou enfaticamente carregados de
sentido. Uns e outros têm uma evidente espessura, que os faz dizer para além do
que aquilo que os locutores querem.
No primeiro caso – de que os exemplos típicos são as linguagens
formalizadas, como, por exemplo, as linguagens de programação dos dias de hoje
-,estamos perante aquilo a que Umberto Eco chamou os “limites da
interpretação” 5: o conceito, na sua fixidez técnica ou formalista, resiste à
“apropriação”. E, por isso, a “história social” não tem grande volta a dar-lhe. Dirse-á que, na longa duração, isto raramente ou nunca acontece, pois não há
4
Cf. Reinhardt Kosellek, Le futur passé…, cit.
5
Umberto Eco, I limiti dell'interpretazione, Milano 1990; trad. ingl., The limits of interpretation, Bloomington, Ind. :
Indiana University Press, 1990.
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5
formalismo que resista ao tempo. É verdade, mas, no curto e médio termo é claro
que há discursos e categorias não disponíveis.
Existe, no entanto, uma segunda espécie de indisponibilidade: a dos
conceitos tão carregados de sentido, que este sentido (positivo ou negativo)
sobre-investe o sentido dos utilizadores. As categorias dizem mais do que se
quer, têm sentidos preter-intencionais. É por isso que nem um honesto ateu está
à vontade com a palavra Deus; ou que um rebento das boas velhas famílias
portuguesas nunca usa, deliberadamente, a rabiosa palavra “vermelho”, mas
apenas “encarnado”. Num plano menos fútil, Kosellek descreve o impacto
objectivo de palavras polémicas na história política europeia, como “revolução”,
“feudal”, “cidadão”. Mesmo ciciada, melosamente insinuada, “revolução” é sempre
Revolução (ibid., 103).
Daí que estas palavras fecundas não sejam domesticamente apropriáveis,
senão limitadamente, pelos grupos sociais. Realmente, elas estão antes deles;
fazem eventualmente os grupos sociais 6.
***
E com isto entramos num segundo aspecto da autonomia da história dos
discursos. Os discursos como palcos de lutas sociais. As categorias como praças
fortes que se conquistam ou se perdem, na luta social.
Realmente, muitos nomes não são apenas nomes. “Intelectual”, “burguês”,
“proletário”, “homem”, “demente”, “rústico”, são, além de sons e letras, estatutos
sociais pelos quais se luta, para entrar neles ou para sair deles. Numa sociedade
de classificações ratificadas pelo direito, como a sociedade de Antigo Regime,
estes estatutos eram coisas muito expressamente tangíveis, comportando direitos
e deveres específicos, taxativamente identificados pelo direito. Daí que, ter um ou
outro destes nomes era dispor de um ou outro estatuto. Daí que, por outro lado,
classificar alguém era marcar a sua posição jurídica e política. A mobilidade de
estatuto que então existia não era tanto uma mobilidade social, nos termos em
que hoje a entendemos (enriquecer, estudar, melhorar o círculo das suas
relações, mudar de bairro); era antes e sobretudo uma mobilidade onomástica ou
taxinómica – conseguir mudar de nome, conseguir mudar de designação, de
categoria (discursiva), de estado (nobre, fidalgo, jurista, peão, lavrador). Claro que
a mudança de vida podia ser importância; mas quem decidia dessa importância
era a própria entidade conceptual que designava o estado pretendido. Ou seja,
era o conceito de nobreza (a definição da categoria da nobreza) que decidia que
mudanças de vida eram necessárias para se ser admitido.
Pierre Bourdieu generalizou esta perspectiva a todos os mecanismos de
distinção social, construindo uma teoria geral sobre o modo de organizar
estratégias de luta por símbolos, por marcas de distinção 7. E também explicou
6
Cerruti (Simona), " La construction des catégories sociales ", in Boutier (Jean), Julia (Dominique) (dir.), Passés
recomposés. Champs et chantiers de l'histoire, Paris, Autrement, 1995, p. 224-234. Aplicação: Cerutti (1990), Simona, La
ville et les métiers. Naissance d'un langage corporatif, Turin, 17e-18e siècle), Paris, EHESS, 1990. Para Portugal, uma
alusão ao problema em Nuno L. Madureira (coord.), História do trabalho e das ocupações. III. A agricultura: Dicionário,
Lisboa, Celta, 2002, “Introdução” (Conceição Martins, Nuno Monterio)
7
P. Bourdieu, La distinction, Paris : Éditions de Minuit, 1979.
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6
que, já quando se fala, se estão a fazer coisas muito mais complicadas do que
designar objectos existentes aí, em estado bruto, fora do discurso. Na verdade,
não apenas se estão a construir, de novo, objectos; como se está a construir
poder, por vezes um poder imenso, com essas coisinhas aparentemente voláteis
e frágeis que são as palavras 8.
Por isso é que podemos encarar a categorização social como uma forma
de institucionalização de laços políticos; e as tentativas de re-categorização como
uma espécie de revolução.
Simona Cerruti estudou este impacto político das categorias na sociedade
torinense dos fins do Antigo Regime e o modo como a reforma social e política
passava sobretudo pelo refazer do âmbito e hierarquia dessas categorias. Em
Portugal, Nuno Monteiro e Fernanda Olival, entre outros, têm, por sua vez,
estudado as lutas pelo poder de classificar; os seus trabalhos 9 mostram a
persistência da política da coroa para se arrogar o direito de classificar pessoas
como nobres (nobilitar) ou como cavaleiros das ordens militares, enquanto a
nobreza mais antiga e os juristas – cada grupo pelas suas razões – se
manifestavam frequentemente no sentido de que essa classificação era feita pela
“natureza”, pelo valor, pelos usos e fama estabelecidos, níveis de leitura em que
eles eram os peritos com o poder de classificar 10.
Num estudo de há uns anos mostrei como o uso pelos juristas medievais
de categorias de classificação dos oficiais públicos provindas do Império bizantino
e já sem qualquer correspondência com a realidade político-administrativa tinha
efeitos políticos concretos, inculcando a ideia de centralização política e de
hierarquia dos funcionários entre si 11. Neste caso, o conjunto das categorias nem
sequer é aplicado a pessoas. Apenas funciona como um modelo de organização
política com o qual a situação administrativa instalada é continuamente
confrontada, sendo por ele avaliada e paulatinamente conformada.
O próprio facto de estas categorias serem objecto de um confronto social –
i.e., de os seus contornos e conteúdos serem objecto de despique – fá-las,
evidentemente, mover, Mas apenas nos termos de uma gramática que é a delas.
Ou seja, é o próprio sistema das categorias que selecciona as regras da luta.
Nem todos os argumentos serviam, nem todas as autoridades eram sempre
invocáveis, nem todos os limites eram sempre ultrapassáveis 12.
***
8
P. Bourdieu, Ce que parler veut dire: économie des échanges linguistiques, Paris, 1982.
9
Nomeadamente, Nuno G. Monteiro, O crepúsculo dos Grandes, Lisboa, ICS, 2000; Fernanda Olival, As ordens
militares e o Estado moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2002.
10
Cf. A. M. Hespanha, “"A nobreza nos tratados jurídicos dos sécs. XVI a XVIII", Penélope, 12(1993), 27-42.
11
A. M. Hespanha, "Représentation dogmatique et projets de pouvoir. Les outils conceptuels des juristes du ius
commune dans le domaine de l'administration", em E.-V. Heyen (ed.), Wissenschaft und Recht der Verwaltung seit dem
Ancien Régime, Frankfurt/Main, Vitt. Klostermann, 1984, 1-28.
12
Cf. Koselleck, cit, p. 103.
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7
Mas nem apenas no plano da categorização têm os conceitos um impacto
nas lutas sociais. Todo o conflito é, de algum modo, raisonné. Ou seja, debate-se
mais do que se combate. Esgrimem-se argumentos, tentando desvalorizar os
argumentos do adversário e reforçar o consenso social sobre os nossos.
Argumentos, há-os para todos os gostos e para todas as causas. As Escrituras
Sagradas e a tradição textual do direito (nomeadamente, o Corpus iuris civilis)
foram fontes inesgotáveis e muito variadas de tópicos políticos. Mas também os
argumentos são relativamente indisponíveis. Quanto a argumentação e a retórica
constituíam a base dos estudos propedêuticos da universidade, todas as pessoas
cultas, que participavam nos grandes debates, estavam conscientes das regras
de uso de cada argumento. Para isso existiam os tratados De argumentibus et
locis communibus (Dos argumentos e lugares comuns). Hoje, não dispomos deste
ensino formal. Mas cada argumento, para além de ter as suas regras próprias,
chama por outros ou repele outros. Realmente, o campo dos argumentos está
organizado por regras de implicação, de simpatia, de antipatia ou de exclusão. De
tal modo que o uso de um tópico conveniente pode implicar a aceitação de outros
muito inconvenientes. Por exemplo, e como veremos mais tarde. Era conveniente,
para a justificação da escravatura, aceitar o tópico aristotélico de que havia
homens que, por natureza, estavam destinados a servir. Mas a aceitação deste
tópica implicava reconhecer que o género humano não era uno e que, portanto, a
Salvação não podia ser universal 13.
Ou seja, nem tudo se pode invocar. E, mais do que isso, invocar certas
razões pode ter consequências indesejadas e indesejáveis. De onde, as
intenções políticas de quem fala - as “razões dos políticos”, colhidas na história
política conjuntural – podem não ser a única instância decisiva do que é dito. A
lógiva interna do próprio discurso em que elas se exprimem fornece,
seguramente, outra leitura. Os seus argumentos existem previamente nas
memórias tópicas – no senso comum – de uma cultura local (por exemplo, a
cultura política, ou a cultura parlamentar); os argumentos têm competências
demonstrativas limitadas e organizam-se entre si segundo relações objectivas.
***
É este facto da relativa indisponibilidade do discurso 14 que autoriza uma
história autónoma das categorias e dos discursos. Koselleck exprime esta ideia
com nitidez: “cada conceito abre certos horizontes, tal como fecha outros, define
experiências possíveis e teorias pensáveis ... A linguagem conceptual é um médio
dotado da sua própria coesão que permite exprimir tanto a capacidade de
experiência (Erfahrungsfähigkeit) como a dimensão teórica (Theoriehaltigkeit)” 15.
13
Sobre este tema da cogência das regras de argumentação, o melhor é, ainda, Ch. Perelman & L. OlbrechtsTyteca, Traité de l’argumentation. La nouvelle rhétorique, Pars, PUF, 1958 ; Luigi Lombardi [Vallauri], Saggio sul diritto
giurisprudenziale, Milano, Giuffrè, 1975. Recente e muito útil, Michel Meyer, Manuel Maria Carrilho e Benoît Timmermans,
História da Retórica, Lisboa, Temas e Debates, 2002.
14
Pode ir-se mais longe neste “descentramento do sujeito locutor”. Do discruso pode passar-se à materialidade
do suporte da comunicação: a oralidade, a escrita; ou, mesmo, a materialidade do layout tipográfico, como tem sido
sugerido pela material bibliography e pelos estudos de história do livro.
15
Koselleck, Le futur passé …, cit. 110.
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8
Koselleck vai bem fundo na justificação do carácter criativo do discurso. Na
verdade, ele sublinha o modo como o discurso conforma a própria vida: ao prédeterminar a sua apreensão (experiência). Poder-se-ia acrescentar: ao avaliar
essa experiência, ao identificar os interesses, ao escolher os comportamentos.
Em suma, antes dos momentos pragmáticos, existem sempre momentos
dogmáticos.
Daí que, muito coerentemente, Koselleck inclua a história das categorias
no âmbito da história estrutural. As categorias constituem, de facto, modelos
muito permanentes de atribuir sentido aos comportamentos individuais e
individualizados (“cada um dos significados ligados a uma palavra ultrapassa a
unicidade própria dos acontecimentos históricos”, ibid., 115). Tal como as
estruturas (virtuais) da língua (langue) atribuem sentido à língua falada (langage)
e aos actos de fala (linguistic utterances). É neste sentido que as categorias
conceituais escapam a uma história cronológica dos seus sucessivos usos,
reclamando antes uma história da gramática abstracta que dá sentido aos seus
usos verificados e a verificar; a história de um conceito não é, por isso, uma mera
cronologia (uma narrativa empirista de usos), comportando, também, aspectos
sistémicos 16.
***
De onde vem às categoria esta autonomia frente à história ? Se não vem
das intenções dos locutores ou dos interesses dos grupos, de onde vem este seu
poder de organizar as vidas ?
Há mais de trinta anos, Michel Foucault escreveu um livro muito importante
sobre as categorias da cultura clássica europeia 17, descrevendo aquilo que, a um
nível muito profundo, o das suas categorias mais fundamentais, separara essa
cultura, quer da anterior, quer da de hoje. Para descrever essas grandes formas
culturais, essas molduras mais gerais do conhecimento, Foucault cunhou um
conceito, o de episteme. Num momento em que as explicações sociologistas da
história cultural tinham um impacto muito forte na cultua universitária francesa,
Foucault foi severamente criticado pelo facto de não providenciar uma explicação
sociológica para a génese destes modelos intelectuais.
Dois anos depois, um novo livro aparece expressa e exclusivamente
dedicado a explicitar a sua metodologia subjacente. O seu título – L’archéologie
du savoir, 1969 – remete já para a ideia de que o saber tem uma “origem”. Só que
Foucault recusa enfaticamente uma concepção “humanista” desta origem, quer
ele estivesse num sujeito individual (psicologismo, racionalismo clássico), quer
num sujeito colectivo (sociologismo, nomeadamente o materialismo histórica da
16
“Uma vez “forjado”, um conceito contém, pelo único facto de constituir “língua” a possibilidade de ser empregue
de forma generalisante, de constituir um elemento de tipologia ou de abrir perspectivas de comparação. Os conceitos não
nos informam somente do carácter único dos significados passados, mas contém possibilidades estruturais, apresentam
estruturas contemporâneas em conjunto com outras que o não são, de uma forma que que não é possível reduzir ao
simples desenrolar dos acontecimentos na história” (ibid., 115).
17
Les mots et les choses, Paris, 1966.
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9
vulgata estabelecida) 18. Essa origem encontra-a Foucault em dispositivos
materiais da produção cultural – desde as tradições textuais aos circuitos de
comunicação, desde as bibliotecas aos “campos de objectos” disponíveis, desde
as linguagens técnicas aos arquivos da memória cultural invocados, desde as
formas de divisão social e de institucionalização do trabalho intelectual às suas
relações com as estruturas sociaIs mais globais. É nesses dispositivos e nas
práticas discursivas que eles suscitam que as formações discursivas, ou seja, as
particulares configurações dos discursos num determinado período, têm a sua
origem.
Glosado e adaptado de muitas formas, por vezes desenvolvido e estendido
no seu âmbito de aplicação, este texto continua, a meu ver, a ter uma enorme
operacionalidade na resposta à questão acima formulada. Os discursos não vêm
do nada, nem vêm de um Todo que seja a Razão universal. Mas também não
são, tão pouco, a expressão, dócil e disponível, de intenções dos sujeitos. Vêm de
práticas de discurso, em que, seguramente, há sujeitos que falam e que escutam;
mas em que uns e outros falam e escutam em lugares e com meios sobre os
quais não dispõem de um poder de conformação. Estas práticas fazem parte da
história, mas de uma história em que, no centro, não está o Sujeito, com o seu
poder de atribuição de sentido. Mas antes dispositivos objectivos que,
objectivamente, constituem os sentidos possíveis. Dispositivos, uns intelectuais,
outros materiais, outros sociais. Entre os primeiros estão as nossas categorias.
Sem querer dar ao tema um desenvolvimento que, aqui, seria
desproporcionado, remeto, com estas linhas, para uma obra canónica que
estabelece a base teórica e metodológica de que aqui parto, e que explicitei
melhor – com especial aplicação aos discursos dos juristas – em outros lugares 19.
***
Na obra de M. Foucault, esta ideia de “descentramento do sujeito”, de
substituição do sujeito como instituidor do sentido dos discursos por estruturas
objectives de produção discursiva não abria explicitamente para aquilo que se
veio a chamar “bibliografia material”. Ou seja, para a ideia de que na génese dos
sentidos do discurso podem estar elementos puramente materiais dos suportes
da comunicação. Embora esta ideia – que seguramente agradaria a Foucault – já
tivesse sido suficientemente explicitada por Walter Ong, no final dos anos ’50, a
propósito da história da lógica ocidental 20. Para ele, a evolução de um
pensamento argumentativo, dominante até ao séc. XVI, para um pensamento
sistemático, cujo emblema vem a ser a nova lógica de Pierre de la Ramée (Petrus
Ramus), relaciona-se estreitamente com a difusão massiva da imprensa e com
18
Que não inclui toda a sociologia cultural marxista, nomeadamente a gramsciana e pós-gramsciana.
Cf. A. M. Hespanha, “Una historia de textos”, em F. Tomás y Valiente et al., Sexo barroco y otras
transgresiones premodernas, Madrid, Alianza, 1990, 187-196; “Tradizione letteraria del diritto e ambiente sociale”, em
Angela de Benedictis e Ivo Mattozi (eds.), Giustizia, potere e corpo sociale nella prima étà moderna. Argomenti nella
litteratura giuridico-politica, CLUEB, Bologna, 1994, 23-36.; v. também A história do direito na história social, Lisboa,
Horizonte, 1978.
19
20
Walter Ong, Ramus, Method and the Decay
the Art of Reason, Cambridge: Harvard University Press, 1958
841064938 (29/05/2017 07:02:00)
10
of
Dialogue:
From
the
Art
of
Discourse
to
uma nova organização da folha escrita 21. Alguns anos depois, Marshall McLuhan
voltou ao tema da influencia da estrutura material dos media na criação de
sentido, alargando o âmbito da discussão aos novos “textos” da galáxia audiovisual (por oposição à galáxia do impresso 22. Do lado da antropologia, o tema é
completado por Jack Goody, numa obra clássica sobre o modo como a oralidade
e a escrita condicionam o pensamento, mesmo nas suas operações mais básicas
(listar, analisar, sistematizar, contextualizar) 23. Até que surge também num seu
lugar natural – a história do livro – com a redefinição do próprio conceito de
“bibliografia”, levada a cabo por de Donald F. McKenzie. De modo a incorporar no
estudo dos textos, todos os elementos que contribuem para lhes dar sentido,
começando pela sua apresentação gráfica, da responsabilidade dos editores e,
antes deles, da própria organização da produção material do livro 24 25.
Perspectivas deste tipo têm dois tipos de consequências. Por um lado,
afastam a ideia de sujeito e de intencionalidade do sentido ainda mais do centro
da interpretação e da constituição das categorias. Por outro, convidam a um
estudo das origens do sentido – a uma “arqueologia dos saberes” – muito atenta
aos detalhes mais materiais da comunicação: no caso dos impressos: a estrutura
do trabalho editorial e as suas consequências no livro 26, a organização da página,
os tipos 27, o uso das maiúsculas 28, a divisão do texto impresso 29, a “ilustração” do
texto, o número de páginas 30, o formato do livro, a organização das bibliotecas e
as suas políticas de aquisições 31a própria forma escrita e os significados que ela
pode revestir para os seus utilizadores 32. A obra de McKenzie, um erudito
21
A “folha corrida” substituindo o fólio glosado, em que o texto canónico aparece rodeado dos comentários
(individualizados) de sucessivos autores. A segunda, materializando graficamente a situação discursiva de diálogo, de
posições dissonantes e não integradas, era menos compatível com a arte tipográfica do que a primeira. Mas esta, promovia
a redução da pluralidade de opiniões a uma exposição sistemática. Cf., do mesmo autor, The Presence if the Word: Some
Prolegomena for Cultural and Religious History, New Haven, Yale University Press, 1967; Rhetoric, Romance and Culture,
Ithaca, Cornell University Press, 1971; Orality and Literacy: The Technologizing of the Word, Ithaca, Cornell University
Press, 1982. Síntese e aplicação ao direito no meu texto, António Manuel Hespanha, “Form and content in early modern
legal books. Bridging the gap between material bibliography and the history of legal thought”, Rechtsgeschichte, 12(March,
2008).
22
Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man, Toronto, University of Toronto
Press, 1962; Understanding Media: The Extensions of Man, New York, McGraw-Hill, 1964.
23
Jack Goody, 1977. The domestication of the savage mind. Cambridge, Cambridge University Press [cujo título,
na versão francesa, é muito feliz: La raison graphique]; Jack Goody, (ed.), Literacy in Traditional Societies, Cambridge,
Cambridge University Press, 1968.
24
Fundamentais: D. F. McKenzie, Bibliography and the sociology of texts, London, British Library, 1986; bem
como os seus ensaios recolhidos em Making meaning. “Printers of the mind” and other essays (ed. Por Peter D. McDonald
& Michael F. Suarez, S,J,, Amherst-Boston, University of Massachusetts Press, 2002. Sobre o novo conceito de bilbiografia
(material ou analítica), cf. a primeira obra, pp. 9 ss.. Síntese e aplicação ao direito no meu texto, António Manuel Hespanha,
“Form and content in early modern legal books. Bridging the gap between material bibliography and the history of legal
thought”, Rechtsgeschichte, 12(March, 2008).
25
Note-se que D. F. McKenzie se refere a um conceito muito alargado de texto, que engloba a escrita, a imagem
parade ou em movimento, o som, etc..
26
“Printers of the Mind: Some Notes on Bibliographical Theories and Printing-House Practices”, em Making
meaning …, cit, 13-85.
27
“’Indenting the Stick’ in the First Quarto of King Lear (1608)”, ibid. 86-90; ou “Stretching a Point: Or, The Case
of the Spaced-out Comps”, ibid., 91-109.
28
Cf. um texto meu, já antigo, "Forma e valores nos Estatutos Pombalinos", Vértice, 347 (1972), 927-941.
29
McKenzie refere um dito de Th. Hobbes sobre o impacto que a atomização da Bíblia em versículos teria tido na
sua apropriação por várias seitas cristãs ( Biblography ..., cit., 56.
30
O exemplo aduzido por McKenzie é tirado de James Joyce, adaptando o número de páginas à sugestão
subliminar da importância do número 13.
31
“Our Textual Definition of the Future: The New English Imperialism? “, em Making meaning…, 276 ss..
32
Notável, a sua análise do Tratado de Waitangi, celebrado, em 1840, entre a coroa britânica e 46 chefes maori:
“The sociology of a text: oral culture, literacy, and print in early New Zealand”, em Bibliography ..., cit. 77-130. Sobre as
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11
estudioso da edição (além de, no começo da sua vida profissional, ele mesmo um
tipógrafo), está repleta de exemplos de todo o peso que estes elementos
materiais têm na produção de sentido.
***
Mas - abordando agora a questão de outro ponto de vista - fará sentido a
teoria da acção implícita nesta estratégia de explicação histórica ? Na qual
modelos ou horizontes mentais tendem a pre-formar, tanto o diagnóstico das
situações, como as estratégias de comportamento ? Em que o macro é a
condição da interpretação do micro ? 33
Sirva-me de contra-exemplo, para clarificar o meu ponto, uma obra recente
sobre história da cultura, inserida em prestigiadas correntes actuais e escrita com
uma grande nitidez de contornos teóricos 34. E o que lá encontrei, na proposta
inicial e na concretização, é, ponto por ponto, um ataque em forma a esta maneira
de ver as coisas.
Aí, todo o sentido reside no contexto. É a situação, o caso, que, na suas
características irrepetíveis e irredutivelmente complexas, constrói os sujeitos da
acção (ou seja, os põe em acção). Ou melhor, os põe em acções, já que a
complexidade das situações e dos sentidos que os contextos envolvem é múltipla
e inesgotável 35. Uma visão destas tem várias consequências historiográficas,
diametralmente oposta às que adopto, mas que o autor explicita com legitimidade
teórica.
A primeira é a de que todas as evocações de quadros gerais de referência
– ou horizontes de expectativas, ou quadros de avaliação, ou padrões de
valoração - são deliberadamente suspensos (ou mesmo definitivamente
excluídos) 36. Cultura de elites, cultura popular, sistemas de crenças, modelos de
religiosidade, de disciplina, de poder e de resistência, regularidades
transições de suporte comunicativo, mas na Europa do séc. XVII, v. “Speech – Manuscript - Print” , em Making meaning ...,
237-258.
33
Cf., sobre a oposição entre “macro-historia” e “micro-história”, por ultimo, Jürgen Schlumbohm (ed.),
Mikrogeschichte - Makrogeschichte: komplementär oder inkommensurabel ?, com contributos de Maurizio Gribaudi,
Giovanni Levi, Jürgen Schlumbohm und Charles Tilly, Göttingen: Wallstein Verlag 1998, 2ª ed. 2000 [publ.Max-PlanckInsitut für Geschichte].
34 Refiro-me a Diogo Ramada Curto, A cultura política em Portugal (1578-1642). Comportamentos, ritos e
negócios, diss. Doutoramento na FCSH, UNL, 1994 (não publicado).
35
“Ao oporem-se deliberadamente à grande obra de síntese, investida de um carácter de substância unitária, os
Discursos na sua natureza dispersa e fragmentada constituem-se em fonte de inspiração para as abordagens interessadas
em analisar o significado plural dos actos - incluindo os actos de linguagem - considerados políticos [...]. Em esquema,
pode dizer-se que actos, negócios, experiências ou práticas não poderão separar-se dos significados, representações ou
discursos, que os agentes em relação produzem em diferentes situações, necessariamente contingentes” (Curto, Diogo R.,
cit., cit., p. 2).
36 “Uma opção analítica desta natureza implica uma maior atenção ao comportamento dos actores envolvidos
em cada um dos acontecimentos, em detrimento das instituições, dos sistemas normativos, das estruturas ou dos
processos, com os quais os seus actos se relacionam. Assim, sem nunca perder de vista o horizonte principal constituído
pelos acontecimentos, a insistência no comportamento dos actores visa, por um lado, a análise das diversas relações que
entre eles se estabelecem e, por outro lado, a interpretação subjectiva das suas acções [cita Simmel, Weber e Goffman].”
(Diogo, 1994, p. 2).
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12
disciplinares 37, quadros institucionais e, evidentemente, sistemas jurídicos 38, tudo
isto são formas de iludir o verdadeiro sentido dos actos humanos, justamente
porque são modelos gerais pelos quais a acção concreta nunca se deixa moldar.
A segunda é pôr a tónica na recepção 39, mais do que na produção, tema
um tanto trivial nos dias de hoje; mas que aqui aparece com uma coloração um
pouco diferente das formulações clássicas, tanto ao substituir a noção de
“horizonte pessoal de leitura” pelo de “contexto prático de utilização” 40, como ao
propor uma capacidade poiética ilimitada e arbitrária por parte dos leitores em
situação 41.
A terceira é a de que a única escala de observação é, portanto, a pequena
escala, aquela que reconstrói aquela situação que, por sua vez, constrói os
actores, os lances (enjeux) e as estratégias 42. É claro que, se por “atender às
37 “Neste sentido, a cultura politica, enquanto conceito que dá acesso a um problema geral, constitui-se numa
hipótese retrospectiva, espécie de grande quadro que articula diferentes unidades de actos e de situações. Em cada urna
dessas unidades, será possível reconstituir uma modalidade diferente da cultura politica” (Diogo, 1994, 3).
38 Note-se a crítica que o Autor dirige à história cultural que tenta superara o formalismo e imobilismo da história
institucional tradicional: “Numa das suas utilizações mais consolidadas disciplinarmente, as explicações que procuram
valorizar a importância dos aspectos culturais na análise dos sistemas políticos fazem parte de urna reacção geral contra
os estudos legais, constitucionais e institucionais [...] Primeiro, existe a possibilidade de se cair numa espécie de idealismo,
através do qual as ideias identificadas com a cultura seriam a causa dos actos considerados políticos. Tornear este
obstáculo implica dispor de uma concepção alargada de cultura, e prestar particular atenção aos contextos e configurações
sociais em que as mesmas ideias adquirem significado. Segundo risco: o de radicalizar os aspectos subjectivos da cultura.
Neste caso, para evitar os exageros será necessário ter sempre presente o horizonte dos actos e das situações.
Finalmente, um terceiro risco reside, mais do que no carácter ecléctico da noção de cultura política, na circularidade das
explicações que consideram a cultura determinada pelos actos políticos e vice-versa. Ora, frente a esta indeterminação
será necessário aproveitar os ensinamentos da sociologia política, que oscila entre o estudo da base social do poder em
todos os sectores institucionais, mais ou menos articulados, e a análise dos grupos políticos específicos, que têm a seu
cargo as práticas de controlo, incluindo as mais eufemizadas, da violência (burocracia, sistema judicial, elites, grupos de
interesse, etc.) “ (Curto, Diogo R., cit., 4). Se bem entendo, o primeiro ponto, têm sido eficazmente ultrapassados por muita
da melhor história da cultura dos dias de hoje. O segundo ponto corresponde a uma versão amputada daquilo a que se
costuma chamar a morte do sujeito; digo amputada, porque as limitações da subjectividade não são apenas as que
decorrem dos horizontes dos actos e das situações; decorrem também de constrangimentos genéricos à liberdade de
receber, de criar e de reagir. Quanto ao terceiro ponto, ele corresponderia a substituir a história da cultura jurídicoinstitucional pela história social dos agentes e processos institucionais, em particular dos grupos de que decidem na base
das normas institucionalizadas”. Ou seja, ficam de forma as funções “automáticas” de inculcação ou de insinuação dos
discursos e dos ritos institucionais e das instituições, bem como a consideração do seu papel “geral” na formação de
sensos comuns. Bem como, evidentemente, as suas dimensões “não sociais” (lógicas “autónomas” de reprodução dos
textos, dos géneros e dos estilos; “bibliografia material” incluída).
39
Cf., sobre a teria da recepção, R. Jauss e W. Iser, Teoria della ricezzione, trad. It, Torino, Eiaudi, 1997; Eco,
Umberto, Lector in fabula: la cooperazione interpretativa nei testi narrativi, Milano, Bompiani, 1979.
40 “[...] uma definição alargada dos discursos - conotada quer com as formulações teóricas ditas da alta política,
quer com determinadas séries organizadas em função de uma instância de controlo discursivo (hospital, penitenciária,
universidade, etc.) - terá ainda de integrar a multiplicidade de sentidos que se encontram nas práticas que dão a ler esses
mesmos discursos, bem como nas diversas maneiras de politização de enunciados inicialmente criados fora da esfera
considerada política. Esta inevitável dispersão de significados encontra uma disciplina de análise em torno dos materiais
impressos, mas revela-se mais difícil de seguir no caso dos discursos de maior circulação, dos sermões aos rumores, bem
como no caso dos discursos baseados em formas mais ou menos estereotipadas, da fórmula de chancelaria ao capítulo de
corte. Se um mesmo enunciado pode ser lido de diferentes maneiras, como começou por propor a teoria da recepção, o
importante é procurar analisar as reacções suscitadas pelos diferentes discursos. Um ponto de vista desta natureza sugere
uma interrogação mais profunda acerca das modalidades de crença, legitimação ou reconhecimento baseadas em
discursos” (Curto, Diogo R., cit., 6).
41 “[...] surpreender a capacidade de uma audiência e de certos agentes construírem outros significados nos
próprios actos de recepção. Prolongar este jogo de relações supõe conferir aos agentes, aos grupos ou às audiências uma
capacidade de conferir significados, a uma ordem social, a um sistema de crenças ou a um simples acto, significados que
não se encontram previamente determinados” (Curto, Diogo R., cit., 179).
42 Um ponto de vista desta natureza aspira também a uma reconstituição mais precisa dos contextos e das
situações em que ocorrem os diversos tipos de actos, tendendo, por isso, a acentuar uma escala de análise
microssociológica ]. Partindo desta mesma escala, será mais fácil reconstituir as diferentes situações de negociação,
decisão e conflituosidade que caracterizam as relações dos indivíduos ou dos grupos; e, simultaneamente, escapar ao
círculo vicioso de muitas interpretações que, situadas a urna escala de análise macrossociológica, se bloqueiam nas ideias
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13
situações” apenas se quer significar contextualizar adequadamente as
“aplicações” de modelos gerais e verificar a ambivalência das suas apropriações,
o método não passa de um truísmo 43.
A quarta é a de que a interpretação das situações nunca fornece chaves
que ultrapassem essa situação, uma vez que os contextos são irrepetíveis.
Quando muito, facilita “alusões” (que bem se podem transformar em “ilusões” ...).
A reconstrução de um “objecto geral” – como “cultura política” - surge assim como
um problema metodológico central 44.
A quinta é que, vista esta irrepetibilidade dos contextos e a
inextensibilidade dos modelos interpretativos, a narrativa histórica é
inverificável 45. Por muito que se sobrecarreguem os textos de citações eruditas e
de papelada de arquivo, ou por muito enfáticas, fortes ou mesmo terrorizantes
que sejam as afirmações dos autores, as conclusões a que se chega são apenas
problemáticas e provisórias alusões a sentidos inatingíveis, locais e efémeros 46.
Seja como for. As questões postas ao modelo aqui proposto (que é também
o que tenho cultivado, mas nem sempre aquele que tenho sugerido, em momentos
de maior desvario ...) não deixam de ser pertinentes.
A meu ver, sobretudo, em dois pontos:
feitas sobre o sentido dos movimentos de mudança, os processos, as revoltas e as revoluções [cita literatura sociológica
sobre a relação micro-macro]. (Curto, Diogo R., cit., p. 2).
43
Na verdade, não tem grande novidade chamar a atenção para o seguinte. “Inventariar estes comportamentos,
sem perder de vista o contexto conflitual em que se situam, constitui uma espécie de salvaguarda frente às leituras que
tendem a reduzir a cultura popular à lógica do processo de civilização, centrado nos mecanismos e nos modelos de
controle da violência. Em suma, compreender a lógica dos comportamentos populares supõe deixar em aberto a sua
diversidade de pequenas tácticas, elaboradas ao sabor dos acontecimentos, e a não querer reiterar através de análise
histórica as categorias da cultura hegemónica, quando atribui aos populares e de forma geral aos inimigos as marcas da
selvajaria e de uma violência a controlar. Supõe, ainda, uma maior atenção à diversidade das situações e a uma
verificação das bolsas que, no interior da sociedade global, permanecem isoladas, sem que tais situações impliquem
necessariamente comportamentos de violência” (Curto, Diogo R., cit., 177).
44
“Uma perspectiva analítica que se desenvolve em função da interpretação dos actos e dos acontecimentos
terá de explicar a própria dispersão das unidades que constrói, ou seja, terá de saber encontrar na prática os critérios que
justificam a resolução de um problema — o que é uma cultura política ? —através de uma abordagem fragmentária [cita
bibliografia sobre fragmentação e história]” (Curto, Diogo R., cit., p. 10). Daí que, coerentemente, o A. afirme: “Sem
pretender oferecer qualquer tipo de síntese, este livro será construído sob a égide da descontinuidade dos espaços, dos
tempos e dos objectos. E se nas suas três partes se encontrarem velhas questões sobre níveis de cultura e grupos sociais,
o poder carismático, a construção de um espaço público, a burocracia e a formação das elites, não se julgue que através
delas se pretende restaurar uma qualquer unidade temática perdida. À partida, a questão de se saber qual a cultura política
em Portugal, no período que decorre entre 1578 e 1642, oferece um quadro propositadamente vago para poder inscrever
nele uma sucessão de fragmentos e de pequenas histórias. Tal como numa viagem sem destino certo, nenhum porto
parece seguro...” (Curto, Diogo R., cit., p. 11).
45 “[...] Toda e qualquer preocupação de exaustividade fica excluída de uma análise apostada em provar a
vantagens da fragmentação, na resposta a um problema de lógica de acção dos agentes e dos grupos. Por isso, a
necessidade de alargar o inventário de tais comportamentos deverá ser orientada em função de uma preocupação mais
comparativa do que exaustiva [...].Frente às definições unívocas da cultura popular em progressiva tomada de consciência
política [...], uma análise destinada a compreender a lógica dos comportamentos políticos populares, circunscrita à descrição
de um conjunto de acontecimentos, procede por insinuação” (Curto, Diogo R., cit., 175-176).
46 E a verdade é que, muito frequentemente, se encontram no texto referido confissões de non liquet, alertando
para a a indecidível complexidade, para a ambígua polissemia, para a insuficiência da análise. V.g., “Mas a verdade é que
muito pouco se sabe acerca do significado de tais conjuntos de actos ou dos símbolos de representação que neles se
utilizam”. (Curto, Diogo R., cit., 106). “A mostra militar constitui exemplo por excelência da sua convergência. A sua difusão
constitui um processo social complexo, que dificilmente poderá ser identificado com o da criação de uma cultura de
massas. Pois, tal como se verificou, a mostra pode ser considerada como um modo de organização formal sujeito a usos
sociais diferenciados, o mesmo acontecendo com determinados argumentos passíveis de ser utilizados por agentes
situados em posições contrárias”. (Curto, Diogo R., cit., 121).
841064938 (29/05/2017 07:02:00)
14

ao requerer uma melhor dilucidação da tensão entre categorias
culturais dominante (simplificando um pouco, de senso comum) e
categorias alternativas, bem como uma atenta ponderação dos seus
equilíbrios;

ao insistir numa melhor explicitação da matriz de transacções que, num
contexto determinado, se realizam entre o modelo do senso comum e
os impulsos induzidos pela situação concreta.
A minha convicção pessoal é a de que existem matrizes gerais de
percepção, avaliação e reacção, históricas e integrantes do senso comum. Que
estas, tendo espaços de incerteza e limites de variação, são tendencialmente
coerentes. Que é disso que se fala quando se fala de categorias de senso
comum. E que este senso comum – mais do que as situações que nos enredam pesa duramente sobre as nossas vidas. Neste sentido, creio que a história da
cultura comum, como a que tento fazer e como a que outros a têm feito, tem um
sentido explicativo muito grande, sobretudo se se quiserem entender os
processos sociais seriais e massivos.
Não me comove muito o descentramento do sujeito que com isto se opera;
por um lado, porque não creio do seu descentramento venha algum mal à história;
mas, mesmo que viesse, o sujeito não é menos descentrado se o escravizarmos
à lógica das situações concretas 47.
O ponto teórico crítico, aqui, é outro. É o da capacidade trans-histórica de
aceder a esses universos categoriais dadores de sentido. Porém, tenho que dizer
que não conheço nenhum fundamento metodológico que garanta que, se
descermos do macro para o micro, das categorias para as práticas, das estruturas
para os indivíduos, esses problemas de inacessibilidade desapareçam.
***
Esta última observação permite-nos um curso excurso sobre uma das
novas modas da história – a biografia.
Nos últimos tempos, a biografia ficou de moda. Os méritos da novidade vão
para um grupo de companheiros de ofício, de inspiração relativamente
consistente, com referências culturais também bastante partilhadas e todos eles
comungando, se não me engano, de um certo desfastio pela história chamada
estrutural. Em comum têm também a escrita sedutora e um bom conhecimento,
pelo menos ao nível que lhes interessa, do período sobre que trabalham 48.
Na teorização desta história biografia, a que também chamam “política”,
ressaltam sobretudo duas ideias-chave.
47 Recorde-se novamente Diogo Ramada Curto: “Segundo risco: o de radicalizar os aspectos subjectivos da
cultura. Neste caso, para evitar os exageros será necessário ter sempre presente o horizonte dos actos e das situações”
(Curto, Diogo R., cit., 4).
48
Em Portugal, a teorizadora desta nova história política, entendida como história biográfica, tem sido Fátima
Bonifácio. Os “operacionais” são vários, colaborando muitos deles num dos últimos números da Análise social dedicada ao
tema.
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15
Uma delas é a recusa de esquemas interpretativos “fortes”, daqueles
usados pelos cientistas sociais dos vários matizes, substituindo-os por uma
interpretação “evidente” (pelo menos, de “senso comum”), do género daquela que
nós usamos para nos orientarmos na vida. O que, sendo pacífico para nós
interpretarmos a vida de hoje, é bastante mais problemático para nós
interpretarmos a vida de há muitos anos. Os nossos filhos sabem, disso, quando
procuram entender os pais; e nós próprios o sabemos também quando temos a
sorte de ainda poder tentar entender os nossos. Na minha opinião, por detrás da
“evidência” de alguns enredos, podem esconder-se retroprojecções da
sensibilidade de hoje. E isto, já se vê, tem perigos graves.
A outra ideia-chave do nóvel biografismo é a de que são os homens
concretos – e não os desenvolvimentos anónimos “das estruturas” /também
mentais) – que modelam a história. Mas como não são muitos os homens que
estão em condições de modelar a história – pelo menos, a história de um país -,
quem acaba por interessar a esta corrente historiográfica são os “grandes
homens”, nomeadamente os “grandes políticos”.
A “grande biografia” exige, em princípio, um “grande biografado”
(pressupondo, naturalmente, que é escrita por um grande biógrafo). Na sua falta,
a biografia transforma-se num acto de cruel assassinato de um personagem,
sempre confrontado com o personagem ideal que nunca foi, que nas condições
não poderia ter sido e que porventura nem sequer quis ser. Ressalvado o último
livro de Vasco Pulido Valente (Glória, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001), que pode
ser a boa contraprova do que acabo de dizer, e a reabilitação de João Franco, da
autoria de Rui Ramos (João Franco e o fracasso do reformismo liberal (18841908), Lisboa, ICS, 2001), a última literatura (e não apenas deste género) sobre o
século XIX português tem ganho, por isso mesmo, um tom ácido, corrosivo, e
subrepticiamente moralista, de inventariação de mediocridades; que só não
espanta muito, porque parece herdeira da auto-avaliação dos próprios
contemporâneos, também eles cultivando já um o juízo azedo sobre uma
sociedade que, um pouco olimpicamente, consideravam decadente. Para além de
que, no mínimo, esta pré-compreensão implica um confronto sem sentido entre
países modelos (a Inglaterra, a Prússia, a França) e países medíocres
(designadamente, Portugal).
Daí que - voltando um pouco atrás -, talvez se deva repensar na hipótese
mais tradicional de investigar a vida dos outros homens, traçando os tais grandes
frescos sociais ou mentais – que, necessariamente, haverão de ser informados
por algum modelo interpretativo geral -, de onde resultem os grandes cenários
(económicos, culturais, institucionais, jurídicos) em que os homens – pequenos e
Grandes – se movem. E aí retornaremos, seguramente, a uma história das
categorias, dos sentidos comuns, mais gerais ou mais locais, que comandavam
os cálculos pragmáticos (que definiam, por exemplo, o que era “glória”, e, depois,
que papel a sua busca devia ocupar numa estratégia de vida).
***
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16
Em suma. O que se pretende, aqui, sublinhar é a necessidade de ter em
conta o modo de transacção entre ideias e interesses, entendidos estes últimos
como os resultados mais directos da interacção social 49.
Poder-se-á então entender como um sistema de ideias (o liberal) cuja
lógica era a da generalização absoluta da cidadania, posto em contacto com um
certo "ambiente" de práticas e interesses políticos inóspito a essa generalização,
é deformado por ele, e obriga a desenvolver elementos teóricos capazes de
introduzir critérios selectivos nas anteriores teorias da Nação e do indivíduo.
É justamente este tipo mediatizado de conversação entre "sistema" e
"ambiente" 50 que permite ultrapassar, quer uma história das ideias que ignora os
mecanismos de transacção com o exterior do sistema ideológico, quer com uma
história social (ou uma história política) que pressupõe que as "ideias" são
ilimitadamente mobilizáveis e disponívelmente funcionalizáveis a quaisquer
projectos, estratégias ou interesses sociais e políticos. Assim, o que aqui nos
interessa é sublinhar é o modo como interesses até aí justificados teoricamente
nos quadros de uma concepção - que, por motivos também teóricos, deixou de
poder servir - buscaram novas justificações nos quadros da nova teoria, para
poderem sobreviver socialmente. E, ao mesmo tempo, é ver esta teoria a alterarse si mesma para poder incluir em si desenvolvimentos capazes de justificar os
novos/antigos interesses. O processo pode ser assim descrito: uma nova teoria
deslegitima interesses estabelecidos. Nem a primeira nem os segundos podem
ser sacrificados. Assim, a teoria tem que se equipar com módulos teóricos
suplementares que permitam re-legitimar (em novos quadros) os interesses
“permanentes / subsistentes”.
Uma nota final sobre “interesses”. Interesses são também, muito
claramente, representações, neste caso acerca das vantagens (ou
inconvenientes) do alargamento do universo político a certas categorias pessoas.
Mas, ao estudarmos estes interesses, não estamos a tocar numa realidade bruta
(isto é, não mediatizada por representações). Pelo contrário, estamos em pleno
mundo das imagens e de representações acerca de categorias de pessoas e
acerca de vantagens e desvantagens políticas. Identificamos mulheres,
dementes, falidos, loucos, menores, a partir das imagens (dos esquemas de
percepção) que aplicamos à realidade contínua do universo dos nossos parceiros
sociais. Atribuímos ou não vantagens à sua participação política, em função
49
Literatura recente acerca da história dos interesses tem salientado como estes são inevitavelmente
mediatizados pelas representações da "realidade social"; e, deste modo, como tão pouco eles escapam à cpacidade
poiética das categorias. Cf. Ornaghi, Interesse, Bologna, Il Mulino, 2000.
50
Com estas referências a “sistema” e “ambiente”, remete para os modelos teóricos auto-poiéticos, que me
parecem muito produtivos neste contexto. Cf., por todos, N. Luhmann, Essays on self-reference, Columbia, Col. U.P., 1990.
No mesmo sentido de evocação de uma perspectiva sistémica, v. A seguinte formulação de M. Barberis: “Si potrebbe forse
aggiungere — riformulando le posizioni della Storia concettuale e della Scuola di Cambridge nel gergo dell’evoluzionismo
filosofico — che i concetti giuspolitici nascono ed evolvono come le specie naturali, adattandosi ai mutamenti dell’ambiente.
Coloro i quali, nei diversi contesti storici, partecipano ai giochi della politica o del diritto, compiono certo atti intenzionali,
come deliberate mosse del gioco; tali atti intenzionali, però, generano spesso effetti inintenzionali, né voluti né previsti dagli
autori, fra i quali occorre annoverare gli stessi concetti, sempre intesi come regole d’uso del linguaggio. Dunque, i concetti si
formano e si affermano compatibilmente con le esigenze dell’ambiente, e sopravvivono solo a patto di adattarsi ai
mutamenti di questo” (M. Barberis, 1999, Libertà, Bologna, Il Mulino, 1999.
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17
imagens sobre as suas qualidades, sobre a ordem política, sobre as nossas
qualidades e, finalmente, sobre o que nos convém da ordem política 51.
***
Neste texto, vamos utilizar quase apenas categorias e conceitos tirados
dos corpos literários do direito comum europeu. Isto obriga-nos a esclarecer um
pouco as razões desta fixação no discurso jurídico e, a partir daí, dizer duas
palavras de um elogio da história do direito.
Começo por salientar que o direito dispunha, realmente, de um corpo
textual imponente. No plano dos livros impressos, as matérias jurídicas (de direito
civil ou de direito canónico, de direito comum ou de direitos pátrios, na tratadística
ou na praxística) cobriam uma elevada percentagem da edição. Pelos finais do
séc. XVIII, se excluirmos os temas puramente literários, o direito vinha em
segundo lugar, logo a seguir à teologia, no panorama editorial português,
espanhol ou napolitano:
Assuntos
Portugal
Espanha
< c. 1750, %
< ad c. 1670, %
Teologia
31
40
Filosofia
3
4
Medicina
3
4
Direito
5
9
Ética
3
2
Matemática
4
3
História
29
22
Literatura
20
12
2
6
Outras
(Cômputos feitos com base em Barbosa Machado, Bibliotheca luzitana, crítica e
chronologica, Lisboa, Of. Gráficas Bertrand (Irmãos) Lda, 1741-1759, 4 vols.; Nicolas
António: Bibliotheca hispana nova: sive hispanorum scriptorum qui ab anno MD. ad
MDCLXXXIV. flourere notitia: tomus primus. Matriti [Madrid],, Apud Joachimum de Ibarra
typographum regium, 1783.)
Ainda sem abandonar o plano dos escritos de natureza “culta”, uma base
de dados de textos jurídicos de índole teórica ou doutrinal produzidos em
Portugal, nos sécs. XV a XVIII, e mantidos em arquivos ou bibliotecas
portuguesas pôde reunir mais de 6 000 peças, sem excessivas pretensões de
exaustividade. Para além disto, a mole imensa dos escritos jurídicos práticos,
produzidos quotidianamente por escrivães e notários. Numa quantificação muito
51
Sobre o carácter construído do “interesse”, Ornaghi, 2000, Lorenzo, Interesse, Bari. Laterza, 2000,
“Introduzione”.
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grosseira, feita a partir dos emolumentos destes funcionários, pude calcular que,
só no domínio da administração judiciária, se escreveriam em Portugal, por ano,
milhares de laudas 52.
Estes escritos, situados a níveis diversos da comunicação social – desde
as universidades até às escrivaninhas das pequenas terras -, infiltravam-se
continuamente no diálogo social, disseminavam aí imagens e tópicos acerca da
sociedade e dos seus vários grupos.
Mas esta centralidade não decorria apenas do carácter massivo de
produção escrita, que inaugurou aquilo a que Pierre Legendre chamou “espaços
dogmáticos industriais” 53. Decorria também do lugar que a cultura ético-política do
direito comum reservava à justiça, lugar esse a que, provavelmente, não era
estranho o funcionamento dessa industria dogmática.
A justiça – como equilíbrio, como atribuição do seu lugar a cada coisa (ius
suum cuique tribuendi) - era, de facto, um virtude central numa imagem do mundo
dominada pela ideia de ordem, como era a Weltanschaung de Antigo Regime.
“Arte das artes e governo das almas” (ars artium, & animarum regimen), chamalhe Manuel Álvares Pegas, logo no proémio do seu monumental comentário às
Ordenações filipinas (Pegas, 1669, I, in proem., gl. 23,n. 2). Com bom
fundamento, pois já S. Tomás de Aquino lhe atribuíra uma posição destacada no
quadro da sua lista das virtudes (Summa theol., IIa.IIae, q. 57-122). A justiça tinha
virtudes anexas: a religião, a piedade, a reverência, a gratidão, a verdade, a
amizade, a liberalidade e a equidade. Em todas elas, havia “alteridade”, ou seja,
havia deveres a cumprir para com outrem; ou para com Deus, ou para com os
pais ou superiores, ou para com os amigos, ou para com a propria natureza das
coisas (como no caso da verdade e da honestidade). Por isso, “como a justiça diz
respeito aos outros – explica S. Tomás – todas as virtudes relativas a outrem são
conexas coma Justiça, pois têm algo em comum com ela. O mundo das virtudes
só não se reduzia à justiça ou porque, estando esta última relacionada com a
igualdade (cf. ib., a.11), nem todas as outras se lhe podiam identificar, uma vez
que algumas careciam de igualdade nas recíprocas prestações (o caso mais
típico era a religião cf. q. 80, a. un.); ou porque, noutras delas, a “razão do débito”
não era estritamente jurídico.
Mas, basicamente, podia ser dito que justo era todo o comportamento
devido e que se podia pretender, em nome da justiça, não apenas as dívidas do
direito, mas o respeito filial, a reverência social, a gratidão pelas mercês, a
amizade merecida e aprópria correspondência no amor. E, por isso, o que Deus
erigia, no Fim dos Tempos, era precisamente um Tribunal, um juízo, chamando
“justos” aos da sua direito e “injustos” ao da sua esquerda 54.
***
52
A. M. Hespanha, "Centro e periferia no sistema político português do Antigo Regime", Ler história, 8(1986), 35-
53
Pierre Legendre. L'empire de la vérité. Introduction aux espaces dogmatiques industriels. Fayard, 1983
60.
54
A. M. Hespanha, "Justiça e administração nos finais do Antigo Regime", em Hispania. Entre derechos proprios
y derechos nacionales, Milano, Giuffrè, 1989, 135-204.
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A centralidade a que acabamos de aludir explica a pervasividade de
conceitos jurídicos no discurso cultural e social pré-moderno. A. Gurevic descreve
a cultura medieval como “construída sobre o direito”, retomando a conhecida
designação utilizada por F. Chabod para descrever a cultura da Europa
meridional, no Antigo Regime – la civiltà della carta bollata, a cultura do papel
selado.
De facto, a centralidade, aliada à longa permanência da cultura jurídica
ocidental – cujo corpus doutrinal se mantém durante séculos e séculos -, fizera
com que ela tivesse embebido os esquemas mais fundamentais de apreensão
cognitiva e valorativa do mundo, instituindo grelhas de distinção e de
classificação, maneiras de descrever, constelações conceituais, regras de
inferência, padrões de valoração. Esquemas que se tinham incorporado na
própria linguagem; que se tinham tornado comuns numa literatura vulgar ou em
tópicos e brocardos; que se exteriorizavam em manifestações litúrgicas, em
programas iconológicos, em práticas cerimoniais, em dispositivos arquitectónicos.
E que, por isso, tinham ganho uma capacidade de reprodução que ia muito para
além daquela que decorria dos textos originais em si mesmos. A tradição literária
teológica, ética e jurídica constituía, assim, um habitus de auto-representação dos
fundamentos antropológicos da vida social. Neste sentido, a sua acção de
modelação dos comportamentos antecedia mesmo qualquer intenção explicita e
conscientemente normativa, pois decorria de que a tradição jurídica inculcava
necessariamente uma panóplia completa de utensílios intelectuais de base,
necessários à apreensão da vida social.
Porém, a literatura jurídica era tudo menos puramente descritiva. A sua
carga preceptiva era enorme.
Primeiro porque, nela, o tom descritivo decorre, desde logo, de uma crença
na indisponibilidade da ordem do mundo. As suas proposições apareciam
ancoradas, ao mesmo tempo, na natureza e na religião. De facto, o que aparece,
como que descrito, nos livros de teologia e de direito constitui o dado inevitável da
natureza ou o dado inviolável da religião. Os estados de espírito dos homens
(affectus), a relação entre estes e os seus efeitos externos (effectus), eram
apresentados como modelos forçosos de conduta, garantidos a montante pela
inderrogabilidade da natureza e, a jusante, pela ameaça da inevitável perdição
eterna e também da eventual punição terrena.
Depois porque, para além de decorrer de uma crença, a descrição era,
também, um expediente retórico para reforçar a perceptividade. Este tom
descritivo inculcava. Na verdade, a inelutabilidade natural de que as normas
morais e jurídicas apareciam revestidas.
Em suma, apesar de todas as aparências estilísticas, intenção dos textos
ético-jurídicos não era a de descrever o mundo, mas de o transformar.
Transformar, porém, mais por meio da sua eficácia simbólica de constituir
imagens, do que pela sua capacidade de enunciar normas de comportamento
efectivamente dotadas de coação 55.
55
Cf. Austin Sarat e Thomas R. Kearns (cords.), The Rhetoric of Law, Ann Harbor, University of Michigan Press ,
1995.
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20
***
Deste modo, os textos jurídicos têm, ao nível da sociedade, uma estrutura
semelhante à do habitus, tal como é concebido por Pierre Bourdieu. Por um lado,
constituem uma realidade estruturada (pelas condições de uma prática discursiva
embebida em dispositivos textuais, institucionais e sociais específicos), que
incorpora esquemas intelectuais cuja adequação ao ambiente fora comprovada 56.
Mas, por outro, constituem uma realidade estruturante que continua a operar para
o futuro, inculcando esquemas de apreensão, avaliação e acção.
Tanto os intuitos práticos, como o apelo a valores universais como a
natureza e a religião, favoreciam a difusão destes modelos mentais e pragmáticos
em auditórios culturalmente muito diferentes do grupo dos produtores. Para além
disso, os ambientes institucionais em que os textos eram produzidos dispunham
de "interfaces de vulgarização" muito eficazes (a parenética, a confissão auricular,
a literatura de devoção, a liturgia, a iconologia sagrada, para a teologia; as
fórmulas notariais, a literatura de divulgação jurídica, os brocardos, as decisões
dos tribunais, para o direito), por meio dos quais os textos-matriz obtinham
traduções adequadas a uma grande multiplicidade de auditórios.
É este secular embebimento que tornaram a moral e o direito em saberes
consensuais. De resto, esta consensualidade em torno das suas proposições
fundamentais constituía uma vocação central destes discursos.
Esta vocação para a consensualidade provém, antes de mais, das próprias
condições de produção da tradição literária em que os textos se incluem. Tratase, com efeito, de uma tradição que, durante vários séculos, tinha trabalhado
sobre bases textuais imodificadas e que tinha podido produzir, como que por
sedimentação, as opiniões mais prováveis, i.e., as mais aceitáveis pelo
auditório 57. Esta sedimentação tinha cristalizado o acquis consensual em tópicos,
brocarda, dicta, regras, opiniones communes. Era aí, portanto, que estavam
depositadas as opiniões mais comuns e mais duráveis do imaginário sobre o
homem e a sociedade.
Mas provinha também da intenção prática a que antes já nos referimos. A
educação pela persuasão não se pode levar a cabo senão a partir de um núcleo
de proposições geralmente aceites. Para modificar eficazmente os
comportamentos dos homens, a moral e o direito tinham que partir de bases
consensuais de argumentação e exigir atitudes também não muitos distantes
daquilo que era consensualmente tido como justo.
56
Esta é uma vantagem deste corpo literário sobre a tradição literária ficcional ou puramente ensaística. É que,
aqui, os mecanismos de controle de adequação prática das proposições ou não existem ou têm muito menos força
reestruturante. Uma personagem psicologicamente inverosímil não obriga necessariamente o autor a reescrever uma
novela.
57
Sobre esta íntima relacionação entre o discurso do direito (nomeadamente, do direito de Antigo Regime) e a
aquisição do consenso no âmbito de um auditório, cf. clássicos, Ch. Perelman & L. Olbrechts-Tyteca, Traité de
l’argumentation..., cit ; Luigi Lombardi [Vallauri], Saggio sul diritto giurisprudenziale, cit.
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21
***
O carácter consensual deste núcleo de representações fundamentais não
excluía, evidentemente, visões conflituais, sobre as quais era preciso optar, em
vista da formação de uma regra de comportamento.
O saber teológico-jurídico tinha desenvolvido métodos de encontrar a
solução justa que, por um lado, deixavam aparecer a pluralidade de visões
conflituais e que, por outro, faziam depender a opção entre elas dos consensos
possíveis, registando a solução mais consensual (opinio communis) como a
solução provável (embora não forçosa).
Estes processos metodológicos eram, por um lado, o esquema expositivo
da quaestio e, por outro, a combinação da tópica (ars topica) e da opinião
comum 58.
A quaestio era, simplificando um tanto, um processo metódico de decidir
questões problemáticas: (i) colocando o problema em discussão; (ii) enunciando
as objecções à posição que virá a ser adoptada; (iii) enunciando ainda
cursivamente os contra-argumentos a estas objecções (sed contra); (iv)
enunciando a resposta adoptada (responsio, respondeo quuod); (v) replicando as
objecções iniciais, agora já explicitamente em função da resposta adoptada 59. O
uso deste modo de raciocinar e apresentar os resultados garantia, portanto, um
diálogo regrado e exaustivo entre os argumentos presentes no auditório, tomando
em linha de conta dos conflitos provenientes, nomeadamente, de diferentes
apropriações dos textos, e visando convencer, ganhar adesão, popularizar a
resolução, e não impor unilateral e dogmaticamente uma saída. Uma vez
resolvida a quaestio, a responsio transforma-se num tópico, integrando-se num
capital de proposições (ou lugares) comuns, que será tratado pela tópica.
A tópica, por sua vez, acede ao catálogo das bases consensuais de
qualquer discussão, i.e., aos topoi (argumentos) socialmente aceitáveis. Mas a
tópica garante ainda que a solução final, registada para a posteridade como
opinião comum, é a solução mais consensual, tomada de futuro como base de
novos desenvolvimentos textuais.
Quaestio e topica são, assim, dois poderosos mecanismos de
enraizamento dos textos teológico-jurídicos nos contextos sociais, mecanismos
que transformam estes textos em testemunhos particularmente fiáveis acerca dos
dados culturais embebidos na prática. O lugar central ocupado pelo imaginário
jurídico na representação da sociedade e do poder são disso uma prova
convincente 60.
58
Sobre quaestio e topica, v. A. M. Hespanha, Cultura jurídica europeia. Síntese de um Milênio, Florianópolis,
Fundação Boiteux, cap.5.6.
59
Cf. bibl. Acima sobre retórica e argumentação (Perelman, Lombardi).
60
Outra forma de enraizamento de normas, mas este relevando já mais da retórica do que da dialéctica era o
exemplum, em que um padrão abstracto era corporrizado num caso exemplar, susceptível de concityar adesão emocional.
Sobre o tema, cf. John D. Lyons, Exemplum: The Rhetoric of Example in Early Modern France and Italy, Princeton Univ
Press, 1990; Peter von Moos, Geschichte als Topik : das rhetorische Exemplum von der Antike zur Neuzeit und die
historiae im "Policraticus" Johanns von Salisbury, Hildesheim (Olms) 1988; Claude Bremomy, L’exemplum, Paris, Brepols,
1982 ; Jacques Berlioz, « Le récit efficace : l’exemplum au service de la prédication (XIIIe-XVe siècle », dans Rhétorique et
histoire. L’exemplum et le modèle de comportement dans le discours antique et médiéval, Rome, Ecole française, 1979, p.
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22
No entanto, não eram apenas estes mecanismos de achamento da solução
jurídica que mantinham em contacto textos e senso comum. Exisitiam outros.
As soluções jurídicas letradas eram continuamente justificadas pelo facto
de serem aceites pelas pessoas comuns: por serem longamente usadas (usus
receptae), por estarem enraizadas em práticas sociais (radicatae, praescriptae),
por corresponderem à ordm das coisas, tal como esta era geralmente concebida
(honestae, bonnae et aequae). O próprio quadro das fontes de direito aqceite pela
doutrina exprimia este peo do sentido comum de justiça. No topo estava o
costume (consuetudo), a doutrina mais comumente aceite (opinio communis) e a
prática judicial (stylus curiae, praxis). E era este contínuo escrutínio do senso
comum que era completado pelas referidas técnicas de decisão da quaestio e da
topica.
Mas a conversação entre direito letrado e senso comum ainda não termina
aqui.
Uma vez obtida, a decisão torna-se num osso mais desse esqueleto da
vida quotidiana formado pelo “direito praticado e recebido” (ius receptum vel
praticatum). De facto, os casos decididos integrariam o horizonte das normas
morais e das expectativas da comunidade. De novo, o processo de reelaboração
doutrinal do sentido social de justiça continuava. Trabalhando sobre esta acquis
de decisões práticas os juristas destilavam regula ou brocarda, curtas frases ou
epigramas em que se concentrava a sabedoria jurídica prática e que podiam ser
facilmente apreendidos pelos não leigos em direito. Nesta fase, as construções
letradas estruturadas pelo senso comum voltavam à vida quotidiana, tornando-se,
de novo, estruturantes. Enfim, a conhecida imagem bi-fronte –
estruturado/estruturante – que P. Bourdieu aplica ao habitus.
***
Mas não será que justamente o intuito preceptivo da teologia, da moral e
do direito prejudica a relevância dos seus textos como testemunhos das relações
sociais? Ou seja, nestes textos o pathos normativo não os fará estar mais atentos
ao dever ser do que ao ser? Não lhes dará uma coloração mistificadora,
"ideológica", que os inutilize como fontes idóneas da história?
Alguns reparos feitos por historiadores à utilização destas fontes insistem
justamente neste ponto.
Por isso é que, para alguns, a estas fontes carregadas de intenções seriam
de preferir fontes não intencionais, subprodutos brutos da prática, como peças
judiciais, petições, descrições e memoriais. Ou seja, textos que não foram escritos
para constituir modelos de acção, mas antes que foram escritos sob a modelação
da acção.
113-146 ; P. J. Schneemann, « Lire et parler. La réception de l’exemplum virtutis », em Gaehtgens, Thomas W., et al., L’art
et les normes sociales au XVIIIe siècle, Paris, MSH, 2001; Carlo Delcorno, Exemplum e letteratura : tra Medioevo e
Rinascimento, Bologna, Il Mulino, 1989 ; José Aragues Aldaz, « Deus concionator."Mundo predicado y retórica del
"exemplum" en los Siglos de Oro, Rodopi Bv Editions, 1999. Bibliografia de exempla, em
http://www.ehess.fr/centres/gahom/Bibliex.htm (2002.10.30)
841064938 (29/05/2017 07:02:00)
23
É provável que a preferência pelas “fontes meramente aplicativas” em
relação às “fontes doutrinais”, do ponto de vista da sua "fidelidade ao real",
repouse num conceito de ideologia como consciência deformada e do discurso
ideológico como discurso mistificador, discurso que poderia ser oposto a outros
meramente denotativos, que reproduziriam sem mediações o "estado das coisas".
Este conceito de ideologia não reúne hoje muitos sufrágios, pois não se aceita
geralmente que, por oposição ao discurso ideológico, existam discursos não
deformados, dando neutralmente conta da realidade. E, assim, entre um texto
explicitamente normativo e um texto aparentemente denotativo, a diferença que
existe é apenas a de duas gramáticas diferentes de construção dos objectos.
Porque, afinal, a realidade dá-se sempre como representação. Com a
desvantagem de que, nos discursos não explicitamente normativos, esta
gramática se encontra escondida, encapsulada em actos discursivos
aparentemente neutros, ou fragmentada em manifestações parciais, pelo que as
suas explicitação e reconstrução global constituem um trabalho suplementar. Até
por razões de economia da pesquisa, vale mais a pena ler o que os teólogos e
juristas ensinavam, longa e explicadamente, sobre, por exemplo, a morte, do que
procurar, através da leitura de milhares de testamentos, perscrutar a sensibilidade
comum sobre ela.
A vocação consensualista da literatura teológico-jurídica, a que nos
referimos não excluía, porém, que na sociedade moderna convivessem
representações diversas dos valores que, por sua vez, comandavam práticas de
sentidos diversos ou até abertamente conflituais.
A sociedade moderna não era, evidentemente, uma sociedade unânime.
As pessoas não actuavam sempre da mesma maneira, mesmo em contextos
práticos objectivamente equivalentes. Ou seja, os seus sistemas de apreensão e
avaliação do contexto, bem como os de eleição da acção e de antecipação das
suas consequências não eram sempre os mesmos.
Alguns destes conflitos situam-se a um nível mais superficial de avaliação
e decisão, no seio de um espaço de variação deixado pelos modelos mais
profundos de representação e de avaliação veiculados pela tradição teológicojurídica. Ou seja, os actores sociais tiram partido da própria natureza
argumentativa do discurso teo-jurídico, optando por um ou por outro tópico, mais
coerente com os outros seus sistemas particulares de cálculo pragmático.
Estas situações não escapam, porém, a análise discursiva proposta. Por
um lado, estes sub-modelos "tópicos" são apenas opções possíveis dentro de um
sistema de categorias mais profundo. Pode optar-se pela preferência das "armas"
sobre as "letras" ou, pelo contrário, pela das "letras" sobre as "armas" e construirse, sobre cada uma das opções, uma estratégia discursiva e prática própria. Mas
o catálogo dos argumentos a favor de cada posição e até as formas alternativas
de os hierarquizar estão fixadas num meta-modelo comum compendiando as
bases culturais de consenso que, justamente, permitem que as suas posições
dialoguem 61. Ou seja, as diferentes apropriações do conjunto contraditório de
tópicos que integram o sistema discursivo do direito não saltam para fora da sua
61
Mas que, por exemplo, exclui uma discussão do mesmo género sobre a preferência do estado "nobre" e do
estado "mecânico".
841064938 (29/05/2017 07:02:00)
24
sistematicidade, a um nível mais profundo, tal como as posições contraditórias
das partes num processo não estoiram com as normas de decisão processual 62.
Não cremos, no entanto, que seja prudente erigir o modelo cultural
subjacente ao espírito das instituições e da literatura doutrinal do direito como um
modelo global, um pouco como faz Louis Dumont para os quadros mentais
subjacentes às hierarquizações sociais da cultura hindu 63. Existem,
evidentemente, modelos de representação estranhos ao discurso dos teólogos e
dos juristas. Por exemplo, para a época primo-moderna peninsular, o modelo do
mundo dos “políticos”, fundado em valores (como o da oportunidade ou da
eficácia, concebidas como adequação a um único ponto de vista) 64, que são
claramente antipáticos aos fundamentos da imagem da sociedade que enforma o
discurso da teologia moral e do direito. Como há outros modelos radicalmente
alternativos, de minorias culturais (judeus, mouros, heréticos) ou de grupos
subalternos (bruxas, “libertinos”, mulheres), embora haja, a meu ver, que ir com
cuidado na pretensão, muito comum hoje, de buscar “outros” ... naqueles que, nas
suas estruturas básicas de pensamento e sensibilidade são “mesmos”. Bem como
há que não cair na ilusão de que estes discursos minoritários ou reprimidos são
os protagonistas da história cultural da época, tema a que já voltarei.
O discurso dos teólogos e dos juristas apenas permite o acesso a estas
“outras” constelações cognitivas e axiológicas em contraface, na medida em que
com elas polemiza. E nem isso, quando nem sequer é obrigado a polemizar com
elas, limitando-se a desqualificá-las pelo silêncio ou pelo desdém 65.
Naturalmente que estes modelos "variantes" (num caso) ou "alternativos"
(no outro) devem ser considerados pelo historiador ao traçar o quadro dos
paradigmas de organização social e política da sociedade moderna.
A sua eficácia em meios sociais determinados deve ser contextualizada.
Não necessariamente nos termos de uma contextualização "social", sobretudo
atenta aos "interesses" dos grupos, mas de uma contextualização cultural, que
tenha em conta os sistemas cognitivos e axiológicos próprios desses grupos de
que, justamente, decorrem os seus "interesses".
Porém, os respectivos peso e difusão sociais - e, logo, a sua capacidade
para dar sentido (para "explicar") as práticas - destes modelos alternativos de
cálculo pragmático devem ser tidos em conta.
Ora, pelas razões já antes referidas, parece-me que os discursos
alternativos à teologia moral e ao direito são, durante toda a Época Moderna,
francamente minoritários. Não devendo ser sobrevalorizados quando se trata de
descrever condutas massivamente dominantes, são, em todo o caso, muito
importantes para explicar as resistências aos poderes estabelecidos e, também,
os processos de ruptura e desintegração do universo cultural moderno que
conduzem à substituição pelo universo cultural contemporâneo.
62
Ou as estratégias opostas de dois jogadores não dessoram o património comum das regras do jogo.
63
Dumont, 1966.
64
V.g., a oportunidade ou eficácia do ponto de vista do interesse da coroa, deixando inatendidos os pontos de
vista de outros interesses, cuja consideração conjunta e equilibrada constituía, precisamente, a justiça.
65
Como acontece com o "direito dos rústicos", ignorado ou referido depreciativamente como os usos dos
ignorantes ou dos rudes, a que adiante nos referiremos.
841064938 (29/05/2017 07:02:00)
25
2.
A Ordem.
2.1.
Cosmos. A ordem - uma categoria do político na época moderna.
A ideia de ordem é central na imaginação política e jurídica moderna.
Numa sociedade profundamente cristã, o próprio relato da Criação (Génesis, I)
não pode ter deixado de desempenhar um papel estruturante. Aí, Deus aparece,
fundamentalmente, dando ordem às coisas: separando as trevas da luz,
distinguindo o dia da noite e as águas das terras, criando as plantas e os animais
"segundo as suas espécies" e dando-lhes nomes distintos, ordenando as coisas
umas para as outras (a erva para os animais, estes e os frutos para os homens, o
homem e a mulher, um para o outro e ambos para Deus) 66.
Esta narrativa da Criação - ela mesmo resultante de uma antiquíssima
imagem do carácter espontaneamente organizado da natureza - inspirou
seguramente o pensamento social medieval e moderno, sendo expressamente
evocada por textos de então para fundamentar as hierarquias sociais. Nas
Ordenações afonsinas portuguesas (1446), esta memória da Criação / Ordenação
aparece a justificar que o rei, ao dispensar graças e, com isso, ao atribuir
hierarquias políticas e sociais entre os súbditos, não tenha que ser igual para
todos: "Quando Nosso Senhor Deus fez as criaturas assi razoáveis, como aquelas
que carecen da razão, não quiz que dois fossen iguais, mas estabeleceu e
ordenou cada uma em sua virtude e poderio departidos, segundo o grau em que
66
1. No princípio, Deus criou os céus e a terra. -2. -A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e
o Espírito de Deus pairava sobre as águas. -3. -Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita. -4. -Deus viu que a luz era
boa, e separou a luz das trevas. -5. -Deus chamou à luz DIA, e às trevas NOITE. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o
primeiro dia. -6. -Deus disse: "Faça-se um firmamento entre as águas, e separe ele umas das outras". -7. -Deus fez o
firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima. -8. -E assim se fez.
Deus chamou ao firmamento CÉUS. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o segundo dia. -9. -Deus disse: "Que as
águas que estão debaixo dos céus se ajuntem num mesmo lugar, e apareça o elemento árido." E assim se fez. -10. -Deus
chamou ao elemento árido TERRA, e ao ajuntamento das águas MAR. E Deus viu que isso era bom. -11. -Deus disse:
"Produza a terra plantas, ervas que contenham semente e árvores frutíferas que dêem fruto segundo a sua espécie e o
fruto contenha a sua semente." E assim foi feito. -12. -A terra produziu plantas, ervas que contêm semente segundo a sua
espécie, e árvores que produzem fruto segundo a sua espécie, contendo o fruto a sua semente. E Deus viu que isso era
bom. -13. -Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o terceiro dia. -14. -Deus disse: "Façam-se luzeiros no firmamento dos
céus para separar o dia da noite; sirvam eles de sinais e marquem o tempo, os dias e os anos, -15. -e resplandeçam no
firmamento dos céus para iluminar a terra". E assim se fez. -16. -Deus fez os dois grandes luzeiros: o maior para presidir
ao dia, e o menor para presidir à noite; e fez também as estrelas. -17. -Deus colocou-os no firmamento dos céus para que
iluminassem a terra, -18. -presidissem ao dia e à noite, e separassem a luz das trevas. E Deus viu que isso era bom. -19. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o quarto dia. - 20. -Deus disse: "Pululem as águas de uma multidão de seres vivos,
e voem aves sobre a terra, debaixo do firmamento dos céus." - 21. -Deus criou os monstros marinhos e toda a multidão de
seres vivos que enchem as águas, segundo a sua espécie, e todas as aves segundo a sua espécie. E Deus viu que isso
era bom. - 22. -E Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, e enchei as águas do mar, e que as aves se
multipliquem sobre a terra." - 23. -Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o quinto dia. - 24. -Deus disse: "Produza a terra
seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selvagens, segundo a sua espécie." E assim se
fez. -2 5. -Deus fez os animais selvagens segundo a sua espécie, os animais domésticos igualmente, e da mesma forma
todos os animais, que se arrastam sobre a terra. E Deus viu que isso era bom. -26. -Então Deus disse: "Façamos o homem
à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra." - 27. -Deus criou o homem à sua
imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. - 28. -Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicaivos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se
arrastam sobre a terra." - 29. -Deus disse: "Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as
árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento. - 30. -E a todos os animais
da terra, a todas as aves dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda erva
verde por alimento." E assim se fez. - 31. -Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a
tarde e depois a manhã: foi o sexto dia [...] .
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as pôs. Bem assim os Reis, que em lugar de Deus na terra são postos para reger
e governar o povo nas obras que hão-de fazer - assim de justiça, como de graça e
mercê - devem seguir o exemplo daquilo que ele fez [...]" (Ord. Af., I, 40, pr.).
Também a filosofia grega e romana antigas confirmavam este carácter
naturalmente organizado do universo natural e humano.
Para Aristóteles, o mundo estava finalisticamente organizado. As coisas
continham na sua própria natureza uma inscrição (um gene, por assim dizer) que
"marcava" o seu lugar na ordem do mundo e que condicionava, não somente o
seu estado actual, mas também o seu futuro desenvolvimento em vista das
finalidades do todo. Era este gene que criava nas coisas “apetites” (affectus,
amor, philia) internos que as encaminhavam espontaneamente para a ocupação
dos seus lugares naturais e para o desempenho das suas funções no todo. No
caso dos homens, este gene determinava o seu instinto gregário (affectus
societatis), a sua natureza essencialmente política, o desempenho dos seus
papéis políticos no seio de uma sociedade organizada em vista do bem comum.
Neste sentido, era legitimo falar de um equilíbrio natural ou de um justo por
natureza (dikaión physikon) (cf. Villey, 1968). Os estóicos insistiam na existência
de um poder criador e ordenador (pneuma, logos), que daria movimento ao
mundo e que o transformaria num mundo ordenado (cosmos) (v. Villey, 1968,
428-80; Thomas, 1991).
O pensamento medieval herda tudo isto, fundindo ambas as concepções
num sincretismo por vezes difícil de deslindar. Fundamentalmente, na famosa
polémica entre “realistas” e “nominalistas”, que domina o pensamento escolástico,
o que os “realistas” querem sublinhar é que da essência das coisas faz parte a
sua natureza relacional, no conjunto do todo da Criação. Que - em particular -, no
mundo humano, não há “indivíduos”, isolados e socialmente incaracterísticos.
Mas que há “pais”, “filhos”, “professores”, “alunos”, “homens”, “mulheres”,
“franceses”, “alemães”, essencialmente relacionados uns com os outros por meio
de pedículos essenciais, predicados, atributos, que os referiam, por essência, uns
aos outros, que os marcavam, por natureza, como membros determinados da
cidade, como sujeitos políticos (v. Villey, 1981).
Para além das concepções reflectidas dos filósofos, a ideia de uma ordem
objectiva e indisponível das coisas dominava o sentido da vida, as representações
do mundo e da sociedade e as acções dos homens.
Honestidade, honra e verdade, palavras centrais na linguagem política e
jurídica da época, remetiam para esta ideia corrente de que o comportamento
justo era o que guardava a proporção, o equilíbrio, o modo (moderação) ou a
verdade do mundo, das pessoas, das coisas. Viver honestamente - que passava
por ser um dos preceitos básicos do direito (cf. D., 1,1,10, pr.) - era aderir à
natureza das coisas, da ordem natural do mundo. Ser honrado era respeitar a
verdade das coisas e esta era a sua natureza profunda, à qual devia corresponder
a sua aparência. Por isso que o comportamento manifestava a natureza, a
honestidade e a verdade eram as qualidades daquele que se portava como devia,
como lhe era pedido pela sua natureza. Assim, o nobre não se devia comportar
como plebeu, se queria manter a honra. Que a mulher honesta (que respeita a
sua natureza) se devia comportar como tal, sob pena de não ser tida como
honrada. E por aí adiante.
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Daqui resulta a importância atribuída aos dispositivos que visam tornar
aparente a ordem essencial das coisas e das pessoas. Títulos e tratamentos,
trajes "estatutários" (i.e., ligados a um estatuto - clérigo, cavaleiro de ordem
militar, juiz, notário, mulher honesta, prostituta), hierarquia de lugares,
precedências, etiqueta cortesã. As cortes e sociedades ibéricas eram justamente
célebres pelo seu pontilhismo formalista e classificatório. O português era ainda,
até há pouco tempo, um idioma barroco na sua riqueza de formas de tratamento.
Como as coisas deviam parecer o que eram, todo o intento de mascarar ou
de introduzir artificialismos na ordem do mundo era condenável. Ainda hoje, um
dito popular português, exprime, numa grosseria eloquente, essa antipatia pelo
artificialismo e pela inovação: “as putas e os cabrões estão sempre com
invenções”. Dois grupos eles mesmos marcados pela anti-naturalidade estariam
apostados em corromper a estabilidade e a verdade do mundo.
Condenável (mesmo penalmente) era, por isso, toda a forma de falsidade:
falsificar documentos, moeda, metais ou piedras preciosas, mas também usar
nomes o títulos alheios, travestir-se de outro sexo ou de outra qualidade, simular
a gravidez. Condenável era também esse tipo de cultura da afectação e do
simulacro conhecida como a dissimulação, que os círculos intelectuais das cortes
italianas (Baldasare Castiglione [1478–1529], Il cortegiano [1528]) propunham
agora como modelo de comportamento áulico (cf. Villari, 1987). Contra ela
reagiam, em Espanha, Portugal e Itália, as vozes casticistas, opondo a esta
cultura cortesã da mentira a simples e verdadeira cultura aldeã ("corte de aldeia",
v.g., António de Guevara, Menosprecio de corte e alabanza de aldea, 1539;
Francisco Rodrigues Lobo, Corte de aldeia ou noites de inverno, 1618). No
Portugal nostálgico do início do séc. XVII, lamentavam-se ainda as novidades
suspeitas das modas de corte importadas de Madrid, como os cabelos compridos
dos homens ou a profusão de rendas nos seus trajos, ambas contrárias ao que se
designava como "o estilo severo português antigo", a capa e o chapeirão negros.
Finalmente, era ainda condenável reinventar uma ordem para o governo do
mundo, a golpes de imaginação política ou de textos legais.
A intervenção da imaginação e da vontade nas coisas do governo, ainda
que não estivesse excluída de princípio, deveria ser mínima. Neste contexto, à
razão dos conselheiros, peritos e letrados, costumava opor-se a intervenção
pessoal do rei, voluntária e impetuosa:
"O Supremo Senhor - escreve João Salgado de Araújo, citando Frei Juan
de Santa Maria -, por quem reinam os Príncipes da terra, fez causas principais do
governo deste mundo visível os anjos, céus, estrelas e elementos, obrando por
estas causas segundas os efeitos naturais, a não ser que queira mostrar a sua
omnipotência. E por imitar a Deus os Príncipes, encarregaram o governo de seus
Impérios, e Reinos a sábios e prudentes varões, deixando correr o despacho pelo
o curso ordinário da consulta e sábias determinações que tomam os seus
conselheiros, ainda quando o Príncipe fazia alguns milagres, obrando sem
dependências, como dono do governo, para que soubesse o povo, que o seu Rei
tinha caudal para tudo, e que era poderoso para fazer por si só o que no seu
nome fazia o mais destro conselheiro" (João Salgado de Araújo, Ley regia de
Portugal, Madrid, 1627, n. 120 , p. 44).
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Deste texto (directamente inspirado na teoria escolástica das causas
segundas) resulta claro que o governo ordinário - i.e., dirigido à manutenção do
ordem das coisas e organizado segundo os procedimentos estabelecidos e
ordinários - deve constituir a norma. E que, ao revés, a inovação, a criação de
feitos políticos inusitados, a eleição de vias singulares de governo, são como que
milagres que o rei deve utilizar apenas como ultima ratio. Eram considerações
deste tipo que condenavam os projectos e estilos políticos dos arbitristas. Estas
figuras típicas do pessoal político ibérico do século XVII imaginavam planos e
expedientes (artifícios) para reformar a politica. Outros que, para retomar o
provérbio anterior, estavam sempre com invenções. A própria designação deste
género de literatura politica ("alvitre", do latin arbitrium) já denota o seu carácter
artificial e artificioso - i.e., não natural, já que arbitrim se opõe a ratio, razão,
equilíbrio, sentido do ordem.
Um outro aspecto da ordem era o de estabelecer vínculos tão necessários
entre as coisas que se podia dizer que os comportamentos correspondentes a
estes vínculos se convertiam em comportamentos devidos por uma espécie de
direito da natureza.
É nesta perspectiva que S. Tomás define o débito como "ordem de exigir,
ou necessidade de alguém em relação ao que está ordenado [= posto em ordem]"
(Summ. theol., Ia, q. 21, 1 ad 3). Como existe uma ordem entre as criaturas que
cria dívidas recíprocas entre elas, pode dizer-se que as relações estabelecidas
nessa ordem constituem deveres. E, logo, que a ordem institui um direito, um
direito natural. E como a soma dos deveres das criaturas entre si é também
devida à ordem, ou seja, a Deus, o cumprimento dos deveres recíprocos é, em
certa medida, um dever para com Deus e, logo, o tal direito natural acaba por ser
um direito divino: "É devido a Deus que se realize nas coisas aquilo que a sua
sapiência e vontade estabeleceu e que a sua bondade manifesta ... É devido a
cada coisa criada que se lhe atribua o que lhe foi ordenado ... e assim Deus faz
justiça quando dá a cada um o que lhe é devido segundo a razão de sua natureza
e condição" (cf., também, Summ. theol., Ia-Iae, q. 111, 1 ad 2).
2.2.
Consequências institucionais.
Esta pré-compreensão da sociedade como um todo ordenada de partes
autónomas e desiguais constitui a moldura explicativa do modo de ser das estruturas
institucionais modernas, tanto metropolitanas como coloniais. Ver os meus seguintes
textos (onde se indica muita bibliografia em apoio, no mesmo sentido):
 “O debate acerca do Estado Moderno”, em José Tengarrinha (coord.), A
historiografia portuguesa, hoje, A. Paulo, Editora HUCITEC, 1999, 135-147; .
Paulo, EDUSC-UNESP, 2001, 117-182.
 “Qu’est-ce que la constitution dans les monarchies ibériques de l’époque
moderne”, Themis, 2000(2001), 5-18.
 “A Constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos”, em
Maria Fernanda Bicalho, José Fragoso, et alii, O Antigo Regime nos trópicos. A
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2001, 163-188.
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 “Estruturas político administrativas do Império português”, em Outro mundo
novo vimos. Catálogo, Lisboa, CNCDP, 2001.
 "Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro",
comunicação ao Encontro Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de
governar no Mundo Português – sécs. XVI a XVIII, Departamento de História e
Linha de Pesquisa História Social da Cultura/PPGHIS, IFMG, Belo Horizonte;
em Quaderni fiorentini per la Storia del pensiero giuridico moderno, 35(2006),
59-81.
 "Porque é que foi portuguesa a expansão portuguesa?”, comunicação
apresentada ao Colóquio Internacional do Centro de História do Além Mar (“De
um e de outro lado do Atlântico”), 2-4 Novembro 2005. em Patrimonia. Revista
do Departamento de História da Universidade do Algarve, 4.4.(2006)319-352,
bem nas actas do encontro O Governo dos Povos. Poder e administração no
Império Português, UFF, Paraty, 2005.
 “Las estructuras del imaginario de la movilidad social en la sociedad de antíguo
régimen”, em F. Chacón Jiménez, Nuno G. Monteiro (eds.), poder y movilidad
social. Cortesanos, religiosos y oligarquias en la Península Ibérica (siglos XVXIX), Madrid, CSIC2006,21-42; (a publicar em versão, em 2007, pelo
Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Brasil); “A
mobilidade social no Antigo Regime”, em Tempo, 21(2007) 133-157.
 “Depois do Leviathan”, em Almanack Braziliense, nº 5 (2007) – revista
electrónica (http://www.almanack.usp.br/neste_numero/index.asp?numero=5)
 “Antigo Regime nos Trópicos? Um debate sobre o modelo político do Império
Colonial Português”, em Fátima Gouvês e tal. (ed.), Na trama das redes (em
publicação).
***
2.3.
Ordem e estado.
A ideia de ordem nesta sociedade tradicional faz do mundo o reino da
diversidade, um enorme conjunto de coisas infinitamente diferentes entre si e, em
virtude destas diferenças, hierarquizadas (ordo autem in disparitate consistit, [de
facto, a ordem consiste na desigualdade das coisas]). A perfeição da Criação
residia justamente na heterogeneidade das coisas e no modo como esta
heterogeneidade as enlaçava, umas e outras, em vista de uma participação
harmónica no fim comum.
A diversidade, que estava na natureza da criação, modelava também a
natureza de cada criatura. De acordo com o modo de ser da sua integração no
todo, esta adquiria uma disposição estável, uma permanente maneira de estar,
uma espécie de hábito correspondente à sua função natural. A isto se dava a
designação de “estado”, palavra que remete para a ideia de estabilidade e de
equilíbrio, e que S. Tomás define como "aquela diferença de posição de acordo
com a qual alguém está disposto segundo o modo da sua natureza, gozando de
uma certa estabilidade” (Summa theol.. IIa.IIae, q, 183, 1. resp.).
Este imagem de polifonia, de um canto coral a muitas vozes, ou de
orquestras de anjos que celebram a harmonia (outro termo musical) do universo,
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30
constitui, por isto, um tópico corrente para referir a diversidade e coerência do
mundo.
***
2.4.
Perfeição e diferença.
Nesta ordem hierarquizado, a diferença não significaria – pelo menos numa
perspectiva muito global da criação, que tem em conta a sua origem primeira e o
seu destino último - imperfeição ou menos perfeição de uma parte em relação às
outras. Significaria antes uma diferente inserção funcional, uma cooperação, a
seu modo específica, no destino final (escatológico) do mundo. Assim, em rigor,
subordinação não representaria menor dignidade, mas antes apenas um
específico lugar na ordem do mundo, que importaria a submissão funcional a
outras coisas.
Os próprios anjos, seres perfeitos, não escapavam à ordem, estando
organizados em nove graus distintos.
No plano da teologia política, esta ideia da idêntica dignidade de todos os
homens levava a uma explicação optimista dos laços de submissão. Estes não
decorreriam do pecado original (como queria a teologia política alto-medieval)
mas antes da própria natureza ordenada do mundo.
A diferença não devia ser reduzida. Pelo menos. Mesmo a diferença
religiosa, pois o mal também tem um lugar na ordem do mundo. “Oportet
haereses esse”, escreve Tertuliano (no seu Libellus adversus omnes haereses, c.
198 a.D.), repetindo S. Paulo (ad Cor., XI, 19), enquanto que a doutrina
estabelecida sobre a guerra justa não cessa de condenar a conversão forçada, na
linha das decisões do Concílio de Constança (1414-1417) 67.
Mas a diferença consistia também na desigualdade política. Esta
compatibilização entre a perfeição do homem e a existência de desigualdades e
de hierarquias políticas não deixava de criar uma aparente paradoxo. De facto,
como se explicaria que Deus, o Ser Perfeito, criando o homem à Sua imagem e
semelhança, tivesse introduzido diferenças entre os homens ? Por outras
palavras, como explicar que os homens, que antes da queda eram a imagem da
perfeição, tivessem conhecido entre si a desigualdade. Como se explica que
houvesse dissemelhanças entre seres que eram a imagem da Identidade ?
Francisco Suarez trata este tema no seu curto tratado De Deo uno et trino
(1599), iniciando uma discussão sobre o modo de viver dos homens no estado de
inocência, isto é, se não tivesse havido pecado original (cf. l. V, "De statu quem
habuissent in hoc mundo viatores, se primi parentes não peccassent"; cf. também
S. Tomás, Summa theol., IIIa, I, qs. 91 a 95). Há muito de curioso neste ensaio de
imaginação antropológica. Como se reproduziriam, que comeriam, como se
vestiriam, como consumiriam o tempo, os homens em estado de natureza perfeita
67
V., adiante, sobre a doutrina católica da guerra justa.
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?. Por outras palavras, o que seria a perfeição humana. Neste momento,
interessa-nos sondar brevemente o ideal de perfeição política na pristina utopia
imaginada por Suarez.
Mesmo nesta ordem perfeita, Suarez imaginava que haveria desigualdade
de estados, assim como governo político. No entanto, a desigualdade de estados
não poderia derivar de alguma imperfeição intrínseca, pois os homens seriam
todos perfeitos. Derivava antes "da circunstância dos elementos, da influência dos
céus, da diversidade dos alimentos e dos humores" (n. 3). O governo e sujeição
políticos (dominium iurisdictionis) - que também implica desigualdade (desde logo,
entre governantes e governados) -, por sua vez, decorreria das vantagens da
associação (entre pessoas diferentes e complementares) e da necessidade
natural de governo que a associação supõe (n. 11, p. 238). Embora este governo
fosse não coactivo (porque os homens perfeitos não poderiam sofrer penas), mas
só directivo e aceite espontaneamente por mero desejo de perfeição ([pg. 238]). A
ordem, e a desigualdade que ela comporta, seriam, assim, compatíveis com a
plenitude e a perfeição. Não importando um menor valimento de uns seres em
relação aos outros, pelo menos numa visão escatológica da criação.
O mesmo tipo de raciocínio já ocorria em S. Tomás de Aquino, quando ele
discute a compatibilidade entre a perfeição e unidade da Igreja e a existência de
diferentes estados no seu seio (cf. S. Tomás, Summa theol., IIa.IIae, q. 183, a. 2).
Como aí se explica, a diferenciação dos estados corresponde à única forma de
traduzir, no plano das coisas naturais, a imensa perfeição de Deus: "nas coisas da
natureza, a perfeição, que em Deus se encontra de forma simples e uniforme, na
universalidade das criaturas não pode encontrar-se a não ser de modo disforme e
múltiplo" (ibid.).
Esta ideia de que todos os seres se integram, com igual dignidade, na
ordem divina, apesar das hierarquias aí existentes, explica a especialíssima
relação entre humildade e dignidade que domina o pensamento social e político
da Europa medieval e moderna. O humilde deve ser mantido na posição
subordinada e de tutela que lhe corresponde, designadamente na ordem e
governo políticos. Mas a sua aparente insignificância esconde uma dignidade
igual à do poderoso. E, por isso, o duro tratamento discriminatório no plano social
(na ordem da natureza, do direito) é acompanhado de uma profunda solicitude no
plano espiritual (no plano da graça, da caridade, da misericórdia). Este
pensamento - que se exprime na parábola evangélica dos lírios do campo e se
ritualiza nas cerimónias dos lava pés - explica, ao lado das drásticas medidas de
discriminação social, jurídica e política dos mais humildes (miserabiles pessoae,
pobres, mulheres, viúvas, órfãos, rústicos, indígenas americanos), a protecção
jurídica e a solicitude paternalista dos poderes para com eles, protecção que inclui
uma especial tutela do príncipe sobre os seus interesses: foro especial,
tratamento jurídico mais favorável (favor), por exemplo em matéria de
desculpabilização perante o direito penal, de prova, de presunção de inocência ou
de boa fé.
2.5.
Diferença e hierarquia. Estados, pessoas e individuos.
Qualquer que tenha sido a força desta ideia de que todos os seres tinham,
no plano global da ordem da criação, uma igual dignidade, uma avaliação mais
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matizada exige que se diga que a ideia de ordem sugeriu também outras
perspectivas mais hierarquizadoras. Nomeadamente, a perspectiva de que a
criação era como que um corpo, em que a cada orgão competia uma função, e
que estas funções estavam hierarquizadas segundo a sua importância para a
subsistência do todo.
Este tópico já levava a uma visão diferente da criação, legitimando uma
distinção das coisas e das pessoas em termos de hierarquia e de dignidade.
As criaturas não eram apenas diferentes. Eram também mais o menos
dignas, em função da dignidade do ofício que naturalmente lhes competia. Isto
queria dizer que, existindo na Criação um modelo de perfeição que é o próprio
Deus, este modelo não se reflectia igualmente em todas as criaturas. O homem,
por exemplo, fora criado "à imagem e semelhança de Deus”. Já a mulher não teria
essa natureza de espelho divino. A sua dignidade seria menor; a sua face podia
(e devia) andar coberta, enquanto que a face do homem - imagem de Deus - não
deveria ser velada (v. infra). E entre os homens, alguns - os nobres e ilustres teriam uma especial dignidade, constituindo a parte mais sã da sociedade a que
devia pertencer o governo (respublica a saniore [meliore, digniore] est
gubernanda) .
No plano do direito, as diferenças entre pessoas eram traduzidas pelas
noções de "estado" e de “privilégio”, ou direito particular.
"O estado é a condição do homem que é comum a vários" ensina Antonio
de Nebrija (Vocabularium, 1601). Em princípio, um estado corresponde, como
vimos, a um lugar na ordem, a uma tarefa ou dever (officium) social.
Na sociedade tradicional europeia, identificavam-se três ofícios sociais:
a milícia, a religião e a lavrança. "Defensores são huns dos tres estados, que
Deus quis, per que se mantivesse o mundo, ca bem assy como os que rogan pelo
povo se llaman oradores, e aos que lavran a terra, per que os homes han de
viver, e se manteem, são ditos mantenedores, e os que han de defender são
llamados defensores", pode ler-se nas Ordenações afonsinas portuguesas (1446),
inspiradas nas Partidas (I, 2, 25, pr.).
Mas esta classificação das pessoas podia ser mais diversificada e,
sobretudo, menos rígida. De facto, ela representa apenas uma fórmula, muito
antiga na cultura ocidental (G. Dumézil, La réligion archaïque romaine, Paris,
1967), de representar a diversidade dos estatutos jurídicos e políticos das
pessoas. No domínio da representação em cortes, manteve-se basicamente a
classificação tripartida até aos finais do Antigo Regime. Já noutros planos da
realidade jurídica (direito penal, fiscal, processual, capacidade jurídica e política),
os estados eram muito mais numerosos. Nos distintos planos do direito,
constituíam-se, assim, estatutos pessoais ou estados, correspondentes aos
grupos de pessoas com um mesmo estatuto jurídico (com os mesmos privilégios).
A concepção do universo dos titulares de direitos como um universo de
"estados" (status) leva à "personificação" dos estados. Ou seja a considerar que
uma mesma pessoa tem vários estados e que, como tal, nela coincidem várias
pessoas.
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O fenómeno tornou-se conhecido, para a realeza, depois do célebre livro
de Kantorowicz sobre os vários corpos do rei (Kantorowicz, The King's Two
Bodies:
A Study in Mediaeval Political Theology, ed.orig., 1957). Mas esta pluralidade de
pessoas num só indivíduo era algo de muito mais geral. Como escreve o jurista
português Manuel Álvares Pegas (Pegas, Commentaria …, 1669, XI, ad 2, 35,
cap. 265, n. 21), "nem é novo, nem contrário aos termos da razão, que um e o
mesmo homem, sob diferentes aspectos, use de direitos diferentes". O exemplo
teológico deste desdobramento da personalidade era o do mistério da Santíssima
Trindade, em que três pessoas distintas coexistiam numa só verdadeira. O
mesmo se passava no exemplo, bem conhecido, dos "corpos do rei". Na mesma
pessoa física do monarca coexistiam a sua "pessoa privada" e a sua "pessoa
pública". Ou ainda mais pessoas, como, v.g., se o rei fosse, como era em
Portugal, grão-mestre dos ordens militares; ou Duque de Bragança; neste caso, já
era possível distinguir nele quatro pessoas, "cada qual retendo e conservando a
sua natureza e qualidades, devendo ser consideradas como independentes umas
das outras" (cf. Pegas, 1669, ibid).
Frente a esta multiplicidade de estados, a materialidade física e psicológica
dos homens desaparece. A pessoa deixa de corresponder a um substrato físico,
passando a constituir o ente que o direito cria para cada aspecto, face, situação
ou estado em que um indivíduo se lhe apresenta. A veste torna-se corpo. "Pessoa
- escreve ainda o tradicionalista Lobão no século passado (Lobão, 1828, I, tit. 1,
1) - é o homem considerado como em certo estado", ou seja, considerado sob o
ponto de vista de certa qualidade "conforme à qual [...] goza de direitos diversos
dos que gozam outros homens" (ibid.).
Então, se são as qualidades, e não os seus suportes corporais-biológicos,
que contam como sujeitos de direitos e obrigações, estes podem multiplicar-se,
dando carne e vida jurídica autónoma a cada situação ou veste em que os
homens se relacionem uns com os outros. A sociedade, para o direito, enche-se
de uma plétora infinita de pessoas, na qual se espelha e reverbera, ao ritmo das
suas multiformes relações mutuas, o mundo, esse finito, dos homens. A
mobilidade dos estados em relação aos suportes físicos é tal que se admite a
continuidade ou identidade de uma pessoa, ainda que que mude a identidade do
indivíduo físico que a suporta. Tal é o caso da pessoa do defunto que, depois da
morte, incarna no herdeiro; mas é também o caso do pai, que incarna nos filhos,
mantendo a sua identidade pessoal ("O pai e o filho são uma e a mesmo pessoa
no que toca ao direito civil", Valasco, 1588, cons. 126, n. 12). A relação entre
estado e indivíduo chega a aparecer invertida, atribuindo-se ao estado (à
qualidade) o poder de mudar o aspecto físico do indivíduo; diz-se, por exemplo,
que o estado de escravidão destrói a fisionomia e majestade do homem (cf.
Carneiro, 1851, pg. 69, nota a).
Nestes casos, a realidade jurídica decisiva, a verdadeira pessoa
jurídica, é esse estado, que é permanente; e não os indivíduos, transitórios, que
lhe conferem momentaneamente uma face (cf. Clavero, 1986, max., 36).
Homem que não tenha estado não é pessoa. De facto, há pessoas
que, por serem desprovidas de qualidades juridicamente atendíveis, não têm
qualquer status e, logo, carecem de personalidade. Tal é o caso dos
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escravos ("Quem não tenha nenhum destes estados [civil, de cidadania ou
familiar, status civilis, civitatis, familiae] é havido, segundo o direito romano, não
como pessoa, mas antes como coisa", escreve Vulteius (Vulteius, 1727, cit. por
Coing, 1985, I, 170).
Tal é a sociedade de estados (Ständesgesellschaft), característica do
Antigo Regime e que antecede a actual sociedade de indivíduos.
Entre os juristas, a designação "estado" (status) foi frequentemente
substituída pela de privilégio (o privilégio general). O privilégio, o direito particular
(quasi privata lex), era o meio pelo qual o príncipe - afastava a regra geral,
adaptando a norma às diferentes pessoas (privilegia pessoalia) ou coisas
(privilegia realia), "pois - como escrevia o jurista italiano Camilo Medico - (Iuris
responsa, Nápoles, 1623, IV, 33, nº 1) - na especialidade sempre ocorre algo [de
particular]".
2.6.
Uma ordem universal de criaturas.
Acabo de dizer que situações de privilégio existem tanto em relação a
pessoas como em relação a coisas. Esta constatação remete para uma outra
característica desta ordem universal em que se funda o direito da sociedade
tradicional europeia.
A Criação é como que uma comunidade inter-relacionada, em que mesmo
as coisas brutas podem, em certas circunstâncias, substituir os homens. Cristo,
no seu último regresso a Jerusalém, não deixa de o recordar: "[...] Uns fariseus
disseram-lhe, do meio da multidão, «Mestre, repreende os teus discípulos [que o
aclamavam]». Jesus respondeu: «Em verdade vos digo que, se eles se calarem,
gritarão as pedras» (Luc., 19)". Pelo contrário, o Código civil português de 1867
abre com a enfática declaração de que "Só o homem é susceptível de direitos e
obrigações. Nisto consiste a sua capacidade jurídica ou a sua personalidade" (artº
1).
Este último artigo resume a imagem que, hoje em dia, temos do universo
dos sujeitos de direitos. Para o nosso imaginário jurídico (e político), todos os
homens, mas exclusivamente eles, podem ser titulares de direitos e de
obrigações. Ainda que, vistas as coisas mais em detalhe, a questão não seja
assim tão linear, pode dizer-se que o universo dos actores no palco do direito e da
política corresponde fundamentalmente ao universo dos actores no palco da vida
quotidiana. Os suportes dos direitos e das obrigações são, basicamente, aqueles
mesmos com que nos cruzamos na rua e que consideramos como pessoas.
Excepção feita das “pessoas jurídicas” (associações, fundações, entes públicos
personalizados).
Por outro lado, todas as pessoas jurídicas são iguais e cada uma delas é
uma e uma só. A antropologia jurídica, política (e moral) dos dias de hoje assenta
fortemente nesta ideia da igualdade e da unidade das pessoas, reagindo contra
todas as formas de discriminação entre elas ou de desagregação da sua
identidade pessoal (a esquizofrenia é uma doença; a duplicidade, um defeito
moral; o uso de várias identidades pessoais, um crime).
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35
Para o direito romano, e também para a tradição do direito comum, em
contrapartida, o universo dos titulares de direito não era um universo de pessoas,
no sentido comum da palavra, mas antes - como já vimos - um universo de
"estados" (status).
Ao criar o mundo, Deus criara a ordem. E a ordem consiste justamente
numa unidade simbiótica; numa trama articulada de relações mútuas entre
entidades, pelas quais umas dependem, de diversos modos e reciprocamente, de
outras. Neste sentido, todas elas, sem distinção de inteligentes ou brutos, de
seres animados ou inanimados, disponibilizam "utilidades" e exercem as
"faculdades" de gozo inerentes à sua situação, ao seu "estado". Por outras
palavras, todos as entidades que integram a ordem da Criação têm direitos e
deveres umas em relação às outras. A extensão desses deveres e obrigações
depende da posição de cada entidade na ordem do mundo (status), sendo alheia
à circunstância de disporem ou não de entendimento, de serem pessoas, no
sentido mais corrente da palavra.
O que fica dito já permite entender que, ao tratar dos sujeitos da política o
do direito, o ponto de partida não há-de ser constituído pelos indivíduos (i.e., os
seres dotados de identidade física e racional), mas antes pelas condições (status
"estados"). Ou seja, pelas posições relativas que as criaturas ocupam na ordem
da Criação, de que fazem parte.
Esta diferente concepção do universo dos titulares de direitos tem uma
dupla consequência.
Por um lado, não permite uma rigorosa distinção entre sujeitos e objectos
do direito; distinção gémea da contraposição entre "homens" - dotados do uso da
razão, a quem caberiam, em exclusivo, os direitos e as obrigações - e "coisas",
privadas de capacidade racional e que ocupariam, também exclusivamente, a
posição de objectos desses direitos e dessas obrigações. Pelo contrário. Direitos
e obrigações poderiam caber, indistintamente, a homens e a outras entidades que
não têm (o já não têm) essa qualidade.
Na verdade, as fontes romanas estendiam o “direito” às relações entre
animais e até entre as feras ("O direito natural é aquilo que a natureza ensinou a
todos os animais. De facto, este direito não é próprio do género humano, mas
antes comum a todos os animais que nascem na terra e nos mares, mesmo à
aves", Ulpiano, D, 1,1,1,3). Domingo de Soto (1494-1560),, uma das figuras de
proa da teologia moral e jurídica da Segunda Escolástica ibérica, aborda
expressamente esta questão do âmbito do direito. Ou seja, se só os homens são
titulares de direito, ou se, pelo contrário, também os animais e mesmo as coisas
se podem reclamar de pretensões jurídicas.
"Pode efectivamente afirmar-se - escreve no seu Tractatus de iustitia
et de iure, 1586 - que, a seu modo, também os animais brutos têm domínio
(i.e., propriedade) sobre a erva [...] e até parece que a rainha das abelhas
tem também domínio [i.e., poder político] sobre seu enxame [...]. E entre as
feras, parece que é o ferocíssimo leão que domina sobre os restantes
animais, tal como o gavião parece que exerce domínio sobre as infelizes
aves. Outro tanto se pode dizer dos céus inanimados, os quais têm domínio
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sobre este mundo sublunar, derramando sobre ele o calor e a força com que
se sustenta e desenvolve" (IV,1,2, p. 284 col. 1).
Deve dizer-se que Soto acaba por recusar, a opinião de juristas e teólogos
insignes que tinham ampliado a animais e coisas o campo do domínio político e
do domínio jurídico (ou propriedade). Mas fá-lo respeitosamente (bona venia
dixerim, permito-me dizer), como se de uma opinião teoricamente respeitável e
provável se tratasse.
Insistir neste carácter universal da ordem e nesta ideia de que tudo pode
ter direitos sobre tudo, de que tudo pode estar obrigado a tudo, parece uma peça
importante da compreensão mais profunda da maneira medieval e moderna de
ver e avaliar o mundo e de se comportar nele. A partir deste modelo mental absolutamente oposto ao de hoje -, muitas instituições, normas e comportamentos
tornam-se esperados e óbvios. E, com isso, a sociedade moderna deixa de
oferecer muitas surpresas.
De facto, esta ideia de uma ordem universal, na qual as coisas também
têm pretensões umas em relação às outras, ou mesmo em relação às pessoas,
legitimava uma série enorme de situações frequentes na sociedade de Antigo
Regime, em que direitos e obrigações acabam por caber a entidades que não
eram homens.
Podem caber, desde logo, a seres sobrenaturais, como Deus, que, nesta
medida, é titular de direitos juridicamente protegidos (Soto, 1556, l. IV, q. 2, art. 2),
tanto no domínio civil como no penal – cf. a criminalização de pecados, que
corresponde à tutela pelo direito dos deveres para com Deus ou, em geral, a
tutela jurídica dos deveres religiosos - ainda que o seu exercício e defesa caibam
aos seus vigários na terra (o Papa, a Igreja, os reis). Também os santos e os
anjos podem ser titulares de situações jurídicas, como a propriedade de bens ou a
titularidade de cargos. Conhecido é o exemplo de Santo António, titular, em
Portugal, de um posto de oficial num regimento do Algarve, com os
correspondentes direitos, designadamente ao soldo. Titular de direitos podia ser,
também, a alma (de pessoa morta), a quem se faziam frequentemente
deixas testamentárias (por exemplo, rendas com as quais se pagassem missas
pela sua salvação). A instituição da alma como herdeiro só é proibida em Portugal
em 1769. Quando Alvaro Valasco (Valasco, 1588, cons. 193, n. 1 ss.) consideira
"incivilis et ridicula" a decisão de alguns tribunais de aceitar a nomeação da
própria alma para as segunda e terceira vidas de um "prazo de vidas" (enfiteuse
transmissível aos herdeiros por umas tantas vidas), o que lhe repugnava não era
que a alma pudesse ser enfiteuta, mas antes que, sendo a alma imortal, se
prejudicasse o senhorio, que nunca poderia recuperar o bem emprazado. Só
neste sentido o alma era uma "pessoa minus idonea" (ibid., n. 6).
Personificados eram, também, ainda que só para os sujeitar a penas, os
animais. São conhecidas muitas histórias de punição de animais. Por exemplo, de
animais com os quais humanos tivessem tido relações sexuais (bestialidade); ou
animais responsáveis por danos. Tomás y Valiente relatou o saborosíssimo caso
de um pleito posto, em 1650, por uma aldeia contra uma nuvem de gafanhotos
que, regularmente, assolava as suas culturas. Citados os gafanhotos, decorrido o
processo com a observância de todas as formalidades e garantias para os réus,
estes são finalmente condenados a partir, por um tribunal eclesiástico. E a
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situação nem seria extraordinária, pois, segundo o juiz da causa, a questão da
legitimidade do processo era corriqueira”:
“A esta pregunta y dificultad fuera fácil Ia respuesta solamente con
decir que así lo han hecho muchos obispos y doctos. como lo que se refiere
del santo y docto obispo El Tostado, obispo de Ávila, que formó tribunal con
fiscal y procurador, hizo proceso contra las Langostas, y dio sentencia de
excomunión y las mandó se recogiesen todas en unas cuevas que estaban
fuera de la ciudad; y como lo mandó, así sucedió. En Valladolid, otro obispo
hizo lo mismo contra las Langostas. El obispo de Osma hizo lo mismo contra
los ratones, y actualmente, cuanto estamos actuando este proceso, se halló
aquí un religioso descalzo de San Francisco, que se halló presente en Osma
cuando sucedió y lo vió con sus ojos. En Córdoba hizo lo mismo el obispo de
aquella ciudad contra las golondrinas, que una ermita fuera de la ciudad, de
mucha devoción, la ensuciaban mucho, y no hubo traza humana para
estorbarlo, y las hizo proceso y las excomulgo, y hoy día se ye el efecto de la
excomunión [na limpeza da fachada]” 68.
Duzentos anos depois, José Dias Ferreira, um jurista português que
escrevia na década de 60 do século XIX, ainda recordava que, sendo juiz em
Alfândega da Fé (no Norte de Portugal), tinha posto fim a um processo intentado
por um seu antecessor contra um boi que quebrara um braço a um homem
(Ferreira, 1870, I, 6). Só a reforma judiciária portuguesa de 1832 poria posto fim a
estas práticas.
Mesmo as coisas inanimadas podiam ser titulares de direitos. Assim, um
prédio podia ser titular de direitos de servidão, a prestar ou por outros prédios
(servidões reais) ou por pessoas (servidões pessoais, como a “adscrição”,
vinculação de certas pessoas a trabalhar certa terra). Claro que o exercício ou a
reivindicação destes direitos competia a uma pessoa. Mas esta era
indirectamente designada pela especial situação (status: de propriedade, de
administração) que tinha com a coisa. Só mais tarde, quando o racionalismo
moderno identificou a capacidade jurídica com a capacidade de usar a liberdade e
a razão, se recusará que seres carentes de inteligência e de vontade possam ser
titulares de direitos (cf. Soto, 1556, IV, q. 1, sect. 2, pg. 283).
Desprovidos, também, de qualquer substrato físico, no sentido de o que o
senso comum exige para que se possa falar de pessoa, estavam outros titulares
de direitos, como o nascituro ou o defunto. O nascituro, além de ter direitos
pessoais protegidos (pela punição do aborto; sobre a punição do aborto no direito
moderno, v. Pascoal de Melo, 1789a, 9, 14), era também titular de direitos
patrimoniais, como o direito a alimentos e à protecção das suas expectativas
sucessórias, situação a que se referia o brocardo "nasciturus pro jam natus
habetur, quoties de commodo ejus agitur" (o nascituro tem-se por já nascido em
tudo o que respeite aos seus interesses) (cf. Carneiro, 1851, I, 65 ss.). Quanto ao
defunto, além de ser passível de punição (privação de sepultura, infâmia,
censuras eclesiásticas, Carneiro, 1851, p. 67, n. 11 ss.), era titular de direitos
protegidos penalmente, como o direito à honra, o direito a sepultura e à
68
Francisco Tomás y Valiente, “Delincuentes y pecadores”, em F. Tomás y Valeinet, et al., Sexo barroco y otras
transgresiones premodernas, Madrid, Alianza, 1990, 22 ss..
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integridade do cadáver (cf. Carneiro, 1851, I, p. 67, n. 11 ss.; Sousa, 1816,
2,2,1,1,6); mas também direitos patrimoniais. Uns e outros eram actuados ou pelo
príncipe (em Portugal por meio do curador dos defuntos e ausentes - cf. Lobão,
1828, I, XI, sec. 1), ou pela punição penal pública das ofensas feitas aos seus
restos mortais, ou pelos herdeiros.
Em qualquer dos casos, o verdadeiro titular dos direitos era o defunto, de
que o herdeiro, mais do que representante, era a mesma pessoa ("haeres
reputantur eadem pessoa defuncti", Amaral, 1740, v. "Haeres", n. 22 e 23),
assumindo as suas características e qualidades, mesmo psíquicas. Assim, por
exemplo, ele respondia pelas disposições psíquicas estritamente do de cuius,
como a sua ignorância, o seu dolo ou a sua má fé (ibid.). Esta sub-rogação na
pessoa do defunto abrangia mesmo o sexo; e, por isso, uma herdeira fêmea de
um homem podia exercer, desde que nessa mesma qualidade de herdeira,
direitos exclusivos de homens.
Finalmente, são também "personificados" (personae vice fungitur, D., 49, 1,
22) conjuntos de pessoas, "pessoas colectivas", "corporações", como as
universitates, collegia ou corpora (Coing, 1985, I, 167-168; Gilissen, 1988,
maxime, 776), o conjuntos de bens, como ae herança, o fisco, as piae causae
(hospitais, montes de piedad), as capelas e os morgados (v. Coing, 1985, I, 266268).
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3. Menores.
A hierarquização da sociedade decorre, lembremo-lo, de uma ordem
natural das coisas. Nela, o homem ocupava o primeiro lugar, acima dos animais
e, depois, das plantas e dos seres inanimados. Uma humanização deficiente
aproxima, portanto, o homem do escalão inferior, ou seja, das bestas. Com o
pecado original, essa radiosa humanidade primitiva decaiu também. Mas, neste
caso, a humanização deficiente não é apenas o resultado da descida para o
degrau imediatamente inferior da ordem estabelecida; representa a degradação
da ordem, por efeito do pecado. Por uma razão e por outra, as falhas na
consecução de uma humanidade plena ou aproximam da animalidade ou
recordam o impacto do pecado. É esta a chave para se entender o estatuto
cultural da criança na sociedade de Antigo Regime 69
Em relação a estas pessoas desprovidas de uma plena capacidade de agir
de acordo com as capacidades intelectuais dos homens - a inteligência, a razão,
mas, sobretudo, a prudência - o sentido comum é muito poucos generoso. Mesmo
quando se trata das crianças, nem a sua fragilidade nem carinho que hoje se
entende inspirarem os exime a juízos muito negativos sobre a sua inumanidade e
perversão.
Como as crianças constituem um padrão - e uma metáfora - para avaliar
outras situações de humanidade diminuída, o que se diz das crianças diz-se, por
extensão, dos rústicos, dos nativos, dos dementes e dos velhos. Daí o interesse
do imaginário jurídico acerca delas.
Paulo Zacchia († 1659), um dos mais célebres médicos legistas da época
moderna, autoridade para toda a medicina legal até aos inícios do século XIX,
disserta longamente sobre a infância e a sua relevância para direito.
É claro que, do ponto de vista jurídico, a menoridade é relevante por causa
da capacidade para praticar os actos jurídicos. E esta está geralmente ligada à
capacidade de perceber o equilíbrio das coisas (razão, ratio) e de se comportar de
acordo com isso (prudência, prudentia). Mas, de acordo com essa ideia de que
tudo está ligado à natureza e de que esta nos fala através de marcas próprias,
limites fixos e sinais objectivos, as várias fases da menoridade deviam
corresponder a etapas fixas do desenvolvimento do corpo e do espírito, elas
mesmas expressas em marcas corpóreas exteriormente identificáveis.
***
O tratado de Zacchia começa, por isso, com a averiguação sobre as fases
da idade. Havia jurisconsultos que identificavam seis: a infância, do nascimento
aos sete anos; a meninice (pueritia), dos sete aos catorze; a adolescência, dos
catorze aos vinte e cinco; a juventude ou idade viril, até aos cinquenta; a velhice,
69
Sobre a história da criança, v., Ph. Ariès, L'Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Regime, Paris, Seuil, 1973;
deMause, Lloyd (ed.), The History of Childhood, New York: Psychobistory Press, 1974; Colin Heywood, History of
Childhood: Children and Childhood in the West from Medieval to Modern Times, Polity Press, 2001; Jim Vandergriff,
“Factors
Influencing
The
Development
of
The
Idea
of
Childhood
in
Europe
and
América”
(http://web.grinnell.edu/courses/mitc/vandergr/201%20Web%20site/History%20of%20Childhood.htm); deMause, Lloyd , “On
Writing Childhood History”, The Journal of Psychohistory 16 (2) Fall 1988.
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41
até aos setenta; e a decrepitude, daí em diante 70. Outros vão até doze etapas,
incluindo a puberdade entre meninice e a adolescência e dividindo a juventude
em quatro períodos (ibid., n. 7). Enquanto que Aristóteles, referindo-se ao homem
e aos animais, apenas reconhecia três idades: a juventude, a idade vigorosa e a
velhice. A opinião mais comum seria, no entanto, a de que havia quatro idades,
porque, na verdade, apenas havia tanto quatro temperamentos como quatro
humores no corpo dos animais, os quais, pelo seu aumento e diminuição, faziam
modificar as condições da vida. Como as idades correspondiam a mutações do
temperamento e estas à abundância de um humor particular, o número de idades,
temperamentos e humores tinha que ser o mesmo (ibid., 16). Os juristas, porém,
atentas as suas particulares razões, mantinham da divisão em sete idades.
***
A primeira delas era infância (ou puerícia, pueritia) que, na melhor opinião,
era aquela em que "o menino não pode falar" (qu. 3, n. 2). Contava-se a partir do
dia do nascimento - já que a maioria dos juristas não considerava que o feto
pudesse ser tido como um ser animado (ibid., n. 10 ss.) - e durava, também na
melhor opinião, até aos sete anos. Alguns estendiam a infância até ao momento
da puberdade, ou seja, até aos doze anos, e dividiam-na em várias fases: uma
primeira até à dentição perfeita, uma segunda até aos sete anos e uma terceira
até à mudança da voz. Só com esta voz adulta se poderia, de facto, dizer que a
fala tinha sido completamente adquirida 71. A opinião comum, porém, é mais
restritiva. Próprio da infância seria balbuciar, mas não falar de forma já
desembaraçada. Daí que, para muitos, se tivesse de criar uma categoria
intermédia entre infância e puberdade, a dos meninos próximos da puberdade
(infantes pubertate proximi) (ibid., 17)
Os menores de sete anos careceriam totalmente da razão, sendo
equiparados aos loucos furiosos. Não responderiam por nenhuns actos, nem
sequer poderiam fazer testamento. Mesmo que tivessem juízo superior ao normal
para a sua idade, já que "não gozam de qualquer prudência, mesmo que nos seus
actos pareçam ter alguma" (ibid., n. 26). Ao contrário do que acontece com o
furioso, os infantis nem sequer podem ter intervalos lúcidos; neste sentido, a sua
situação e em da mais limitada. Uma vez mais, salienta-se este carácter objectivo
das coisas, que marcam capacidades e incapacidades genéricas, que a aparência
dos casos concretos não pode modificar.
Já nos casos dos meninos próximos da puberdade, dizia-se que
participavam de alguma inteligência, sendo capazes de entender alguns pactos,
embora não pudessem dispor de nenhum conhecimento que lhes fosse útil, em
eles ou a outrem. Quando muito, poder-se-ia dizer que gozavam de juízo semipleno (ibid., n. 20), mesmo se do ponto de vista corporal fossem já quase
plenamente capazes (qu. 4, n. 26). Isto autorizava-os a praticar alguns actos
jurídicos, como a contrair promessas de casamento (esponsais “por palavras de
70
Paulo Zacchia, Quaestiones medico-legales, Lugduni, 1726 (ed. orig. 1651), liv. I, tit. 1, qu. 2, n. 2.
71
Novamente, esta ligação íntima entre fala e razão.
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42
futuro”), a nomear ou apresentar pessoas para dignidades ou ofícios (se tiverem
esse direito) 72.
***
Alguns autores diziam que a meninez ou puerícia constituía a segunda
idade, compreendendo em si quatro períodos diferentes: a tenra infância, a
puerícia propriamente dita, a puberdade e a adolescência (qu. 4, n. 1),
prolongando-se até à maioridade, aos vinte e cinco anos. Antes desta Idade,
ninguém se poderia considerar plenamente capaz, embora pudesse praticar
alguns actos jurídicos, como o testamento e o matrimónio.
Mas, realmente, falando de meninez, o que comummente se queria referir
era este período compreendido entre a infância e puberdade, ou seja, segundo a
mais corrente opinião, entre os sete e os catorze anos (ibid., n.11), a que já nos
referimos como a dos meninos próximos da puberdade (infantes pubertate
proximi). Sobre a sua capacidade, a opinião comum era a de que "embora com o
progresso da idade a inteligência do homem se aperfeiçoe, de tal modo que
quanto mais velho seja homem, mais perfeita se presuma ser a sua inteligência,
os meninos participam de uma inteligência apenas simples e de uma mínima
razão” (ibid., n. 16). Hipócrates era mais duro: "Os meninos gozam de uma razão
mínima, estando sujeitos à ira e ao desejo como animais (...) os adultos refreiam a
ira com a razão, mas nem os meninos, nem os animais, fazem isso”. Esta dureza
em relação às capacidades infantis aparece noutras fontes: com "menino"
significa-se “homem rude e inepto”, "é como dizer rude e ignorante", “de todos os
animais, o menino é o mais intratável e insidioso, um animal difícil e muitíssimo
estúpido”, dizia-se em textos de médicos, juristas e santos.
Em face disto, a solução jurídica de atribuir aos meninos alguma
capacidade, mesmo em matérias graves como os esponsais e as apresentações,
não deixa de ser surpreendente, já que se trata de actos de eleição exigindo juízo
e prudência. A débil intervenção dos nubentes na escolha dos noivos – a que nos
referiremos – explica a primeira situação. Mas a segunda continua a ser
misteriosa, tanto mais que a eleição feita pelo menor preferia a uma eleição
diferente feita pelo seu tutor. A explicação usual é a do carácter pessoal deste
acto e da sua dependência de sentimentos e apreciações muito próprias (cf.
Amaral, loc. cit., n. 3).
***
O fim da meninez dava-se com a puberdade. Tratava-se de momento difícil
de definir, acerca do qual existiam dúvidas, quer quanto aos sinais, quer quanto
ao tempo.
72
António Cardoso do Amaral, Liber utilissimus ..., v. “Minor”, n. 3.
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43
“Puberdade”, de facto, relacionava-se com púbis, ou seja, “a zona peluda
que costuma aparecer em torno das partes vergonhosas, na parte inferior do
ventre sob a qual se encontra a bexiga, nos varões à roda de dos catorze anos e
nas fêmeas à volta dos doze [...], quando o homem fica capaz de gerar ” (Zacchia,
ob. cit., qu. 6, n. 1 ss.). Tratava-se evidentemente de um sinal de natureza, do
mesmo modo que a mesma natureza indiciava com a calvície - um retorno à fase
pelada da infância - a perda das faculdades reprodutoras. Um sinal de algo que
era, decerto, relevante do ponto de vista do direito: a capacidade de contrair
casamento e de realizar a sua finalidade, a procriação.
Claro que uma coisa era falar de pelos e outra de capacidade para procriar.
Daí que a discussão sobre o limite mínimo da adolescência fosse um tanto
incerta.
A pluralidade de palavras não ajudava. "Adolescência" parecia relacionarse com “dolentia” e “dolor” e, por aí, com os achaques físicos do crescimento (qu.
6, n. 9). "Idade núbil” referia-se, evidentemente, ao casamento; mas de uma forma
que se considerava ser apenas aplicável à mulher, pois, na língua latina, o verbo
“nubere” tinha uma conotação de passividade que não se adequava ao papel
activo do varão no casamento (“ mulher núbil, mas não varão núbil, a não ser de
modo inapropriado, pois se pode dizer que a mulher que é noiva, mas não o
homem (...), já que ao dizer que a esposa celebrou noivado, como que estamos
dizendo que foi posta à servir” (ibid., n. 22/23).
Seja como for. Ao direito interessava a capacidade de casar. Esta era
indiciada pela penugem púbica, mas importava modificações corporais mais
decisivas.
Na mulher, o aparecimento da menstruação: “de acordo com experiência, a
menstruação ocorre apenas no 12.º mês do 12.º ano, embora aquelas que tem o
temperamento naturalmente mais fogoso [calidus] apenas comecem a ter fluxos
abundantes no final dos catorze anos, e isto nas nossas regiões; tive
conhecimento de algumas poucas que começaram a sangrar aos doze anos, e
mesmo algumas mais cedo, entre as quais, note-se, meninas de nove anos,
gordas e de bom corpo, que tinham regras abundantes e assíduas; não falando já
das conhecidas histórias, que não pertencem à ordem de natureza, de
menstruações precoces de recém nascidas, recolhidas por Schenk” (qu. 6, n. 34).
No caso das mulheres, vimos assim que capacidade nupcial deveria
realisticamente ser fixada nos catorze anos; mas os juristas, cientes da facilidade
de se declarar dolosamente uma idade mais baixa, fixavam a puberdade feminina
nos doze anos (ibid., n. 42).
Quanto aos homens, a puberdade vinha mais tarde, sendo certo que em
média as mulheres se lhes antecipavam num ano nestas matérias, e isto por duas
causas: por lado, pela sua maior imperfeição; por outro, pela maior humidade do
seu temperamento. " A mulher que é mais imperfeita do que o homem, requer
menos espaço do que este para que a sua perfeição íntegra seja conseguida,
pois a perfeição do homem é sem dúvida maior; correspondendo à perfeição ou
imperfeição o aumento ou diminuição do tempo das idades (...); na verdade,
parece que a mulher cresce mais depressa, começa a gerar mais depressa, e
envelhece mais depressa do que o homem: a sua imperfeição provêm do seu
menor calor e, por isso, embora este desapareça mais cedo, também cresce mais
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prontamente (...); mas, como disse, não apenas por causa da sua imperfeição,
mas é também por causa da humidade das suas temperaturas e da própria
moleza do corpo que a mulher cresce mais rapidamente do que o homem; pois as
menores dimensões do corpo fazem com que este mais facil e precocemente se
expanda, como testemunha Galeno” (ibid., qu. VI, ns. 53-59).
Discutia-se ainda sobre se o desejo sexual existia nos meninos e nas
meninas, antes da puberdade. Mas a questão era irrelevante. Porque o
casamento não era uma questão de desejo. Era uma questão de procriação; e
essa resolvia-se a partir das capacidades físicas e não das sensações da alma.
A plena puberdade marcava o fim da adolescência e corresponderia,
segundo a melhor opinião, aos dezoito anos. A Glosa, porém, distinguia três tipos
puberdade: a plena, aos catorze anos; a mais plena, aos dezassete; e a
pleníssima, aos dezoito. Por outro lado, havia quem prolongasse a puberdade até
aos vinte e cinco anos, atendendo à constituição tanto do corpo como da alma, "
pois uma e outro sempre se aperfeiçoam alguma coisa até àquele termo” (ibid., n.
69).
O carácter estrito da doutrina canónica sobre casamento – impondo-lhe
como fim quase exclusivo a reprodução - resumia praticamente à questão da
puberdade à questão da fertilidade. Alguma referência a outras dimensões da
evolução temperamental dos jovens (“ a diferença da Idade não se exprime pelo
nascimento dos pelos, mas pela conversão do temperamento por efeitos alguma
causas intrínseca, de onde decorre que, mesmo com uma púbis pululante, uma
pessoa pode permanecer impúbere”, ibid., n. 76) acaba por se relacionar, mais ou
menos directamente, com a questão da capacidade de procriar.
Isto explica que, do ponto de vista da capacidade jurídica, os púberes
pouco mais tenham do que os impúberes. Perguntando-se acerca da capacidade
racional destes adolescentes e, consequentemente, da sua aptidão para gerir
autonomamente os seus negócios, Zacchia constata que as leis não lhes
permitem gerir nada a seu arbítrio, antes lhes assignando tutores (ibid., n. 82),
pois "pouco resistem às paixões, estando sujeitos a ímpetos voluptuosos
irracionais de que não podem ser afastados pela razão” (n. 89). E, por isso,
mesmo quando casados, “não podem administrar as suas coisas, pois o conselho
da sua idade é frágil e menos firme, não sendo suficiente para evitar muitos
enganos e insídias a que estão sujeitos aqueles que administram bens” (Amaral,
Liber utilissimus ..., v. “Minor”, n. 21). Mas pode, tendo vinte anos (dezoito, sendo
mulher) pedir ao rei a sua emancipação, desde que porve capacidade e
suficiência para a administração patrimonial (ibid.).
***
Enquanto filhos de família, os menores vivem enquadrados na disciplina
doméstica, o que lhes garante uma compensação para a sua incapacidade
natural.
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45
Os principais deveres do paterfamilias para com os filhos eram: (i) o de os
educar, espiritualmente 73, moralmente 74 e civilmente, fazendo-lhes aprender as
letras (pelo menos, os estudos menores), ensinar um ofício e, caso nisso
concorressem as qualidades da família e as aptidões do filho, estudos maiores 75;
(ii) prestar-lhes alimentos, nisso se incluindo a bebida, a comida, a habitação, e
tudo o mais que pertence ao sustento, como o vestir, calçar e medicamentos 76; a
dotá-los para matrimónios carnais ou religiosos 77.
Por sua vez, os filhos deviam aos pais gratidão, obediência e obséquios 78.
O dever de gratidão obrigava os filhos, ainda que naturais ou espúrios, a ajudar
os pais necessitados, quer em vida, ministrando-lhe o auxílio de que carecessem,
quer depois de mortos, fazendo-lhe as exéquias e dando-lhes a sepultura, de
acordo com a sua qualidade e assegurando missas por suas almas 79. Mas
impedia, além disso, por exemplo que o filho acusasse o pai em juízo ou que o
matasse, ainda que para defender um inocente 80. O dever de obediência
obrigava-os a respeitar e acatar as decisões dos pais 81.
Em alguns aspectos fundamentais, o concílio de Trento veio minar este
dever de obediência, ao sublinhar o carácter essencialmente voluntário dos actos
relativos à fé, no número dos quais entravam, no entanto, alguns de grande relevo
externo. Assim, pune com a excomunhão qualquer pessoa (e, portanto, também
os pais) que force outra a tomar o estado religioso (sess. 25, de reformat., cap.
18).
Mas o mesmo se passa quanto a decisões ainda mais críticas para a
política familiar - as relativas ao casamento. O Concílio enfatiza, de facto, o
carácter livre e voluntário do matrimónio. Daí que fulmine com a excomunhão
quem atente contra a liberdade matrimonial e dispense os párocos de se
assegurarem da autorização dos pais dos nubentes, já que este requisito podia
impedir uniões queridas pelos próprios (sess. 24, de reformat., c. 1).
Por isso é que os direitos dos reinos, mais atentos aos interesses políticos
das famílias do que ao carácter pessoalíssimo das opções de vida, continuavam a
proteger o poder paternal. É este o sentido da legislação de vários reinos
europeus que, sobretudo a partir dos meados do séc. XVIII, punem severamente
os nubentes que desobedeçam a seus pais.
Em Portugal, as Ordenações deserdavam as filhas menores (de 25 anos)
que casassem contra a vontade dos pais (Ord. fil., IV, 88, 1); e, em complemento,
73
V., sobre o seu conteúdo (doutrina sagrada; pelo menos, o Credo, o Decálogo, o Padre-nosso e os principais
mistérios da fé (Fragoso, 1641, p. III, l.1, d.1, 6, pg. 21 s.). Também, Natividade 1653, op. X).
74
ibid., 8 e III, l.1, d.1, 4, n. 52, pg. 15 (sobre a moralidade das filhas).
75
Cf. Ord. fil., IV,97,7; v. também, sobre o alcance desta obrigação paterna, Fragoso, 1641, p. III, l.1, d.1, 6, ns.
96 ss. (em Portugal, seria costume dever o pai custear os estudos e livros universitários do filho, mesmo que não concorde
com eles. Tudo isto limitado, naturalmente, pela condição familiar e pelas posses do pai. Lobão (1828, p. 47 ss.) entende
que os pais nobres estão obrigados a pagar os estudos até ao grau de bacharel ou doutor (p. 48).
76
Fragoso, 1641, III, l.1, d.2, 1; Natividade 1653, op. IX; Lobão, 1828, 1 ss..
77
Fragoso, 1641; Natividade, 1653, op. XI; Lobão, 1828, 56.
78
Cf. Natividade, 1653, op. V.
79
Fragoso, 1641, III,l l.1, d.2, 8, ns, 226/227, p. 65; e l.2, d.3, 2, n. 44, p. 86.
80
ibid., III, l.1, p.1, d.1, 2, n.21.
81
Em contrapartida, o pai podia castigar os filhos desobedientes, embora - tal como no caso da mulher - nos
limites de uma moderata domestica correctio, não lhes causando feridas, mutilações ou a morte.
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puniam com degredo quem casasse com mulher menor sem autorização do pai
(ib., V, 18). Mas as disposições liberalizadoras do Concílio, difundidas por
teólogos e canonistas, influenciaram decisivamente párocos e tribunais, chegando
os juristas a discutir a legitimidade destas leis régias que, indirectamente,
coarctavam a liberdade do matrimónio. No tempo de D. João V causou escândalo
o facto de o Patriarca de Lisboa ter ido buscar a casa de seus pais, para a
proteger das imposições destes, uma donzela que queria casar sem o
consentimento parental 82.
Isto não podia deixar de perturbar a disciplina familiar, com tudo o que isso
tinha de subversivo, no plano das relações pessoais entre pais e filhos, mas
também no do controle paterno das estratégias de reprodução familiar. Já as
Cortes de 1641 tinham sido sensíveis a esta quebra da autoridade paterna na
escolha dos esposos dos filhos. Mas é na segunda metade do séc. XVIII - quando
se procura uma nova disciplina da república e da família - que a reacção contra
esta "laxidão" se torna mais forte 83. Numa diatribe 84 contra a difusão desta "Moral
relaxada, oposta a todos os princípios da Sociedade civil", Bartolomeu Rebelo
descreve a situação de "libertinagem" a que tinha conduzido a doutrina de Trento,
propagada pelos teólogos "jesuítas" 85 e propõe o retorno a uma rigorosa disciplina
familiar, em que a matéria das núpcias seja da exclusiva responsabilidade dos
pais "sem atenção alguma aos filhos, os quais só se contemplam, como ministros
e executores da vontade paterna [...] Donde se segue com infalível certeza, que
competindo aos Pais a escolha dos casamentos, devendo estes atender às
qualidades dos Esposos e Esposas, que buscam para seus filhos, não devem
estes intrometer-se ao Oficio paterno [...]" (p. 21/23).
Este autor não exprimia uma opinião isolada, nem a que a própria Igreja
fosse insensível. Os teólogos começavam a revalorizar o valor da obediência,
considerando que os casamentos não consentidos pelos pais eram
frequentemente ilícitos e pecaminosos, por desobediência aos pais, sobretudo
quando estes casassem indignamente, pois tais casamentos "seriam fonte de
ódios, rixas, dissídios e escândalos" 86. Bento XIV publicara (em 17.11.1741) uma
encíclica que atenuava os cuidados tridentinos pela liberdade matrimonial. E o
Patriarca de Lisboa enviara, no início dos anos setenta, uma circular aos párocos,
recomendando-lhes que se assegurassem do consentimento dos pais
(Bartolomeu Rebelo, Discurso..., xv). Em 1772 (9.4), a Casa da Suplicação
tomara um assento duríssimo, ampliando a Ord. IV, 8887. A lei de 9.6.1775 ratifica
esta orientação, deserdando os filhos e filhas (sem limite de idade) que casem
sem consentimento dos pais, para além de reforçar as penas já estabelecidas nas
Ordenações contra os sedutores.
82
Cf. Chaves, 1989, 203.
83
V. anedotas sobre o tema em "Descrição de Lisboa [...]. 1730", Chaves, 1989, 64.
84
Bartolomeu Coelho Neves Rebelo, Discurso sobre a inutilidade dos esponsaes dos filhos celebrados sem
consentimento dos pais, Lisboa, 1773.
85
Decorre das mesmas listas de "bons" e "maus" teólogos (cf. XI e 38) que dos dois lados estavam jesuítas; mas
o sentido geral da teologia moral da Segunda Escolástica, dominada pelos jesuítas, era, de facto, liberalizador quanto a
este ponto.
86
San Jose, 1791, tr. 34, II, n. 71.
87
Pois, além da deserdação das filhas, nos termos aí consignados, cominava ainda a deserdação dos filhos,
qualquer que fosse a sua idade (!), que se casassem, fosse com quem fosse, indigno ou digno, sem consentimento dos
pais (Collecção chronologica dos assentos..., ass. 282).
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47
Mas, se a política pombalina da família visava este objectivo de firmar a
sua autoridade e disciplina interna, visava ainda outros de "política social", como o
de lutar contra o pronunciado casticismo das famílias nobres 88 e contra a
tendência para os pais exercerem um "poder despótico" sobre os filhos, negando
"absoluta, o obstinadamente os consentimentos ainda para os matrimónios mais
úteis [...] em notório prejuízo das Famílias, e da Povoação, de que depende a
principal força dos Estados". Daí que o rei, "como Pai Comum dos [...] Vassalos",
cometa ao Desembargo do Paço, pela lei de 29.11.1775, o suprimento da
autorização paterna para os casamentos da nobreza de corte, dos comerciantes
de grosso trato ou nas pessoas nobilitadas por lei; e aos corregedores e
provedores, o suprimento desta autorização no caso dos casamentos de artífices
e plebeus.
Mas, de novo, a lei de 6.10.1784 reforça o controle dos pais sobre os
esponsais dos filhos, obrigando a que estes intervenham expressamente na
escritura da sua celebração (ns. 1 e 2) e neles dêem o consentimento (nº. 4). Só
que, como compensação, se restringe a obrigatoriedade do consentimento aos
esponsais dos filhos menores de 25 anos, para além de que se mantém a
possibilidade de suprir a autorização, nos termos da lei de 29.11.1775.
Embora não seja fácil classificar a família portuguesa de Antigo Regime pelo menos como o direito oficial a define - como uma comunhão alargada de
pessoas e de bens, existem deveres de cooperação de todos na valorização do
património familiar.
Um deles era o dever de obséquio dos filhos, que consistia na obrigação
de prestarem ao pai a ajuda e trabalho gratuitos de que ele carecesse. No caso
de estarem sob a sua patria potestas, este dever era irrestrito (ad libitum, qui
totum dicit, nihil excipit), obrigando a trabalhos que, prestados a outrem, seriam
pagos. Já no caso dos filhos emancipados, se entendia que esta obrigação não
abrangia os trabalhos que requeressem arte ou indústria 89.
Também no domínio das relações patrimoniais, a regra geral (mas, até
certo ponto, também caricatural) era a de que, fazendo os filhos parte da pessoa
do pai, só este era titular de direitos e obrigações, adquirindo para si os ganhos
patrimoniais dos filhos sujeitos ao pátrio poder e sendo responsável pelas suas
perdas. Com o consequência suplementar de que não poderiam entre si contratar.
Tudo isto estava, no entanto, algo atenuado. Quanto à capacidade de adquirir,
desde o direito romano que se reconhecia aos filhos a capacidade de terem
património próprio (peculium) 90 E quanto aos seus poderes de contratar com o
próprio pai, de há muito se superara a restritíssima norma do direito romano 91,
apenas se mantendo no domínio processual 92.
88
Cf., v.g., as leis abolindo a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos, 25.5.1773 e 15.12.1774; e o dec.
contra os "puritanos" de 1768.
89
Fragoso, 1641, III, l.10, d.22, 5, ns. 117/118, pg. 650; Lobão, 1628, 22 (este mais restritivo quanto aos deveres
dos filhos).
90
Nos seus vários tipos de castrense, quasi castrense, adventício e profecticio, enumerados por ordem
decrescente de poderes de disposição; cf. Fragoso, 1641, III, l.1, d.2, 8, ns. 229 ss.; Lobão, 1828, cap. 13. Sobre a
capacidade para se obrigarem, Fragoso, 1641, III, l.1, d.2, 9.
91
Cf. Pascoal de Melo, 1789, IV,1,8; Lobão, 1818, 245.
92
Fragoso, 1641, III, l.2, d.3, 2, n. 43.
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48
***
Se os menores não têm família, são colocados sob tutela dos juízes dos
órfãos, que lhes atribuem um tutor e lhes arranjam trabalho, para além de
superintenderem na administração dos seus bens.
Saindo de casa, o destino de muitos menores era o de servirem em casa
de amos 93. A doutrina admitia que isso pudesse acontecer desde muito cedo,
havendo referências a meninos trabalhadores com menos de dez anos 94. Na
maioria dos casos, os moços e moças serviam a "bem fazer", ficando ao arbítrio
do patrão dar-lhes o que quisesse, atento o tempo de serviço e a qualidade deste.
Neste tipo de contratos, mesmo celebrados entre adultos, a doutrina jurídica
raramente admitia a obrigação do patrão de pagar um salário certo 95. Muito mais
tratando-se de crianças. A mesma doutrina previa expressamente o caso dos
criados de estudantes aos quais fosse dado tempo para estudarem; os criados
dos mestres de ofício, ou aprendizes, a quem a arte fosse ensinada e a quem se
prestassem alimentos (ibid., n. 30/31); ou os enteados que servissem seus
padrastos (n. 33).
***
No centro da fraqueza dos menores está, sempre, a insuficiência do juízo.
Isto prejudica o conhecimento e avaliação das situações e, por isso,
impede a prudência nas gestão da vida e dos negócios. Nos primeiros anos, a
esta deficiência da razão, junta-se a deficiência da fala, deficiência esta que
alguns prolongam até à puberdade, já que a fala humana haveria de ser a do
homem adulto, com articulação grossa e firme, tal como forte e firme haveria de
ser o entendimento. Nesse costumado acopular – que haveremos de encontrar na
avaliação dos rústicos, dos nativos e na de alguns dementes – entre recta razão e
discurso fluente.
Mas a razão é também um freio das paixões animais – da ira, da luxúria,
da volúpia. E, por isso, a falta de siso dos meninos explica que, neles, a
animalidade venha ao de cima e que se aproximem das bestas, nos seus
impulsos caprichosos e imoderados. Daí que os menores sejam volúveis,
desorientados e imprudentes.
Alguns actos, de natureza muito pessoal – como os esponsais, o
casamento e a eleição para dignidades e ofícios de cuja dada ou apresentação 96
93
Cf. Ord. fil., IV, 29 ss..
94
Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, Ulyssipone Occidentali,
1740, ad. Ord. fil., IV, 29, 33.
95
Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria ad Ordinationes …, cit., 1740, ad. Ord. fil., IV, 29, n. 1 s..
Para estes conceitos, v. Hespanha, As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político em Portugal – séc.
XVII, Coimbra, Almedina, 1994. Sumariamente, a presentação era a propositura de uma pessoa para um ofício, a quem
tinha o poder de a nomear (i.e., da dada do ofício).
96
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49
sejam titulares – são-lhes permitidos, já que eles dependeriam sobretudo de
escolhas dirigidas afectos pessoalíssimos, situados, digamos, abaixo da razão.
Mas já tudo quanto tem a ver com a sabedoria no agir (com a prudência), lhes é
rigorosamente vedado, mesmo se intimamente ligado com actos que lhes eram
permitidos. Assim, no casamento, podem escolher o parceiro, mas já não podem
gerir os bens.
todo este regime de interdições se prolongava até aos 25 anos, altura em
que, de roldão com a capacidade para ser juiz e julgar os outros, se recebia toda
a cópia de direitos. Numa época de vidas curtas, isto significava que, durante
cerca de metade do tempo de vida, não se tinha, do ponto de vista jurídico,
capacidade para viver. Mesmo se – de acordo com múltiplos testemunhos – a
vida profissional, civil e militar, podia começar muito cedo.
Onde o direito os dignifica mais – atribuindo-lhes uma responsabilidade que
permite a censura e o castigo – é no direito penal. Aí, pune-os, como capazes de
intenção, logo desde a puerícia (Amaral, Liber utilissimus ..., v. “Minor”, n. 19). O
direito integrava-se, assim, numa estratégia de educação, suplementando a acção
da família e da Igreja.
Como se disse, o imaginário dos menores, estes seres imperfeitos mas
perfeccionáveis, sob condição de serem submetidos à disciplina, foi estendido
eficientemente a outras categorias de gente mais fraca. Realmente, dos menores
dizia-se duas coisas úteis, em termos mais gerais. Por um lado, dizia-se que eram
imperfeitos e carentes de um pleno juízo humano. E, com isto, eram afastados
das responsabilidades civis e políticas. Mas, por outro, não se quebrava de vez o
seu vínculo com a humanidade, nem se estilhaçava a unidade do género humano,
princípio teologicamente intangível. Era tudo questão de tempo e de educação.
Este estatuto assenta como uma luva aos rústicos e, mais tarde, aos povos
nativos, permitindo evitar o conceito aristotélico de escravos por natureza, esse
sim prejudicial do dogma católico da salvação universal e justificando, ao mesmo
tempo, a tarefa de direcção temporal e espiritual imposta pelos europeus. É por
isso que o imaginário colonial está, até muito tarde, repassado de patriarcalismo.
E, por outras razões e um tanto menos bem, o imaginário pueril aplica-se também
às mulheres. Aqui, falha no carácter provisório do estatuto, já que não se
pensavam que as mulheres fossem a tal ponto educáveis, que pudessem
compensar as fraquezas do sexo. Mas, vivendo também elas no mundo
doméstico, o natural é que fossem equiparadas aos filhos (loco filiae vivunt) na
comum sujeição ao pátrio poder.
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51
4. Loucos, pródigos, falidos e viúvas gastadeiras i.
No seu tratado Les lois éclairés par les sciences physiques ou Traité de
médecine légale et d’Hygiène Publique, 1797 (Ano 6º), o saboiardo FrançoisEmmanuel Fodéré, médico de l’Hôpital de Huminaté do dos Insensés, de
Marselha, avisa da gravidade que reveste a declaração de loucura: “l’absence de
la raison annulant, pour ainsi dire, le contrat passé entre la société et l’un de ses
membres, elle le met en interdit, le prive des droits de citoyen, lui ôte la liberte,
qui, étant le plus grand des biens, doit mettre le magistrat en grande considération
avant de prononcer” (vol. I, p. , 83). Na verdade, era mesmo disso que se tratava,
de uma exclusão do “contrato social” e, com isto, de uma exclusão da sociedade
civil.
De facto, o modelo individualista e contratualista da sociedade abandonara
a ideia de que os deveres e os direitos decorriam da natureza e estabelecera
como princípio fundador das obrigações e prerrogativas sociais um acto de
vontade esclarecida (ou racional). Embora a questão das relações entre a pura
vontade e a razão constituísse um árduo problema, fonte de uma permanente
corrosão do edifício individualista, vontade e razão tinham sido definidos, pela
antropologia filosófica e política da modernidade, como as características naturais
dos homens, sobre as quais um novo direito natural devia ser construído. Para
esta antropologia, liberdade de querer e capacidade de entender eram
inseparáveis, em termos tais que a vontade irracional e a liberdade desregrada,
não eram nem vontade, nem liberdade, mas paixão e tirania (das paixões, dos
instintos) 97
Daí que essa combinação de vontade e razão, a que se chamará vontade
esclarecida, fosse uma condição indispensável e geral tanto para o gozo, como
para o exercício de direitos. É com isto que nasce, nos finais do séc. XVIII, uma
teoria geral da personalidade jurídica, que inclui uma teoria geral da capacidade
de gozo (Rechtsfähigkeit) e de exercício (Handlungsfähigkeit) de direitos 98.
L.-E. Fodéré explica bem de onde decorre esta teoria da capacidade. O
homem não nasce completamente equipado para a vida. Nem para a vida física,
nem para a vida social. A sua primeira idade caracteriza-se pela “faiblesse et
défaut d’experience” (I, p. 45). As transformações físicas da puberdade e os
ensinamentos do contacto social dotam-no do discernimento que lhe permitem
usar da liberdade (scl., querer) de uma forma razoável. É só neste momento que,
verdadeiramente, ele ratifica plenamente o pacto social e fica, por ele, também
plenamente, obrigado e protegido.
97
“Les actions de l’homme ne sont librés qu’autant qu’elles sont dictées par la raison, elles cessent donc de l’être,
dès le moment que la raison est censée ne plus exister”, L.-E. Fodéré, 1797, I, 46. Note-se como as expressões
“mentecapto”, “forcené”, “possesso” apontam para a ideia de violentação da liberdade (de pensar e querer bem).
98
Cf. Coing, 1989, II, 284 ss.. Que informa que só nas décadas de ’80 e ’90 do sec. XVIII é que a civilística alemã
(nomeadamente G. L. Böhmer e G. Thibaut) esboçou uma teoria geral da capacidade jurídica. Embora existisse um termo
latino correspondente (capacitas, capax), pude constatar que ele não aparece, de facto, nos glosários das obras jurídicas
de Antigo Regime. Como também se constata que o tema aparece tratado dispersamente a propósito de várias figuras de
direito (curador, testamento, matrimónio, direito penal)..
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Daí em diante, a lei que ele instituiu vai escrutinar permanentemente o seu
comportamento. Ou para ver se ele cumpre as normas pactadas. Ou para verificar
se ele não decaiu, temporária ou permanentemente, do estado de plena liberdade
e de plena racionalidade que constituiu a base do acordo. É neste último aspecto
que reside a questão da incapacidade, pois a lei revoga o contrato social,
apartando o indivíduo da convivência civil, “si elle [la loi] le voit s’écarter soit par
faiblesse d’esprit ou par violence de ses passions, des routes que la sagesse la
plus commune semble tracer à tous les hommes” (Fodéré, 1797, I, 46).
Como o objecto do pacto social é apenas o convívio cívico e político, os
critérios de definição da incapacidade são, também, apenas dessa natureza. Por
um lado, embora se admita que muitas circunstâncias – desde o clima (p. 63) à
urbanidade (p. 64), à riqueza e à educação (p. 65/66) – possam fazer variar a
sabedoria política dos homens, considera-se que todos devem ser admitidos ao
pacto social, dentro dos limites compatíveis com a vida em comum 99. Por outro
lado, estabelece-se um critério estritamente político (e não médico) na definição
da incapacidade. Daí a definição de razão dada pelos jurisconsultos: “Une
aptitude à juger des choses comme le commun des hommes, jointe à
l’accomplissement de tous les devoirs sociaux indispensables. Tel est le sage de
la loi. Par conséquent, le délire est un jugement faux ou erroné de la part d’une
personne qui veille sur les rapports d’objets qui se rencontrent le plus
fréquemment dans le cours de la vie et sur lesquels tous les hommes portent le
même jugement, joint à l’inobservation des règles les plus triviales de la société
[...]. Tel est le fou de la loi” (Fodéré, 1797, I, 83).
A natureza política do critério explica o recorte deste campo, agora
unificado, da incpacidade civil.
“Chamam-se interdictos 100 – escreve Manuel António Coelho da Rocha
(Rocha, 1852, § 379) - aquelas pessoas, que por sentença são declaradas
incapazes de se governar, e por tanto sujeitas a tutela. As leis reputam hábil para
os actos e negócios civis todas as pessoas maiores; e somente mandam declarar
inhábeis aquelas, que constar serem: a) mentecaptos, isto é, que pelo desarranjo
habitual de suas faculdades não têm o juízo necessário para se regerem, ainda
que alias tenham intervalos lúcidos: b) ou pródigos, isto é, aquelas, que sem
conhecido desarranjo intelectual são dominadas de tal paixão pelo desperdício e
despesas inúteis, que se põem em perigo de ficarem reduzidas à miséria, elas, e
a sua família” 101.
Correia Telles, seu contemporâneo, acaba por convir na mesma
enumeração: “assemelham-se aos menores para efeito de se lhes dar tutor, os
99
Embora, uma vez admitidos, se admitam gradações no seu estatuto civil e político; daqui decorre o
marcadíssimo elitismo do primeiro liberalismo, que estabelece, como se sabe, pesadas incapacidades cívicas e políticas
aos camponeses, às mulheres, aos não europeus.
100
A palavra é nova, com este sentido. Cf. Rafael Bluteau, Vocabulario Portuguez e Latino, vol. 1-4, Coimbra,
Colégio das Artes, 1712-1713; vol. 5-8, Lisboa, Pascoal da Sylva, 1716-1721.
Esclarece ainda que “Desassisado, desmemoriado, mentecapto, doido, sandeu, furioso, demente, louco, e
outros, são diferentes nomes, por que nas leis se encontram designadas as pessoas , que têm as suas faculdades
intelectuais desarranjadas, conforme o maior ou menor grau de desarranjo” e que “os surdos e mudos sub equiparados aos
interdictos” (I, p. 262).
101
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53
furiosos, mentecaptos, e pródigos. O Juiz de Paz tem a mesma inspecção sobre
eles como acerca dos menores” 102.
Note-se, em primeiro lugar que o último autor, apesar de escrever já nos
meados do século – ou seja, cerca de meio século depois do aparecimento,
embora timidamente ainda, na Alemanha e na França, de uma teoria geral da
personalidade (com a inclusa teoria geral da capacidade civil) não trata desta
questão à cabeça do seus tratado de direito civil, nomeadamente, na abertura da
parte dedicada ao direito das pessoas, ao lado das questões do status civitatis e
do status familiae. Marcando o estado de involução da teoria geral das pessoas –
se bem que típica do modelo jurídico liberal -, a matéria aparece tratada a
propósito da questão das tutorias, bem no centro do direito de família 103.
O mesmo se não passa com Coelho da Rocha. Como parte da noção de
direito como faculdade moral 104, tem que concluir que “para se dar direito é
necessário: uma pessoa capaz, ou o sujeito, a quem compete o direito, ou sobre
quem recai a obrigação” (§ 47). E daí que a questão da capacidade (e dos vícios
de consentimento – erro, dolo e coação – que podem mal-formar ou anular
conjunturalmente a vontade) tenha a sua sedis materiae logo na abertura do
tratado, entre as questões relativas ao estado natural das pessoas.
Em todo o caso, ainda não está bem nítido o carácter prévio que esta
questão da capacidade ganha no contexto de uma concepção contratualista do
direito. De facto, numa perspectiva destas, a questão da existência pessoal
(nascimento) e a da plenitude do entendimento e da vontade (questão da
maioridade e da capacidade mental) ganhariam uma absoluta contra-distinção em
relação a outras questões relativas aos estados das pessoas que, tendo
consequências jurídicas, não as têm porém de natureza tão primeiramente
constitutiva (scl. género, parentesco, etc.). Coelho da Rocha ainda não recorta as
coisas com esta nitidez. Sobre ele pesa ainda uma concepção antiga acerca dos
estados das pessoas como elementos variamente caracterizadores do seu
estatuto jurídico. “Todo o homem – escreve - é capaz de ter direitos, e por tanto,
todo o homem é pessoa. Mas nos homens os direitos variam conforme as
diferentes qualidades, posição, ou circunstâncias, em que eles se acham; ou,
para nos servirmos de frase dos jurisconsultos Romanos, conforme seu diferente
estado. Estas circunstâncias podem provir ou da natureza, ou da lei civil; e daqui
o estado pode ser natural, ou civil” (§ 55). E remata, prejudicando ainda mais a
emergente teoria unitária da personalidade: “As circunstâncias ou qualidades, e
por tanto o estado dos homens, podem variar ao infinito: não sendo por isso
possível indica-los todos, daremos aqui as noções daqueles, que são mais
frequentes , ou necessitem de maior esclarecimento” (ibid.). E assim faz. Ao
enumerar as questões relativas ao estado natural – o primeiro e mais fundamental
a considerar – enumera, ao lado das questões relativas ao nascimento, à idade,
102
J. H. Corrêa Telles, Tratado dos direitos e obrigações civis relativos às pessoas de uma família portugueza,
para servir de subsídio ao novo Código civil, Lisboa, (ed. cons. 1853, 4ª ed.), § 773.
103
Também no Code civil, a matéria aparece, na secção das matérias relativas à personalidade civil e política,
mas no início da matéria dos contratos.
104
"Direito no sentido de faculdade moral, ou tomado subjectivamente, é o poder legal, que compete a uma
pessoa, de fazer alguma coisa, ou exigir que outrem a faça” (§.46).
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“muitas outras relações do seu estado natural, como varão ou mulher, sãos ou
enfermos, cegos, furiosos, mentecaptos, velhos, e outras”, § 58 in finem).
Só muito mais tarde, já na vigência do caracteristicamente liberal Código
de Seabra e de uma plena recepção da teoria unitária da personalidade jurídica, é
que a questão da capacidade de direito (e do seu exercício) vem para o proscénio
do direito civil, ganhando a dimensão de uma questão prejudicial em relação a
todas as outras determinações estatutárias das pessoas e a todas as relações
jurídicas, de direito privado ou de direito público 105.
O que, em todo o caso, importa aqui realçar são as proximidades que se
estabelecem no seio desta classificação. Nomeadamente a proximidade que se
cria entre a doença mental e a prodigalidade.
Comecemos pela categoria dos “mentecaptos”.
Fodéré, que era médico com prática em hospícios, é muito mais cuidadoso
na distinção, tirando daí algumas consequências na definição do seu estatuto
jurídico. Distingue os “estúpidos” (§ 47), os “maníacos” (§ 67), os “insensatos” (§
86/7), os “decrépitos” (§ 90), classificando-os a todos de incapazes civil e
criminalmente. Para outros, recomenda a interdição total ou parcial (pp. 106/107).
Mas isto não se passa com estes juristas mais tardios, que se bastam com
uma caracterização geral da demência, definida como “incapacidade de se
governar”.
Coelho da Rocha recorda distinções ocorrentes na literatura médico-legal
ou mesmo na literatura jurídica (desassisado, desmemoriado, mentecapto, doido,
sandeu, furioso, demente, louco), das quais não se ocupa. Já antes, outros
juristas tinham passado ligeiramente sobre o tema. Manuel de Almeida e Sousa
(de Lobão), um jurista anterior, comentador do grande Pascoal de Melo, e
conhecedor impregnado de doutrina antiga, escrevera “Seria muito extenso se me
propusesse individuar todas as espécies de doidos, e as diferenças entre os
furiosos, maníacos, frenéticos, insanos, mentecaptos, estultos, fátuos, etc. [...]”
(Lobão, Notas a Melo, II, 12, § 7, nº 1). Apenas advertia que “outros não são
loucos, mas só rudes, simples, grossolanos, como estúpidos, obtusos, e de juízo
menos fino, e perspicaz etc.” (ibid., nº 3) E que “supposto aos fátuos qui mente
totaliter capti non sunt datur curator [aos que não são totalmente apanhados da
cabeça se dá tutor), contudo, como se não pode aqui dar regra certa, porque uns
há que são mais fracos que outros, o mais seguro é fazer por médicos exames, e
experiências nos que se supõem doidos, não confiando de testemunhas as
provas da demência (ibid, nº 4).
À medida que vamos recuando, o cuidado da distinção vai sendo maior,
como veremos.
Passemos aos pródigos. Por muito plástico que isso fosse, a incapacitação
dos pródigos não decorre do “individualismo proprietário” liberal. Ela vinha já do
105
No domínio do direito político (ou constitucional) a construção unificada da teoria da personalidade (neste
caso, da personalidade jurídico-política, ou cidadania) é mais precoce, pois constitui o cerne do novo direito constitucional
liberal. Mesmo aí, no entanto, se manifesta a inexistência de uma prévia teoria geral da incapacidade, obrigando as
constituições a declarar expressamente como feridos de incapacidade política os feridos de “incapacidade física ou moral”
(Const. 1822, artº 24).
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Antigo Regime, envolvendo então uma delicada questão de contra-distinção entre
a prodigalidade, que era um vício, da liberalidade, que era uma virtude.
O direito romano já previra a nomeação de tutores para os pródigos. As
Ordenações portugueses (Ord. fil, liv. 4, tit. 103, § 6) previam a sujeição a tutor
daquele que “como pródigo desordenadamente gasta e destrói a sua Fazenda”.
No início do sec. XIX, Lobão recorda antigas definições e antigos critérios: o
pródigo é aquele que dissipa os seus bens dilapidando-os, sem ter nem regra
nem tempo nas despesas 106; ou o que fala como sensato, mas actua como
insensato 107; pródigo diz-se assim como que significando apartado de governo 108.
Recordando ainda que há dois tipos de largueza de mãos, uma típica dos
pródigos, outra dos liberais, ou generosos; dissipando os pródigos a sua fortuna
em coisas de que efémera ou nenhuma memória há-de ficar, como jantaradas,
lutas e jogos, caçadas e opulências 109; pois a liberalidade dá de forma
circunspecta e a prodigalidade de forma difusa e sem qualquer prazer, tendo a
primeira uma regra e a segunda nenhuma 110. Concluindo, aquilo que mais nos
interessa: “como não há dúvida de que a prodigalidade diminui a coisa e os
próprios frutos, nada ficando da propriedade, resulta que a prodigalidade é uma
depravação da mente que leva ao dispêndio da própria substância [da pessoa],
afastando-a da razão e do juízo e destruindo a sua fama pública, tornando-se o
pródigo candidato à impotência de alma que é própria dos animais selvagens” 111
(Lobão, Notas a Melo, I, ad I, tit. 12, § 9) 112.
No fundo, a proximidade assim estabelecida entre demência e
prodigalidade radica naquela regra que constituía o critério dos juristas.
Insensatez que feria a possibilidade de pertença à sociedade civil era tudo aquilo
que se afastasse escandalosamente de uma prudente regra de agir. indiciando
uma falta de vontade e de entendimento que prejudicava de forma definitiva a
vinculação ao contrato social.
Casos havia, porém, em que o critério de normalidade se apertava. Era o
caso dos comerciantes falidos e das mulheres viúvas.
Sobre os falidos impendia, de facto, uma pesada suspeição. Fazendo parte
de um grémio cujos negócios se baseiam em estritas regras de confiança, os
falidos tinham traído essa confiança, pondo-se em condições de não satisfazerem
as suas obrigações comerciais. Podiam tê-lo feito ou por inabilidade grosseira ou
por falta de honestidade. Fosse como fosse, “estava sempre contra eles toda a
sinistra presunção” (Lobão, Tratado encyclopedico, pratico e critico sobre as
106
Prodigus est, qui neque tempus, neque fluem expensarum habet, sed bona sua dilapidando profundit.
107
Seu qui sermone quidem videtur sapiens, sed factis est insapiens.
108
Prodigus dicitur quasi procul a regimine positus.
109
Omnino sunt duo genera largorum, quorum alteri prodigi; alteri liberales. Prodigi, qui epulis, viscerationibus, a
gladiatorum numeribus, ludorum, venationum que opparatu pecunias profundunt in eas res, quarum memoriam , aut nullam
aut brevem sunt relicturi.
110
Donat liberalitas circunspectè prodigalitas effuse, ac nullo delectu, Liberalitate est modus; prodigalitati nullus.
111
Certe prodigahlitati, re imminuta, et fractis opibus, nullus restat fundus; ex his colligitur prodigalitatem esse
depravationem mentis pronœ in effusionem proprie substantiae, rationis et judiciis profugam famam contemptricem , in
consulate cujusdam animi impotentiae feralem postum.
112
Ao pródigo alguns doutores equiparavam, para o fim de se lhe dever dar curador,.o “bêbado continuo [...] e o
jogador continuo, e taful”, Lobão, Notas a Melo, I, ad I, tit. 12, § 9, nº. 8. Sobre o conceito de prodigalidade, v. ainda
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis lusitani, Ulyssipone, 1789, lib. II, tit. 12, § 9.
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execuções que procedem por sentenças e de todos os incidentes nellas, Lisboa,
1828, §§ 188/189). Daí que fossem incapacitados para vender e que - tal como
acontecia com os pródigos - lhes fosse nomeado um curador. Mas as suspeitas
sinistras iam até ao ponto de o meter na prisão, requerendo-o os credores. Ou, no
plano do direito constitucional e expressando essa sua indignidade para a vida
social, os falidos (de má fé) eram feridos de inelegibilidade para deputados
(Const. 1822, artº 34º, III).
A incapacidade de certas viúvas, que autorizava a que se lhes nomeasse
curador, provinha da lei. As Ordenaçõs (Ord. fil., III, 107) dispunham que, “se
alguma viúva, maliciosamente e sem razão, desbarata ou alheia os seus bens, as
justiças do lugar (o Juiz ordinário, ou dos órfãos) onde os bens estiverem, os
entregam a quem os administre, assignando alimentos convenientes à viúva”
(Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, I, p. 184). A doutrina corrente
afirmava que “esta providencia tende a beneficio não só da viúva mas também
dos seus sucessores” (ibid.).
Seja como for, não se tratava de um simples caso de prodigalidade. Os
autores notavam que a lei não exigia, no caso das viúvas gastadoras, a prova da
prodigalidade, segundo os cânones normais. Daí que tenham excogitado outras e
mais específicas razões de direito, relacionadas com atrás morais próprias das
mulheres e mais graves ainda nas mulheres viúvas. “A sua razão intrínseca –
escreve Lobão - ou pode ser coibir o luxo das viúvas, conforme o Apost. ad
Thimoth. cap. 5, Viduae, quœ in deliciis est, vivens, mortua est [a viúva que vive
nas delícias, embora viva, já está morta]. Ou pode ser um desempenho da
obrigação, que as Sagradas Letras impõem aos Imperantes de vigiarem na
protecção das viúvas [...]”. Um autor anterior aproximava expressamente este
furor dissipador da alienação e da irracionalidade, opinando que a Ordenação se
aplicava “mesmo que a viúva não seja, nem pródiga, nem dada à luxúria, desde
que se prove apenas que ela maliciosamente ou dissipava os bens ou os alienava
sem razão [...], sendo necessário provar a irracionalidade da alienação” 113. A
passageira referência à luxúria não deve ser tida como insignificante. Na verdade,
o direito romano (L. 15. ff. de Curat furios, D., 27, 10, 15) dispunha que “a mulher,
que vivia luxuriosamente, podia ser interditada quanto à administração dos bens”
(et mulier, quae luxuriose vivit bonis interdid potest). A palavra “luxúria” tinha - em
latim como, depois, nas línguas novi-latinas – uma conhecida ambiguidade: ou se
referia ao profuso dispêndio dos bens ou ao profuso dispêndio de si mesmo, em
actividades eróticas. Embora a opinião comum entendesse o texto citado como
referido à prodigalidade e dissipação de bens, uma coisa não deixava de estar
ligada uma à outra como duplo sintoma da falta de contenção feminina 114. Daí
que, por detrás do disposto na lei quanto às viúvas, perfilava-se um tipo social
previsível: o da viúva alegre, insensata e desonesta, dissipadora dos bens e do
recato devido ao seu estado. Por isso, a combinação das duas faces da luxúria
113
António Mendes Arouca [1610-1680], Adnotationes practicae ad librum fere primum Pandectarum Juris Civilis
[...], Pars I, Ulyssipone, 1701-1702, in l. 9. de stat. homin., ns. 157-158. Sobre a viúva gastadora, v. ainda Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis lusitani, Ulyssipone, 1789, lib. II, tit. 12, § 10..
Cf., sobre isto, A. M. Hespanha, “O estatuto jurídico da mulher na época da expansão”, em O rosto feminino
da expansão portuguesa. Congresso internacional, Lisboa, Comissão da Condição Feminina, 1994, 54-64; "Carne de uma
só carne: para uma compreensão dos fundamentos histórico-antropológicos da família na época moderna", Análise social,
123/124.I (1993), 951-974.
114
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não devia ser descartada: “De forma que, só porque uma mulher é meretriz, que
lucra pela prostituição, se lhe não deve dar curador, mas [só] se é pródiga, et
maxime se nela se unem ambos os vícios” (Lobão, Notas a Melo, I, tit. 12, § 10, nº
3).
Em suma. A marcação jurídica dos dementes está, na ordem jurídica do
primeiro liberalismo, ligada a um critério de insensatez de comportamento.
Naturalmente que essa insensatez prejudica a convivialidade em termos práticos,
e pode mesmo originar prejuízos concretos, não apenas ao próprio, mas ainda a
terceiros. Mas, realmente, não são esses inconvenientes práticos – ocorrentes
noutras situações - que levam à incapacitação. O que legitima a exclusão da
sociedade é o que esse comportamento insensato revela quanto à carência
daquelas faculdades intelectuais ou volitivas que são supostas para contratar e,
portanto, para celebrar conscientemente e com propósito de cumprir o contrato
social de que nasce a integração na sociedade. E, assim, o incapaz é incapaz,
não por aquilo que faz, mas por aquilo que é. Embora a anomalia se possa
traduzir de muitas maneiras, ela tem uma causa única e, nesse sentido, é um
facto unitário, insusceptível de cambiantes de acordo com as situações concretas
ou os critérios "locais” de comportamento.
Por se tratar de um estado geral e permanente, as consequências são
também genéricas e inexoráveis, insusceptíveis de apreciação casuística. “Os
dementes – escreve Borges Carneiro (Direito civil de Portugal, cit., § 260) - pela
falta de deliberação e vontade são incapazes de todo o acto civil extrajudicial ou
judicial, como, contracto, testamento, oficio, litigio [...], § 260; ainda que esse acto
se ache feito discreta e ordenadamente. [...]” 115. E daí que “nos actos extrajudiciais, não pode pois o demente: I contratar; II pagar divida sua. III Adquirir
posse; pode porém conservar a que já tinha; IV Adir herança.; V Fazer testamento
[...] Nos actos judiciais, “não pode o demente: I litigar em juízo como autor; II
Nem ser procurador; III Fazer confissão; IV Ser testemunha; V Prestar juramento;
VI Querelar e acusar. Nos delitos, “aos dementes não se pode imputar crime, nem
sujeitá-los a acusação, e pena: por não terem vontade livre nem serem capazes
de dolo ou culpa”. Na indemnização por danos, “se não pode exigir pelos seus
bens: pois não havendo da parte dele nem mesmo culpa ou negligência, se deve
a acto nocivo ter por casual, cujo efeito portanto recai sobre quem o sofreu” (ibid.,
p. 168-169). Numa palavra, os dementes (e estados congéneres) “são
equiparados ao estado da infancia, e gozam dos beneficios e favores concedidos
aos menores” (ibid.) 116.
Por outro lado, embora os juristas estejam mais abertos a entregar
aos médicos o diagnóstico da anomalia mental, o certo é que não abrem mão do
princípio de que esta se deve exprimir por sinais externos cuja relevância cumpre
115
Diferente é o caso de demente com intervalos lúcidos “no qual caso [se é intervalo lúcido] havendo dúvida, se
decide segundo a discrição ou indiscrição com que o acto estiver feito” (Manuel Borges Carneiro, Direito civil ..., cit., ibid.).
116
De natureza totalmente diferente são os estados que, passageiramente, obnubilam e entendimento, como a
ira ou a embriaguês. “Ao furor se aproxima a ira, que ás vezes tão forte que produz grande perturbação e mesmo total
alienação da alma (ira furor brevis), e falta de vontade deliberada [...] Pela mesma razão se o provocado com palavras ou
factos se exasperou veementemente, e excedeu os limites da defesa; ou se blasfema na força da sua dor ou aflição, o
castigo se diminui e nunca chega á pena capital” (Manuel Borges Carneiro, Direito civil ..., cit., § 263 ss.). “O ébrio se
equipara ao demente, em quanto também é privado do uso da razão; e o pode ser totalmente, se a bebedice é completa”
(ibid., p. 177). “Os sonâmbulos ou noctâmbulos cometendo algum delito em estado de sono completo, também são isentos
de culpa e pena, ao menos pela priimeira vez (ibid, 179).
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ao juristas – como homem treinado na prudência das coisas humanas – avaliar.
E, nesta avaliação, os indícios que se relacionam com o comportamento
económico são decisivos, embora possam aparecer - como no caso da viúva ou,
em geral, da mulher – combinados com indícios relativos ao comportamento
sexual. Numa palavra, o critério de normalidade parece aproximar-se do ideal
figurado por um marido proprietário.
Um relance para o paradigma jurídico que se estava a encerrar não deixa
de ser significativo das mudanças de mundi-vidência que estavam a ocorrer.
Tomemos, de novo, o mais antigo dos autores que temos vindo a utilizar,
Manuel Borges Carneiro, e à questão da sedis materiae da demência. Borges
Carneiro trata da demência a propósito dos estados das pessoas. Começa por
assentar em que, para efeitos de direito, “As pessoas e seus consequentes
direitos se podem classificar pela sua: I Naturalidade (...); II. Qualidade ou
condição (...); III. Estado (... ....); IV. Sanguinidade (... ...); V. Sexo (... ...); VI. Idade
(... ...); VII. por vários acidentes (sc. dementes, pródigos, ausentes, cativos,
miseráveis, infames, indignos) a” (“Classes de pessoas”, I, tit. 30). Quanto a esta
última e mais heteróclita classe, escreve “A VII e ultima classe de pessoas se
forma vários acidentes (tom. I. §. 2I.) scil., demência, prodigalidade, doença,
miserabilidade, poderio, cativeiro, ausência, infâmia, indignidade. Este é o objecto
dos cinco títulos seguintes”. Cada um destes “acidentes” é inspeccionado em
detalhe, surpreendendo-se os seus cambiantes e especialidades.
Ou seja, não estamos já perante essa grande fronteira entre pessoas civil e
politicamente capazes e pessoas incapazes para tal. Estamos antes diante de
uma inabarcável e irredutível diversidade das pessoas, consideradas nos seus
“universais” ou “estados” 117. É esta a visão do direito mais antigo. Como as
pessoas não têm todas a mesma função social, como as suas funções
(“universais”) se incorporam na sua própria natureza, é de direito natural que
tenham estatutos jurídicos diferentes. Alguns destes estatutos capacitam mais do
que o comum (por exemplo, o de príncipe, de doutor, ou de nobre) outros
capacitam menos do que o comum, (como o de rústico, de mulher, de menor, de
pobre, de ausente, de cativo, de indigno); outros incapacitam mais em geral
(como o de impúbere, demente, furioso, infame).
Um destes estados era o do demente. Desde logo, variado, expresso em
comportamentos que se identificavam casuisticamente, sem se curar de uma
causa mental unificadora. O mais que se podia dizer, como característica comum,
era que não se adequavam à ordem estabelecida no mundo 118. Gente que “não
falava a propósito, mas fora de assunto, respondendo uma coisa às perguntas
sobre outras Pegas, ibid., n. 94); “dizem coisas vazias” (ibid., n. 95). “Vão pelas
a
A cor não induz diferença sobre os direitos do homem, “sendo muito conveniente, diz o Al. 17 dez. 1802, § 16,
ao meu Real serviço e aos princípios de Direito Natural, desterrar a odiosa preocupação com que muitos consideram a
diferença de cores como um princípio de que devem resultar diferentes direitos, e querendo dar a meus vassalos pretos e
pardos do Brasil uma prova irrefragável de que os considero habilitados paa todas as honras e empregos militares (dos
quais se tratava) segundo o seu pessoal merecimento ...”.
117
Ou seja, voltando a citar Coelho da Rocha, “enquanto às circumsâncias ou estado das pessoas, a quem
competem os direitos, ou obrigações (jura personarum) (Instituições ..., cit., I, § 47).
118
“Et probatur quando tests dicant memoriam non habuisse ordinatam” [prova-se quando se diz que não têm
uma memória com ordem], Manuel Álvares Pegas [1635-1696: http://www.arlindo-correia.com/240206.html], Commentaria
ad Ordinationes, Ulysipone, 1669-1703., ad I, 50, cap. 6, t. 4, p. 251.n. 95.
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praças, atirando pedras” (ibid., n. 97). “Andam pelas ruas, lançando berros” (ibid.,
n. 99). “Se, quando estão doentes, proíbem que se chame o médico, e se
recusam a tomar os remédios para a cura” (Álvaro Valasco [1524-1593],
Decisionvm consultationum ac rerum judicatarum [...] ., Ulysipone, 1636)
Manuel Borges Carneiro, que escreve no princípio do século (Direito civil
de Portugal, Lisboa, 1826-1828), é ainda muito atento às distinções. Nele ecoam
muitas classificações antigas, moldadas pela natureza dos casos concretos.
Havia os dementes (que se chamam também delirantes, sandeus, furiosos,
mentecaptos, desassisados, desmemoriados, insanos), ou padecem delírio agudo
ou baixo, de que falara François Emmanuel Fodéré, a sua autoridade moderna na
matéria. Mas recorda também a lição de Stryck, no seu tratado sobre os
testamentos e as distinções que ele fazia. Fala de certas pessoas iracundas e
extremamente irritáveis; bem como de alguns melancólicos, hipocondríacos,
velhos decrépitos, simples, fátuos, estúpidos ou pouco avisados, que não se
deviam ter por insanos quando tivessem suficiente discernimento e conhecimento
das coisas humanas, especialmente do acto de que se tratasse. Esclarecia que
os fátuos ou estúpidos eram as pessoas de entendimento rombo e que percebiam
com dificuldade: “não são propriamente dementes, e basta que tenham o
entendimento necessário para conhecerem de que acto se trata e exprimirem qual
a sua vontade, para ele ser valioso” (Direito civil de Portugal, Lisboa, ed. cons.
1851, I, tit. 30, p. 164 ss.).
Ou seja, a demência, do ponto de vista do direito, ainda não era uma
característica genérica que, por uma razão de princípio, excluía do pacto social e
da convivência civil 119. Era antes um feixe variegado de características mentais,
de diferente incidência nas relações sociais e que, portanto, tinha que ter um
tratamento particularizado, atento à diversidade das situações psicológicas, bem
como dos actos envolvidos. Isso faz com que as situações de demência se
matizem; algumas delas, como a epilepsia ou “mal sagrado” (morbus sacer),
apareçam rodeadas de uma auréola de mágica clarividência.
Outro estado, não menos grave, era o do bêbedo.
A bebedice era um pecado, um pecado grave e mortal. Respondendo a “Se
a embriaguês é um pecado grave ?”, o teólogo Francisco Genetto responde sem
margem para dúvida, invocando uma fulminante galeria de santos testemunhos,:
“Uma vez que pela embriaguês o homem se priva por algum tempo do uso da
razão e se torna semelhante às bestas, a ponto de se sujeitar à depravação; e
assim se coloca em risco de cometer vários pecados e de se infligir danos a si
mesmo, não se pode duvidar de que a embriaguês seja em si mesma um pecado
grave” (Francisco Genetto, Theologia moralis [...] ad ususm Carmelitarum
Excalciatorum ex Congregationis Hispaniae, Matriti, 1791, I, Francisco Genetto).
E daí que, além da responsabilidade mortal pela própria bebedice, "Aquele que se
embebeda pecou e fez-se culpado de todos os pecados que perpetrar naquele
estado” (ibid.).
Note-se, em todo o caso, que a teoria do pecado – com a centralidade que dá ao entendimento e à vontade –
preparava já a construção liberal. Cf., por todos, o ct. Francisco Gentto, Theologia moralis ..., maxime, 83 ss. (“quia, ut ait
S. Augustinus, usque adeo peccatum voluntarium malum est, ut nisi sit voluntarias, nullo modo peccatum sit. Et consequenter illa omnia, qua liberum voluntatis consensum impediunt, ut ignorantia, timor, & indeliberatio, peccatum excusant”).
119
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60
No plano do direito, produzia um estado equiparado ao do demente: “Além
disso, como o ébrio – citando Cícero – raramente vê o sol no Ocidente, mas ainda
mais raramente no Oriente, nada nele se pode dizer razoável, nem a vontade,
nem o bom conselho na gestão da vida [...] e por isso é equiparado ao morto e ao
doido furioso [...] pois a bebedice não é outra coisa senão uma loucura voluntária
[...] de onde Platão dizer que não apenas o velho se faz menino, mas também o
ébrio [...] E assim, como escreveu Vives, embebedar-se é perder as faculdades e
o senso, sair do poder da razão e do juízo da cabeça, de onde se diz que o
homem se transforma numa rês ou numa pedra. E fala sem saber o que diz, pelo
que se conduz a si e aos seus para graves males” (Domingos Antunes Portugal
[c. 1620-1677] 120, Tractatus de donationibus regiis, Ulyssipone, Ioannis Costa,
1699, l. 3, cap. 15, n. 27).
Depois, os surdos-mudos. O direito romano classificava os surdo-mudos
como doentes de perpétuos, daí se equiparando os surdo-mudos de nascimento
aos dementes. A Borges Carneiro, esta opinião não agrada “pois a experiência
mostra não ser aquele defeito corporal incompatível com a integridade do espírito”
(p. 188). Poderá antes ser uma questão de falta de experiência da vida: “opinião
mui recebida ensina que o surdo-mudo de nascimento não pode contratar, por
não ter assaz conhecimento dos negócios humanos; e que se lhe deve dar
curador, querendo-o, para lhe assistir nos seus contratos” (ibid,). Subjacente,
porém, parece estar algo mais profundo, sobre a relação entre a razão e a fala.
Essa mesma relação que assimilava a selvajaria à falta de uma linguagem
articulada (barbari), no fundo porque supunha que existia um nexo indissociável
entre razão e comunicação, do qual decorreria, não apenas a insensatez dos
surdos-mudos, como a selvajaria dos homens isolados na floresta (homo in sylva,
silvícola, selvagem), isolado na aldeia (paganus, aldeanus), no campo (rusticus)
ou nos vales isolados 121. Por isso é que outros deficientes físicos feridos de ainda
mais reduzida capacidade de observação – como os cegos – não podiam estar
sujeitos a tutela (ibid., 192). Ou ainda que “o surdo-mudo de nascimento não pôde
testar. Ainda que tenha bom entendimento, e exprima a sua vontade por sinais;
porque não pode ter ideia bastante sobre que seja instituir herdeiro e fazer
testamento; e porque a declaração da vontade por palavras pronunciadas ou
escritas é solenidade essencial do testamentos” (ibid.). Ou, finalmente, que “o que
está gravemente enfermo e mesmo já moribundo e balbuciente, pode fazer
testamento se puder ainda pronunciar as palavras inteligivelmente: pois ainda
então se presume estar em seu juízo” (ibid., 185).
Mas a variedade de estados continua; e, com ela, o desfile das adequadas
especialidades, algumas envolvendo incapacitações. Os doentes (bid., p. 185), a
quem, sendo incuráveis se impede a administração de seus bens e se pode dar
curador de bens. As pessoas miseráveis, compreendendo religiosos mendicantes,
pobres, doentes, cegos, aleijados, peregrinos e os hospitais a quem se faculta o
gozo da restituição in integrum (possibilidade de anular os actos praticados) (ibid.,
120
Maria Magdalena Rodríguez Gil, “Domingos Antunes Portugal: un jurista barroco”, Cuadernos de historia del
derecho, nº extraordinário de homenagem a J. M. Pérez-Prendes Muñoz-Arraco (2004), 279-292; Simð Santonja, Vicente
Luis, Escuela portuguesa del derecho internacional: siglo XVII: Domingos Antunes Portugal, Valencia. [Vives Mora]. 1973.
121
Onde ainda Fodéré tinha identificado uma propensão ao cretinismo. Nele, também, a relação entre poberza
intelectual e ruralismo (cf. François-Emmanuel Fodéré, Les lois éclairés[...], cit., I, 64).
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193). Os presos, feridos de algumas incapacidades, mas também protegidos por
alguns privilégios. E, até, os poderosos, em razão dos quais e das "desigualdes
que esta qualidade pode trazer à administração da justiça”, se estabeleceram
disposições restritivas.
Em suma. Para o direito de Antigo Regime, a questão da demência e da
sua especialidade em termos de efeitos de direito não constituíam senão um
afloramento de um princípio arquitectónico de toda a ordem jurídica – o da
diversidade de estados e, consequentemente, de estatutos jurídicos. Como o
direito é um dispositivo de produção e reprodução industrial de imagens, esta
consideração não dramatizadora da loucura, da sua dissolução num mundo de
especialidades, na trivialização das suas fronteiras pela multiplicação de outras
fronteiras, podia contribuir para uma atitude menos especialmente discriminadora
do que aquela que a centralidade política da capacidade de querer e entender,
típica do paradigma liberal, virá a instaurar. Aí, os loucos já não são apenas
“especiais”; passam a ser incapazes do vínculo político e, por isso, politicamente
alienados e interditos.
APÊNDICE
Fracesco Foramiti, Enciclopedia legale, Venezia, 1842, v. “Demenza”; II, p. 717 ss..
“Fra quelli che la loro debolezza mette al disotto dell’ infimo grado degli uomini volgari, i
giureconsulti ne distinguono due classi.
Gli uni non soffrono che una semplice privazione di ragione: la debolezza dei loro organi,
1’ agitazione, la volubilità, la incostanza quasi continua della loro mente mette la loro ragione in
una specie di sospensione. e d’interdizione perpetua che fa dar loro il nome di mentecatti nelle
leggi e 1egli sciritti dei giureconsulti.
Negli altri, l’alienazione di mente è meno una debolezza naturale che una vera malattia,
spesso oscura nella sua causa, ma violenta nei suoi effeiti e che somigliante ad una bestia feroce,
cerca continuamente involarsi dalle catene che la ritengono: è questa la malattia che chiamasi
furore.
I primi, dice Baldo, hanno un furore oscuro e nascosto; gli ultimi hanno una demenza
lampante e manifesta. Costoro sono in uno stato di ebbrezza, di trasporto, di frenesia; quelli si
avvicinano più allo stato dell’ infanzia e della estrema decrepitezza: la loro ragione, simile a quella
di un bambino o di un vecchio, è od imperfetta o logora: ma gli uni e gli autri, vale a dire, i furiosi ed
i deboli di mente, sono egualmente incapaci, per esempio, per fare un testamento, perciocchè negli
uni la ragione è quasi spenta, negli altri essa è come avvinta cd incatenata dalla violenza del male.
Chi potrebbe determinare precisamente i limiti quasi impercettibili che separano la
demenza dalla saggezza? Chi potrebbe in fine annoverare i gradi pci quali la ragione cade nel
precipizio, e, per cosi dire, nel nulla ?
Tutti gli uomini nascono savii; è questo il voto comune della natura: la ragione è toccata in
dote all’ uomo; essa lo distingue da tutti gli altri animali. Un uomo senza ragione quasi non è più
che un corpo organizzato, il quale non conserva che l’ombra e la figura di un uomo; il suo stato è
una specie di prodigio e di mostro della natura.
“Cosi parla il celebre d’ Aguesseau, e, come scorgesi, egli offre, ia tale dotta aringa, tre
riflessioni principali molto importanti a ritenere, per diffondere il più gran lume sopra questa
materia. La prima è che 1’ uomo in demenza è comi che non adempie i doveri più ordinarii della
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vita civile; la seconda che un solo atto di saviezza non prova la saviezza; mentre un atto solo di
pazzia prova la pazzia; la terza ia fine che nulla si può conchiudere dalle parole alle azioni.
Aggiungiamo alcune osservazioni a quelle di quello insegne magistrato.
Allontanarsi dalla ragione senza accorgersene, perchè si è privo di idee, significa essere
imebecille; allontanarsi dalla ragione scienternente, ma cor rpugnanza, perchè si è schiavo di una
passione violenta significa essere debole; ma allontanarsene con confidenza ecco cio che si
chiama essere folle.
Imprendere qui spiegare le diverse cause e le differenti specie di follia sarebbe lo stesso
che gittarsi inutilinmnte in immensi particolari; ma senza approfondire la sua causa od i suo
caratteri, sembra che si possa determinare in un modo generico in che essa consista.
L’ uomo ha una destinazione, la quale viene regolat dalla natura e dalle leggi della società;
egli dee adoperare a rendersi felice coi mezzi che la natura gli somministra. Egli nasce per
contribuire alla felicità degli altri uornini che lo circondano, che lo servono; nasce per sotoporsi
all’ordine della società cd alle leggi del governo che lo protegge. Ecco la destinazione umana.
L’istinto risehiara l’uomo sopra quanto è necessari alla sua felicità; la morale lo illumina
sopra quanto necessario alla fclicità degli altri; le leggi lo illustrano sopra l’ ordine e sopra la
sommessione civile: la riunione di tutu questi lumi differenti forma quella che chiamasi la ragione,
quella facoltà preziosa, di cui l’essere supremo ha provveduto gli uomini per conoscere la verità. La
ragione presa in un senso opposto alla pazzia no è dunque altra cosa che la cognizione del vero,
non quel vero che l’autore della natura ha riservato per sè solo, che egli ha messo al di là della
capacità dello spirito umano, o la cui conoscenza esige combinazioni molto complicate; ma di quel
vero sensibile, di quel vero che è a portata di tutti gli uomini e che essi hanno la facoltà di
conoscere, perocchè è loro necessario sia per la conservazione del loro essere, sia per la loro
particolare felicita, sia pel bene generale della società.
Che cosa è dunque un folle? E colui che non può adempiere la destinazione umana. Savio
perfetto è colui che intieramente 1’ adempie: quegli è meno savio che l’adempie meno
perfettamcnte; ma è costantemente un folle, un insensato clui che non l’adempie in verun modo,
colui che non sa nè seguire l’istinto della natura, nè sottoporsi aIle leggi della società e della
morale. Neppur basta conoscere queste leggi e queste regole, parlarne con ingegno, con
discernimento, fa mestiere per meritare il titolo di uomo ragionevole, seguirle nell loro condotta:
chiunque se ne allontana, continuamente nelle sue azioni, è un folle. Troppo spesso si veggono
uomini savii nelle loro parole, essere folli nelle loro azione; è questa la specie di follia più
sorprendente, perciocche offre di continuo lo spettacolo del contrasto più cospícuo nella saviezza
dei loro discorsi e nella stravaganza della loro condotta: la loro testa medesima produce sovente
combinazioni giuste; ma se la minima passione susciti, se un nuovo oggetto si offra, la loro
intelligenza so oscura, qual barlume, che sembrava animarla si spegne. Gli spedali, questi asili
della debolezza umana, sono ingombri di insensati di tale natura. Si passerebbe un tempo
considerabile, una settimana, talvoita un mese, con molti tra essi, senza accorgersi della menoma
pazzia; essi parlano, ragionano sensatamente nei loro lucidi intervali.
Riassumendo tutto quello che abbiamo detto, si vede vi questa differenza tra la demenza e
la imbecillità; la demenza è una privazione assoluta di ragione e l’imbecillità non è cbe un
afiievolimento. Havvi questa altra diversità tra la demenza e 1’imbecillità e la follia, che la
demenza, del pari che l’imbecillità, indicano un sttato abituale di privazione o di debolezza del buon
senso, mentre la follia non dinota alle volte che un disordine violento dell’ immaginazione, il quale
cessa per intervalli”.
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5. Mulheres, esposas e viúvas.
5.1.
Mulheres.
Em 1557, um advogado da corte, Rui Gonçalves, animou-se a oferecer à
rainha D. Catarina um livrinho em que coleccionava, juntamente com exemplos de
"algumas virtudes em que as mulheres foram iguais e precederam os homens" (p.
4), os privilégios e prerrogativas que o direito lhes concedia 122.
Rui Gonçalves não era, de certo, um "feminista". O intuito da sua obra era,
como o de muitos escritores cortesãos da época, concitar o favor real. Neste
caso, estando a coroa sob a tutela de uma mulher, elaborando uma recolha de
exemplos e tópicos que favoreciam - por diversas razões, incluindo a
condescendência paternalista ou o favor devido aos imbecis - o género feminino.
Levantar a carga de preconceitos que a tradição fizera cair sobre a natureza ou a
condição das mulheres exigiria renegar as autoridades estabelecidas e inventar
um discurso novo.
De facto, ontem como hoje, a condição da mulher, concretizada nos usos
da linguagem, em preceitos cerimoniais e de etiqueta, em normas jurídicas,
decorria de modelos de leitura (ou de construção) da natureza depositados na
tradição cultural europeia. Nesta tradição, os textos fundadores quanto às
grandes questões da compreensão do mundo e do homem são os livros de
autoridade da cultura religiosa, da cultura letrada difundida, em geral, nas Escolas
de Artes, e de duas culturas especializadas, com antiga tradição universitária e
fortíssimo impacto na vida quotidiana - a dos médicos e a dos juristas. E, mesmo
neste âmbito, manifestam-se hierarquias. Se, pegando em textos de direito,
explorarmos as suas genealogias, é muito provável que terminemos no Génesis
ou na Física de Aristóteles. E, se partirmos de textos de medicina, chegaremos
provavelmente aos Aforismos de Hipócrates ou nos textos de Galeno sobre a
natureza e as doenças das mulheres.
Ressalvadas as diferenças de ênfase e alguma discussão de detalhe como a conhecida polémica entre platónicos e aristotélicos sobre a alma das
mulheres ou entre Aristóteles e Hipócrates sobre a existência de sémen
feminino 123 -, a imagem da mulher contida nesta tradição era consistente, podendo
explicar, não apenas as práticas habituais, mas também as normas de
comportamento. Neste sentido, tudo o que se relaciona com mulheres - desde os
provérbios e as representações literárias até às normas jurídicas e aos preceitos
morais - constitui um universo sem surpresas, pois cada detalhe é imediatamente
referível a uma ideia força, frequentemente ligada a um lugar textual bem
122
Rui Gonçalves, Dos privilegios e praerogativas que ho genero feminino tem por direito comum & ordenações
do Reyno mais que ho genero masculino, Lisboa, 1557. Outro título juríico, mais tardio, sobre o género feminino: Duarte de
Barros, De Iure foeminarum. Quaestines iuris civilis, 1678, 2 tomos.
123
Aristóteles, Tratado da geração dos animais, II, 5, 20.
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conhecido, como o relato bíblico da Criação ou da Queda ou os passos do
Tratado da geração dos animais de Aristóteles sobre a função dos machos e das
fêmeas na geração.
O direito participava deste sistema de pré-compreensões profundas sobre
a identidade e a natureza dos sexos e recebia dele as suas intuições
fundamentais 124. No entanto, como saber prático de um mundo social em que as
mulheres eram mais do que seres passivos e menorizados, o direito - que, de
resto, partia dos dados da cultura romana sobre o género, muito mais igualitária
do que a cultura judaica -, diferenciara-se como sistema produtor de imagens
sobre o feminino. Descolara dos pontos de vista extremos sobre a incapacidade
das mulheres, frequentes em vários lugares das Escrituras e da Patrística, e
desenvolvera algumas valorações próprias, que permitiam a integração de
situações reais, como as da mulher dona de bens, da mulher feudatária, da
mulher rainha.
Antes de tudo, o que era "mulher" ?
Eis uma questão que, para os juristas, tem um alcance próprio. Para eles,
não se trata, fundamentalmente, de identificar uma coisa. Claro que existiam
questões facticamente complicadas, como a classificação sexual do hermafrodita,
a que os juristas também se dedicaram. Como se dedicaram a estabelecer
normas que impedissem a confusão dos géneros na ordem das coisas, proibindo,
por exemplo, que as mulheres se vestissem de homens ou que cortassem os
seus cabelos como os dos homens 125.
Mas, rigorosamente, saber se, na ordem dos factos, existem seres
sexualmente diferentes e quais são essas diferenças é, para os juristas, coisa
pouco menos do que irrelevante. Os juristas não trabalham com coisas, trabalham
com conceitos. O importante, para eles, é saber como é que, por cima dessas
pré-jurídicas distinções das coisas, o direito constitui, ao classificar o mundo, os
seus objectos próprios e que força expressiva dá aos seus nomes.
Por exemplo, que força tem, juridicamente, o nome "mulher", o feminino.
Ou seja, dispondo a lei para as fêmeas, abrange também os machos ? E,
dispondo a lei para os machos, abrange também as fêmeas ? Por detrás destes
problemas de interpretação das palavras genéricas, muito usuais e importante
para quem lida com normas formuladas em termos abstractos, escondem-se
todavia questões muito mais substanciais do ponto de vista de uma ontologia do
género.
A regra mais geral que os juristas evocam 126, quanto a este uso do género
das palavras, é a de que na locução corrente, o masculino inclui geralmente o
feminino. O que está de acordo com um princípio de representação simbólica de
âmbito muito geral segundo o qual a cabeça evoca, naturalmente, todo o corpo.
124
Sobre o estatuto da mulher no direito comum, v., por todos, Helmut Coing, Europäisches Privatrecht. 1500 bis
1800. Band I. Älteres Gemeines Recht, München, C. H. Beck, 1985, 234 ss..
125
Decreto, I, dist. 30, c. 6 (concílio Gangrense, contra os maniqueus, c. 376) "Anátema seja a mulher que, por
isso lhe ser útil, se vista com vestes masculinas [ou cortar os cabelos à homem]".
126
Cf., v.g., Rui Gonçalves, Dos privilegios ..., "prólogo".
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65
Já o feminino não compreende, senão excepcionalmente, o masculino, pela
mesma ordem de razões de que não se designa o todo pela parte mais fraca.
Já se vê que esta regra generalíssima é tudo menos inocente, do ponto de
vista da hierarquização dos géneros, remetendo - na época muito mais do que
hoje -, quer para uma concepção hierarquizada do mundo, quer para uma
concepção realista da linguagem, em que o poder denotativo das palavras se
enraizava nos poderes e hierarquias recíprocos das próprias coisas. As próprias
excepções são significativas. As Ordenações filipinas (I, 74, 20) falam das coimas
a aplicar às "mulheres que são useiras de bradar" 127; tal como, ao tratar do crime
de feitiçaria, o Decreto de Graciano (p. II, C. 26, q. 5, c. 12) evoca, naturalmente,
feiticeiras. Num caso e noutro, a norma contida nos textos aplicava-se também
aos homens. Aqui o uso do feminino remetia para usos correntes da linguagem
em que este género significava - contra a regra generalíssima - o todo. Mas isto
não pode deixar de se relacionar com a presunção subjacente de que situações
como as previstas envolviam normalmente as mulheres. Zaragateiras e bruxas.
Agostinho Barbosa - um célebre canonista do séc. XVII - discute
detidamente esta questão do uso do feminino e do masculino, a propósito do par
"filhos / filhas" 128. Em geral, "filhos" incluiria as filhas, excepto naqueles casos em
que a razão do direito fosse diferente para os homens e para as mulheres. Os
exemplos que dá destes casos excepcionais também são característicos. Não se
aplicaria às filhas, por exemplo, a lei que manda punir os filhos pelo crime do pai,
como na lesa majestade. Uma vez que a razão da lei é que a memória do crime
do pai se mantenha nos filhos, esta não valeria nas filhas, não só porque nestas
se perde a memória da família (ao ganhar, por casamento, uma outra família),
mas também porque as filhas "por causa da fraqueza do sexo, são menos
ousadas". Já na heresia - que era equiparada à lesa-majestade (laesae majestatis
spiritualis) -, se passaria o contrário: a punição do pai deveria passar às filhas,
porque "na heresia, o perigo é maior nas mulheres por causa da imbecilidade do
seu intelecto" (n. 55).
A regra de que o masculino inclui o feminino é, além disso, em geral
afastada sempre que daí decorram soluções absurdas ou inconvenientes (ibid.,
ns. 67-68). Ou seja, sempre que, neste mundo particular construído pelos
conceitos do direito, o ser mulher seja, para certos efeitos, tão radicalmente
específico, que se rompa a unidade de natureza entre o varão e a fêmea e se
transforme esta numa espécie à parte, à qual o regime jurídico genérico não
possa ser aplicado sem absurdo ou impropriedade. Um destes casos em que a
femilidade bradava por uma especialidade do direito era o da sucessão de bens
que importassem dignidade. Pois era tão absurdo que estes viessem a recair
numa mulher que, se o pai no testamento falou de "filhos", era claro que não
poderia ter querido incluir as filhas na locução. Esta era a regra hermenêutica
adequada a cláusulas testamentárias referidas aos castelos, aos feudos ou s
jurrisdições, "em que as mulheres não podem suceder" (n. 71) ou aos bens que
127
Cf. Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, VII, ad Ord. fil. I, 74, 20, n. 4: "o mesmo se passa
com o estatuto que proíbe [o pastoreio de] cabras, pois sob tal proibição se compreendem também os bodes".
128
Agostinho Barbosa, Tractatus varii. De appelativa verborum utriusque iuris significatione, Lugduni, 1644 (ed.
util.), v."Filius", ns. 48 ss..
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66
só se transmitam a varões, "por causa da dignidade ou da conservação da
memória familiar" (n. 70).
Uma interpretação profunda destas regras de uso do género nos textos
jurídicos - decalcadas, em parte, dos usos da linguagem corrente - permite
detectar já, não apenas os âmbitos do feminino no direito, mas também os
contornos da imagem da mulher.
O feminino é, em geral, irrelevante (inexistente), sendo denotado pelo
masculino tanquam corpus a capite sua. Porém, quando a imagem da sua
particular natureza o faz irromper no direito, o próprio direito explicita os traços da
sua pré-compreensão da mulher, traços que o próprio saber jurídico amplifica e
projecta socialmente em instituições, regras, brocardos e exemplos - fraqueza,
debilidade intelectual, olvido, indignidade.
Percorramos mais detidamente os traços desta imagem da mulher.
5.1.1. Menos dignas.
O primeiro traço é o da sua menor dignidade, o que incapacitaria as
mulheres, nomeadamente, para as funções de mando.
Esta distinção era constante nas matérias políticas e jurisdicionais, em
que, ou por natureza ou por decência, a mulher não podia ter as mesmas
prerrogativas que os homens.
O texto fundador era, neste caso, um passo de Ulpianus, inserido no
Digesto (*): "As mulheres estão afastadas de todos os ofícios civis ou públicos; e,
por isso, não podem ser juízes, nem desempenhar magistraturas, nem advogar,
nem dar fianças, nem ser procuradoras" (D. 50. 17, 2). Santo Agostinho devia têlo conhecido, pois quase o reproduz, combinado com outros e ampliado, nas suas
Quaestiones super veteris Testamenti (c. 45), em apoio da imagem negativa da
nulher que perpassa todo o Antigo Testamento. Daí passa ao Decreto de
Graciano (**) 129: "Constata-se que a mulher está sujeita ao domínio do homem, não
tendo, por isso, qualquer autoridade, nem poder ensinar, nem ser testemunha,
nem dar fianças, nem julgar; muito menos pode exercer o império". O círculo direito civil, direito canónico - fechava-se, constituindo a mulher em sujeito
particular - na verdade, um sujeito excluído - do direito político; ou seja,
identificando a mulher para a poder excluir do universo dos detentores possíveis
de prerrogativas políticas.
A lição de alguns escritores clássicos permitia mesmo atribuir
fundamentos naturais a esta interdição. Aristóteles, por exemplo, abunda no tema
da inferioridade do género feminino. No seu Tratado da geração dos animais 130, o
filósofo insiste longamente no tópico do papel gerador e activo do macho na
(*)
Compilação bizantina de doutrina jurídica romano-clássica, incluída no Corpus iuris civilis, obra central em toda
a tradição jurídica europeia.
(**)
Compilação de cânones e de doutrina canonística (séc. XII), incluída no Corpus iuris canonici, outro texto
central na tradição europeia do direito até ao séc. XVIII.
129
II, C. 34, q. V, c. 17.
130
Ed. util. Traité de la génération des animaux, ed. J. Barthélemy-Saint Hilaire, Paris, 1887.
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67
procriação. Para além da enunciação deste princípio geral da natureza (I, 2, 2-5; I,
14, 15-18; I, 15, 4-8; II, 5, 6-7, etc.), Aristóteles ilustra-o com provas concretas
tiradas da fisiologia da união sexual. Tanto as fêmeas eram inferiores, que nem
sequer emitiam, no coito, qualquer sémen (I, 13, 12-13; I, 14, 2-3, 15-18; II, 5, 20).
Também o seu prazer era puramente derivado, coincidindo com a efusão na
madre do sémen masculino (II, 5, 16-17) 131. Em suma, tal como o oleiro age, com
a sua ideia e a sua acção, sobre o barro inerte e passivo, assim o macho
trabalharia, na geração, a matéria passiva do fluxo menstrual feminino,
considerado como a matéria prima do embrião (I, 15, 8; I, 16, 1-2). Passivas, e
mais fracas: "as fémeas são naturalmente mais fracas e mais frias 132 do que os
machos; pode-se crer que isto é uma espécie de inferioridade de natureza do
sexo feminino" (IV, 6, 7). Platão fora, como se sabe, mais longe na indignificação
da mulher. Um e outro convinham, porém, na inabilidade natural da mulher para o
exercício de funções de mando. A aplicação de tudo isto ao género humano
também não deixa de ser expressamente feita (II, 5; II, 6).
S. Tomás de Aquino, um bom leitor de Aristóteles, partilhava destes
pontos de vista sobre a condição feminina 133. Na Summa theologica 134, uma obra
que influenciará decisivamente toda a cultura europeia, antes e depois de Trento,
ele manifesta a opinião de que as mulheres são infelizes acidentes da natureza:
"[...] Deve dizer-se que, pela natureza particular, a mulher é algo de deficiente e
ocasional. Pois a virtude activa que reside no sémen do varão, tende a produzir
um efeito semelhante a si mesmo, de sexo masculino. Porém, se se gerou uma
mulher, isto aconteceu por causa de debilidade da virtude activa, ou por alguma
indisposição, ou ainda por alguma mudança extrínseca, como os ventos do sul,
que são húmidos".
A tradição judaica vincava ainda mais a inferioridade da mulher. O relato
da criação da mulher (Génesis, I, 2, 18), bem como a da sua parte na tentação de
Adão e sua consequente condenação por Deus (Génesis, 1, 3) têm efeitos
devastadores muito duradouros sobre a imagem da dignidade da mulher. No
universo dos textos jurídicos, a presença desta imagem é constante. O Decreto
de Graciano - que recolhe muito da tradição patrística, fortemente anti-feminista está cheio de referências à menor dignidade da mulher, aos seus fundamentos e
às suas consequências.
Alguns textos baseiam a menor dignidade da mulher na lei da natureza. "É
da ordem natural em tudo, que as mulheres sirvam os homens e os filhos, os pais;
pois não constitui nenhuma injustiça que o menor sirva o maior" (Decreto, 2. p., C.
33, q. V, c. 12) 135.
131
Cf. Hipócrates, Da geração, n. 6 (ed. util., Oeuvres médicales, Toulouse, 1801. Sobre as concepções àcerca
dos aspectos físicos e fisiológicos do género feminino, Edward Shorter, A history of women's bodies, New York, Basic
Books, 1982; Susan R. Suleiman, The female body in western culture. Contemporary perspectives, Cambridge, Harvard U.
Press, 1986 (colecção de ensaios de interesse desigual).
132
Frialdade e calor, humidade e secura, são, na medicina hipocrática, sintomas, respectivamente, de
imperfeição e de perfeição. O calor é a fonte da geração e da acção; a humidade, o sinal da degenerescência e
decomposição.
133
Sobre a condição feminina em S. Tomás, Otto H. Pesch, Tomás de Aquino. Límite y grandeza de una teologia
medieval, trad. esp., Barcelona, Herder, 1992, 246-271 (notável).
134
Summa theol., I, 92.1 ad 1.
135
A fonte é S. Agostinho (1 lib. quaest. Genesis, q. 153).
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Outros ligam-na à história da criação de um género e de outro. As
palavras de S. Paulo aos coríntios sobre a submissão da mulher ao homem e da
esposa ao marido (cf. Coríntios, I, 11), estão constantemente subentendidas,
sempre que se aborda o tema das relações entre os géneros. De Santo Agostinho
cita-se, por exemplo, a doutrina de que "a imagem de Deus reside no homem, de
modo a que ele seja tido como que senhor; de onde alguns deduzem que o
homem tem o império de Deus, como seu vigário [...] Mas a mulher não é feita à
imagem de Deus" (Decreto, 2. p., C. 33, q. V, c. 13) 136.
Outros fundam a menor dignidade da mulher no papel da mulher no
pecado original e na condenação com que Deus, por isso, a fulminou (Génesis, 1,
3, 16). Daí provinha a ideia bíblica de impureza da mulher, nomeadamente nos
períodos caracteristicamente femininos da menstruação e do parto, nos quais
estava interdita de frequentar o templo, não podia ser acedida sexualmente e
impurificava as coisas em que tocasse (Levítico, 3, 12; 3, 15, 19 ss.). Os cristãos
atenuaram estas interdições; mas as Decretais continuam a desculpar a mulher
que, por se sentir impura, observasse os preceitos da Lei Antiga 137. De qualquer
modo, o Decreto retinha o ensinamento de Santo Ambrósio de que "foi Adão
quem foi enganado por Eva e não Eva por Adão. Foi a mulher quem o atraiu para
a culpa, pelo que é justo que seja ele a assumir a direcção, para que, por causa
da facilidade das mulheres, não volte a cair" (Decreto, 2. p., C. 34, q. V, c. 18) 138.
Na tradição cultural que arranca daqui, a mulher permanece sempre
marcada por esta mancha original. Ela deve ser continuamente lembrada e
assumida. O véu era uma das marcas de vergonha que sempre devia levar 139. E o
seu comportamento exterior deveria ser continuamente regulado pelas ideias de
sujeição e de expiação. S. Paulo (A Timóteo, I, 2, 9-15) sintetiza assim o seu
comportamento devido. "Aprenda a mulher em silêncio e com toda a submissão.
Não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que se mantenha em
silêncio. De facto, Adão foi criado primeiro, e depois Eva. E Adão não foi
seduzido, mas a mulher foi-o para o pecado. Apenas se salvará pela geração de
filhos, se permanecer na fé, caridade e santificação com sobriedade".
Esta subordinação, no estado de inocência e no estado de pecado, da
mulher ao homem aviva-se ainda no caso da mulher casada, a que alguns dos
textos antes citados mais directamente se referem. Apesar de, no casamento, os
cônjuges serem um para o outro e se fazerem carne de uma só carne 140, a
desigualdade natural (pré-nupcial) dos dois sexos limitava esta igualdade
prometida. Daqui decorrem todas as incapacidades específicas da mulher
casada, bem como a sua subordinação ao marido. S. Jerónimo, esse campeão da
136
Fonte: S. Agostinho, Quaestiones veteris et novi test., c. 106.
137
Decretais, III, t. 47, de purificatione post partum, c. un.: a mulher pode entrar na Igreja durante o puerpério e
menstruação; mas se se quiser abster disso por respeito, tal facto não é considerado falta de devoção.
138
Fonte: Santo Ambrósio, In hexameron in tractatu diei quartae.
139
Decr., 2. p., C. 33, q. V, c. 19 (< S. Ambrósio, super primam epist. ad Corinthios, in cap. 2): "A mulher deve
velar a cabeça [...] pois o pecado foi provocado por ela e, por isso, deve trazer este sinal. [...], devendo aparecer como
sujeita ao pecado original".
140
"Desta vez, sim, és ossos dos meus ossos,
E carne da minha carne. Esta será chamada mulher
Porque do varão foi tomada." (Génesis, 1, 2, 23)
O passo é citado por Mateus, 19, 5; Paulo, Coríntios, I, 6, 16; Paulo, Efésios, 5, 31.
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androgenia, fulmina a mulher desobediente com o pecado equivalente ao daquele
que se revolta contra o próprio Cristo "como a cabeça da mulher é o marido, mas
a cabeça do marido é Cristo, toda a mulher que não se submeter a seu marido,
isto é, à sua cabeça, torna-se ré do mesmo crime do homem que não se submeta
a Cristo, sua cabeça [...]. Mesmo as mulheres gentias servem seu marido
segundo uma lei comum da natureza" (Decreto, 2. p., C. 33, q. V, c. 15) 141.
Esta pré-compreensão da mulher como ser degradado desentranha-se, no
decurso da tradição jurídica europeia, em consequências normativas, algumas
das quais são meras extensões dos lugares das Escrituras, comunicadas ao
direito pela sua recepção no direito canónico.
Directamente do Levítico se extrai a consequência de que mulheres,
mesmo as consagradas a Deus ou as monjas, estão proibidas de tocar os vasos
ou vestes sagradas (Decreto, I, dist. 23, c. 25).
A regra paulina sobre a sujeição das mulheres aos homens nomeadamente, a sua proibição de que a mulher domine o homem - combina-se
com o já citado passo ulpinianeu do Digesto (D., 50, 17, 2) e gera uma tradição
formidável de interdições quanto ao acesso das mulheres a tudo quanto possa ser
entendido como lugar de magistério ou de mando.
No plano do direito canónico, está-lhe vedado o sacerdócio, pois este
implica jurisdição e magistério. Bem assim, todos os actos avulsos desta
natureza. As abadessas ou outras superioras, por exemplo, não podem pregar,
benzer ou ouvir as monjas em confissão (Decretais, V, 38, 10) 142. Por maioria de
razão, "qualquer mulher, ainda que douta, não deve ensinar em reunião de
homens". Mas também não pode baptizar (Decreto, I, d. 23, c. 20).
Pelo direito civil, como já se viu, "as mulheres estão afastadas de todos os
ofícios civis ou públicos; e, por isso, não podem ser juízes, nem desempenhar
magistraturas, nem advogar, nem dar fianças, nem ser procuradoras" (D., 50, 17,
2).
O direito comum aplica este princípio, com algumas limitações, ao mundo
político medieval e moderno. Assim, veda-lhes, em princípio, o exercício de
magistraturas e de lugares que importem jurisdição, a sucessão nos feudos e nas
alcaidarias 143.
Esta recusa de capacidade política às mulheres tinha, depois,
consequências na sua capacidade sucessória relativamente a todos aqueles bens
que contivessem alguma dignidade: feudos, morgados, ofícios e regalia 144. "As
141
Fonte: S. Jerónimo, Super epist. ad Titum, in cap. 2, c. an. 386. O texto é recolhido em Decreto, 2. p., C. 33, q.
V, c. 15.
142
"Mulier nos potest ordinari quia est incapax ordinis clericalis[...] nec potest exerceri spiritualia, neque tangere
sacra vasa [...], neque potest accedere ad altare [...] neque potest praedicare, neque publice docere, quamvis sit docta, &
sancta, quoniam hoc est officium sacerdotale" (António Cardoso do Amaral, Summa seu praxis judicum, et advocatorum a
sacris canonibus deducta, Ulyssipone 1610 (ed. cons. cit. Liber utilissimus ..., Conimbricae 1740 [adições de José Leitão
Teles]), v. "Mulier", n. 2.
143
A opinião é comum. V., em Portugal, Alvaro Valasco, Decisionum, consultationum ac rerum judicatarum,
Ulysipone 1588 (ed. util., Ulysipone, 1730), dec. 120, n. 3; 157, n. 8; António da Gama Pereira, Decisionum Supremi
Senatus..., Ulyssipone 1578 (ultª. ed. 1735), dec. 337, n. 2; António Cardoso do Amaral, Summa ..., cit., v. "Mulier", n. 4..
144
Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, XI, cap. 69, n. 3 ss.; Jorge de Cabedo, Practicarum
observationum sive decisionum Supremi Senatus regni Lusitaniae, Olyssipone 1602-1604, 2 vols. (ultª ed. 1734), , I, dec.
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mulheres não costumam suceder nos castelos, que costumam ficar para os filhos,
pro dignitate, & consuetudine familiae [a bem da dignidade e memória da família]
", escreve, no séc. XVII, Agostinho Barbosa 145.
Em Portugal, o princípio da incapacidade políticia feminina é recebido na
Lei Mental (primeira metade do séc. XV), que exclui as mulheres da sucessão nos
bens da coroa (Ord. fil., II, 35, 4). "As mulheres - escreve Jorge de Cabedo no
início do século XVII 146 - são incapazes de serem donatárias de bens da coroa,
estando proibidas de os possuírem. A razão é patente, pois tais bens
compreendem muitos actos de jurisdição, como são julgar, nomear ouvidores
para julgar, confirmar os juízes eleitos, apresentar tabeliães e outros magistrados
e, de vez em quando, nomear alguns ofícios. Compreendem também regalia,
como os ofícios dos castelos, que são os chefes dos castelos a que chamamos
Alcaides mores dos castellos, os quais também não competem às mulheres, nem
estas os podem exercer por si, pois não pertencem a mulheres actos de guerra,
como também não lhes pertencem os actos de jurisdição, l. foeminae [...] Estas
proibições existem, a não ser que o Príncipe conceda especialmente a mulheres
estes cargos".
O mundo medieval e moderno europeu participava, no entanto, de outras
tradições jurídicas e políticas que outorgavam papéis políticos diferentes ao
feminino. Conhecia rainhas, condessas, senhoras de terras, padroeiras de
mosteiros, que exerciam prerrogativas de mando e que, enquanto senhoras,
exerciam também a jurisdição. O direito feudal lombardo - que, através dos Libri
feudorum incluídos no Corpus iuris civilis, influenciava o direito feudal e senhorial
de toda a Europa - conhecia a sucessão feminina dos feudos. Se isto não foi
suficiente para obliterar a tradição judaica, foi pelo menos bastante para temperar
as opiniões quanto ao fundamento da exclusão das mulheres dos cargos de
dignidade. Se havia costumes e leis que as admitiam, se, além disso, a história
era abundante em exemplos de boas governantes, é porque a incapacidade
política da mulher não podia decorrer de um defeito do sexo; mas apenas de um
costume criado em certas nações, atenta a honestidade e o pudor femininos 147. "A
mulher - sintetiza António Cardoso do Amaral -, segundo costume prescrito, não
pode ter jurisdições, exercê-las por si, julgar e dar sentenças. À mulher não é
proibido julgar e ter jurisdição por causa da capacidade, mas por causa da
honestidade [...] não porque careça de juízo, mas porque foi recebido que não
exerça ofícios civis" 148.
5.1.2. Frágeis e passivas.
208; já nas sucessões de bens indiferentes (como os bens alodiais ou enfitêuticos), o varão não deve preferir a mulher
(António Gama, Decisiones ... (cit.), dec. 194, n.3; Alvaro Valasco, Decisionum ..., cit., cons. 157, n. 7.
145
Tractatus varii. De appelativa ..., v. "Filius", n. 61.
146
Jorge de Cabedo, Practicarum observationum ..., cit, II, 27, 1 ss..
147
Codex, tit. de mulieribus in quo loco munero sexui congruentia vel honores adgnoscunt.
148
António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 5.
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71
Mesmo que esta tradição literária, fundamentalmente judaica, da
indignidade das mulheres pudesse ser cancelada, restava ainda a tradição, essa
predominantemente clássica, da sua fraqueza e fragilidade.
Os juristas são unânimes em considerar que as mulheres carecem das
capacidades suficientes para se regerem por si só. "As mulheres, em razão da
ignorância, equiparam-se às crianças", escreve Pegas 149, recolhendo uma opinião
comum. "O seu engenho é móvel [...] a sua disposição vária e mutável, como diz
o poeta, presumindo-se que se deixam facilmente mover com carícias", escreve
Pegas 150. Daí que já o direito romano lhes proibira, pelo Senatusconsultum
Velleianum, dar fianças, para evitar que cedessem às manobras de sedução dos
devedores 151.
São naturalmente ignorantes, como os meninos e os rústicos, não sendo
de presumir que conheçam o direito 152. Daí que a Glosa enumere os casos em
que essa ignorância lhes vale como escusa 153.
Por tudo isto, têm de estar sujeitas à tutela de alguém 154. S. Tomás explica
com detalhe que os fundamentos desta sujeição - que é diferente da do escravo são altruístas, destinando-se a proteger a própria mulher. "[...] A sujeição é dupla.
Uma é a servil, pela qual o senhor usa aquele que lhe está sujeito para sua
própria utilidade; e esta sujeição foi introduzida depois do pecado. Mas existe uma
outra sujeição, a económica ou civil, pela qual o senhor usa daquele que lhe está
sujeito para utilidade deste. E esta sujeição existiu também antes do pecado, pois
teria faltado algum bem à multidão dos homens se eles não fossem governados
por alguns mais sabedores. E por tal sujeição a mulher está sujeita ao homem,
pois no homem abunda mais, por natureza, a discrição da razão. Nem a
desigualdade dos homens é excluída pelo estado de inocência [...]" ([Summa
theol., Ia., 92.1 ad 2).
Antes do casamento, estão sob a patria potestas do seu pai. Depois, estão
como pupilas debaixo da curatela do marido. De qualquer modo, "por causa da
fragilidade do sexo e da sua pior condição [...] não se devem intrometer nas
reuniões dos homens" 155; não podem ser fiadoras 156; não podem ser testemunhas
nos testamentos (Ord. fil., IV, 76); nos delitos são castigadas mais brandamente.
Mas a fraqueza da mulher decorre ainda dessa impotência do feminino
para se impor ao masculino, dessa passividade e plasticidade do género que o
torna disponível e o faz receber todas as determinações alheias. Esta fraqueza
está relacionada com a maior debilidade dos genes e do sémen femininos 157. De
novo, a fisiologia do coito é chamada como testemunho e fundamento: "É que 149
Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, IV, ad Ord., I, 62, gl. 43, n. 5 ss..
150
Jorge de Cabedo, Practicarum observationum ..., cit, I, dec. 114, n. 9.
151
Cf. D. 16, 1; C., 4, 29, Ord. fil., IV, 61; Alvaro Valasco, Decisionum ..., cit., cons. 138, n. 23.
152
Cf. Alvaro Valasco, Decisionum ..., cit., 138, n. 24 (embora devam consultar peritos em direito).
153
Gl. in l. fin Cod. de juris et facti ignorantia.
154
António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 29.
155
António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 1.
156
V. supra.
157
Hipócrates, Da geração (ed. cit.), n. 10 (os genes do homem são mais fortes do que os da mulher); Da
natureza das crianças (idem), n. 8 (o sémen de que provém as raparigas é mais fraco e mais húmido do que aquele de que
provém os rapazes)
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ensina S. Tomás - em todo o acto de geração se requer um poder activo e outro
passivo. Donde, como em tudo quanto respeita o sexo, a virtude activa está no
macho, a virtude passiva, porém, na fémea (Summa theol., I, 98.2. resp. § 3).
Nas mulheres, por isso, tudo se perde: a família, o estado 158, o nome, a
memória. "A mulher chefe de família é o fim da família", conclui Álvaro Vaz 159.
Esta é uma das razões que, a mais da sua menor dignidade, leva a excluir
as mulheres da sucessão em que o sucessor ou a lei tiveram em vista a
conservação dos laços familiares que então mais contavam - os laços
agnatícios 160. Isso acontece, frequentemente, nos bens vinculados à memória da
família, como os morgados e, em Portugal, é estabelecido, em geral, para os bens
da coroa.
5.1.3. Lascivas, astutas e más.
A pré-compreensão do feminino de que o direito parte contém também
referências à perversidade das mulheres.
Muito desta perversidade parece partir do sexo.
Como, em geral, as fémeas em relação aos machos, as mulheres são
mais lascivas do que os homens. A própria forma côncava da madre criaria um
desejo mais violento, explicável pelo princípio natural do horror ao vácuo 161. Mas,
de entre todas as fêmeas, a mulher e a jumenta atingiam o extremo da
lubricidade, pois tinham a particularidade de serem as únicas fêmeas que se
entregavam ao coito mesmo durante a gravidez 162. Isto não deixa de ser
recordado pelos moralistas e pelos juristas, quando querem justificar a imoderada
luxúria das mulheres. A fraqueza da vontade fazia o resto: "A sobriedade - ensina
S. Tomás - requer-se mais nos jovens e nas mulheres: pois nos jovens abunda a
concupiscência do desejo, por causa do fervor da idade, e nas mulheres o vigor
da mente não é suficiente para resistir à concupiscência" (Summa theol., IIa.IIae,
1, 49, resp. 4, § 1).
Por isso, o estado de pureza é, nas mulheres, sempre precário e instável,
sujeito a mil atentados e desejos. S. Cipriano, um outro látego do género
feminino, avisa da evanescência da virgindade: "pode-se desflorar com a vista;
mesmo a mulher incorrupta pode não ser virgem. Pois o dormir com homem, a
158
"A mulher filha de nobre, ao casar com plebeu, perde a dignidade nobre", António Cardoso do Amaral,
Summa..., v. "Mulier", n. 27. Esta "disponibilidade" da mulher também lhe permitia aproveitar a nobreza do marido (C.,
XII,1,13; Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, VII, ad I,90, gl.18, n. 1).
159
Alvaro Valasco, Allegationes ..., all. 29, n. 10; Manuel A. Pegas, Commentaria ad Ordinationes, 1669, XI, ad
Ord., II, 35, cap. 181, per totum ("A linha masculina é a linha que começa num varão e neles se continua sem qualquer
mulher ou interposição de seus descendentes [...] A linha feminina é a que começa na mulher [...] e divide-se em duas
espécies, uma sob o ponto de vista do princípio, se começa em mulher, pois todos os que descendem dela se dizem ser de
linha feminina, embora sejam varões, pois procedem daquela primeira mulher como estirpe [...] Outra é a linha feminina
que se compõem só de mulheres sem qualquer mistura de varão. A mulher que é chefe da sua família também é o seu fim,
pois, em primeiro lugar, a linha masculina extinguiu-se no pai, não se transmite à filha, antes nela terminando, e não se
continua nos seus herdeiros, que se dizem de linha feminina e se consideram de outra familia e agnação").
160
Agostinho Barbosa, Tractatus varii. De appellativa ..., v. "Filius", n. 61; Jorge de Cabedo, Practicarum
observationum ..., cit, I, dec. 208, n. 3 ss..
161
Aristóteles, Da geração dos animais (ed. cit.), II, 5, 5 ss..
162
Aristóteles, Da geração dos animais (ed. cit.), IV, 5, 4-5; História dos animais, VI, 22, 2 ss...
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73
conversa, os beijos, contém muito de criminoso e impúdico" (Decreto, II, C. 27,
qu. I, c. 4; fonte, S. Cipriano, ad Pomponium).
O luxúria chamava a curiosidade - que já perdera a mulher do Éden - e a
astúcia.
Embora estas disposições do espírito nem sempre fossem defeitos e
explicassem até uma especial aptidão da mulher para o conselho nos casos
árduos, eram também responsáveis pela tendência feminina para a imodéstia e
para o cultivo dos saberes ocultos e proibidos.
À imodéstia nos enfeites e nos trajos se refere S. Agostinho: "Pintar-se
com pigmentos, de modo a parecer ou mais rosada ou mais branca, é uma falácia
adulterina.. Pois sem dúvida os maridos próprios não se deixam enganar por ela.
E apenas a eles pertence decidir se as suas mulheres se enfeitem, segundo a
permissão (venia) deles e não segundo o poder (imperium) delas. É que os
verdadeiros ornamentos são [...] os bons costumes" 163. Quanto à feitiçaria, um
cânone conciliar do séc. IX, incorporado no Decreto de Graciano, manda reprimir
duramente as mulheres que se dediquem a sondar o sobrenatural por meio de
práticas demoníacas. "Também não é de omitir - diz-se - que algumas mulheres
celeradas, reconvertidas a Satanás e seduzidas pelas ilusões e fantasmas dos
demónios, crêem e confessam que cavalgavam de noite aquelas bestas, com
Diana, deusa pagã, ou com Herodíades, e uma enorme multidão de mulheres,
viajando no silêncio da noite por muitas terras distantes, obedecendo ao seu
império e dedicando certas noites ao seu serviço [...] E o próprio Satanás se
transfigura em anjo da luz para se apossar da mente dessas mulherzinhas [...]"
(Decreto, p. II, C. 26, q. 5, c. 12). E esta prevenção especial acompanha a prática
inquisitorial, que mantém uma particular atenção aos sortilégios e feitiços das
mulheres 164.
O remédio contra estes defeitos das mulheres 165 era uma constante
vigilância sobre os seus costumes e um seu rigoroso confinamento ao mundo
doméstico. Era isto que se predicava sob a regra do pudor e honestidade das
mulheres.
A honestidade é, de facto, "a virtude moral oposta à lascívia" 166. De alguma
maneira, é a virtude que consiste em usar do sexo segundo a recta razão da
natureza 167. Os direitos e deveres que dela decorrem são, assim, de direito
natural, impondo-se às obrigações civis ou políticas, e mesmo às ordens
expressas do príncipe 168.
163
Epis. 73 ad Possidiam, c. 415; passo recolhido em Decreto, De consecr., dist. V, c. 38.
164
Cf. as comunicações de Arlinda Leal, Anita Novinsky e José Gentil da Silva ao colóquio Inquisição, Lisboa,
Sociedade Portuguesa de Estudos do séc. XVIII, 1989, 2 vols..
165
Outros eram a avareza (testemunhada por Cícero) e a rixosidade ("vale mais estar sentado na asna do
telhado do que com uma mulher litigiosa que compartilhe a mesma casa", Provérbios, 21, 9).
166
Bento Gil [Benedictus Aegidius], Tractatus de iure, & privilegiis honestatis, Ulyssipone, 1618, art. proem., n. 2.
167
Daí que honestidade não se confunda com virgindade, pois realmente não impede o coito em geral, mas
apenas o "desonesto" (Bento Gil, Tratado ..., art. proem., n.2).
168
Bento Gil, Tratado ..., art. 2., ns. 2 ss..
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74
O primeiro preceito da honestidade feminina é que a mulher não se
misture com os homens 169. "A mulher - escreve António Cardoso do Amaral 170não deve advogar nem procurar em juízo a favor de causas alheias. É
incompatível com o pudor do sexo que se meta em negócios alheios ou importune
desavergonhadamente os magistrados".
Daí que ela não possa ser juíz ou ocupar cargos que a obriguem a privar
com homens - a não ser que, pela sua dignidade ou idade, o pudor não corra
riscos nessa privança 171; não possa ser obrigada a ir ao tribunal, como juiz 172 ou
procurador (Ord. fil., III, 47; V, 124, 16), nem a ser testemunha 173; não possa ser
metida em cárceres públicos, mesmo que de mulheres 174; não deva meter-se em
questões alheias, nem sequer para acusar crimes públicos 175.
Embora muitas destas restrições sejam apresentadas pelos autores como
honras devidas ao estado de mulher, se nos perguntamos pelos seus
fundamentos, encontramos sempre a virtude da honestidade. E, buscando a
arqueologia desta virtude quando predicada do género feminino, chegaremos
rapidamente ao seu oposto, a natural lascívia das mulheres. Nelas, a honestidade
é uma virtude contra a natureza, um freio da recta razão que compense a
violência das pulsões do desejo e a debilidade da vontade natural para a elas
resistir.
5.1.4. Portugal.
Esta imagem da mulher, latente nos textos do direito comum europeu,
projectava-se sobre os direitos dos vários reinos. Neles ganhava, eventualmente,
refracções próprias, que decorriam de tradições culturais particulares. Era o que
se passava com o direito português que, como se pôde ver das indicações de
fontes que foram sendo dadas, recebera a generalidade das regras de direito
comum.
Onde se verifica alguma especialidade era no regime de comunhão geral de
bens, considerado como costume geral do reino (Ord. fil., IV, 46/47) - embora
sujeito a progressiva usura pelo regime de dote e arras, de direito comum 176 – e
que limitava mais os poderes de disposição patrimonial da mulher. "O marido e a
169
Sextum, II, 2 (não convém que se passeiem ou participem em reuniões de homens e, por isso, não devem vir
170
António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 7.
171
Bento Gil, Tratado ..., art 2, n. 6.
a juízo).
172
Bento Gil, Tratado ..., art 2, n. 1 (Ord. fil. ; Nueva recop., III, 9, 7: "porque no seria cosa guisada, que estuviese
entre la muchedumbre de los hombres, librando los pleytos").
173
Digesto, 12, 2, 15. Ord. fil., I, 78, 3. António Cardoso do Amaral, Summa..., v. "Mulier", n. 52. Esta isenção é
atenuada no caso de mulheres desonestas ou plebeias (Bento Gil, Tratado ..., art 2, n. 15)
174
Porque sempre existe o carcereiro (Bento Gil, Tratado ..., art 3, n. 2); se tiver que ser encarcerada, deve sê-lo
em mosteiro de mulheres. Para Portugal, v. Ord. fil., II, 31, 4; IV, 76, ult.
175
Digesto, 3, 1, 1, 2; 48, 2; Decreto, C. 5, 3, 1-3, Bento Gil, Tratado ..., art. 2, n. 12.
176
V. a minha nota em John Gilissen, Introdução histórica..., cit., 592 s.. É provável que a generalidade de cada
um dos regimes dependesse dos estratos sociais; aparentemente, o regime de dote e arras era mais comuns nos grupos
nobres. As camadas populares, com poucos bens de família ("troncais", "de avoengo"), pouco ciosas dos valores
linhagísticos e recorrendo menos ao direito letrado e escrito, usavam o costume da comunhão, inicialmente mais comum
no Sul, mas depois (a partir de Ord. man., IV, 7) recebido como costume geral do reino.
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75
mulher - escreve Jorge de Cabedo no início do séc. XVII 177 - possuem os dois os
bens e são como que sócios na casa divina e humana (cf., Ord. man., IV, 17)".
Sendo o marido a cabeça de casal, a mulher não podia dispôr de quaisquer bens,
contratar ou estar em juízo sem a sua autorização, mesmo que este estivesse
longe. Alguma doutrina era reticente quanto à capacidade de disposição da
mulher casada, mesmo em relação às pequenas esmolas que o direito comum
permitia que a mulher dese sem autorização do marido 178.
Que influência pode ter tido a expansão ultramarina sobre este estatuto é
tema que não tem ocupado os historiadores portugueses.
Sabe-se que, em geral, a situação estatutária da mulher tendeu a
desvalorizar-se a partir do séc. XVI. Em Portugal, todos os traços negativos da
condição feminina se encontram abundantemente documentados nos juristas e
nos moralistas seiscentistas e setecentistas. Numa aproximação impressionista,
poderia supor-se que, quanto às mulheres casadas, a ausência dos maridos teria
conduzido necessariamente a uma sua maior autonomia, nomeadamente
contratual e de disposição de bens. E, de facto, nos livros de notas dos sécs. XVI
e XVII, encontram-se mulheres dispondo de bens. Se são próprios ou do casal e,
neste último caso, por força de que é que o fazem (como procuradoras ?
autorizadas pelo juiz ?) é questão que não pode ser respondida sistematicamente.
Também não o pode ser a questão de saber que repercussões poderá ter
tido na imagem reinol da mulher o contacto com as culturas africanas e orientais e
com os seus modelos do feminino. Ou seja, de que modo os estatutos exóticos
das mulheres poderão ter influenciado, como modelo ou como aberração, o
estatuto da mulher europeia. Embora fontes não faltem, desde os relatos de
viagens às cartas dos missionários, nada se tem estudado, nesta perspectiva. De
um modo geral, os ventos da Índia ou da China não eram de molde a beneficiar o
género feminino. Em todo o caso, deparamo-nos, em algumas das regiões
tocadas pelos portugueses, com regimes matriarcais ou, pelo menos,
matrilineares (como o dos macondes) que influenciaram instituições de direito
colonial português. É o caso dos "prazos da coroa", em Moçambique, espécie de
bens enfitêuticos com alguma jurisdição, transmitidos por via feminina, que se
mantiveram até ao séc. XIX 179, cobrindo uma época em que, na Europa, o
princípio da masculinidade permanecia bem firme ou, até, se reforçava.
5.2.
Esposas 180.
A imagem da família e do mundo doméstico - como grupo humano e como
universo da afectividade - está presente por todo o lado no discurso social e
político da sociedade de Antigo Regime. É invocada a propósito das relações
177
Jorge de Cabedo, Practicarum observationum ..., cit, I, dec. 106, n. 1.
178
Jorge de Cabedo, Practicarum observationum ..., cit, I, dec. 106, n. 5.
179
Allen Isaacman, "The «prazos da coroa», 1752-1830. A functional analysis of the political system", Studia,
26(Abril 1968) 194-277.
180
Este texto segue de muito perto o publicado em Análise social, 123/124.I (1993), 951-974 núm. de
homenagem ao Prof. Doutor Adérito Sedas Nunes («"Carne de uma só Carne". Para ima compreensäo dos fundamentos
histórico antropológicos da família na época moderna»).
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76
entre o Criador e as criaturas, entre Cristo e a Igreja, entre a Igreja e os fiéis,
entre o rei e os súbditos, entre os amigos, entre o patrão e os seus criados, entre
os que usam o mesmo nome e, evidentemente, entre os que partilham o mesmo
círculo doméstico.
O carácter modelar desta imagem provinha, desde logo, do facto de ela
constituir uma experiência comum a todos. Todos tinham uma família. E, para
além disso, todos a tinham como um facto natural, i.e., fundada em relações e
sentimentos que pertenciam à própria natureza das coisas. Relações e
sentimentos que, por isso mesmo, eram iguais em todas as famílias, porque eram
independentes da vontade dos seus membros.
Uma reconstituição do universo mental e institucional da família de Antigo
Regime tem, portanto, que começar por aqui, pela sua naturalidade.
5.3.
Uma comunidade natural.
Nem o advento de uma concepção individualista da sociedade veio destruir
a ideia de que a família constituía uma sociedade naturalmente auto-organizada.
Um assento da Casa da Suplicação da segunda metade do séc. XVIII é típico
desta insularidade da família, concebida ainda como um todo orgânico, no seio de
uma sociedade já imaginada como um agregado de indivíduos mutuamente
estranhos e desvinculados: "He regra, e preceito geral de todos os Direitos,
Natural, Divino, e Humano, que cada hum se deve alimentar, e sustentar a si
mesmo; da qual Regra, e Preceito geral só são exceptuados os filhos, e toda a
ordem dos descendentes; e em segundo lugar os pais, e toda a serie dos
ascendentes" 181.
A mesma ideia aparece numa interessante e pouco referida obra de
António da Natividade (Natividade, 1653) onde, embora - como se dirá - se opine
que, no interior da família, não há lugar a falar de deveres jurídicos recíprocos, se
reconhece, porém, que "o direito oeconomico, patriarcal ou da casa, que se
exerce com o fundamento na piedade, é mais exigente e devido, do que o político,
pois existe em virtude da unidade que existe entre o ecónomo e os membros da
casa" (op. IV, cap. 3, n. 8, pg. 111).
Esta concepção organicista da família radicava em representações muito
antigas, mas sempre presentes, sobre o especial laço com que a natureza ligara
os seus elementos por normas inderrogáveis.
A família tinha o seu princípio num acto cujo carácter voluntário a Igreja
não deixava de realçar, sobretudo na sequência do Concílio de Trento (15451563), onde se estabelecera, enfaticamente, que "a causa eficiente do matrimónio
é o consentimento" (Conc. Trident.,, sess. 24, cap. 1, nº 7). Um consentimento
verdadeiro e não fictício, livre de coação e de erro e manifestado por sinais
externos, requisitos com os quais se pretendia pôr freio, tanto às pretensões das
famílias de substituirem aos filhos na escolha dos seus companheiros, como às
tentativas dos filhos de escapar a estes constrangimentos casando secretamente.
181
Cit. por Lobão, 1828.
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77
Mas, dado o consentimento, pouco restava, no plano das consequências
do casamento, que não decorresse forçosamente da própria natureza da
instituição que ele fizera surgir - o estado de casado, a família. A teologia cristã
explicava este paradoxo de um acto de vontade dar lugar a consequências de que
a vontade não podia dispôr concebendo a vontade de casar apenas como uma
matéria informe a que a graça divina vinha dar uma forma (i.e., consequências)
determinada 182.
A primeira destas consequências era a obrigação, para os dois cônjuges,
de se entregarem um ao outro, gerando uma unidade em que ambos se
convertiam em carne de uma só carne ("Erunt duo in una caro" [serão os dois
uma só carne], Genesis, 2). Esta união mística dos amantes já ocorria pelo facto
mesmo do amor que, de acordo com a análise psicológica dos sentimentos
empreendida pela escolástica, fazia com que a coisa amada se incorporasse no
próprio amante 183, ideia a que Camões se referia no conhecido soneto
"Transforma-se o amador na coisa amada ...". A união conjugal não era, de resto,
senão uma repristinação de uma unidade originária, pois (e esta distinção não
deixará de marcar o imaginário das relações entre os sexos), a mulher saíra do
corpo do homem, reintegrando-se com o matrimónio, no plano espiritual, essa
comunidade corpórea.
Mas, com o casamento, esta unificação dos amantes ganhava contornos
físicos, pois os cônjuges ficavam - passados dois meses de reflexão, o bimester,
em que nenhum deles podia ser forçado à consumação carnal do casamento 184 a dever um ao outro a entrega corporal (traditio corporis), tornando-se tal entrega
moral e até juridicamente exigível (debitum conjugale) 185.
Justamente porque se enraizava na natureza, o matrimónio devia ter um
uso honesto; ou seja, devia consistir em práticas (nomeadamente sexuais) cuja
forma, ocasião, lugar, frequência, não dependiam do arbítrio ou do desejo dos
cônjuges, mas de imperativos naturais. Assim, a mútua dívida sexual dos esposos
tinha uma medida; medida que se fundava num critério que, também ele, não
dependia da vontade dos cônjuges, mas das finalidades naturais e sobrenaturais
do casamento. Segundo a teologia moral da época, as finalidades do casamento
eram: (i) a procriação e educação da prole; (ii) a mútua fidelidade e sociedade nas
coisas domésticas; (iii) a comunhão espiritual dos cônjuges e (iv) - objectivo
consequente à queda do género humano, pelo pecado original - o remédio contra
a concupiscência.
182
A definição do casamento como um sacramento (causativum gratiae unitivae, causador da graça da união) foi
feita no concílio de Florença, de 1438.
183
"Ex hoc quod aliquis rem aliquam amat, provenit quaedam impressio, ut ita loquatur, rei amatae in affectu
amantis, sicut intellectum in intelligente" (do facto de alguém amar alguma coisa provém uma espécie de impressão - por
assim dizer - da coisa amada no afceto do amante, semelhante à da coisa apreendida intelectualmente naquele que a
apreende", Sum. th., I, qu. 37, p. 267.2).
184
O bimester tinha como finalidade permitir a qualquer dos cônjuges uma última reflexão sobre o ingresso no
estado religioso. Mas, subsidiariamente, destinava-se a aumentar, pela espera, o desejo de consumação (San Jose, 1791,
tr. 34, II, n. 110).
185
As limitações ao dever de entrega eram poucas: doença sexual transmissível, demência, embriaguez,
pendência de divórcio, incapacidade da mulher para dar à luz filhos vivos (mas não já perigo de parto difícil). Algumas
destas causas de inexigibilidade do débito cessavam sempre que a recusa causasse perigo de desavença ou de
incontinência (e, logo, pecado) do outro cônjuge (San Jose, 1791, tr. 34, II, n. 135 ss.). Fora destes casos, a exigência de
relações sexuais tinha que se conformar, como se verá, àquilo que era considerado como um "uso honesto" do casamento
(San Jose, 1791, ibid.; Larraga, 1788, tr. 9, 8).
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78
São justamente estas finalidades e a sua hierarquia que explicam o
conteúdo dos deveres mútuos dos cônjuges, nomeadamente no plano da
disciplina da sexualidade matrimonial.
De facto, o facto de a reprodução aparecer como a finalidade principal do
casamento implicava que a sexualidade apenas fosse tida como natural desde
que visasse este fim.
Seriam, desde logo, contra natura todas as práticas sexuais que visassem
apenas o prazer 186, bem como todas as que se afastassem do coito natural e
honesto - vir cum foemina, recta positio, recto vaso (homem com mulher, na
posição certa 187, no "vaso" certo). Daí a enorme extensão dada ao pecado (e ao
crime) de sodomia, que incluía não apenas as práticas homosexuais, mas ainda
todas aquelas em que, nas relações sexuais, se impedisse de qualquer forma a
fecundação.
Mas, mesmo que "natural", a sexualidade matrimonial não devia estar
entregue ao arbítrio da paixão ou do desejo, antes se devendo manter nos estritos
limites do honesto. Assim, a sexualidade - e, particularmente, a sexualidade da
mulher - era drasticamente regulada por aquilo a que os teólogos e moralistas
chamavam o "uso honesto do casamento". O coito não devia ser praticado sem
necessidade ou para pura satisfação da concupiscência, antes se devendo
observar a moderação (San Jose, 1791, tr. 34, ns. 158/160). Em rigor, devia
terminar com o orgasmo do homem, pois, verificado este, estavam criadas as
condições para a fecundação. Tudo o que se passasse daí em diante, visava
apenas o prazer, sendo condenável 188. Os esposos deviam evitar, como
pecaminosas 189, quaisquer carícias físicas que não estivessem ordenadas à
prática de um coito honesto. Pecado grave era também o deleite com a
recordação ou imaginação de relações sexuais com o cônjuge (San Jose, 1791,
tr. 34, 163). Para além disso, o coito podia ser desonesto quanto ao tempo 190 e
quanto ao lugar 191
É certo que, não sendo a procriação a única finalidade do casamento,
estes princípios acabavam por sofrer algumas restrições. Admitia-se, por
exemplo, que os cônjuges pudessem fazer entre ambos voto de castidade,
186
"Copula [vel osculi, amplexus, tactus vel delectatio memoriae] ex sola delectatione [...] habet finem indebitum"
(a cópula, beijos, abraços, afagos ou o deleite pelas recordações que visem apenas o prazer têm um fim indevido), San
Jose, 1791, tr. 34, n. 149 e 156 ss..
187
Sobre a gestualidade sexual, v. San Jose, 1791, tr. 34, ns. 158 ss.: condenação de todas as posições sexuais
diferentes daquela que veio a ser conhecida como a "posição do missionário" (amantes deitados, voltados um para o outro,
com o homem por cima). Tal opção não era arbitrária, mas antes justificada com argumentos ligados à natureza e
finalidade do coito humano: na verdade, esta posição seria a que melhor garantiria a fecundação, denotava a superioridade
do homem e, pondo os amantes de frente um para o outro, realçava a dimensão espiritual do acto.
188
Isto penalizava, naturalmente, a sexualidade da mulher, cuja satisfação podia não coincidir com o momento
da inseminação. Neste ponto, os moralistas, condescendiam um pouco com com o erotismo, permitindo à mulher que não
tivesse tido o orgasmo durante o coito excitar-se até o atingir ou consentindo ao marido prolongar o coito depois do seu
orgasmo até ao orgasmo da mulher (San Jose, 1791, tr. 34, n. 161; Lagarra, 1788, tr. 9, I, 269 ss.). Não se tratava, em todo
o caso, de uma obrigação para ele, pois a mulher apenas tinha direito a um coito consumado [do ponto de vista da sua
eficácia generativa], mas não a um coito satisfatório; por outras palavras, tinha direito a engravidar, mas não a gozar.
189
Constituíam pecado venial (ou mortal, no caso de fazerem correr o risco de ejaculação) (San Jose, 1791, tr.
34, n. 158).
190
Durante a menstruação, a gravidez e o puerpério (San Jose, 1791, tr. 34, ns. 150-153), durante a Quaresma e
dias santos de guarda (ibid., 150).
191
Em lugar público ou sagrado (salva necessitate...); o mesmo valia para as carícias (San Jose, 1791, tr. 34, n.
156).
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79
sacrificando as finalidades terrenas da sua vida em comum (procriação e adjutório
mútuo) a um objectivo de natureza puramente espiritual - a união das suas almas
até à morte. Ou que se excedessem os limites honestos do débito conjugal, para
evitar que, levado pelos impulsos da sensualidade, um dos cônjuges fosse levado
a pecar, satisfazendo-os fora do matrimónio.
5.3.1. Uma comunidade fundada no amor.
Esta união entre os cônjuges gerava, porém, vínculos suplementares,
tecendo entre todos os elementos da família uma rede afectiva a que os
moralistas chamavam piedade familiar, mas que os juristas não deixavam de
classificar como direito, um direito de tal modo enraizado na natureza que até das
feras era conhecido ("vemos que também os outros animais, e até as feras,
parecem ter conhecimento deste direito", escreve o jurista romano Ulpiano, num
texto muito conhecido do início do Digesto [D.,I,1,13]).
O amor fora longamente tratado pela teologia moral clássica. S. Tomás, na
Summa theologica, aborda o tema em diversos contextos. Mas aqui interessa-nos
mais em concreto o amor ou piedade familiar, que se desdobrava em vários
sentimentos recíprocos.
O amor dos pais pelos filhos, superior a todos os outros, funda-se no
sentimento de que os pais se continuam nos filhos 192. Estes são, assim, uma
extensão da pessoa de quem lhes dá o ser, ou seja, são a mesma pessoa, daí se
explicando que os juristas façam, por um lado, repercutir directamente na pessoa
do pai os actos (v.g., aquisições, dívidas, injúrias) dos filhos; que, por outro, não
admitam, em princípio, negócios entre pais e filhos; e que, finalmente,
considerem, para certos efeitos sucessórios, os filhos do pai pré-falecido como
sendo o próprio pai.
Dado que a mesma identidade se verificava entre o marido e a mulher, a
família constitui um universo totalitário, em que existe apenas um sujeito, apenas
um interesse, apenas um direito, não havendo, no seu seio, lugar para a
discussão sobre o meu e o teu (a "justiça"), mas apenas para considerações de
oportunidade, deixadas ao arbítrio do bonus pater familias (a "oeconomia") 193.
Amor que gera identidade. Mas nem os amores deixavam de ter, no seio
da família, as suas hierarquias, nem a identidade obliterava gradações nos
direitos e deveres dos membros da família.
Quanto ao amor, discutia-se se o amor conjugal era mais forte do que o
amor pelos filhos 194. Que o pai amava mais os filhos do que a mulher parecia
provável, pois o amor conjugal, se não era apenas um arrebatamento sensual
192
"Amor parentum descendet in filios, in quibus parentibus vivunt, & conservantur [...] Filii sunt eadem persona
cum patre" (o amor dos pais prolonga-se nos filhos, nos quais os pais vivem e se conservam [...] Os filhos são a mesma
pessoa do pai), escreve Baptista Fragoso (citando Bártolo, séc. XIV), 1641, III, l.1, d.1, 1,n.2/3.
193
Cf. Natividade 1653, op. IV, c. 3, n. 2/3, pg. 110. Existem algumas limitações a este princípio,
consubstanciadas em direitos dos filhos (v.g., "alimentos", dotes, bens integrados em pecúlios próprios), da mulher (v.g.,
"alimentos" ou reparação de "injúrias"), dos criados (v.g. "soldadas") e, até, dos escravos (v.g., a vindicação da "liberdade"
ou reparação de "injúrias"), oponíveis judicialmente ao pater.
194
A questão da ordo amoris, em geral, era discutida na qu. 26 da IIa.IIae da Summa theologica: é maior o que
se tem pelos mais próximos do que o que se tem pelos melhores (princípio que não deixa de ser subversivo em relação a
um princípio constituinte da sociedade política), art. 7; o pai prefere a mãe, na ordem do amor, art. 10; os filhos prefrem os
pais, art. 9; a mulher prefere os pais, art. 11; o beneficiado o beneficiante, art. 12).
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80
(uma affectio sensitiva, menos duradoura e profunda, segundo S. Tomás, do que
a afeição charitativa pelos filhos gerados), explicava-se de forma indirecta, pelo
facto de a esposa ser a mãe dos filhos, o "princípio da geração". Mas,
curiosamente, daqui partiam as correntes da teologia moral (v.g. Tomás de Vio
Caietanus) que, na época moderna, revalorizaram o amor conjugal na hierarquia
dos sentimentos intra-familiares, salientando (muito à maneira escolástica) que,
sendo a causa mais importante do que a consequência, o amor pela esposa não
podia deixar de suplantar o amor pelos filhos 195. E o amor da mãe pelos filhos ?
Seria mais forte do que o do pai ? Se o amor andasse ligado ao penar, decerto
que sim, pois a mãe penava antes do parto o peso do ventre; durante, as dores; e
após, os trabalhos da criação ("ante partum onerosus, dolorosus in partu, post
partum laboriosus", Fragoso, 1641, p.III, l.1. d.1. 2, n. 15). Mas, se o amor da mãe
é mais intenso, o do pai é mais forte e mais constante. Mais forte, pois o pai é o
princípio da geração, infundindo a forma numa matéria aliás inerte e informe 196.
Mais constante pois, se o amor da mãe é muito intenso na intimidade da infância,
é o do pai que, ao longo de toda a vida, proporciona os exemplos de conduta ("o
filho sai à mãe no que respeita ao estado e condição [físicos]; mas segue o pai
quanto às qualidades honoríficas e mais excelentes", Fragoso, 1641, p. III, l. 1, d.
1, 2, n. 18).
Este imaginário dos sentimentos familiares constitui o eixo da economia
moral da família de Antigo Regime e do seu estatuto institucional. As suas
grandes linhas - naturalidade, preferência dos laços generativos (agnatícios, de
"parentesco") aos laços conjugais (cognatícios, "de afinidade"), organicidade e
unidade da família, sob a égide do pater - estão pré-determinados por esta
antropologia do amor familiar.
Natural é o amor entre os esposos. Mas natural é também a sua primordial
ordenação em relação à procriação. Daí que, contrariamente a algumas tradições
que vinham do direito romano, o elemento estruturante da sociedade familiar seja
o facto natural da geração, quaisquer que fossem as condições jurídicas em que
ela tivesse lugar. Assim, filhos são, antes de mais, os que o são pelo sangue,
independente de terem nascido na constância do casamento. Isto é
particularmente verdade em Portugal, onde (contra a regra do direito comum), os
filhos naturais de plebeus estão equiparados aos legítimos, pelo menos no plano
sucessório (Ord. fil., IV, 92); já os dos nobres, embora adquiram a qualidade
nobre do pai e tenham direito a alimentos, carecem de legitimação para herdar 197.
Mas quanto à principal obrigação dos pais - o sustento e educação - filhos eram
todos, os legítimos, os ilegítimos e até, com alguma limitação 198, os espúrios (i.e.,
aqueles cujos pais não eram nem poderiam ser casados, por existir entre eles
195
Cf. S. Thomas, Sum. theol., IIa.IIae, qu. 26; B. Fragoso, Regimen..., p.3, l.1, d.1, 1, ns. 8/9). As fontes
escriturais desta eminência do amor entre os cônjuges eram, sobretudo, Gen., II,24 ("pela esposa, deixe o marido o seu pai
e a sua mãe"), Mat., 19,6 ("e assim já não são dois, mas uma só carne"); Paul., 28,33 ("os maridos devem amar as suas
esposas como a si mesmos").
196
"O pai é o princípio nobre, ministrando a mãe na geração do homem a matéria informe do corpo, que por
virtude do sémen do pai é formada e disposta de forma racional", S. Tomás, Sum. th., IIa.IIae, q. 16, art. 10, ad prim.).
197
Cf. Fragoso, 1641, ibid., n. 177.
198
No caso dos filhos legítimos e naturais, os alimentos eram devidos de acordo com a qualidade e
possibilidades do pai; nos espúrios apenas segunda a sua indigência (ut fame non pereant), Fragoso, 1641, III, p. 153 (o A.
afasta-se desta opinião, que seria a recebida, sendo favorável à plena equiparação); Lobão, 1828, 7
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81
algum impedimento não relevável [impedimento impediente], como o estado
clerical ou um prévio casamento com outrem) 199.
Esta ideia de que o pátrio poder anda ligado à geração (e não à
impossibilidade de os filhos se governarem a si mesmos) faz com que, no direito
português, ele seja tendencialmente perpétuo, não se extinguindo pela
maioridade do filho, que pode continuar in potestate até à velhice. Na verdade, o
poder paternal só terminava com a emancipação paterna ou com o casamento do
filho (cf. Ord.fil., I, 88, 6), bem como com a assunção, pelo filho, de certos cargos
ou dignidades (v.g., episcopal, consistorial, judicial) 200. Mesmo a morte do pai, não
era suficiente, colocando o filho alieni iuris (i.e., sujeito ao pátrio poder) sob a
patria potestas do avô ou, na falta deste, de um tutor ou curador, sendo menores
ou incapazes.
É também este carácter natural e "generativo" da família que traça os
limites do seu âmbito como grupo social.
Assim, se a família, em sentido estrito, engloba apenas os que se
encontram sujeitos aos poderes do mesmo paterfamilias, já em sentido lato - que
era o do direito canónico 201, depois recebido, para certos efeitos, pelo direito civil abarca todas as pessoas ligadas pelo geração (agnados) ou pela afinidade
(cognados), ligando-as por laços morais e jurídicos que Sammuel Coceius, já no
período iluminista, sintetiza do seguinte modo - "Deste estado da família decorrem
vários direitos. Assim, 1º, todos os privilégios que aderem à família, também
pertencem aos agnados, do mesmo modo que o uso do nome e dos brasões, etc.;
2º, as injúrias feitas à família podem ser vingadas também por eles, 3º, os
membros da família devem defender aqueles que não o podem fazer, pois nisto
consiste a tutela legítima", Jurisprud. naturalis et romanae novum systema, 1742,
1, 138 ss.). Tudo isto tinha correspondente no direito português 202.
Esta concepção alargada da família 203, fundada em princípios generativos e
linhagísticos - e a que era sensível, sobretudo, o grupo nobiliárquico corresponde, basicamente, ao conceito de linhagem.
Mas já nada tem a ver com o conceito de família alargada, como
comunidade de vida e de bens de todos os irmãos e descendentes que se pensa
poder ter existido em comunidades rurais, favorecida pela existência de baldios e
pastos comuns e pelo sistema de encabeçamento da enfiteuse. As Ordenações
(IV, 44,1) prevêem este tipo de sociedade universal; mas ela não pertencia,
claramente, ao universo com que os juristas letrados lidavam. Os mais tardios,
199
Para além dos naturais, filhos eram ainda os que tivessem sido objecto de adopção, nos termos de institutos
que vinham do direito romano, onde tinham tido grande difusão. Cf., Fragoso, 1641, p.III, l.1, d. 2, 7; Pascoal de Melo,
1789, II, 5, 9; a adopção, por ser uma graça "contra direito" deve ser confirmada pelo rei (i.e., pelo Desembargo do Paço,
Ord. fil, I,3,1). Sobre a adopção na história do direito europeu, Gilissen, 1988, 614 e 623.
200
Cf. Fragoso, 1641, III, l.2, d. 3, 3, ns. 1 ss. [sobre o termo do poder paternal] e 82 a 114 [sobre este último
ponto]; Pascoal de Melo, 1789, II, 5, 21 ss.. (contra, Lobão, 1818, ad V,27,rubr..
201
O direito canónico alargava ainda a noção de família - e alguns dos correspondentes deveres - aos pais
espirituais, condição que se adquiria pelo baptismo, confissão e crisma, além de deorar também os tutores e os mestres
(Fragoso, 1641, p. III, l.1, d.1, 4, n. 50.
202
Dever de auxílio mútuo (cf. Ord. fil, V, 124,9), direitos sucessórios (Ord.fil.,, IV, 90,94, pr., 96), direito de
reagirem judicialmente contra a usurpação de armas e apelidos (Pegas, 1685, V, c. 116).
203
Que alguns estendem até ao ponto de abranger o dever de ser útil aos vizinhos (Natividade, 1653, op. V, cap.
13.).
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82
consideram-na extravagante e exótica 204; os mais antigos pouca atenção lhe
dedicam (aparte o caso da comunhão geral de bens entre os cônjuges, que era o
regime matrimonial "segundo o costume do reino", Ord. fil., IV,46,pr.; 95).
5.3.2. A economia dos deveres familiares.
Se todo este grupo estava ligado por deveres recíprocos, mais estritos
eram, porém, os deveres entre pais, filhos e cônjuges 205.
Os principais deveres do paterfamilias para com os filhos eram: (i) o de os
educar, espiritualmente 206, moralmente 207 e civilmente, fazendo-lhes aprender as
letras (pelo menos, os estudos menores), ensinar um ofício e, caso nisso
concorressem as qualidades da família e as aptidões do filho, estudos maiores 208;
(ii) prestar-lhes alimentos, nisso se incluindo a bebida, a comida, a habitação, e
tudo o mais que pertence ao sustento, como o vestir, calçar e medicamentos 209; a
dotá-los para matrimónios carnais ou religiosos 210.
Por sua vez, os filhos deviam aos pais gratidão, obediência e obséquios 211.
O dever de gratidão obrigava os filhos, ainda que naturais ou espúrios, a ajudar
os pais necessitados, quer em vida, ministrando-lhe o auxílio de que carecessem,
quer depois de mortos, fazendo-lhe as exéquias e dando-lhes a sepultura, de
acordo com a sua qualidade e assegurando missas por suas almas 212. Mas
impedia, além disso, por exemplo que o filho acusasse o pai em juízo ou que o
matasse, ainda que para defender um inocente 213. O dever de obediência
obrigava-os a respeitar e acatar as decisões dos pais 214.
Em alguns aspectos fundamentais, o concílio de Trento veio minar este
dever de obediência, ao sublinhar o carácter essencialmente voluntário dos actos
relativos à fé, no número dos quais entravam, no entanto, alguns de grande relevo
externo. Assim, pune com a excomunhão qualquer pessoa (e, portanto, também
os pais) que force outra a tomar o estado religioso (sess. 25, de reformat., cap.
18).
204
"Confesso que nunca vi provada claramente, nem julgada no foro tal sociedade universal tacita com effeitos
de expressa, nem tão pouco jámais vi escriptura de sociedade universal expressa", escreve Lobão (Tratado..., 789); mas
não deixa de expor uma série de regras sobre as partilhas de sociedades de amanho comum das terras paternas,
constituídas, nomeadamente em meios rústicos, entre irmãos, com suas mulheres e filhos (cf. 777 e ss.; no caso de os
irmão serem "nobres", 785).
205
Cf. Natividade 1653, op. V, per totum.
206
V., sobre o seu conteúdo (doutrina sagrada; pelo menos, o credo, o decálogo, o padre-nosso e os principais
mistérios da fé (Fragoso, 1641, p. III, l.1, d.1, 6, pg. 21 s.). Também, Natividade 1653, op. X).
207
ibid., 8 e III, l.1, d.1, 4, n. 52, pg. 15 (sobre a moralidade das filhas).
208
Cf. Ord. fil., IV,97,7; v. também, sobre o alcance desta obrigação paterna, Fragoso, 1641, p. III, l.1, d.1, 6, ns.
96 ss. (em Portugal, seria costume dever o pai custear os estudos e livros universitários do filho, mesmo que não concorde
com eles. Tudo isto limitado, naturalmente, pela condição familiar e pelas posses do pai. Lobão (1828, 47 ss.) entende que
os pais nobres estão obrigados a pagar os estudos até ao grau de bacharel ou doutor ( 48).
209
Fragoso, 1641, III, l.1, d.2, 1; Natividade 1653, op. IX; Lobão, 1828, 1 ss..
210
Fragoso, 1641; Natividade, 1653, op. XI; Lobão, 1828, 56.
211
Cf. Natividade, 1653, op. V.
212
Fragoso, 1641, III,l l.1, d.2, 8, ns, 226/227, p. 65; e l.2, d.3, 2, n. 44, p. 86.
213
ibid., III, l.1, p.1, d.1, 2, n.21.
214
Em contrapartida, o pai podia castigar os filhos desobedientes, embora - tal como no caso da mulher - nos
limites de uma moderata domestica correctio, não lhes causando feridas, mutilações ou a morte.
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83
Mas o mesmo se passa quanto a decisões ainda mais críticas para a
política familiar - as relativas ao casamento. O Concílio enfatiza, de facto, o
carácter livre e voluntário do matrimónio. Daí que fulmine com a excomunhão
quem atente contra a liberdade matrimonial e dispense os párocos de se
assegurarem da autorização dos pais dos nubentes, já que este requisito podia
impedir uniões queridas pelos próprios (sess. 24, de reformat., c. 1).
Por isso é que os direitos dos reinos, mais atentos aos interesses políticos
das famílias do que ao carácter pessoalíssimo das opções de vida, continuavam a
proteger o poder paternal. É este o sentido da legislação de vários reinos
europeus que, sobretudo a partir dos meados do séc. XVIII, punem severamente
os nubentes que desobedeçam a seus pais.
Em Portugal, as Ordenações deserdavam as filhas menores (de 25 anos)
que casassem contra a vontade dos pais (Ord. fil., IV, 88, 1); e, em complemento,
puniam com degredo quem casasse com mulher menor sem autorização do pai
(ib., V, 18). Mas as disposições liberalizadoras do Concílio, difundidas por
teólogos e canonistas, influenciaram decisivamente párocos e tribunais, chegando
os juristas a discutir a legitimidade destas leis régias que, indirectamente,
coarctavam a liberdade do matrimónio. No tempo de D. João V causou escândalo
o facto de o Patriarca de Lisboa ter ido buscar a casa de seus pais, para a
proteger das imposições destes, uma donzela que queria casar sem o
consentimento parental 215.
Isto não podia deixar de perturbar a disciplina familiar, com tudo o que isso
tinha de subversivo, no plano das relações pessoais entre pais e filhos, mas
também no do controle paterno das estratégias de reprodução familiar. Já as
Cortes de 1641 tinham sido sensíveis a esta quebra da autoridade paterna na
escolha dos esposos dos filhos. Mas é na segunda metade do séc. XVIII - quando
se procura uma nova disciplina da república e da família - que a reacção contra
esta "laxidão" se torna mais forte 216. Numa diatribe 217 contra a difusão desta "Moral
relaxada, opposta a todos os princípios da Sociedade civil", Bartolomeu Rebelo
descreve a situação de "libertinagem" a que tinha conduzido a doutrina de Trento,
propagada pelos teólogos "jesuítas" 218 e propõe o retorno a uma rigorosa
disciplina familiar, em que a matéria das núpcias seja da exclusiva
responsabilidade dos pais "sem attenção alguma aos filhos, os quaes só se
contemplão, como ministros e executores da vontade paterna [...] Donde se segue
com infallivel certeza, que competindo aos Pais a escolha dos cazamentos,
devendo estes attender às qualidades dos Espozos e Espozas, que buscão para
seus filhos, não devem estes intrometer-se ao Officio paterno [...]" (p. 21/23).
Este autor não exprimia uma opinião isolada, nem a que a própria Igreja
fosse insensível. Os teólogos começavam a revalorizar o valor da obediência,
considerando que os casamentos não consentidos pelos pais eram
215
Cf. Chaves, 1989, 203.
216
V. anedotas sobre o tema em "Descrição de Lisboa [...]. 1730", Chaves, 1989, 64.
217
Bartolomeu Coelho Neves Rebelo, Discurso sobre a inutilidade dos esponsaes dos filhos celebrados sem
consentimento dos pais, Lisboa, 1773.
218
Decorre das mesmas listas de "bons" e "maus" teólogos (cf. XI e 38) que dos dois lados estavam jesuítas;
mas o sentido geral da teologia moral da Segunda Escolástica, dominada pelos jesuítas, era, de facto, liberalizador quanto
a este ponto.
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frequentemente ilícitos e pecaminosos, por desobediência aos pais, sobretudo
quando estes casassem indignamente, pois tais casamentos "seriam fonte de
ódios, rixas, dissídios e escândalos" 219. Bento XIV publicara (em 17.11.1741) uma
encíclica que atenuava os cuidados tridentinos pela liberdade matrimonial. E o
Patriarca de Lisboa enviara, no início dos anos setenta, uma circular aos párocos,
recomendando-lhes que se assegurassem do consentimento dos pais
(Bartolomeu Rebelo, Discurso..., xv). Em 1772 (9.4), a Casa da Suplicação
tomara um assento duríssimo, ampliando a Ord. IV, 88220. A lei de 9.6.1775 ratifica
esta orientação, deserdando os filhos e filhas (sem limite de idade) que casem
sem consentimento dos pais, para além de reforçar as penas já estabelecidas nas
Ordenações contra os sedutores.
Mas, se a política pombalina da família visava este objectivo de firmar a
sua autoridade e disciplina interna, visava ainda outros de "política social", como o
de lutar contra o pronunciado casticismo das famílias nobres 221 e contra a
tendência para os pais exercerem um "poder despótico" sobre os filhos, negando
"absoluta, o obstinadamente os consentimentos ainda para os matrimonios mais
uteis [...] em notorio prejuizo das Familias, e da Povoação, de que depende a
principal força dos Estados". Daí que o rei, "como Pai Commum dos [...]
Vassalos", cometa ao Desembargo do Paço, pela lei de 29.11.1775, o suprimento
da autorização paterna para os casamentos da nobreza de corte, dos
comerciantes de grosso trato ou nas pessoas nobilitadas por lei; e aos
corregedores e provedores, o suprimento desta autorização no caso dos
casamentos de artífices e plebeus.
Mas, de novo, a lei de 6.10.1784 reforça o controle dos pais sobre os
esponsais dos filhos, obrigando a que estes intervenham expressamente na
escritura da sua celebração (ns. 1 e 2) e neles dêem o consentimento (nº. 4). Só
que, como compensação, se restringe a obrigatoriedade do consentimento aos
esponsais dos filhos menores de 25 anos, para além de que se mantém a
possiblidade de suprir a autorização, nos termos da lei de 29.11.1775 222.
5.3.3. Marido e mulher: uma igualdade enviesada.
As relações entre marido e mulher 223 estão, também, desenhadas sobre a
antropologia moderna do amor conjugal, a que acima já nos referimos. Um amor
igual e desigual ao mesmo tempo.
Igual, porque se baseia numa promessa comum e recíproca de ajuda, de
fidelidade e de vida em comum, promessa cujo cumprimento, por seu lado, seria
decisivamente facilitado pela igualdade da condição e riqueza dos cônjuges
(Fragoso, 1641, III, l.1, d.1, 3, 36/40).
219
San Jose, 1791, tr. 34, II, n. 71.
220
Pois, além da deserdação das filhas, nos termos aí consignados, cominava ainda a deserdação dos filhos,
qualquer que fosse a sua idade (!), que se casassem, fosse com quem fosse, indigno ou digno, sem consentimento dos
pais (Collecção chronologica dos assentos..., ass. 282).
221
Cf., v.g., as leis abolindo a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos, 25.5.1773 e 15.12.1774; e o dec.
contra os "puritanos" de 1768.
222
Para mais detalhes, v. o meu artigo "Carne de uma só Carne". Para ima compreensão dos fundamentos
histórico antropológicos da família na época moderna" (a publicar em Análise social (1993), núm. de homenagem ao Prof.
Doutor Adérito Sedas Nunes).
223
Cf., em geral, Natividade, 1653, op. IX.
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85
Desigual, porque, em virtude da diferente natureza do homem e da mulher,
os sentimentos mútuos dos cônjuges - e, logo, os deveres correspondentes - não
são iguais nem recíprocos.
Uma boa ilustração disto é a do adultério. Embora seja, em qualquer caso,
igualmente censurável do ponto de vista da moral abstracta (pois ambos os
adúlteros violam a mútua obrigação de fidelidade), a moral positiva julga-o
diferentemente, já que o adultério da mulher não apenas faz cair o opróbrio sobre
os filhos e obscurece a paternidade dos filhos (turbatio sanguinis), como segundo o célebre jurista Baldo (séc. XIV) - causa aos maridos uma dor maior do
que a da morte dos filhos 224.
Mas à desigualdade do amor, juntam-se as desigualdades naturais dos
sexos, que fazem com que esta comunhão dos esposos fosse fortemente
hierarquizada. Na verdade, eles constituíam uma só carne; mas, nesta
reintegração num corpo novamente único, a mulher parece que tendia a retomar a
posição de costela do corpo de Adão.
A subalternização da esposa tinha uma lógica totalitária no ambiente
doméstico.
Começava logo nos aspectos mais íntimos das relações entre os cônjuges.
Assim, na consumação carnal do casamento. Já que se entendia que a
perfeição do acto sexual se dava com o orgasmo do homem, sendo dispensável o
da mulher 225. O que decorria do facto de se considerar como meramente passivo
e recipiente o papel da mulher na gestação, que se limitava a contribuir com a
matéria bruta a que o homem daria a forma. Esta hierarquização devia tornar-se
visível na própria gestualidade do acto sexual. De facto, seria contra natura o
coito "praticado de pé, sentado ou em posição invertida, estando o homem por
baixo e a mulher por cima" 226; numa palavra, a própria expressão dos corpos
devia evidenciar a posição dominante do homem.
Mas a subordinação da esposa manifestava-se, depois, no plano dos actos
externos, de natureza pessoal e patrimonial. Estava sujeita ao poder do seu
marido 227, o que se traduzia numa faculdade generalizada de a dirigir 228, de a
defender e sustentar 229 e de a corrigir moderadamente 230.
224
Fragoso, 1641, III, l.1, d.1, 3, n. 42. Daí que os juristas entendam que o adultério mútuo e recíproca não se
pode compensar, pois "a impudícia na mulher é muito mais detestável do que no homem", ibid., III, l.3, d.4, 2, n.41. É
também esta desigualdade, do amor, do ciúme e da dor que faz com que o marido não seja punido (no secular, pois, no
espiritual, sempre incorre em pecado mortal) se matar a mulher colhida em flagrante de adultério (desde que mate também
o seu parceiro) (Ord. fil., V, 38, pr.; comentário, Fragoso, ibid., 3, 63).
225
"O matrimónio só se consuma pela cópula, pela qual os cônjuges se tornam numa só carne, o que não se
verifica sem a emissão de sémen pelo homem [...]. Questiona-se sobre se o sémen da mulher é um requisito necessário
para a consumação. Ambas as opiniões são defensáveis, mas a mais provável é uqe não o seja", San Jose, 1791, tr. 34, II,
n. 121.
226
San Jose, 1791, tr. 34, II, n. 158.
227
Já em relação aos poderes sobre os filhos, a inferioridade da mulher decorre, como reconhecem os juristas na
segunda metade do séc. XVIII, de respeitos que têm mais a ver com os mutáveis costumes das nações do que com a
natureza do casamento (V. Pascoal de Melo, 1789, II,4,6).
228
Administrando os seus bens com bastante iberdade (Ord. fil, IV, 48; 60; 64; 66 (cf. Pascoal de Melo, 1789,
IV,7,4 (e respectivas notas de Lobão); representando-a em juízo (Ord. fil., III,47).
229
Cf. Ord. fil., IV, 103, 1; à mulher e às suas criadas, mesmo para além das forças do dote (Fragoso, 1641, III,
l.3,d.4, 1, n. 9, pg. 172).
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86
Deste poder de correcção estava privada a mulher. Ao explicar porque é
que a mulher não podia, ao contrário do marido, abandonar o marido adúltero (a
não ser no caso de "correr o risco de perversão ou de incorrer em pecado"), um
moralista de seiscentos explica que "à mulher não compete a correcção do
homem, como a este compita a correcção daquela, pois o marido é a cabeça da
mulher e não o contrário" 231.
5.3.4. Uma comunidade de bens e de trabalho.
Embora não seja fácil classificar a família portuguesa de Antigo Regime pelo menos como o direito oficial a define - como uma comunhão alargada de
pessoas e de bens, existem deveres de coperação de todos na valorização do
património familiar.
Um deles era o dever de obséquio dos filhos, que consistia na obrigação
de prestarem ao pai a ajuda e trabalho gratuitos de que ele carecesse. No caso
de estarem sob a sua patria potestas, este dever era irrestrito (ad libitum, qui
totum dicit, nihil excipit), obrigando a trabalhos que, prestados a outrem, seriam
pagos. Já no caso dos filhos emancipados, se entendia que esta obrigação não
abrangia os trabalhos que requeressem arte ou indústria 232.
Também no domínio das relações patrimoniais, a regra geral (mas, até
certo ponto, também caricatural) era a de que, fazendo os filhos parte da pessoa
do pai, só este era titular de direitos e obrigações, adquirindo para si os ganhos
patrimoniais dos filhos sujeitos ao pátrio poder e sendo responsável pelas suas
perdas. Com o consequência suplementar de que não poderiam entre si contratar.
Tudo isto estava, no entanto, algo atenuado. Quanto à capacidade de adquirir,
desde o direito romano que se reconhecia aos filhos a capacidade de terem
património próprio (peculium) 233 E quanto aos seus poderes de contratar com o
próprio pai, de há muito se superara a restritíssima norma do direito romano 234,
apenas se mantendo no domínio processual 235.
5.3.5. A perpetuação da unidade: primogenitura e indivisibilidade
sucessória do património familiar.
A unidade era, portanto, um princípio constitucional da família de Antigo
Regime. Este apelo da unidade fazia-se sentir não apenas enquanto sujeitava
todos os membros da família à direcção única do pater, mas também enquanto
230
Cf. Ord. fil., V, 36,1; 95, 4. A propósito da moderação dos castigos, Pascoal de Melo comenta que, em
Portuagl, mais nas classes populares do que nas elevadas, o castigo frequentemente degenera em sevícias, por causa das
quais quotidianamente se afadigam os juízes (1789, II, 7, 2).
231
San Jose, 1791, tr. 34, II, n. 151.
232
Fragoso, 1641, III, l.10, d.22, 5, ns. 117/118, pg. 650; Lobão, 1628, 22 (este mais restritivo quanto aos deveres
dos filhos).
233
Nos seus vários tipos de castrense, quasi castrense, adventício e profecticio, enumerados por ordem
decrescente de poderes de disposição; cf. Fragoso, 1641, III, l.1, d.2, 8, ns. 229 ss.; Lobão, 1828, cap. 13. Sobre a
capacidade para se obrigarem, Fragoso, 1641, III, l.1, d.2, 9.
234
Cf. Pascoal de Melo, 1789, IV,1,8; Lobão, 1818, 245.
235
Fragoso, 1641, III, l.2, d.3, 2, n. 43.
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87
favorecia modelos de assegurar a unidade da família, mesmo para além da morte
deste.
Referimo-nos, antes de mais, ao instituto da primogenitura, cuja difusão se
explica, porventura, por ingredientes da tradição judaica (testemunhados pelas
Escrituras; cf. Exodus, 13, 22) e feudais. A raiz do direito dos primogénitos a
encabeçarem a comunidade familiar estaria no facto de, por presunção que
decorria da natureza, o amor dos pais ser maior em relação ao filho mais velho,
bem como no carácter ungido e quase sacerdotal do filho mais velho no Antigo
Testamento. O carácter antropológico e quase divino deste fundamento dos
direitos de primogenitura fazia com que estes fossem inderrogáveis (salva justa
causa) quer pelo pai, quer pelo rei.
Na época moderna, porém, a antiga dignidade natural ou divina dos
direitos dos primogénitos já era negada por muitos, que os fundavam antes num
particular uso de certas nações quanto às regras de sucessão de determinados
bens, de acordo com a sua natureza (caso dos bens feudais) ou com a vontade
do um seu dono (caso dos morgados) 236. E, de facto, na Europa ocidental, o seu
âmbito reduzia-se, praticamente, ao direito feudal (caso dos "feudos indivisíveis")
e, na área hispânica (ou de influência hispânica, como em certas zonas de Itália),
aos morgados (e, até certo ponto, aos bens enfitêuticos) 237.
Nestes casos, porém, a indivisibilidade do património familiar (e a unidade
familiar a que isto força, com o realce dos direitos e deveres recíprocos dos
familiares que vivem na sombra do administrador do vínculo) já tem menos a ver
com a unidade natural da família do que com as vantagens políticas (do ponto de
vista familiar, mas também do ponto de vista da coroa) da indivisão dos bens das
casas e da sua conservação numa certa linha sucessória. Do ponto de vista das
famílias, porque a indivisibilidade do património vinculado evita não apenas o
olvido do nome 238 e gesta familiares, mas também a dispersão dos próprios
membros da família, já que estes ficam economicamente dependentes do
administrador do morgado. Do ponto de vista da coroa, porque, justamente em
virtude deste último facto, obtém o "encabeçamento" do auxilium das famílias
(maxime, das famílias nobres) num número relativamente pequeno de
intermediários (cf. Pegas, 1685, cap. 2, n. 5; Ord. fil., IV, 100,5; Lobão, Morgados,
II, 4) 239. O carácter "civil" e não "natural" dos morgados é realçado ainda mais na
literatura pós-iluminista 240, que propende fortemente a considerá-los "antinaturais", justamente por ofenderem a igualdade de direitos entre todos os
236
Embora tal uso atribuísse ao primogénito uma certa "preeminência e dignidade" (Pegas, 1685, cap. 1, n. 3 ss.;
Fragoso, 1641, p.3, l.9, d.20, 1, n. 8, pg. 576).
237
Sobre o princípio da primogenitura na história do direito europeu, Gilissen, 1988, 681 s.; para Portugal, ibid.,
694 ss..
238
Daí que, em geral, se excluissem as mulheres da sucessão dos morgados, dada a sua incapacidade para
transmitir o nome: "a família aumenta pelos varões em dignidade e honra e destrói-se e extingue-se pela mulheres; e por
isso se diz que as mulheres são o fim da família" (Miguel de Reinoso, Observationes [...], ob. 14, ns. 9/11).
239
Este modelo de encabeçamento era conhecido noutros domínios, nomeadamente, no da recepção de rendas
e tributos, como forma de reduzir o peso do governo.
240
Cf. Lobão, 1814, 6 ss., insistindo na origem "hispânica" da instituição (em Portugal, L. 15.9.1557; Ord. fil., 100,
4; em Castela, Leis de Toro [1535] e Nova rec., V,7.). Para Castela, v. o livro fundamental de Bartolomé Clavero,
Mayorazgo. Propriedad feudal en Castilla. 1369-1836, ed. alt., Madrid, Siglo XXI, 1989.
841064938 (29/05/2017 07:02:00)
88
filhos 241 que, ele também, decorria do princípio natural da unidade da família,
embora entendido de outro modo.
Do carácter civil e político (i.e., "artificial") dos morgados seguia-se que a
sua criação dependia apenas do prudente arbítrio do instituidor (cf. Fragoso,
1641, p.3, l.9, d.18, 1, n. 11), estando, portanto, aberta a nobres e plebeus, com a
única limitação de que a instituição devia ter a opulência adequada aos fins por
ela visados.
5.3.6. Entre a unidade da família e a igualdade dos filhos.
Com a contínua aristocratização do pensamento social durante os séculos
XVII e XVIII, com o progressivo realce dos direitos de todos os filhos à herança 242
e com o advento das concepções individualistas quanto à liberdade de disposição
dos bens e à vantagem (económica e fiscal) da sua circulação, reforça-se a
tendência para restringir, em nome da natureza da família, a liberdade de instituir
morgados àqueles casos em que o interesse público justificasse os prejuízos
decorrentes da vinculação.
Permitir ou não a vinculação passa a depender do modo como se entenda
o equilíbrio justo entre a "igualdade natural dos filhos", a "política de reputação
das famílias" e a "política da república". A primeira hostil aos morgados, a
segunda buscando-os como meio de adquirir ou manter o lustre social; a terceira,
procurando combinar as vantagens fiscais e económicas da circulação dos bens
com as a existência de uma nobreza poderosa em volta do trono.
Já no séc. XVI, Luís de Molina exigia que a autorização régia para instituir
morgados em prejuízo dos restantes filhos apenas fosse concedida no caso de o
instituidor ser nobre ou de qualidade e riqueza, (Molina, 1573, L. 1, cap. 14, n.8).
Pois as famílias de humilde ou obscura origem, nada tinham a perpetuar, antes
procurando nos morgados um meio de, confundindo a natureza, se insinuarem
entre os nobres (cf. Lobão, 1814, I, 12 e lit. cit.). Esta "política das famílias" devia
ser corrente, pois Lobão, justificando as medidas restritivas tomadas no tempo de
Pombal, fala de "huma geral mania de instituir vinculos em predios de ridiculos
rendimentos" (ib., 14), apesar das limitações que alguma doutrina (não dominante
no foro) tendia, como vimos, a introduzir.
É apenas com as leis de 3.8. e 9.9.1770 que a "política da república" impõe
às "políticas das famílias" um equilibrado respeito pela "direitos naturais de todos
os filhos à herança", concretizando as condições (quanto à qualidade das
pessoas e quanto à importância dos bens vinculados) juridicamente necessárias,
para que os morgados anteriores subsistam ou outros novos se possam
instituir 243.
241
Gaetano Filangieri, Scienza della legislazione, 1780, I,18,10; cf., para a discussão, Lobão, Morgados, II, 1-18.
242
Já no direito seiscentista português, os direitos dos filhos eram acautelados: a livre instituição só se admitia
pelas forças da quota disponível ("terça"); no caso de a instituição se fazer em prejuízo da quota legitimária dos filhos,
carecia-se de um acto de graça do rei (por intermédio do seu tribunal de graça, o Desembargo do Paço), por se tratar de
uma derrogação dos direitos dos filhos (Pegas, 1685, cap. 3, ns. 1 e 2).
243
V. comentário detalhado em Freire, 1789, III, t. 9 e Lobão, 1814, II, 13 ss.; III (max., sobre as categorias
admitidas de nobreza, 6 ss.; sobre as qualidades dos comerciantes, agricultores [não os da pequena agricultura ao norte
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89
5.3.7. Outras fidelidades domésticas.
"Família" era, no entanto, uma palavra de contornos muito vastos, nela se
incluindo agnados e cognados, mas ainda criados, escravos e, até, os bens. "La
gente que vive en una casa debaxo del mando del señor della", eis como define
família o Dicionario de lengua castellana, da Real Academia de Historia (1732),
invocando as Part., 7, tit. 33, l. 6: "Por esta palabra familia se entiende el señor de
ella, e su muger, e todos los que viven so el, sobre quien ha mandamiento, assi
como los fijos e los servientes e otros criados, ca familia es dicha aquella en que
viven mas de dos homes al mandamiento del señor". Mas acrescenta, em
entradas seguintes, outras acepções: "numero dos criados de alguém, ainda que
não vivam dentro da casa"; "a descendência, ascendência, ou parentela de
alguma pessoa"; "o corpo de alguma religião ou comunidade"; "o agregado de
todos os criados ou domésticos do rei"; fazendo ainda equiparar "familiar" a
amigo 244.
Em relação a toda esta universalidade valiam os princípios inicialmente
enunciados, nomeadamente o da unidade sob a hegemonia do pater, ao qual
incumbiam direitos-deveres sobre os membros e as coisas da família.
Era assim quanto aos criados, ligados ao dominus por uma relação que
excedia em muito a de um simples mercenariato, aparecendo envolvida no mundo
das fidelidades domésticas. Não é que o direito português conhecesse ainda a
adscrição (cf. Ord. fil., IV, 28). Mas as relações entre do senhor e os servos
desenvolviam-se no ambiente da família patriarcal (da "casa") que criava, de parte
a parte, laços muito variados.
Desde logo, "criados" (famuli, "família") eram, tradicionalmente, aqueles
que viviam com o senhor "a bem fazer", ou seja, pelo comer e dormir. São quase
apenas estes que as Ord. man. (de 1521, IV, 19) consideram, não lhes
reconhecendo (como, de resto, acontece com o direito comum) direito a
reclamarem uma soldada. Apesar da inversão verificada com as Ord. fil. - que
passam a reconhecer um direito geral a um salário e reflectem o advento de um
mundo (urbano ?) muito mais expandido de relações mercenárias de trabalho (cf.
IV, 32 ss.) -, a doutrina continua a resistir a integrar as relações domésticas de
trabalho no "mercado do trabalho" e distingue os criados domésticos, segundo o
modelo tradicional 245 - cujo direito ao salário entende estar dependente de uma
longa série de avaliações arbitrárias (cf. o comentário de Silva 1731 a Ord. fil., IV,
30) - dos trabalhadores mercenários externos. Os laços de vinculação pessoal do Tejo, mas os da grande agricultura do Alentejo] e letrados que podiam instituir morgados, v. 13 e 16). Esta lei alargava
ainda a necessidade de licença régia a toda e qualquer instituição de morgado (n. 13) e reduzia a uma única (a da Ord. fil.,
IV,100) a fórmula de sucessão nos morgados (n. 10). Esta última disposição implicava, v.g., a revogação da legislação
anterior que impedia a união de morgados, a exlusão ou prejuízo das mulheres da sucessão nos vínculos, a exclusão de
cristãos- novos. Note-se, em todo o caso, como a interpretação que desta última regra faz Lobão (ao admitir substituições
fideicomissárias complementares à vocação sucessória estabelecida na lei, nos termos da Ord. fil., IV, 87; cf 1814, cap. 9,
15 ss.), lhe tira muito do seu alcance.
244
Sobre o conceito de família v., ainda, Monteiro, 1993, 279; e, do mesmo autor, "Casa e linhagem [...]", em
Penélope, 12(1993), 43 ss..
245
"Domestici sunt illi, qui cum aliquo continue vivunt, data aliqua inferioritate, ad unum panem, & ad unum
vinum" (domésticos são aqueles que vivem com alguém, implicando alguma inferioridade, por um pão e um copo de vinho,
Pegas, 1789, III, ad I,24,gl.20, n.2); cf. também Reinoso, 1625, ob. 32, n. 4 e Ord. fil., II,11.
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que se traduziam, nomeadamente, num muito débil direito ao salário (ou, pura e
simplesmente, na sua ausência) e na necessidade de licença do senhor para
abandonar a casa - existiam também no caso dos criados dos cortesãos e nos
"acostados", ou seja, daqueles que tivessem recebido do senhor algum
benefício 246. Apesar de Melo Freire (um individualista) considerar estas leis
"feudalizantes" e caídas em desuso (1789, II,1,16, in fine), Lobão (um
tradicionalista) censura-o asperamente por isso, continuando a propor um modelo
pratriarcal das relações entre senhores e criados 247. A contrapartida deste mesmo
sentimento de uma íntima comunicação entre senhor e criado era constituída
pelas isenções de que gozavam os criados de eclesiásticos e nobres (Ord. fil., II,
25 e 58) e o facto comum de se pedirem ao rei mercês para os seus criados 248.
5.3.8. A força expansiva do modelo doméstico.
Muito do imaginário e dos esquemas de pensamento a que acabamos de
nos referir transvasavam largamente o domínio das relações domésticas,
aplicando-se, nomeadamente, ao âmbito da república.
Como se diz na época, "sendo a casa a primeira comunidade, as leis mais
necessárias são as do governo da casa" (Natividade, 1653, op. I, cap. 1, p. 2, n.
10); e sendo, além disso, a família o fundamento da república, o regime (ou
governo) da casa é também o fundamento do regime da cidade. Este tópico dos
contactos entre "casa" e "república" - e, consequentemente, entre a "oeconomia",
ou disciplina das coisas da família, e a "política", ou disciplina das coisas
públicas 249) -, a que a literatura recente tem dado muito destaque 250, explica a
legitimação patriarcal do governo da república, em vigor durante quase todo o
Antigo Regime, bem como o uso da metáfora do casamento e da filiação para
descrever e dar conteúdo às relações entre o príncipe e a república e entre o rei e
os súbditos. E constitui também a chave para a compreensão, num plano
eminentemente político, de uma grande parte da literatura que, aparentemente, se
dirige apenas ao governo doméstico.
Zona de expansão do modelo doméstico é também o domínio das relações
internas à comunidade eclesiástica 251. Não só a Igreja é concebida como uma
grande família, dirigida por um pai espiritual (Cristo ou o seu vigário, o Papa [notese o radical da palavra]) e regida, antes de tudo, pelas regras do amor familiar
(fraterna disciplina, fraterna correctio), como as particulares comunidades
eclesiásticas obedeciam ao modelo familiar. `As congregações religiosas
chmavam-se "casas"; os seus chefes eram "abades" (palavra que significa "pai")
246
Cf. Ord. fil., IV, 30: casamento, cavalo, armas, dinheiro ou outro qualquer galardão. Os criados dos
estudantes, estavam obrigados a servir apenas pela roupa e calçado; os músicos e cantores, apenas pela comida
(Fragoso, 1641, p.3, l.10, d.21, 5); o mesmo valia para as criadas das monjas, pois se entendia que o eram com o intuito de
ingressarem no convento (Silva, 1731, IV, ad IV,29, pr., n. 28), para os aprendizes (ib., 30) e para os menores de sete
anos, que serviam "pela criação" Ord. fil., IV,31,8).
247
Lobão invoca, significativamente, o direito dos Estados alemães que, como se sabe, conservaram até muito
tarde o regime de servidão e de adscrição.
248
Cf., em geral, sobre o tema, Natividade, 1653, op. XII.
249
Que Aristóteles, sintomaticamente, considerara conjuntamente no seu tratado sobre a "economia".
250
V., por todos, Frigo 1985a, 1985b, 1991; Hespanha 1990; Mozzarelli, 1988.
251
Cf., infra,
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91
ou "abadessas" (ou "madres"), a quem os religiosos deviam obediência filial. Os
religiosos eram, entre si, "frades" (fratres, irmãos) ou sorores (sorores, irmãs; ou,
também, "irmãs"). Sobre eles impendiam incapacidades e deveres típicos dos
filhos família. A disciplina interna da comunidade era - sobretudo nas
congregações femininas em que as madres não dispunham de jurisdição, por
serem mulheres - concebida como uma disciplina doméstica, competindo aos
superiores os poderes de que os pais dispunham em relação aos filhos. Ao
séquito de um dignatário eclesiástico (um bispo, um cardeal), chamava-se a sua
“família”. Os agentes /informadores do Santo Ofício eram designados de
“familiares”.
Tudo isto é bastante para mostrar o papel central que, na imaginação das
relações políticas, é desempenhado pelo modelo da família. Modelo que, por
outro lado, obedece a uma impecável lógica estruturante, fundada em cenários de
compreensão do relacionamento humano muito profundamente ancorados nas
sociedades europeias pré-contemporâneas.
Orientação bilbiográfica.
Quanto aos aspectos mais especificamente jurídicos, aconselha-se a
consulta dos capítulos respectivos de Gilissen 1989, bem como das "notas do
tradutor" (da minha autoria) que os seguem; aí se podem encontrar, também,
exemplos textuais; para maiores desenvolvimentos, Coing 1985.
Indicações de bibliografia secundária portuguesa recente (geralmente
sobre aspectos parcelares) podem encontrar-se em Hespanha 1992 (pp. 55 ss. e
68 s.).
As fontes são, sobretudo, a literatura teológica (comentários ao sacramento
do matrimónio 252) e a literatura jurídica (da qual destacamos, como síntese, o aqui
tantas vezes citado Baptista Fragoso). Mas a literatura "económica" (como
Andrade, 1630; Barros, 1540; Melo, 1651; e Natividade, 1653) pode fornecer
sugestões com uma tonalidade diferente.
O enquadramento deste tema numa história ocidental da família pode ser
feita com recurso à obra de James Casey (Casey, 1991), uma das mais
actualizadas, equilibradas e sensíveis ao contexto institucional. Mas há,
evidentemente, uma enorme bibliografia sobre a história do género, também para
a época moderna 253. O tema da masculinidade é a contraface deste e, por isso,
252
Dos portugueses, para além dos respectivos capítulos dos compêndios gerais ou prontuários de teologia
moral (dos quais destaco, Manuel Lourenço Soares [1590-....], Principios, e deffinições de toda a teologia moral muito
proveitoso e necessario [...], Lisboa, 1642; Angelo de Santa Maria [1678-1733], Breviarii moralis Carmelitani partes,
Ulysipone, 1734-1738, 7 tomos; Rebelo Baptista, Summa de theologia moral, Ulysipone, 1728; Bento Pereira, S.J.,
Elucidarium theologiae moralis, Ulysipone, 1671-1676; João Pacheco, Promptuario de theologia moral, Lisboa, 1739;
Manuel da Silva de Morais, Promptuario de theologia moral, Lisboa, 1732; Tomé Botelho Chacón, Compendio de theologia
moral, Lisboa 1684), v. Manuel Lourenço Soares, Compendium de sacramento matrimonii tractatus Thomae Sanches
Jesuitae alphabeticum breviter dispositum, Ulysipone, 1621 (trata-se de uma adaptação de um tratado célebre,
aparentemente com grande influência em Portugal): Barbosa Machado dá notícia de outros tratados manuscritos sobre o
matrimónio (v.g., de Amaro de Aregas, Manuel Jorge Henriques).
253
Cf. Gender & History (Blackwells, desde 1989; hoje talvez a mais importante revista académica sobre o tema;
indicação de websites relevantes em http://www.history.ac.uk/ihr/Focus/Gender/websites.html). Em português: Arlette
Farge, Michelle Perrot, Georges Duby, Natalie Zemon Davis, História das Mulheres no Ocidente, Vol. III, Do Renascimento
à Idade Moderna, Porto, Afrontamento, 1994; Mary Del Priore, Historia das Mulheres No Brasil, São Paulo, Contexto, 1997;
para Portugal, na falta de uma obra de síntese geral, e para além do nº monográfico de Oceanos, 'O Rosto Feminino da
Expansão Portuguesa' (Oceanos n.º 21, Janeiro/Março), Silva, Maria Regina Tavares da, A mulher. Bibliografia portuguesa
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92
mereceria uma referência aqui, embora não um tratamento extensivo, num texto
dedicado às categorias da discriminação.
Bibliografia.
Andrade (1630), Diogo Paiva de, Cazamento perfeito em que se contem advertencias muy
importantes para viverem os cazados em quietação e contentamento [...], Lisboa, 1630.
Antoine (1741), Gabriel, S.J., Theologia moralis ad usum parochorum & confessariorum,
Romae, 1741.
Barros (1540), João de, Espelho de cazados, Porto, 1540.
Casey (1991), James, História da família (trad. port. de The history of the familily, 1989),
Lisboa, Teorema, s./d. [1991].
Chaves (1989) Castelo Branco (org.), O Portugal de D. João V visto por três forasteiros,
Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989.
Coing (1985), Helmut, Europäisches Privatrecht. Band I. Älteres Gemeines Recht (1500
bis 1800), München, C. H. Beck, 1985.
Cordeiro (1718), António, Resoluçoens theojuristicas[...]. V. De morgados, ou capelas
vinculadas, Lisboa Occidental, 1718.
Fernandes (1990), Maria de Lurdes C., "As artes da confissão. Em torno dos manuais de
confessores do séc. XVI em Portugal", Humanística e teologia, 11(1990) 47-80.
Fragoso (1641), Baptista, Regimen reipublicae christianae, Lugduni, 1641-1652.
Freire (1789), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis lusitani, Conimbricae, 1789.
Frigo (1985a), Daniela, Il padre di famiglia. Governo della casa e governo civile nella
tradizione dell'"oeconomica" tra Cinque e Seicento, Roma, 1985.
Frigo (1985b), Daniela, "La dimensione amministrativa nella riflessione politica (secoli XVIXVIII)", C. Mozzarelli (ed.), L'amministrazione nell'Italia moderna, Milano-Giuffrè, 1985, 2 vols., I,
21-94.
Frigo (1990), Daniela, "«Disciplina rei familiariae»:
administrativo de Antigo Regime", Penélope, 6(1991).
a
economia
como
modelo
Gilissen (1989), John, Introdução histórica ao direito, Lisboa, Gulbenkian, 1989.
Hespanha (1990), António Manuel, "Justiça e administração entre o Antigo Regime e a
revolução", em Hispania. Entre derechos proprios y derechos nacionales. Atti dell'incontro di studi,
Milano, Giuffrè, 1990.
Hespanha (1992), António Manuel, Poderes e instituições no Antigo Regime. Guia de
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XIX-XX), Lisboa, Livros Horizonte, 2005.
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93
Lobão (1828), Manuel de Almeida e Sousa de, Tratado das acções recíprocas [...] I. Dos
pais para com os filhos [...]. II. Dos filhos para com os pais [...], Lisboa, 1828.
Melo (1651), Francisco Manuel de, Carta Guia de casados, 1651.
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Monteiro (1993), Nuno G., "Os sistemas familiares", em J. Mattoso (dir.), História de
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Mozzarelli (1988), Cesare, (ed.), "Famiglia" del principe e famiglia aristocratica, Roma,
Bulzoni, 1988, 2 vols..
Natividade (1653), Fr. António da, Stromata oeconomica totius sapientiae [...] sive de
regimini domus, Olysipone, 1653.
Pascoal [José] de Melo [Freire dos Reis] (1789) v. Freire, Pascoal de Melo.
Pegas (1669), Commentaria ad Ordinationes [...], 14 vols., Ulysipone, 1669-1703.
Pegas (1685), Manuel Alvares, Tractatus de exclusione, inclusione, successione et
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Reinoso (1625), Miguel de, Observationes praticae [...], Olyssipone, 1625.
Silva (1731), Manuel Gonçalves da, Commentaria ad Ordinationes [...] , 4 vols., Ulysipone,
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San Jose (1797), Antonio de, Compendium sacramentorum in duos tommos distributum
universae theologiae moralis quaestiones, ed. cons. Pampelonae, 1791.
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94
6. Rústicos.
As fontes históricas tanto explicitam como escondem. Ou seja, tanto nos
mostram – muitas vezes enganadoramente - o que lá buscamos, como se
mantêm, também aparentemente silenciosas em relação ao que achamos que
deviam dizer. O problema, realmente, não é das fontes. É da própria natureza
desse diálogo, cheio de equívocos e mal entendidos, que é o diálogo
historiográfico. As fontes, pura e simplesmente, não foram escritas a pensar em
nós, nunca pretender satisfazer as nossas curiosidades. Mesmo quando são
intencionalmente produzidas para falar para o futuro, encriptam as suas
mensagens numa linguagem que, sendo a delas, não é a nossa.
Daí que, antes de as lermos, temos que aprender a lê-las. Temos que
reconstituir os códigos com os quais constroem as suas mensagens.
Os juristas, por exemplo, quase nunca falam daquilo que, a seu ver, não é
direito. Mesmo que aquilo que, para eles não é direito, seja a vida quase toda das
pessoas; e, mesmo, o direito (ou seja, as regras obrigatórias da vida) para quase
todas as pessoas. 254
Ainda, quando se faz história, é preciso ultrapassar o discurso explicito das
fontes sobretudo quando se torna patente a não coincidência entre, por um lado,
os modelos de jurídicos das fontes legais e, mais ainda, doutrinais e, por outro
lado, a generalidade das situações vividas.
O tratamento doutrinal (e mesmo legal) do mundo da justiça de Antigo
Regime constitui um bom exemplo disso.
Há uns anos, estava interessado em entender o sistema de administração
da justiça em Portugal, nos séculos XVII e XVIII. Sabia, por literatura da época e
por dados recolhidos nos arquivos que o peso numérico das magistraturas
eruditas, até às grandes reformas judiciárias do sec. XIX era muito pequeno. O
número dos juízes de fora – os únicos que, desde 1539, tinham que ter uma
formação jurídica universitária não ia além de um décimo do total dos juízes dos
concelhos 255. Os restantes, eram juízes que, quando muito, saberiam ler e
escrever, embora as fontes pareçam evidenciar que nem isso acontecia num
número apreciável de casos. Com isto rapidamente se compreende que todo o
discurso dos juristas eruditos sobre a organização judicial – baseada na aplicação
do direito letrado, romano ou canónico, e, depois, na lei escrita do reino 256 assentava numa ficção ou até numa deliberada recusa da realidade. O discurso
dos historiadores, esse, acredita e o parafraseia piamente o que os juristas
pareciam dizer, tanto mais que isso correspondia a uma visão historiográfica
translatícia sobre uma alegada “precoce centralização do poder” em Portugal.
Realmente, a ideia vulgarmente dada pela historiografia das fontes de
direito - totalmente voltada para a descrição das fontes de direito dos tribunais
254
Sobre esta não correspondência entre o direito dos juristas e o direito do quotidiano, cf., por todos, Sarat,
Austin, & Kearns, Thomas R., Law in everyday life, University of Michigan Press, 1993.
255
Números mais precisos, em Hespanha, As vésperas do Leviathan [...] , cit..
256
Sobre o sistema das fontes de direito nesta época, v., por todos, Silva, Nuno Espinosa Gomes da Silva,
História do Direito Português. Fontes do Direito, 2ª ed., Lxf, Fundação. Calouste Gulbenkian, 1991.
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centrais e para os problemas doutrinais levantados a este propósito pelos juristas
eruditos- é a de que, a partir do século XV, os costumes, gerais e locais, tinham
passado à categoria de fontes de direito francamente secundárias. Não só a
legislação real e o direito comum regulariam zonas cada vez mais extensas da
vida social, como a doutrina teria subordinado definitivamente o costume à lei,
substituindo à sua antiga definição como um autónomo consenso tácito do povo
(«tacitus consensus populi») uma outra que o fazia depender de uma tolerância
consciente do rei («conscientia et patientia regis». Os séculos XVI a XVIII teriam
sido, assim, uma época de franco predomínio do direito régio e do direito comum,
este último contido na Glosa de Acúrsio, nos comentários de Bártolo e, mais
recentemente, na communis opinio dos »modernos» 257.
No plano da administração da justiça, a visão é correspondente. A partir do
século XV a progressiva intervenção da justiça real -através dos juizes de fora e
dos corregedores - teria gradualmente substituído as justiças autónomas dos
concelhos e dos senhorios. A expansão deste aparelho de justiça real teria
alargado o âmbito de aplicação do direito régio (jus proprium) e do direito erudito
(ius commune), este sobretudo a partir de 1539, quando – como se disse - se
exige a corregedores e a juizes de fora uma formação universitária em direito.
E, na verdade, muitos factores se combinam para tornar esta imagem
verosímil.
No plano político-ideológico, afirma-se na historiografia portuguesa, a
persistência do mito da tal temporã “centralização do poder real”, que, no século
XVIII, já servia para contrastar Portugal com o “feudalismo” centro europeu e para
enaltecer / promover a acção da coroa na correcção dos abusos feudais; e que,
no séc XIX, tanto contribuíu para legitimar historicamente o poder «moderador»
do rei previsto na Carta Constitucional de 1826), como, mais tarde, com o
“decadentismo” do fim de século, para explicar a apenas latência de um país
esvaziado da sua dinâmica local e de cidadania pelos desígnios políticos de uma
corte monopolizadora, distante e imobilista.
Por outro lado, e agora no campo mais preciso da ideologia e da dogmática
dos juristas, essa ideia de expropriação dos poderes locais pelo centro parecia
um processo natural. A separação entre o Estado e a sociedade civil, o monopólio
das competências deliberativas do poder central e, portanto, a atribuição à
periferia de competências meramente executivas, constituíam inelutáveis factores
de um processo histórico necessário (e desejável) de desenvolvimento de uma
razão natural no domínio da organização político-administrativa. Se, em Portugal,
tal processo tinha ocorrido precocemente, tanto melhor.
A par destes ingredientes ideológicos, o estado das fontes contribuiu
também para esta ocultação do mundo das justiças locais.
Por um lado, a organização da vida jurídica local - baseada na oralidadedefendia-a mal do esquecimento da história. Os costumes raro tinham sido, que
se saiba, reduzidos a escrito: dos finais do séc. XIV conhece-se cerca de uma
dezena de redacções de costumes, mas é evidente que isto corresponde apenas
257
Sobre todos estes conceitos, v. Silva, Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do Direito Português. Fontes
do Direito [...] , cit..
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a uma pequena parte do direito consuetudinário. O resto, apesar da expressa
cominação das Ordenações de que os costumes fossem reduzidos a escrito (Ord.
Af., I, 27, 8; Ord. Man., I, 46, 8; Ord. Fil., I, 66, 28), perdeu-se ou está disperso
nas declarações de posturas que por vezes se encontram nos livros de vereações
das câmaras. Quanto às sentenças dos juízes locais, parte delas não terá sequer
sido reduzida a escrito, dado que as Ordenções promoviam a simplicidade e a
oralidade do processo nos tribunais locais, satisfazendo-se frequentemente com a
mera redacção do assento final (“protocolo”) pelo escrivão, o que impede,
nomeadamente, o conhecimento das motivações da sentença (rationes decidendi)
e da argumentação do juiz. Mesmo em relação a sentenças escritas - que, contra
a regra comum do direito português, poderão nem sequer apresentar a motivação
-, muito poucas são as que estão disponíveis para estudo. De facto, a
generalidade das colecções de sentenças apenas recolhe sentenças dos tribunais
superiores, as quais raramente dão uma descrição capaz da decisão recorrida. As
inéditas jazem nos caóticos arquivos judiciais ou municipais.
Se, em virtude destes preconceitos e de problemas de fontes, a
historiografia tradicional teve razões para ignorar o direito local e o labor das
magistraturas populares, a estas razões somou-se a imagem que a literatura da
época deu deste mundo jurídico marginalizado.
No mundo colonial, esta submersão do direito e da justiça não culta ainda
mais se acentuou.
Nos níveis mais baixos da administração, nomeadamente em matérias de
justiça, existiam novos fatores de incoerência e autonomia, originadas pelas
deformações, intencionais ou não, do direito, às mãos “de pessoas simples e
ignorantes, que não sabem ler nem escrever”, facilmente corrompidas ou
assustadas pelos poderosos das terras. Frequentemente, os capitães nomeavam
condenados (“degredados”, “desorelhados”) 258, como ouvidores, situação que se
manteve continuadamente 259. No trânsito deste século para o seguinte, a situação
era, aparentemente, a mesma. Este estado de coisas não era incomum, mesmo
na Europa, onde as justiças locais eram frequentemente iletradas e incapazes de
usar o sistema jurídico real/oficial e letrado 260.
É aqui que se começa a situar a questão que agora nos interessa, a do
estatuto deste mundo submerso, nas margens da cultura erudita.
A doutrina jurídica não é, desde logo, muito prolixa a respeito destas
questões. Os principais juristas portugueses da época são, na verdade, pessoas
diversamente ligadas aos meios do direito régio ou erudito professores da
universidade, desembargadores ou advogados dos tribunais superiores; de
qualquer modo, letrados e oficiais do rei. Muitos deles tinham, é certo, feito a sua
carreira pela província, e alguns recordam questões então surgidas. Mas a sua
Carta de Pero Borges, “ouvidor geral do Brasil”, para o rei (7.2.1550), ns. 3-4, 7, 12, (Mendonça, 1972, v. I, pp.
53 ss, ns 3-4, 7, 12)
258
259
“Sou informado que por a povoação do Rio Grande ir em crescimento e não haver nela modo de governo,
nem quem administrasse a justiça, e haver disso algumas queixas, e os Capitães estarem absolutos”, Regimento de
Gaspar de Sousa, 1612 (Mendonça, 1972, vol. I, p. 416, n. 10). Exemplos pitorescos deste gênero de justiça de khadi,
comum nas periferias, cf. Altavila, 1925
260
Cf. o meu estudo “A Constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos”, em Maria
Fernanda Bicalho, José Fragoso, et alii, O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII),
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, 163-188.
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visão do foro local é decisivamente influenciada pela formação universitária ou
pela situação profissional e política em que se encontravam, como funcionários do
rei. Desde logo, a sua atenção não é atraída pelas magistraturas locais, salvo
quando, comentando as Ordenações, encontravam os títulos a elas dedicados.
Mas quando falam deste mundo, utilizam fontes doutrinais do direito comum,
alheias à realidade portuguesa – direi mais, a qualquer realidade exterior ao
mundo dos juristas cultos -, e reproduzem-se fórmulas doutrinais estereotipadas
por detrás das quais não se consegue entrever a natureza e a dinâmica da vida
jurídica local 261. Os concelhos, o seu direito e os seus magistrados, aparecem ai
como se fossem municipios romanos ou das cidades italianas contemporâneas
dos grandes juristas de trezentos. E se acaso a realidade local própria portuguesa
é tão gritantemente diferente que suscite uma observação particular, essa
observação é normalmente dirigida pela óptica do jurista erudito, que tende a
desvalorizar a realidade jurídica autónoma dos concelhos, caracterizando-a
apenas, do ponto de vista negativo, como uma situação de ausência ou de
desconhecimento do direito (entenda-se, do direito erudito) e não como uma
situação de presença de um outro ordenamento jurídico diferente e alternativo.
Nesta perspectiva, por exemplo, a característica dominante dos juizes locais não
pode deixar de ser a ignorantia, rusticitas, ou imperitia, já que o padrão de cultura
jurídica é, não o direito local, mas o direito régio ou erudito .
A recusa das propostas desta historiografia - atitude correcta se se
pretende obter, neste domínio, uma visão do passado válida para outras áreas
além da corte e de umas quantas cidades onde exista justiça erudita - implica,
porém, uma tarefa um tanto árdua: a de substituir o discurso fantasmagórico das
fontes sobre a omnipresença e a normalidade (em sentido estatístico e normativo)
de uma justiça letrada e de um direito erudito, por uma descrição histórica da vida
jurídica real fora dos grandes centros.
Baseada na oralidade, desprezada pelas fontes escritas, a justiça periférica
partilha, de facto, o destino de todos os fenómenos sociais minoritários e
reprimidos que, para serem recuperados sociológica e historicamente, levantam
sérios problemas metodológicos.
Qualquer avanço do conhecimento nesses domínios exige meios
epistemológicos alternativos para suprir as lacunas criadas pelos métodos
tradicionais. Como hipótese de trabalho, tentei uma leitura sintomal das fontes,
guiada por uma referência a modelos típicos de organização da prática jurídica
desenvolvidos pela antropologia e sociologia jurídicas, leitura essa que permite
descobrir, por trás do discurso jurídico erudito, as realidades práticas apenas
afloradas.
Para tanto, utilizei uma tipologia, bastante difundida a partir de Max Weber,
mas que estudos recentes de antropologia e de sociologia do direito vieram não
261
Esta repetição de ditos e estereótipos clássicos, tão típica do discurso jurídico do direito comum, também não
é inocente, tanto do ponto de vista das estratégias argumentativas, como do ponto de vista das lutas simbólicas. Como
instrumento de aumento de prestígio intelectual, o recurso às fontes clássicas exibia um saber distinto e elegante; como
apoio da argumentação, o recurso a tópicos tradicionalmente invocados, para mais decorados das referidas distinção e
elegância, suscitava o consenso. Cf., neste sentido, Pietro Costa, Iurisdictio. Semântica del potere politico nella publicistica
mediovale (110-1433), Milano, 1969, 202 ss..
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só confirmar nas suas linhas fundamentais como libertar de todo o normativismo
usual na tradição Weberiana.
Estou a referir-me à distinção entre sociedades dominadas por uma matriz
tradicional de distribuição do poder (traditionale Herrschaft) e sociedades
dominadas por um sistema político de natureza legal-racional (rationale
Herrschaft). Na literatura mais recente esta distinção é expressa sob a forma de
oposição entre sociedades “pré-racionais” e “racionais”, “tradicionais” e
“modernas”, “camponesas” e “capitalistas”.
No dominio do direito, o contraste entre estes dois tipos de organização
social (a que se liga uma dualidade de organização simbólica) foi descrito numa já
longa série de trabalhos, principalmente de antropólogos 262. Segundo Boaventura
de Sousa Santos - que utilizou os instrumentos teóricos dessas correntes na sua
investigação sobre o direito “não oficial” das favelas do Rio de Janeiro 263 - os
traços distintivos da prática jurídica dessas sociedades marginalizadas dos
nossos dias (cujas estruturas e práticas culturais e simbólicas estão intimamente
relacionadas com as das sociedades tradicionais) podem descrever-se da
seguinte forma.
Os conflitos têm, geralmente, um carácter trans-individual, não se
reduzindo a uma questão puramente privada. A comunidade mostra-se, de certo
modo, empenhada nos diferendos entre seus membros. Isto explica-se devido às
fortes solidariedades decorrentes do teor marcadamente colectivista da vida
social. Além disso, a natureza tradicional e imanente (isto é, não voluntarista e
arbitrária) da ordem jurídica transforma qualquer conflito sobre o direito numa
questão que ultrapassa o nível meramente técnico e que põe em causa os
fundamentos (considerados indisponíveis) da vida social. Por outras palavras, não
sendo a ordem jurídica o produto arbitrário de uma vontade (individual ou
colectiva), mas antes o produto de uma tradição social quase sagrada, o acto antijurídico é tido não como uma mera “transgressão”, mas como um desafio às
regras fundamentais da vida em comum.
É este carácter trans-individual dos conflitos que explica, por um lado, a
fluidez das fronteiras entre o direito (ius), a moral (fas) e o costume (mos), e ainda
a referência, permanente no discurso jurídico tradicional, a padrões éticos de
conduta (praecepta iuris sunt haec: honeste vivere, alterum non Iaedere, suum
cuique tribuere: aquilo que deve ser considerado como fundamento do direito é
viver honestamente (scl., de acordo com a natureza das coisas], não prejudicar
outrem e dar a cada qual o seu lugar). Longe disto não está ainda o facto da
censura ético-religiosa dirigida ao conflito e às pessoas conflituosas. Além de
transformar o pecado numa sombra quase necessária do crime, a Igreja
considerava negativamente o recurso à justiça para resolver diferendos,
promovendo antes formas de composição amigável, tuteladas por ela mesma ou
pela comunidade (compromissum, arbitragem).
262
Cf. Fallers (1969), Gluckmann (1965 a e b), Nader (1969), Hocker (1975), bem como a vasta bibliografia
citada em Santos (1980) e Spittler (1980). V. inda os textos publicados pela UNESCO, no quadro das “Réunions d’experts
pour examiner les premiers résultats de recherches sur les conditions du transfret des connaissances” (Veneza, 2630.06.1978).
263
Santos (1974); cf. desenvolvimentos sobre a sua investigação em Santos, TNSC.
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Por outro lado, este carácter comunitário do dissenso explica ainda a indistinção entre as sanções “penais”. e as sanções “civis”, indistinção de que resultam
quer a «penalização» de questões hoje em dia nitidamente civis (por exemplo, a
prisão por dívidas), quer a «civilização» de questões, actualmente, de natureza
penal (por exemplo, a aceitação de penas puramente privadas de reparação
penal) 264. Este carácter comunitário dos conflitos explica ainda a intervenção
activa do tribunal e da própria sociedade (através dos seus elementos mais
respeitados, os honoratiores, anciãos) na procura de um equilibrio entre os
interesses conflituantes que permita resolver o litígio de forma durável (Santos,
1980: 17).
***
Uma segunda característica consiste na precariedade dos meios coercivos
institucionalizados, explicando que a resolução dos conflitos assente numa
“violência doce” do discurso orientada para a obtenção de um consenso que
possibilite não só satisfazer momentaneamente os interesses, mas também
encontrar um equilíbrio estável. Este objectivo atinge-se por diversos meios.
Por um lado, através de um grande investimento retórico-argumentativo e
até emocional tendente à criação das bases do consenso. O discurso jurídico
socorre-se de todos os lugares retóricos aceites, mobiliza toda uma riqueza
emocional e tópica e, longe de isolar a questão numa moldura técnica e abstracta
(neutra, do ponto de vista das convenções colectivas), favorece constantemente a
sua ligação com outros registos valorativos da vida social (ética, religião, mundo
das virtudes), procurando salientar o carácter socialmente indispensável da
obtenção de um acordo (e, por consequência, os deveres das partes nesse
sentido).
Por outro lado, a própria estratégia da decisão deve facilitar a conciliação
das partes e, assim, a decisão tende a ser, não uma forma de adjudicação, em
que um juiz neutro, profere uma decisão que pode ser inexoravelmente
sacrificadora de uma das partes, mas uma forma de mediação assente numa
certa reciprocidade de cedências e ganhos (Santos, 1980: 21).
A terceira característica é o fraco grau de institucionalização das instâncias
decisórias das questões jurídicas.
Isto concretiza-se, em primeiro lugar, no carácter “não autónomo” das
instituições jurisdicionais, que são integradas ou presididas não por profissionais
de carreira, especializados e escolhidos em função das suas qualificações
técnicas, mas por indivíduos investidos de um prestigio social anterior à sua
designação como juízes (honoratiores, notáveis), que exercem essa função a par
de outras papéis e dignidades sociais e que, para além disto, não possuem
qualquer formação técnica.
Em segundo lugar, o carácter não técnico da linguagem jurídica ou, pelo
menos, o facto de o seu baixo grau de especialização não provocar a distan264
Cf"Da 'iustitia' à 'disciplina'. Textos, poder e política penal no Antigo Regime", Anuario de história del derecho
español (Madrid, 1988); versão portuguesa, Estudos em homenagem do Prof. Eduardo Correia, Coimbra, Faculdade de
Direito de Coimbra, 1989; versão francesa, "Le projet de Code pénal portugais de 1786. Un essai d'analyse structurelle", La
Leopoldina. Le poltiche criminali nel XVIII secolo, vol. 11, Milano, Giuffrè, 1990, 387-447. Versão resumida em F. Tomás y
Valiente et al., Sexo barroco y otras transgresiones premodernas, Madrid, Alianza, 1990, 175-186..
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ciação entre o tribunal e o auditório (Santos, 1980: 34), permite um controlo e uma
participação pública no desenrolar do processo e, finalmente, na decisão.
Em terceiro lugar, a “simplificação” dos processos traduz uma tentativa de
aproximar as práticas judiciais dos rituais e formalidades da vida quotidiana,
eliminando todos os protocolos em que os aspectos materiais são sacrificadas
aos aspectos formais ou, melhor dizendo, em que a solução socialmente evidente
e justa é abandonada por razões “formais” (por exemplo, a fixação definitiva do
objecto do proceso de acordo com a Iitis contestatio; a existência de critérios préestabelecidos de apreciação da prova; a perda de direitos materiais por
prescrição de prazos ou por violação de certas formalidades processuais).
Finalmente, a institucionalização débil revela-se ainda no carácter omniinclusivo do discurso jurídico, em que o “caso jurídico” se não distingue do “caso
vivido”; ou seja, onde pouco ou nada se sacrifica na modelação do caso da vida
para efeitos do seu processamento jurídico. Isto explica, nomeadamente, essa
incapacidade, tantas vezes patente, de auto-domínio dos membros das
comunidades tradicionais perante o formalismo do direito “moderno”, para o qual
são irrelevantes muitas circunstâncias e motivos que a vida consideraria como
absolutamente relevantes (Santos, 1980: 26).
***
O antagonismo entre as práticas jurídicas tradicionais e as que se
desenvolveram no Estado contemporâneo não deve fazer perder de vista, pelo
menos nas sociedades onde coexistem práticas jurídicas dos dois tipos, que entre
ambas se geram relações que não são de oposição total. Com efeito, quer a lei
quer as formalidades do processo erudito podem ser apropriadas pelo direito
tradicional; no entanto, essa apropriação modifica desde logo as regras da sua
utilização no discurso jurídico. A lei ou a fórmula doutrinal perde a sua qualidade
de critério decisivo e imperativo na “invenção” da solução jurídica e passa a ser
apenas um tópico entre tantos outros, num sistema argumentativo cuja estratégia
é agora dominada pela preocupação de alcançar um acordo. O que acontece com
a lei acontece igualmente com as fórmulas e os actos do processo erudito quando
aplicados no contexto do processo tradicional (Spittler, 1980: 6). Qualquer dos
factos se explica pela presença, nessas sociedades dualistas (neste aspecto), de
um modelo legal-racional de legitimação do poder, do qual faz parte a crença no
carácter decisivo da forma jurídica escrita, tanto no plano das normas como do
processo 265. A referência ao direito escrito prende-se, assim, com a necessidade
de “criar uma atmosfera de oficialidade e de normatividade” que facilite a
aceitação da solução (Santos, 1980: 19). Além disso, a forma escrita favorece a
ideia de distanciação entre o tribunal e as partes e, deste modo, reforça essa ideia
moderna – mas de algum modo presente no direito mais antigo 266, embebida na
265
Weber (1956).
266
A ideia actual de que o tribunal deve ser neutral está próxima, mas não se identifica completamente, com a
ideia antiga de que o juiz não pode fazer da decisão uma coisa sua (“facere litem suam”), ou seja, dependente dos seus
pessoais critérios ou interesses. Realmente, o juiz pode deixar-se mover por sentimentos (de simpatia, de misericórdia, de
amizade), pois isso faz parte da natureza humana; o que não pode é ultrapassar os limites que distinguem sentimentos
comuns de sentimentos particulares. Por outro lado, a ideia de igualdade decorre do princípio de que não se pode infligir
um prejuízo ilegítimo a nenhuma das partes. Mas, pode tratar-se benevolamente uma delas, se a outra não for prejudicada
com isso. Assim, pode-se perdoar um criminoso, se o ofendido também o perdoar. Ou se, pura e simplesmente, não
houver um particular ofendido.
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ideia de “igualdade da justiça” - segundo a qual a realização da justiça exige a
heteronomia do órgão decisório.
Seja como for, numa sociedade tradicional (ou dualista, pluralista), o uso
de modelos jurídicos modernos convive com outros modelos tradicionais e
combina-se com estes no âmbito de estratégias de composição e de legitimação
de esratégias jurídicas que não são as do Estado contemporâneo. Estudo sobre
ambientes tão diferentes como a Prússia do sec. XVIII, a Índia do sec. XIX ou a
África do sec. XX dão disto ilustrações convincentes.
Estas relações entre os dois tipos de práticas jurídicas levaram a que se
defendesse a tese segundo a qual o desenvolvimento da justiça tradicional
(dispute institutions) pressupõe a coexistência de uma justiça institucionalizada na
forma estadual (courts) sob cuja ameaça se actuaria nos tribunais tradicionais,
importando, ao mesmo tempo, alguns dos seus elementos processuais, num
processo que tanto pode significar a pretensão de obter legitimidade pelo
mimetismo das formas, como o de obter um certo reconhecimento do Estado para
formas de justiça que este tenderia a considerar espúrias 267.
Seria, contudo, errado partir destas considerações para uma concepção
segundo a qual a justiça tradicional e a justiça estadual se integrariam harmoniosa
e complementarmente dentro de um sistema global de resolução de conflitos, ou
ainda, como as fontes históricas eruditas muitas vezes deixam supor, que a
“divisão do trabalho” entre ambas resultaria de uma decisão do legislador que,
sensatamente, deixaria aos povos o julgamento das questões menores a fim de,
simultaneamente, preparar as decisões dos tribunais superiores (organizadas de
acordo com as regras processuais eruditas) e os libertar, em parte, da sua carga.
Pelo contrário, embora esses dois mundos não sejam estanques, as relações
entre eles são sempre conflituais, e as trocas só se fazem à custa de conversões
funcionais dos elementos apropriados. Assim, não deve falar-se de continuidade
entre ambos, mas antes de ruptura e de conflito, ainda que encobertos 268. Mas,
fundamentalmente, a justiça tradicional não se conforma nunca com o estatuto de
ser apenas a “primeira instância” da justiça estadual, pois não aceita de bom
grado o modelo de uma estrutura judicial e processual muitas vezes totalmente às
avessas da sua lógica e dos seus modelos de obtenção de consenso e de
legitimação.
Com efeito, os tribunais tradicionais diferem dos estaduais, quer no plano
do direito processual quer no plano do direito material. Relativamente a este
último, pelo facto de se submeterem a normas jurídicas tradicionais diferentes das
normas do direito oficial e erudito. No direito processual erudito, há regras que
estão nos antípodas da organização do processo tradicional: primeiro, a utilização
da linguagem técnica, maxime, do latim; em segundo lugar, as regras sobre a
intervenção das partes no processo (necessidade de representação por um
267
Tal é a tese de Spittler (1980: 4-32) que explica a difusão, em certas sociedades, de instituições não-judiciais
(nichtgerichtliche lnstitutionen, dispute institutions) com base, não no seu carácter universal (tese universalista) ou na sua
ligação a um determinado estilo cultural (tese culturalista). mas na sua dependência das instituições judiciais. A tese central
deste artigo é de que a grande expansão e êxito das instituições judiciais não oficiais, ultimamente estudadas pelos
etnólogos, tem a ver com a existência dos tribunais estaduais, no sentido em que as comunidades tradicionais teriam
necessidade de evitar a auto-defesa sem caírem no campo de acção dos tribunais oficiais, em relação aos quais haveria
uma profunda antipatia.
268
Para uma análise semelhante das relações entre a cultura oral e a cultura escrita, cf. Bäuml (1980). 237 ss.
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advogado ou um procurador, limitação do direito de uso da palavra); em terceiro
lugar, a estrutura dos meios de prova (predomínio da forma escrita) e o sistema
de sanções (preponderância das sanções de tipo penal - v.g., prisão ou multas
“públicas” - em substituição das de natureza “privatista”, que apenas visam a
reparação do ofendido). Tudo isto transformava o processo escrito em algo de
estranho, que as partes não entendiam, cuja legitimidade não aceitavam e a que,
portanto, tentavam escapar.
***
O que acaba de ser dito sobre a oposição entre justiça e práticas jurídicas
tradicionais e as dos modelos estadualistas pode ser enriquecido com uma
referência a uma problemática teórica vizinha – a das diferenças entre culturas (e,
portanto, culturas jurídicas) orais e escritas.
Com efeito, existe hoje um importante trabalho de reflexão que, ao romper
com a ideia da homologia entre a expressão escrita e a expressão oral, permite
pôr a questão dos traços característicos das culturas sem escrita. Ou, dizendo de
outra forma, um pouco mais enfática, permite evidenciar as características
próprias das culturas orais e das culturas escritas, não apenas no plano das
tecnologias da comunicação, mas nos próprios processos intelectuais e culturas,
que agora se descobre estarem intimamente ligados às técnicas de expressão e
de comunicação.
Tal como foram descritas pelo autor que lançou esta problemática 269, as
características das culturas orais correspondem aos grandes traços daquilo a que
se costuma chamar a prática jurídica tradicional.
Desde logo, o acrácetr “tradicional” e, ao mesmo tempo, flexível da cultura.
Desprovidas de textos que possam tornar-se em elementos canónicos ou
modelares fixos, as culturas tradicionais vivem de uma tradição que se transmite
de boca em boca e que, em cada transmissão, se modifica, quer pela
incorporação de novos elementos que passam a fazer corpo com os antigos, quer
pela obliteração discreta dos elementos antigos que deixaram de ter actualidade
nos novos contextos comunicativos ou culturais. A cultura é, por isso,
sucessivamente efémera, destituída de profundidade histórica, na qual o presente
se encontra nivelado com as sucessivas fatias do passado, numa tradição antihistórica. Este facto, que se pode verificar para a generalidade dos domínios
culturais, pode também ser notado no domínio específico da cultura jurídica. De
facto, as ordens jurídicas medievais e primo-modernas têm ainda esse carácter
aditivo: coexistindo as normas mais antigas com as mais recentes, integrando-se
incessantemente o direito antigo com o direito novo, sendo os textos antigos
objecto de modificações não explícitas (v. o caso mais famoso das interpolações
em direito romano), gozando o costume de um poder constitutivo ou revocatório
das normas jurídicas 270. Eis aqui um traço da cultura jurídica – mesmo de uma
cultura jurídica que já recorria massivamente à escrita – que se reporta ao que foi
269
J. Goody, The domestication of savage mind, Cambridge University Press, 1977;J. Goody e Ian Wiatt, “The
consequences of literacy”, Comparative studies in history and society, 5(1963). Sobre a sua obra v. o prefácio da tradução
francesa do seu livro (La raison graphique, Paris 1979), de J. Bazin et A. Bensa.
270
Cf. Hespanha, 1987, 97.
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dito das culturas orais; traço esse que se prolonga durante todo o período do
direito comum.
Uma segunda característica das culturas orais é a sua inaptidão para o
pensamento analítico. Com efeito, o tratamento analítico do discurso apenas é
possível perante um texto escrito. Só este permite cindir e “descontextualisar”
cada elemento do discurso, verificar a sua ligação com outros ocorrentes noutros
lugares do texto, testar a sua utilização em momentos sucessivos do discurso.
Daí que os processos intelectuais da definição, da elaboração de regras
abstractas, de listas, de tabelas ou de fórmulas, etc., não se tenham otrnado
possíveis senão quando se atingiu o nível da escrita. Nas culturas orais, estas
operações mentais são substituídas por outras menos exigentes quanto ao grau
de abstracção e de generalização, entre as quais o raciocínio pelo exemplo, ou
seja, a organização do discurso (e do processo mental) em torno de modelos
concretos, em que todo o contexto existencial, emotivo e histórico, está presente
e a partir do qual se processa, por comparações, distinções e variações mínimas,
uma hermenêutica profunda do caso, bem como uma eventual extensão a outros
casos, do saber obtido, sem que se proceda a qualquer redução ou dissecação
analítica. No domínio do direito, isto apresenta um grande paralelismo com a
vitalidade do modelo argumentativo e concretizador 271 (precedentes, analogia,
casuismo) nos mecanismos tradicionais do achamento da solução jurídica,
modelo esse que ainda deixa marcas no método jurídico tardo-medieval,
prolongando-se, em algumas zonas, até bem mais tarde.
Estas diferenças entre os mecanismos intelectuais das culturas jurídicas
escritas e orais contribui também para explicar a inacessibilidade do discurso
jurídico letrado – fundado nos processos lógico-intelectuais típicos da cultura
escrita (como, por exemplo, a glosa, o comentário, a citação, as classificações, as
definições) – em relação aos operadores do direito nas culturas jurídicas orais.
Em terceiro lugar, a inserção do discurso num clima emocional e afectivo,
provocado pela impossibilidade de distanciamento, que inevitável no discurso
falado, e entre o locutor, aquilo que diz, e o universo dos destinatários. No
auditório está, no discurso oral, mais sujeito à manipulação emocional do locutor;
a retórica (por oposição à lógica e à dialéctica) é justamente a arte de fazer apelo
ao consenso na base, não da validade do que é dito, mas da expressividade da
acção de dizer. No domínio do direito, este facto não apenas explica o papel da
rábula (ou seja, do discurso - do advogado - dirigido para manipulação emocional
e dramática do auditório), como confirma, numa perspectiva complementar, o que
já se disse sobre as incessante referências do discurso a registos culturais e
sociológicos extra jurídicos.
Em último lugar, o carácter específico da prova nas culturas orais. Em
contraste com as culturas escritas, em que o documento escrito o ocupa um papel
probatório fundamental ligado à sua permanência e à sua fixidez (verba volant,
scripta manent) 272, a memória da cultura rural repousa no testemunho; mas de
271
Sobre ele, Hespanha, 1997, 110 ss. e bibliografia aí citada.
272
Cf., sobre as relações entre memória e escrita, Bouza, Fernando, Comunicación, conocimiento y memoria en
la España de los siglos XVI y XVII, Salamanca, 1999; onde, de resto, se explicam as conexões visíveis que existem, na
cultura europeia moderna, entre capacidade de escrever e a plena realização do homem, justamente no papel
determinante que memória ocupa na configuração da natureza humana.
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testemunho que, não pode ser confirmado de outra forma, que é crido na base da
sua autoridade. E que, por isso, não vale pela verosimilhança daquilo que diz,
mas pela credibilidade da testemunha ou pelo carácter sagrado (sacramental) do
juramento que o acompanhe 273. É ocioso sublinhar a relação que existe que entre
o papel do que acaba de ser dito e natureza dos mecanismos probatórios do
processo tradicional (alguns dos quais se prolongaram no processo escrito). Por
outro lado, há também relações evidentes com o império do argumento da
autoridade, sob o qual a cultura jurídica se baseou, pelo menos até ao momento
em pôde, finalmente, dominar as técnicas de justificação que pertencem ao
universo do discurso escrito (argumentação analítica, argumentos racionais).
Os mundos da cultura oral e da cultura escrita não se encontram isolados
um outro, nomeadamente porque a tradição se oral pode manter eficaz e
estruturante no seio de uma cultura já dominada pela expressão escrita.
Num artigo em que contesta a dicotomia entre as duas culturas 274,
Fernando Bouza salienta como, na Ibéria da época moderna, oral, escrito,
iconológico, dramatúrgico e mímico, se combinavam como meios alternativos e
sectorialmente especilizados de comunicação 275. Em todo caso, deve ter-se em
conta, ainda aqui, que recepção das tradições orais numa cultura escrita de não é
possível se não sua condição da sua profunda reconversão, quer no que respeita
ao conteúdo, quer quanto ao seu papel no sistema de comunicação social.
Na verdade, a tradição oral perde o seu papel de "enciclopédia cultural da
sociedade" (Havelock) e torna-se num subsistema marginalizado que apenas
constitui um quadro de referência cultural para as camadas iletradas. Por outro
lado, no momento em que a tradição oral for parcialmente incorporado na tradição
escrita, ela é submetida a um trabalho de escolha e de tradução que a torne
compatível com os príncipes estruturais, as necessidades e os interesses da
cultura escrita. No domínio do direito, isto explica, por exemplo, o carácter
aparentemente fragmentário das redacções costumes: nestes últimos ter-se-á
distinguido o fundamental do acessório, o que estava vivo na consciência popular
daquilo já tinha caído no olvido; tudo isto não esquecendo o facto material de que,
sendo caro o suporte da escrita (pergaminho, papel) e demorado o próprio acto
de escrever, razões puramente práticas procurassem limitar ao essencial a
transposição para a escrita do interminável fluxo das palavras.
Para mais, estas fluidas fronteiras entre cultura oral e cultura escrita devem
ser traçadas tendo em conta o facto de que nem todos os que não sabem ler
pertencem forçosamente ao mundo da cultura oral. Pelo contrário, muitos deles
ingressam nas franjas da cultura literária recorrendo alguém saiba ler escrever. E
o caso, por exemplo, dos juízes iletrados, que utilizam eventualmente a mediação
do assessor para julgar segundo o direito erudito 276. Enquanto que,
frequentemente, mimam os processos prestigiados da cultura escrita, trazendo
tinteiro e pena pendurados ao cinto – como relata algum juristas a propósito dos
273
Sobre o juramento, fundamental, Prodi (1992), Paolo, Il sacramento del potere.Il giuramento politico nella
storia costituzionale dell’Ocidente, , Bologna, Il Mulino, 1992.
274
E, mais do que isso, a identificação do escrito com o moderno e o oral com o tradicional.
275
Bouza [1999], Comunicación, conocimiento y memoria ..., cit. 31 ss..
De ver, sobre esta problemática de relações entre cultura oral cultura escrita, o artigo de H. Bäuml, “Varieties
and consequences of medieval literacy and illiteracy”, Speculum. A journal of medieval studies, 36(1980) 237 ss..
276
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rústicos “sabidos” - ou mimando os ambientes burocráticos do direito escrito –
pondo em cima da mesa uma máquina de escrever, como conta Boaventura
Sousa Santos, acerca dos operadores do direito popular nas favelas de
Pasárgada.
Mas não é menos verdade que nem sempre os letrados abandonam
necessariamento os modelos comunicativos da oralidade. Num estudo muito
original sobre a eloquência jurídica na Espanha liberal – o mesmo se poderia
dizer, na mesma época, para Portugal ou para o Brasil -, Carlos Petit mostra
como, no mundo jurídico e político, esse mundo onde se manifestava a opinião
pública (Öffentlichkeit, para tomar um conceito conhecido, de J. Habermas), o
modelo da comunicação era o discurso forense ou parlamentar (ou, ainda, as
lições ditadas e recolhidas por ouvintes), e não o texto escrito. No fundo, neste
mundo elitisita, a eloquência natural, a expressão oral fácil e fluente, denotava
uma distinção intelectual inata, que o trabalho de escrita, polido e apurado,
apenas podia imitar. A eloquência e a sedução pessoal, que constituem os
primores da comunicação oral excelente, substituíam a erudição e o rigor, que
caracterizam a excelência da comunicação escrita 277. Este mundo da oralidade
das elites liberais não é, seguramente, a oralidade dos rústicos. Mas compartilha
com ela as específicas capacidades do discurso oral – naturalidade, aderência à
vida e impregnação emotiva. E, nesse sentido, torna-se distintivo de novas elites,
cuja estratégia simbólica era a de, pelas luzes naturais, se tornarem distintas dos
burocratas, praxistas, pesadamente eruditos e escreventes prolixos, das
monarquias pré-revolucionárias.
***
Os estudos sobre a litigiosidade no Antigo Regime 278, embora
frequentemente voltados para a litigiosidade dos tribunais superiores (ou seja,
para o mundo erudito), não cessam de confirmar estas perspectivas sobre a
irredutibilidade e a especificidade do direito popular tradicional.
Nos trabalhos de Nicole Castan - em especial, Justice et répression en
Languedoc (1980 b) -, grande parte da atenção da autora volta-se para as formas
de resolução dos conflitos que se situam fora do mundo dos tribunais da coroa.
De facto, em muitos casos, estes não eram mais do que um último recurso,
necessário apenas quando tinham fracassado os meios tradicionais e não
institucionalizados de conciliação das partes. Tal como as exacções fiscais,
também as intromissões da justiça real na resolução de conflitos seriam olhadas
com antipatia. O receio do recurso à justiça oficial seria compartilhado pelos
pobres, sem meios económicos para se permitirem o luxo de uma causa em
277
O tema da naturalidade da eloquência perante a artificialidade do saber letrado era mais antigo; Fernando
Bouza refere como a verdadeira eloquência andava, na cultura hispânica moderna, ligada à nobreza natural, Bouza [1999],
Comunicación, ..., cit., p. 45
278
Os estudos sobre a litigiosidade no Antigo Regime são hoje muito abundantes. Em França, os estudos
pioneiros de Castan são os de Nicole Castan , para a história, (1980 a e b), e, para tempos mais recentes, os de R.
Schnapper. Para a Espanha, clássico, Kagan, 1981. Em geral, para a Europa, Baket, 1978. Interpretação sócioantropológica, Kagan, 1981, Abel, 1973, Shapiro, 1975, Felstiner, 1974, Fallers, 1969, Toharia, 1974, Boaventura de Sousa
Santos, O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica /. – Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra,
1980. Cf. ainda, numa perpspectiva tanto histórica como actual, Hespanha (ed.), Justiça e litigiosidade, Fundação
Gulbenkien, Lisboa, 1993, com prefácio e textos.
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tribunal, e pelos ricos que, por seu turno, temiam que a sua riqueza despertasse a
cupidez do aparelho judicial. Daqui, provem a generalização da ideia de que “mais
vale um mau acordo do que uma boa demanda” 279, ideia essa que seria ainda
promovida pelos tópicos cristãos sobre a solidariedade, principalmente depois do
concílio de Trento.
Perante esta recusa de utilização da justiça do Estado, surgia uma
panóplia de meios para a resolução de conflitos, desde a arbitragem - quer levada
a cabo pelos pares das partes (arbitragem horizontal), quer dos notáveis
(arbitragem vertical, organizada nomeadamente pelos senhores ou pelos clérigos)
(Castan, 1980 b: 15) 280 - até aos resíduos da justiça privada, sobretudo em áreas
como as questões de honra e de propriedade.
Cabia à própria justiça oficial a responsabilidade da sobrevivência desta
justiça tradicional, devido à sua incapacidade para satisfazer rápida e eficazmente
a composição social de interesses.
Em resumo, pode dizer-se - com N. Castan - que ainda nos finais do Antigo
Regime, o sistema legalista do direito e o correspondente sistema estadual de
justiça não dominavam de forma alguma toda a prática jurídica e que as relações
dos indivíduos - nomeadamente na província- com o Estado são, em questões de
justiça, ainda muito frustres 281. O reforço do poder do Estado neste domínio - mais
do que o aumento de actos criminosos - poderá estar na origem do agravamento
da criminalidade nos fins do século XVIII.
A obra de Richard H. Kagan (1981) - embora incida principalmente na
prática judicial de um tribunal superior (a Chanci!leria de Valladolid) - testemunha
também uma oposição, ainda no século XVIII espanhol, entre formas tradicionais
e modernas de resolução de conflitos: entre o «pleyto» que corria num tribunal
oficial e erudito, submetido às regras do direito escrito, e os antigos juízos ex
aequo et bono (juicios de alvedrio) proferidos pelos juizes tradicionais e
honorários dos municípios e aldeias, submetidos ao direito tradicional
parcialmente contido nos antigos «fueros».
Este já largo discurso sobre a justiça popular serve para nos introduzir,
sem surpresas e com apoio em factos concretos, no mundo da política e do direito
tradicionais e, sobretudo, conhecer os seus sujeitos, pois a própria autonomia
deste mundo pressupunha que os seus habitantes gozassem de um estatuto
político pessoal muito diferenciado, do ponto de vista dos detentores do poder
central.
279
Casatn, Justice et repression en Languedoc a l'Epoque des Lumieres. Paris: Flammarion. 1980, 15; para
Espanha, Kagan, 1981, 202. O que prova a ideia de Gerd Spittler de que a litigiosidade informal se desenvolve, em parte,
“à sombra do Leviathan” (ou seja, sob a ameaça de intervenção da justiça oficial). Cf. David Sabean, Power in the Blood.
Popular Culture and Village Discourse in Early Modern Germany, Cambridge, Cambridge U.P., 1984; Hilton Root, Peasants
and King in Burgundy. Agrarian Foundations of French Absolutism, Berkeley, 1987; Gerd Spittler, "Abstraktes Wissen als
Herrschaftsbasis: Zur Entstehungs-Geschicte burokratisches Herrschaft im Bauernstaat Preussen," Kolner Zeitschrift fur
Soziologie und Sozialpsychologie, 32 (1980): 580-581.
280
Um outro tipo de arbitragem era a arbitragem “técnica”, realizada pelos especialistas em direito erudito (cf.
Castan, Justice ..., cit., 44). Aqui, no entanto, não se tratava de mais um afloramento de uma justiça tradicional, mas antes
de um processo mais económico e informal de realizar a justiça oficial.
281
Segundo o autor, o aumento da criminalidade (da criminalidade “oficial”, perante os tribunais do Estado) nos
finais do Antio Regime poderia ser explicado mais pela dissolução das comunidades tradicionais – e, por isso, pela crise
dos mecanismos de composição não judicial dos conflitos – do que pelo agravamento de factores de crise social. A
assunção pelo Estado desta tarefa de resolução de litígios defrontava-se, no entanto, com problemas sérios, tanto de
resistência local a esta intromissão, como de falta de meios estaduais para ocorrer a ela.
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Este passo num mundo submergido enfrenta, logo à partida, dificuldades
que decorrem do facto de, em geral, não dispormos hoje em dia de fontes escritas
que permitam documentar directamente a prática jurídica tradicional, por ela se
não basear no emprego da forma escrita, embora, como já o dissemos, isso não
exclua a sua utilização esporádica. Por outro lado, o pouco que se reduziu a
escrito e se conservou nos arquivos judiciais foi vítima da usura do tempo e da
mediação da cultura para-erudita dos escrivães.
Isto forçou-nos a adoptar neste trabalho uma estratégia de investigação
diferente, baseada na procura de vestígios desse direito tradicional precisamente
nas obras de direito erudito.
Com efeito, apesar do tom irreal e fictício tantas vezes adoptado pelo
discurso do direito erudito 282, a realidade desse mundo jurídico não assimilado era
de tal modo gritante que, forçosamente, ele tinha de estar presente no horizonte
do jurista letrado. Presente, quer como alternativa cultural e jurídica que se
tentava combater e depreciar, quer como realidade não assimilada que exigia um
enquadramento dogmático e institucional específicos.
***
Começaremos esta exposição sobre o lugar atribuído à prática jurídica
tradicional nas obras de direito erudito pela descrição dos quadros dogmáticos e
institucionais em que se tentou inseri-la.
Na literatura erudita, este mundo do direito tradicional, não erudito e não
escrito, era designado por mundo dos “rústicos” 283.
A definição deste universo surge já na literatura clássica do direito comum.
Segundo Bártolo, os rústicos são os que vivem fora das cidades ou das terras
importantes (“omnes qui habitant extra muros civitatis vel castri, tamen idem
intellegeremus de castris et commitatuis ubi non esse copia hominum et sic non
sunt castra insignia”) [os homens que habitam fora dos muros de uma cidade ou
castelo, embora também o digamos dos castelos e povoações onde não haja
muitos homens e que, deste modo, não sejam castelos importantes] 284. Ainda
mais expressiva é, contudo, a definição de Alexandre de Imola que se refere
claramente ao que, em sua opinião, justificava o estatuto especial dos rústicos: a
ignorância e a rudeza (“rusticus proprie est, qui opere, & conversatione est
282
Sobre a função ideológica e política desse «irrealismo~ ou carácter fantasmagórico do discurso jurídico e
erudito, P. Costa (1969: 202s).
283
Literatura sobre os rústicos- (privilégios, iudicia): Andreas Tiraquellus, Tractatus de privilegiis rusticorum,
Coloni~ Agrippin~ 1582; Renatus Chopinus, De privilegiis rusticorum, Pansus 1575; Des privilèges des personnes vivant
aux champs. Paris 1634 (trad. franc.); Iohannis Albini, Opusculum de regimini rusticorum, Moguntiae 1601; lustus Henning
Boehmer. De libertate imperfecta rusticorum in Germania, Halliae, 1733; Siculus Flaccus, De rusticorum regimen,
Moguntiae, 1601: Joh. Wilh. Goebel, De jure & iudicio rusticorum fori Germaniae, Helmstadt 1723; Benedictus Carpzovius,
Disputatio de praecipuis rusticorum privilegia. Lipsiae 1678; lohannis Suevi, Tractatus de privilegiis rusticorum. Coloniae
1582; e outras obras que focam, sobretudo, as obrigações feudais dos rústicos e dos camponeses.
284
Bartolus, Comm. ad Dig. infort. (D. 2, 29, 7, 8, 2j; idêntica definição é dada por Baldo: «rusticus dicitur quolibet
habitans extra muros civitatis, vel habitans in castro, in quo est hominum penuria» [diz-se rústico aquele que habita fora dos
muros da cidade, ou de um castelo, onde haja poucos homens”, (Comm. D. de iure codic., l. conficiantur, § codicilli. cit., t.
III, p. 170).
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rusticus” [rústico propriamente dito é aquele que é rude no comportamento e na
maneira de falar]) 285.
«Rústicos» não era, de facto, uma expressão neutra no discurso da Baixa
Idade Média, como mais adiante veremos em pormenor. Longe de constituir uma
simples evocação do mundo rural, ela continha uma conotação nitidamente
pejorativa equivalente a “grosseiro” (grossus, grossolanus), «rude» e «ignorante»,
por oposição a um ideal de cultura literária que, cada vez mais, se vinha impondo.
Esta imagem degradada da rusticidade não decorria apenas de uma
observação ligeira sobre a diversidade dos hábitos e das maneiras. Enraizava-se
em representações mais profunds sobre a natureza dos homens que, como
veremos, tanto se aplicavam aos rústicos da Europa como aos nativos
descobertos nas terras do ultramar 286
Se explorarmos a referência de Bártolo e de Baldo à pequenez das
comunidades rústicas, entramos num tema cuja profundidade antropológica é
mais funda. Na verdade, os filósofos e políticos vinham repetindo, desde a época
clássica que o homem era um animal social e que, por isso, as deficiências da
socialidade se transformavam em deficiências de humanidade. Quem não
comunicava com outros homens, como os que viviam em lugares isolados ou nas
florestas (silvícola, homo in sylva), não era integralmente humano, por lhe faltar
essa componente humana da sociabilidade.
O tema é explorado por S. Tomás de Aquino, quando se interroga sobre a
salvação daqueles que, por viverem isolados, nunca tinham tido contacto com a
mensagem de Cristo. O problema está, para ele, ligado à questão da relação
entre ignorância e pecado – tema que desenvolve na Summa theologica, Ia.Iiae,
qu. 76 ss.. A ignorância de que um acto é pecado pode ser causa do pecado e,
por isso, desculpá-lo (qu. 76 a.1, resp. e ad 3). Mas esta ignorância – que,
positivamente, impede a ciência, distinguindo-se, assim, da mera inconsciência
(Ia.Iiae, qu. 76, a.2, resp.) - tem que ser desculpável e invencível, para que ela
mesma não seja pecado (qu. 76, a. 2). A situação dos selvagens (homines in
sylva) foi discutida por S. Tomás neste contexto, embora a sua posição tenha
oscilado. Numa fase, adopta pontos de vista muito rigorosos: estes infiéis não
têm, em direitos termos, culpa da sua infidelidade, pois nunca foram postos em
contacto com a verdade. Alguns poderão salvar-se, por especial graça de Deus,
que lhes manda missionários ou os ilumina por meio de anjos, despertando neles
o desejo de conversão (votum sacramentum), que corresponde a um baptismo
como que espontâneo e informal suficiente para a salvação. Outros, porém,
perder-se-ão. O pecado original afectara toda a humanidade. Em rigor, porém, a
condenação de todos era um acto de justiça; só a graça de Deus, enviando o seu
Filho à terra ou dispensando actos individuais de graça, eximia alguns a esse
tremendo destino colectivo 287. Mais tarde, a explicação é outra, mais fortemente
ligada ao problema da desculpabilidade da ignorância. Qualquer que seja a sua
situação de vida: “Respondo [a uma anterior objecção] dizendo que a ignorância
285
Alexander de Imola, Consilia, Lugduni 1563, vol. 6 con.1. n.3.
286
Sobre esta aproximação, à qual voltaremos, v. Prosperi [1996], Tribunali [...], 551 ss..
287
Pesch 1992), Otto Hermann, Tomás de Aquino. Limite y grandeza de una teologia medieval, Barcelona,
Herder, 1992, 65-67.
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difere do desconhecimento, pois este é uma simples negação do conhecimento;
de onde aquele a quem falta o conhecimento de algumas coisas, pode dizer-se
que as ignora [...] No entanto, a ignorância importa a privação do conhecimento;
ou seja a falta a alguém de um conhecimento de coisas que, de nascença, era
apto para conhecer. Na verdade, há coisas que todos devem conhecer, tal como
aquelas coisas sem o conhecimento das quais não se pode praticar
correctamente os actos devidos. De onde todos têm que que saber as coisas da
fé, bem como os preceitos universais de direito. [...] Em contrapartida, não se
imputa negligência a alguèm que não sabe aquilo que não pode saber. De onde
se diga que esta ignorância é invencível, pois não pode ser superada pelo estudo”
(ibid., qu. 76, a.2, resp.). Nesta perspectiva, a situação dos homines nutriti in sylva
agrava-se, pois o isolamento não os priva do conhecimento da lei divina e da lei
natural. Embora permaneça implícita uma ideia de que se trata de uma
humanidade algo decaída, porque privada de uma comunicação regular com os
crentes, da comunhão com a Igreja; e, por isso dependente de uma especial
graça de Deus para encetar o caminha da salvação, apesar da sua intuição da lei
divina e dos primeiros princípios do direito natural.
Seja como for. O que estas luzes inatas e necessárias sobre os
fundamentos da religião e do direito não garantiam era o conhecimento detalhado
da lei. Sobre essa intuição natural tinha que se construir uma consciência mais
explícita das regras de vida, incluindo das regras de vida religiosa. Era esse o
objectivo da missionação e, em geral, da educação. A Igreja mandava (mittere,
missio) 288 pessoas que, pela difusão de um saber suplementar, pusessem estes
homens no caminho (educare) de que o pecado original os tinha desviado.
É a partir desta ideia de reeducação pela reintegração dos selvagens na
comunidade dos homens que – como veremos – se construirá, já na época
moderna, a teoria da legitimidade de forçar os nativos das terras descobertas a
aceitar a missionação e o comércio, duas formas excelentes de promover a intercomunicação entre os homens. Ou, para a Europa, a estratégia de agrupar os
habitantes dispersos e isolados de regiões mais afastadas da civilização urbana –
como a Córsega ou a Escócia – em povoações de certa dimensão, onde
ganhassem com o convívio mútuo e pudessem. para além disso, ser politica e
culturalmente enquadrados. Para a Córsega, o jesuíta Silvestro Landino, depois
de constatar que “a gente vive muito desunida pelas partes destes montes da
Córsega e sem outro exercício senão habitar a maior parte no campo na
companhia dos animais e dispersa em pequenas aldeias, de seis ou sete cabanas
que mal têm a forma de casa e longe umas das outras muitas milhas, de modo
que alguns apenas vêm algumas vezes à missa de festa” 289, propõe uma
estratégia de reagrupamento, como a que antes e depois, tem sido utilizada em
relação às populações irredentes da cultura dominante: “”é preciso destruir estes
redutos de cabanas e casotas nas quais a gente vive como desunida ... obrigá-los
pela força a viverem unidos e fazê-los pela força viver unidos numa terra grande
ou numa cidade” (ib., 641).
288
Cf., sobre a “missão”, Pesch, 1992, 66 n. 6; cf., ainda, Prosperi, Tribunali [...], 551 ss..
289
Ciit. por Prosperi, Adriano, Tribunali della coscienza. Inquisitori, confessori, missionari, Torino, Einaudi, 1996,
640.
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A ideia de que o isolamento degrada mantém-se, ainda nos finais do Antigo
Regime. Este tema da desumanização provocada pelo isolamento, é utilizado por
um médico-legista marselhês quando assimila aos desassisados os homens que
habitassem nos vales de difícil acesso, justamente em virtude do isolamento em
que viviam, destacando, ao mesmo tempo, a imprtância da urbanidade como
factor de humanização 290.
É destas profundas considerações de carácter antropológico que surge
uma mutação significativa no imaginário culto sobre os rústicos que, de acordo
com estudos recentes 291, evolui decisivamente a entre o fim da idade média e os
meados do sec. XVI.
Enquanto que, antes, os rústicos eram, apenas, gente ignorante e bruta, o
efeito combinado do bucolismo renascentista e os descobrimentos recupera,
primeiro, uma ideia de ingenuidade e pureza característica do meio camponês;
depois, uma consciência proto-antropológica de alteridade cultural, valorizando
progressivamente os rústicos como portadores de uma outra cultura, ainda que
indesejável e objecto de uma política de reeducação.
Adriano Prosperi, baseado nos escritos de missionologia jesuítica dirigidos
à Córsega, explica muito bem os passos desta evolução. Características das
atitudes tardo-medievais são ainda os ferozes requisitórios de Lutero contra os
camponeses alemães 292. Depois, algumas perspectivas edénicas dos humanistas
sobre a bondade natural dos camponeses, a que se juntarão os primeiros relatos
– também eles idílicos – dos primeiros descobridores, nomeadamente na
América 293. Daqui, já num plano mais reflectido, com evidentes implicações
antropológicas, o tratamento dado à questão pelos teólogos juristas da Escola
Peninsular do Direito natural: antes de todos Francisco Vitória; mas também,
como veremos mais detalhadamente, Luís de Molina. Neles, os nativos aparecem
como os portadores de uma outra cultura, embora no seu espírito não esteja, de
modo nenhum, uma atitude pietista e respeitadora perante ela. Por isso, eles não
falam tanto de educar (docere), como a que se deve fazer com os meninos, mas
de re-educar (dedocere), pressupondo, tanto uma extirpação dos erros, como o
ensino da boa doutrina. O passo seguinte será o da aproximação de selvagens do
exterior e selvagens do interior, tanto definindo positivamente os índios como os
“nossos rústicos de lá” e propondo para eles um tratamento político e humano
semelhante ao que se dava aos camponeses europeus 294, como reconhecendo
nos rústicos os “índios de cá” e copiando cá a estratégia missionária que dava
provas nas Índias Orientais ou Ocidentais 295.
290
François-Emmanuel Fodéré, Les lois éclairés par les sciences physiques ou Traité de médecine légale et
d’Hospital Ppublique de l’Huminaté et de celui dês insensés à Marseille, 1797 (Ano 6º), 63 ss..
291
Prosperi, 1996, 555 ss..
“Vivem como os animais domésticos ou os porcos privados de razão”, diz Lutero dos camponeses da Saxónia
(ct. Prosperi, 1996, 555.
292
293
Basta lembrar, entre nós, a descrição dos nativos brasileiros contida na carta de Pêro Vaz de Caminha.
Outros testemunhos em Pgaden, Anthony, The fall of natural man, Cambridge , Cambridge University Press, 1988; para o
mundo português, Dias, José Sebastião da Silva, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI, Coimbra,
Atlântida Editora, 1973 (2ª ed., Presença, 1982).
294
É a estratégia de Francisco de Vitória, dirigida, antes de tudo, a afastar a doutrina aristotélica dos “servos por
natureza” (v. infra) e a demonstrar que o género humano era indivisível. Cf. Prosperi, 1996, 556.
295
Prosperi, 557 ss..
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111
***
Na literatura jurídica, o mundo dos rústicos surgia, também, como um
universo dotado de uma especificidade tal que tornava impossível a aplicação
estrita do direito comum.
Também aqui, a atitude do jurista erudito para com esse mundo é um misto
de simpatia, mais retórica do que genuina, suscitada pelo estado virginal da
inocência primitiva, de condescendência arrogante relativamente à sua ignorância
e estupidez e, finalmente, de desprezo mal disfarçado pela insignificância
(também económica) das questões jurídicas que, neste mudo, apareciam. O
rústico era, por um lado, a criatura franca, ingénua, incapaz de malícia,
desprovida de capacidade de avaliação exacta das coisas em termos económicos
e, por isso, susceptível de ser enganada. “A mente sincera e aberta dos
camponeses aconselha a presunção de que não actuam com dolo [intenção]”,
escreve Chapinus (De privilegiis..., cit., l. 1, p. 2, c. 4); daí deduzindo que a
intenção de enganar (dolus) não era de presumir nos contratos dos rústicos,
nomedamente, que os seus contratos de censo não encobriam contratos
usurários 296, que eles podiam rescindir a venda feita com lesão (i.e., abaixo de um
preço razoável), que lhes bastava o juramento para fazer a prova de actos para
os quais, de outro, fosse necessário documento escrito 297, que a sua
responsabilidade penal não era plena, pelo menos para certos tipos de crime 298.
Por outro lado, porém, era o ignorante e o grosseiro, incapaz de se exprimir
correctamente e de compreender as subtilezas da vida, nomeadamente da vida
jurídica. Por fim, ele era o pobre cujas causas nunca atingiam uma importância
que justificasse as formalidades solenes de um julgamento 299. Destas
características negativas decorrem uma série de “defeitos dos rústicos”,
enumerados por juristas e moralistas 300.
O que pouco transparece neste discurso erudito sobre o mundo dos
rústicos não é uma abertura para o reconhecimento do carácter alternativo e
diferente do direito tradicional, ou até para a existência de um direito rústico, isto
é, de uma ordem jurídica com características próprias, orgânica, equivalente, no
fundo, à ordem jurídica erudita. Quando referem a especificidade do estatuto
jurídico dos rústicos, os juristas não a fundamentam no princípio de pluralidade
que dominava a teoria medieval do direito - isto é, no princípio da autonomia dos
corpos sociais e do reconhecimento das respectivas atribuições estatutárias ou
296
O censo (consignativo ou reservativo) era uma das formas costumadas de iludir a proibição canónica da
usura.
297
Por exemplo, a prova de pagamento, pois se entendia que o rústico não era tão avisado que se lembrasse de
pedir recibo. No entanto, este regime de prova tinha também que ver com características centrais das culturas.
298
V. R. Choppinus, De privilegiis ..., cit., l. 3, c. 1, 1 ss.; Iac. Menochio, De arbitrariis iudicum quaestionibus et
cassis, Florentiae, 1571, c. 194; Johannis Wilh. Goebel, Tractatus de iure et iudicio rusticorum ..., cit., 196 ss..
299
Os iudicia rusticorum eram aproximados pela doutrina dos iudicia in rebus exiguis, ou seja, das questões
sobre matérias insignificantes, em que muitas das formalidades eram dispensadas. V., sobre estes iudicia, Andreas
Tiraquellus, De iudiciis in rebus exiguis ferendo tractatus, em Tractati varii, Lugduni, 1578, 449 ss., onde se referem as suas
especialidades; v. também R. Maranta, De ordine iudiciorum..., Coloniae, 1650, p. 4, d.9.
300
Para os primeiros: Castillo de Bobadilla, Política para corrigedores [...] . cit., II, p. 33, n. 62. Para os segundos,
sobre os “pecados dos rústicos”, Henricus de Susa, Summa peccatorum, 1537 (ed. Aalen 1967), fol. 276, n. 42.
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112
jurisdicionais - mas antes numa atitude paternalista e condescendente, própria de
quem está perante uma realidade jurídica inferior, precária, que apenas prevalece
graças à paciência do direito oficial. A realidade jurídica do mundo rústico é,
assim, deste modo, banalizada e expropriada da sua dignidade de prática jurídica
autónoma.
É por isso que o discurso erudito raramente assume um tom violento ou
polémico em relação ao mundo do direito tradicional. Expressões que
encontramos nas fontes a propósito dos contactos entre as magistraturas eruditas
e o mundo dos iletrados, não parecem, no contexto do estilo enfático e um tanto
exagerado da época, suficientes para que possa falar-se de uma polémica
declarada e encarniçada entre os dois mundos jurídicos. Pelo contrário, se
violência havia, ela manifestava-se mais sob a forma clemente de paternalismo,
de condescendência e de compaixão, ou até em banalidades apologéticas sobre
a simplicidade e a pureza da vida dos campos. Paternalismo, condescendência e
banalidades que, no entanto, eram inexoravelmente eficazes como meios de
depreciação da prática jurídica dos rústicos.
O estatuto dos rústicos, com tudo o que contém de discrlminatório, é,
aparentemente, um estatuto protector cuja nota saliente é o reconhecimento do
carácter justificativo da ignorância e da rusticidade. Isto traduzia-se num regime
mais favorável, validando actos que de outro modo seriam nulos, admitindo a
restituição em casos em que geralmente o não seria, despenalizando factos que
seriam puníveis noutras circunstâncias. Qual o tipo de violência contida neste
estatuto protector -violência a que se contrapunha por parte dos rústicos, como
veremos, uma resistência mais ou menos passiva - será um tema a tratar num
dos parágrafos seguintes.
***
A generalidade dos privilégios dos rústicos funda-se, como já vimos, na
presunção da sua ignorância e do seu desconhecimento das subtilezas do direito
oficial (“in rustico est praesumptio iuris ignorantia”, Alexandre de Imola). Em todo
o caso, o que não se presumia era, como vimos a propósito do tratamento da
ignorância por S. Tomás, era a ignorância do direito natural ou das gentes, pelo
menos quanto aos seus dogmas “primários” (nos “secundários”, pelo contrário, a
ignorância era presumida e juridicamente excusatória, pois pois “frequentemente,
mesmo os mais sabedores se alucinam” 301 Na verdade, “seria cruel castigar pela
transgressão das leis aqueles as não entendem, demais não lhes tendo elas sido
comunicadas ou feitas conhecer, antes tendo sido frequentemente sido
obscurecidas pelas interpretações enganadoras dos eruditos” 302. Ignorância do
direito material e, por maioria de razão, do direito processual.
Em face desta escusa dos rústicos quanto ao conhecimento do direito
oficial, os poderes não deixaram de reagir. Se, na conquista espanhola da
América, o primeiro acto dos magistrados régios era o de declarar solenemente
aos indígenas a sua qualidade de vassalos do rei de Espanha e as obrigações
301
J. W. Goebel, Tractatus de iure …, cit., 193/4.
302
J. W. Goebel, Tractatus de iure …, cit., 195.
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que daqui decorriam 303, na própria Europa era recomendável que os rústicos
fossem constante objecto de declarações do direito real. O bispo de Puebla
(México) Juan de Palafox – nos seus Bocados espirituales, políticos, místicos y
morales, 1647, um “catecismo y axiomas doctrinales para labradores y gente
sencilla” – inclui versos destinados a promover a aprendizagem do direito do rei 304.
No domínio do direito material, estas particularidades diziam, sobretudo,
respeito ao direito penal. Não por acaso. No direito civil, de facto, não se metia o
direito ou a administração judiciária do reino, tudo ficando entregue à autoregulamentação destas comunidades camponesas. Como, mais tarde, acontecerá
com os indígenas das colónias. Neste domínio das relações privadas, os juristas
limitam-se a dizer que o direito erudito não lhes pode ser aplicado, em tudo
quanto se afaste de uma comum razão natural 305. O que não raro aconteceria.
Assim – para além dos casos já antes referidos da não presunção de usura nos
contratos censíticos e da extensão do regime da lesão no caso de venda por
baixo preço -, os contratos dos rústicos proibidos pelo direito civil gozavam de um
especial regime de validação (ibid., n. 53); a renúncia que os rústicos fizessem
dos seus direitos não tinha validade (ibid., n. 76); não se presumia qualquer
obrigação de direito subjacente às entregas ou pagamentos periódicos por eles
feitos (n. 68) 306. Em virtude das obrigações e trabalhos inerentes às suas
ocupações agrícolas, os rústicos estavam ainda isentos da obrigação de ser
tutores (nomeadamente, de órfãos), assim como não incorriam em mora durante
a época das colheitas, nem lhes podiam ser penhorados os seus instrumentos e
alfaias 307. O direito penal, porém, era um atributo da majestade (uma regalia
maiora), do qual o rei não podia prescindir. Mas tão pouco podia aplicá-lo
cegamente a comunidades que se sabia de antemão serem bastante insensíveis
em relação a muitos dos tipos penais do direito oficial: entre eles, segundo as
fontes da época, a blasfémia, a heresia, o perjúrio, a lesa-majestade, a destruição
dos éditos ou banhos dos senhores, etc. 308. A lista é significativa. As comunidades
camponesas mostravam-se pouco domésticas em relação à religião e à
303
Tratave-se do célebre “requirimiento”, excogitado pelo jurista Palácios Rubios por volta de 1510 e utilizado na
conquista do México e de outras zonas do continente americano. Cf texto (versão inglesa) em Braden, Charles S. Religious
Aspects of the Conquest of Mexico, Duke University Press, Durham N. Carolina, 1930, 127. V. Biermann, Benno: "Das
Requirimiento in der spanischen Conquista", in Neue Zeitschrift für Missionswissenschaft 6 (1950), 94-114; e, por ultimo,
Patrícia Seed, Cerimônias de posse na conquista européia do novo mundo (1492-1640), S. Paulo, UNESP, 1999. Na
verdade, o “requirimiento”, lido num latim ou castelhano incompreensível para os ameríndios, destinava-se mais a fornecer
uma base para a construção jurídica da ocupação valida perante o perante o direito comum europeu (consentimento
indígena na ocupação e domínio) do que a difundir este direito entre as populações nativas.
304
“Respeta mucho a los reyes / y obedece bien sus leyes.
La República es perdida / si anda sin esta medida.
En faltándole esta concordia / todo se abrasa en discordia.
Si el rey fuese despreciado / el reyno ya está acabado.
Si el Rey no es obedecido / el Reyno ya está perdido.
Sin respeto al magistrado / el pueblo es desbaratado.”
Cit. por Fernando Bouza, Comucación ..., cit., 35.
305
Cf. Iac. Menochio, De arbitrarris iudicum quaestionibus [...] , cit., c. 194, n. 45 ss..
306
Embora a doutrina se dividisse quanto a isto; o ponto podia ser decisivo em muitos contratos agrários,
prejudicando de forma irreparável os direitos dos senhores.
307
Castillo de bObadilla, Politica [...] , cit., II, p. 35, n. 61, onde se indicam ainda outros privilégios menos
interessantes, atnto de direito comum como de direito do reino. Em Portugal, para os privilégios dos camponeses, v. Ord.
fil., II, 33, §§ 15 e 22/33; tit. 58; tit. 59, § 4 e os comentários de Manuel Álvares Pegas, Commentaria ad Ordinationes [...], a
estes lugares.
308
J. W. Goebel, Tractatus de iure …, cit., 192 s..
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imposição dos poderes do centro, para além de adoptarem em relação a eles uma
conhecida estratégia de defesa – a mentira, mesmo sob juramento.
Era, no entanto, no domínio do direito formulário e processual que a
“ignorância” dos rústicos adquiria uma maior relevância. Com efeito, o estatuto
dos rústicos traduzia a sua incapacidade para compreender as formalidades do
direito escrito, capacidade que devia à sobrevivência do direito tradicional, bem
como à persistência de um formalismo atávico, mas diferente, das comunidades
camponesas. Em geral, pode dizer-se que todas as formalidades escritas eram
estranhas à cultura jurídica tradicional. É por isso que o estatuto dos rústicos
contém uma isenção quase geral da forma escrita, mesmo quando desta se
apresentava, para o direito oficial, como decisiva – v.g., nos casos do libellus,
instrumento que dava origem acção judiciária, e da sentença. "O libelo (petição
inicial) concebido de forma inepta por homens rústicos" não deve ser recusado,
mas recebido "omitidas as subtilezas jurídicas" 309; a doutrina comum era ainda
menos exigente, pois dispensava a própria petição inicial escrita 310. Também uma
sentença sobre causas de rústicos podia ser válida mesmo sem citação formal ou
preterida a forma escrita 311. Em Espanha, nas causas de valor inferior a 100
maravedis (= reais portugueses), o processo era sumário, sem alegações escritas
dos advogados e apenas com o simples registo final da decisão 312. O processo
rústico - como, também, o processo sobre causas exíguas, que muito se
aproximava dele – caracterizava-se, por isso, pela sua forma sumária e
expedita 313. Castillo de Bobadilla descreve-o assim: “En las causas entre rústicos,
que suceden en sua aldeãs, no se debe atender mucho a la observación y orden
de los juycios, sino determinalas comummente, con la comparência de las partes
ante el juez, ó por lo que sus libellos y peticiones, si les dieren, se puede colegir”
314
. Também a formação do objecto do processo se fazia ao longo da acção, sem
nunca se fixar definitivamente - como acontece no direito erudito, com a litis
contestatio - e mantendo continuamente uma relação de abertura em relação ao
objecto vivido do litígio; por isto, o rústico estava autorizado a modificar o pedido
mesmo depois da contestação da lide pela parte contrária. Por fim, no domínio da
prova, o carácter hermético da forma probandi do direito letrado é levado em
conta para desculpar ou rústico da responsabilidade penal que decorreria das
suas eventuais contradições (ou mentiras) durante a prestação do testemunho 315.
O desconhecimento direito oficial justifica ainda a revogação de algumas
das regras do direito formulário, nomeadamente das que diziam respeito à
confecção do testamento e dos contratos. No entanto, a maior parte dos autores
309
R. Chopinus, De privilegiis rusticorum [...], cit., liv. de 3, c. 1, p. 140. Ord. fil., III, 66,7.
310
Alexandre de Imola, Consilia [...], cit., liv. 2, cons. 61, n. 11.
311
Castillo de Bobadilla, Politica para corrigedores [...], II, p. 246.
312
Siete partidas, III, 41,22.
“Ius reddendi est summarium et celerrime” (R. Chopinus. De privilegiis rusticorum …, cit., liv. 3, p. 2, c. 1).
Sobre o processo sumário, para além da literatura citada por Manual Álvares Pegas, Commentaria ..., cit. tom. 5, p. 14, n.
4, R. Maranta, De ordine iudiciorum..., cit. Colónia 1650, p. 4, d. 9.
313
314
Castillo de Bobadilla, Politica …., liv. 5, c. 9, n.2.
315
Iac. Menochio, De arbitrariis ..., cit., c. 194, n.15. Lembremos que a mentira é uma das formas clássicas de
resistênci das comunidades subalternas.
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reduz amplitude deste direito especial, não o admitindo contra disposições
imperativas do direito letrado relativas à forma dos actos 316.
Mais interessantes ainda são regras formuladas pela doutrina como
modelo de decisão nos iudicia rusticorum, sobretudo na medida em que elas se
aproximam dos modelos de composição dos litígios descritos na literatura
antropológica anteriormente citada.
Na verdade, os letrados dizem que, nas causas dos rústicos, se deveria
preferira uma decisão baseada no sentido imanente da justiça (ex aequo et bono)
a uma outra fundada na aplicação estrita do direito (ex apicibus iuris). Mas
acrescentavam mais: em vez de decidir as questões com o sacrifício irreparável e
definitivo de uma das partes, era preferível dividi-las ao meio, salomonicamente,
sacrificando ao mesmo tempo as duas partes, mas atingindo uma solução
consensual em que todos obtivessem algo, de modo a construir um equilíbrio
estável para futuro. Neste sentido, Baldo diz-nos que os rústicos se põem de
acordo dividindo as questões ao meio (“rustici dividunt per medium quaestiones”
[os rústicos dividem as questões a meio]) 317. Choppinus afirma que, nestas
causas, a equidade do juiz deve constituir uma compensação da rusticidade das
partes 318. E Tiraquellus defende que, nas questões módicas, o juiz pode impor
sacrifícios às duas partes simultaneamente, em nome da paz e da concórdia, em
vista das quais foram introduzidas as formas de arbitragem (“ut possit in modico
laedere in odium et execrationem litium, quia magis est commodum pacis et
concordiae, quam laesio eiusmodi; itaque pacis et concordiae gratia introducta
sunt arbitramenta”) 319.
Para a salvaguarda de outras particularidades de estudo jurídico tradicional
bastava o princípio, geralmente aceite pela doutrina do direito comum erudito,
segundo qual os costumes particulares do rústicos de revogavam o direito
comum 320 321.
No entanto, nem tudo era favorável aos rústicos, mesmo no plano deste
direito especial. Por um lado, havia circunstâncias nas quais os privilegia
rusticorum não tinham eficácia 322; por outro lado, o estatuto dos rústicos
compreendia também aspectos negativos, como, por exemplo, o de nunca
poderem pertencer à nobreza, ainda que fossem ricos e de bem; ainda, a ofensa
que lhes fosse feita nunca era considerada como uma injúria; os seus privilégios
não podiam ser opostos aos dos senhorios directos, nos casos de enfiteuse, o
mais importante dos contratos agrários 323
***
316
Ibid., n. 56.
317
Baldus, Opera …, cit. (in D. De negotiis gestis, l. Nessonis, n. 6), vol. I, p. 120.
318
R, Choppinus, De privilegiis rusticorum [...], cit, liv. 1, p. 2, c. 1, 32.
319
Andreas Tiraquellus, De iudicio in rebus exiguis [...], cit, p. 456, n. 58.
Neste sentido, Baldo (Commentaria in Codicem, De pactis, 1, Si certis annis (C., 2,3,28), n. 18: “Praeterea est
rusticorum consuetudinem servanda”; R. Choppinus (De privilegiis [...], cit., liv. 3, p. 3, c. 1, p. 158) defendia que a opinião
dos rústicos se impunha ao direito do reino apenas quando este expressamente o permitisse.
320
321
Sobre os iudicia rusticorum, embora de outro ponto de vista, E. M. Meijers, “Judicia rusticorum”, Thémis, 77
(1916) 187-226 ( = E. M. Meijers, Études d’histoire du droit [éd. R. Feenstra et H. F. D. Fischer], IV, Leyde 1966, 3-26).
322
Cf. Iac. Menocchio, De arbiitrariis iudicum quaestionibus [...], c. 194, n. 2/32.
323
V. o já citado Menochio e, ainda, R. Choppinus, De privilegiis rusticorum [...] , cit, l. 1, p. 2, c. 5.
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116
No caso concreto de Portugal, encontram-se sintomas da alteridade do
direito das comunidades tradicionais mesmo na época moderna, se bem que o
estado actual da investigação continue a não permitir ainda um quadro exacto dos
padrões de julgamento então vigentes.
O sistema das fontes do direito, a partir do século XV, estava fixado
imperativamente por lei (Ord. At., II, 9; Ord. Man., II, 5; Ord. Fil., III, 64). A
primazia cabia ao direito nacional, quer legislativo quer consuetudinário, devendo
recorrer-se, na falta dele, ao direito comum, primeiro aos textos dos direitos
romano e canónico, e depois às opiniões de Acúrsio e de Bártolo ou à opinio
communis doctorum 324. Esta hierarquização das fontes estava, na prática,
evidentemente sujeita a distorções. A mais conhecida é a tendência dos juristas
eruditos para aplicar o direito comum como direito principal (isto é, mesmo
quando havia normas aplicáveis do direito nacional). A esta inclinação dos juristas
eruditos dos tribunais centrais pelo direito comum, correspondia uma preferência
dos juízes dos tribunais locais pela aplicação mais intensa do direito local.
É preciso, no entanto, esclarecer que essa preferência pelo direito local
tinha uma aceitável base doutrinal e legal.
No plano doutrinal, apoiava-se no «particularismo» da teoria medieval das
fontes do direito, segundo a qual o direito particular (ius proprium) se impunha ao
direito comum (ius commune) 325. E, de facto, nos domínios do direito privado e
processual, como a maior parte das normas do direito erudito eram normas do ius
commune, impunham-se os costumes nacionais (e até locais).
No plano legal, o texto das Ordenações atribuíam uma nítida supremacia
ao direito local sobre o direito comum. Com efeito, o direito local - escrito ou
costumeiro - prevalecia, enquanto direito nacional, sobre o direito comum.
Menos claras eram as relações entre o direito local e o direito da coroa.
Observemos, primeiro, o direito local escrito (estatutos, posturas). De acordo com
as Ordenações, o único sinal de supremacia do direito régio sobre o direito local
era a disposição segundo a qual a elaboração das posturas devia respeitar a
forma da lei. No entanto, relativamente ao conteúdo, apenas se exigia que elas
fossem compatíveis com o interesse dos povos e o bem comum, condições essas
que eram verificadas no momento da confirmação régia dos estatutos, obrigatória
(pelo menos tacitamente) por lei (Ord. Fil., I, 66, 28). Por outro lado, os povos
tinham obtido, ainda nas cortes do século XV, a garantia de que as posturas
seriam respeitadas pelos corregedores e por outros poderosos.
Maiores discrepâncias surgiam, porém, quanto à posição da doutrina sobre
as relações e a hierarquia entre o costume (nomeadamente o costume local) e a
lei. Se por um lado era aceite que o costume local se impunha ao direito
comum 326, em contrapartida, a opinião dominante considerava que o costume não
324
Sobre o sistema das fontes de direito em Portugal nesta época, cf. Silva (1981: 337s) e Braga da Cruz (1975).
325
Cf. sobre este ponto, Hespanha, 1986, 92 ss..
“Consuetudo in loco dicitur ius commune” (o costume do lugar é considerado como direito comum) (J.
Cabedo, Practicarum observationum [...] supremi senatus regni Lusitaniae, ed. cons. Antuerpiae 1734, pars I, d. 211, n. 5);
Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria ad Ordinationes[...], Ulyssipone 1732, (ad Ord., III, 64 pr.), n. 35 e literatura aí
citada; no entanto, como já vimos, o costume não se impõe ao direito natural, pois, neste caso, o seu conteúdo não seria
racional (v. supra, o que se disse sobre a desculpabilidade e relevo da ignorância) (cf. António Cardoso do Amaral, Liber
utilissimus [...], Conimbricae 1740, v. «Consuetudo., n. 3).
326
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117
podia prevalecer contra a lei nacional (consuetudo habet vim legis, ubi lex non
disponat) 327.
Ou seja, relativamente às normas do direito escrito do reino, a doutrina
oscilava. Na prática, não é raro vê-la recusar como obsoletas as normas legais,
considerando-as como revogadas por costumes 328. Embora, na teoria, isto não
estivesse de acordo com as normas deontológicas dos oficiais, tais como eram
formuladas pela doutrina. Manuel Álvares Pegas critica este à-vontade dos
tribunais quanto à derrogação da lei, observando que os oficiais régios tinham
jurado obedecer às leis e que esta liberdade que se tomavam conduzia a uma
grande incerteza do direito 329. Seja como for, mesmo que não se aceitasse o
princípio da revogação da lei pelo costume, o certo era que o mesmo resultado
prático podia ser obtido em sede de interpretação, pois a lei devia ser interpretada
de acordo com o uso “consuetudo est óptima legis et statuta interpretes”, o
costume é o melhor intérprete da lei e dos estatutos, M. Phaebus, Decisiones [...],
d. 10, n. 4).
O mesmo se diga quanto aos requisitos de validade do costume. Não se
pode dizer que a doutrina letrada dê abertamente força ao costume, pois, pelo
menos, impõe-lhe apertados requisitos de validade. Na verdade, ela é muito
exigente, quer em relação a questões de fundo (duração do costume, opinio iuris,
scientia et patientia regis, conformidade com o bem comum), quer em relação à
prova (testemunho de visu, duas testemunhas para cada acto, testemunho de um
certo número de actos) 330. É, contudo, provável que, nos tribunais locais, a maior
parte desses requisitos fosse dispensada perante um conhecimento de ofício do
costume local pelo tribunal (ius novit curia) 331.
Isto explica-se tanto pela força das próprias situações sociológicas
estabelecidas (conquanto ilegais), como pela presença no corpus doutrinal do
direito comum (sobretudo no direito canónico) de opiniões favoráveis à
supremacia do costume sobre o direito escrito, opiniões essas utilizadas como
tópicos para justificar soluções em que a força dos factos impunha a derrogação
da lei pelo costume.
327
“Consuetudo est servanda quando non datur lex in eo casu aliquid disponens» (o costume é de
observar quando não exista lei que disponha sobre aquele caso) B. Pereira, Promptuarium juridicum [...], Ulyssipone 1664,
n. 322); o costume não valeria contra as disposições legais sobre as formalidades do testamento (J. Cabedo, Practicarum
observationum [...], , p. I, n. 3 (cf. Ord. fil., 4, 76;); o costume vale contra o direito comum, mas somente no caso em que
não haja direito real (M. Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil., III, 64, pr., n. 35); M. A. Pegas,
Commentaria ad Ordinationes [...] , tom. 5 (ad Ord. fil., I, 65, 13), gl. 15, n. 2. Há, no entanto, afirmações em sentido
contrário: Thom. Vallasco, Allegationes uper varias materias, Conimbricae 1731, all. 56, n. 3 (“consuetudo param vim habet
vim lege .. . & facit licitum quod alias est illicitum”); J. Cabedo, Practicarum observaionum[...], p. 1, d. 110, n. 2 (“consuetudo
vim legis obtinet”); M. Gonçalves da Silva, Commentaria [...], loc. cit., n. 36 (“lex et consuetudo aequalis efficiunt»); Melchior
Phaebus, Decisiones [...], d. 110, n. 14.; e, sobretudo, Luís Correia, citado por Nuno Espinosa Gomes da Silva, O direito
subsidiário num comentário às Ordenações manuelinas atribuído a Luis Correia, Lisboa 1973, 33 ss., que toma sobre este
ponto uma posição muito nítida: “videtur tamen quod prius erat recurrendum ad consuetudinem quam ad ius scriptum, cum
consuetudo iuri derrogat” ... “succedente consuetudine, quae legi derrogat” (n. 9 e 10, trabscrito por N. E. Gomes da Silva).
328
V. g., a lei (Ord. fil., I 97) que proíbe a acumulação dos ofícios; ou a que fixa os emolumentos e outras rendas
dos oficiais de justiça (cf. M. Phaebus, Decisiones ..., cit., d. 110, n. 3). A doutrina considera ainda o costume local como
decisivo no regime das formalidades dos contratos, dos testamentos, dos inventários, da ordem e sucessão dos morgados,
das causas de revogação da enfiteuse, etc.
329
Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses ..., Conimbricae, 1737, t. I, c. 1, n. 18 ss.
330
Cf. Álvaro Valasco, Decisionum, consultationum, ac rerum judicatorum, Conimbricae, 1730, c. 162, n. 9 ss..
331
Sobre o tema, com mais detalhe, Hespanha, António, As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político.
Portugal – sec. XVII, Coimbra, Almedina, 1994, 355 ss..
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118
Em resumo, tudo somado, o balanço era, na prática, claramente favorável ao
costume.
***
De que modo jogavam estes princípios com as atribuições e obrigações
dos oficiais de justiça ? Ou seja, de que modo conflituava esta prevalência dos
usos com a deontologia dos oficiais que os obrigava a aplicar o direito do rei, a tal
questão levantada por Manuel Álvares Pegas ?
No desempenho das suas funções, os corregedores, como inspectores das
justiças locais - actividade que incluía o dever de instruir os juízes na arte de
julgar -, deviam promover a aplicação do direito erudito e da coroa nos tribunais
locais. No entanto, essa lenta progressão do direito letrado enfrentava um
obstáculo difícil de ultrapassar: a insuficiente cultura jurídica ou literária (por
vezes, o analfabetismo) dos juízes.
No plano da teoria, as Ordenações obrigavam todos os juízes (incluindo os
juízes ordinários, eleitos e não letrados) a observar as «ordenações e leis do reino
e as posturas e ordenações do concelho» (Ord. A!., I, 26, 20; Ord. Fil., I, 5, 6).
Nos finais do sec. XV, decide-se em cortes (cortes de 1498, cap. 33) que os
juízes que julgassem contra as Ordenações, as leis de cortes ou os privilégios
pagassem uma multa de três vezes as custas do processo (“tresdobro”). O direito
comum e a teologia moral exigem dos juízes o conhecimento da lei, da opinião
comum, do costume e do estilo dos tribunais reais 332. Caso o juiz não respeite
estas normas pode ser pronunciado por imperitia e - para além de incorrer em
pecado – pronunciado por crime. pronunciado criminalmente, pois, de acordo com
o direito comum, o julgamento contra a lei era crime (“litem suam facere”),
importando a pena de infâmia e a obrigação de indemnizar as partes.
Mas o certo é que, nem a doutrina, nem a lei (nomeadamente, as
Ordenações), exigiam que os juízes tivessem conhecimento direito, ou mesmo a
capacidade de ler e escrever 333. Os vizinhos dos concelhos, eleitores das justiças,
deviam escolher pessoas dignas e aptas; mas o analfabetismo não era
considerado como um impedimento. As próprias Ordenações previam, de resto,
esta hipótese (Ord. fil., I, 79, 29), autorizando os juízes a nomearem assessores
letrados 334 335. Durante os séculos XVI e XVII, uma grande parte dos juízes devia
ser iletrada. Comentando as Ordenações, um jurista da época fala da rusticitas e
da ignorantia dos juízes ordinários e do seu analfabetismo 336. Em 13 de Dezembro
de 1642, uma lei proíbe o acesso de analfabetos às magistraturas ordinárias, mas
332
Nicolau Coelho Landim, Nova et scientifica tractatio ..., I. De syndicatu ..., Ulysipone, 1677, tr. I, c. 13, ns. 46-
48.
333
Apesar das constantes queixas feitas em cortes a partir do século XV, contra o analfabetismo juízes (Cortes
de 1434, c. 56; 1481, c. 172; exigindo estudos universitários de direito para os corregedores, Cortes de 1427, c. 1; Cortèes
de 1490, c. 27). Para Espanha, v. Bobadilla, Politica para corregidores. . ., cit., I, p. 73 onde o autor se refere à legislação
sobre os estudos dos corregedores.
334
Sobre os assessores, v., adiante.
335
Já os notários deviam ser aprovados num exame de aptidão que documentasse que sabiam ler e escrever
bem.
336
Manuel Álvares Pegas, Commentaria ad Ordinationes, Ulyssipone, 1670-1729, 5 (ad I 65) gI. l, n.28; gI. 4 n. 5;
gl.5, n.4. V. também t. XII, 230 ss..
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ulteriores testemunhos (cf. alv. 28.1.1785) fazem duvidar da eficácia de tal medida
que, aliás, continuava a não exigir conhecimentos especializados de direito 337.
Porém, mesmo que soubessem escrever, o juízes ordinários eram, na sua
esmagadora maioria, pessoas não iniciadas no direito erudito, já que as suas
fracas rendas não lhes permitiriam nomear assessores 338. Esta ignorância
fornece, de resto, ocasião para elogio os de circunstância da literatura erudita que
- recorrendo antigos tópicos da cultura cristã, combinados com a hostilidade da
literatura do Renascimento sobre os juristas - desenha uma imagem idílica destes
juízes iletrados 339.
E, de facto, há disposições legais e doutrinais isentando os juízes
ordinários de responsabilidade por julgamentos errados, salvo no caso de dolo
(Ord. man, I, 44, 71; Ord. fil., I, 65, 9) 340.
Daí que, quer devido à incapacidade dos juízes para compreender e aplicar
o direito erudito, quer em virtude da teoria dominante das fontes do direito, os
padrões de julgamento dos tribunais locais diferiam muito dos que vigoravam nos
tribunais da corte ou das grandes cidades, onde tinham assento os juízes letrados
e onde o direito comum e o direito da coroa tinham, desde o século XIV, uma
acentuada supremacia.
Na prática, o mais corrente deve ter sido o recurso ao direito local ou ao
sentido inato de justiça (isto é, aos julgamentos ex aequo et bono, o apelo directo
aos sentimentos sociais de equidade), tanto mais que se enetendia que a referida
norma responsabilizando os juízes por julgamento contra direito não se aplicava
aos julgadores não letrados (idiotae) das aldeias ou das vilas que não fossem
“lugares principais” 341
Logo nos foros medievais se encontra esta referência para a equidade
(“«Hos alcaides iugen o que iaz na carta e aquello que non az na carta iugen
dereyto a seu saber”). Mais tarde, o teatro de Gil Vicente revela esse saber
prático dos juízes populares, contrastando-o com o saber, erudito mas mal-são,
dos juízes letrados (como na “Cena do corregedor”, do Auto da Barca do Inferno).
Mas os ditos e feitos dos juízes das pequenas terras, por vezes pitorescos de
acordo com os critérios de hoje, são ainda no nosso tempo recordados. Um
exemplo é o do “juiz de Barrelas”, o “das botas amarelas”, celebrizado por
Aquilino Ribeiro (na sua Geografia sentimental) com base em tradição anterior.
337
V., para algum exemplo concreto do domínio das magistraturas das pequenas terras por juízes iletrados,
Hespanha, 1994, 452.
338
Os juízes ordinários não tinham salário. A “honra” dos seus cargos era avaliada, apenas para fins fiscais, em
quantias ínfimas (cf. A. M. Hespanha, [1994], As vésperas ..., cit., 170 ss., com indicações de valores, para o sec. XVII).
339
“Considerandum est Moysis Socerum inter alias virtutes quibus judicis instructos esse vult, non numerasse
nimium interpretationes iuris acumen neque enim dicit, sint judices subtibles, sicuti, veteratores, et callidi; neque enim tunc
tantas honor malitiae habeatur, ut iis jurisconsultissimi existimaretur, qui nimio acumine subnixi varie leges interpretarentur,
& simpliciter iuris eluderent; nihil magis sapientia repugnat, quam nimia subtilitas» [Deve ter-se em conta que entre outras
virtudes nas quais Moysis Socerum quis que os juízes fossem instruídos, não enumerou a excelência da interpretação do
direito, nem disse que os juízes deveriam ser subtis ou matreiros ou astuciosos, de modo a que fossem considerados como
óptimos jurisconsultos aqueles que com apoiados numa altíssima sofisticação interpretam as leis de forma variável ou
simplesmente iludem o direito; nada aborrece mais a sabedoria do que a excessiva subtileza] (Jerónimo Osório, De regia
institutione, lib. 7, p. 1, e. 5).
340
Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria ..., cit., t. 5, ad I, 65, 9, gl. 11; Jorge Cabedo, Practicarum
observationum..., cit., p. I, d. 39, n. 145; Nicolau Coelho Landim, Nova et scientifica tractatio ..., I. De syndicatu ...,
Ulysipone, 1677, tr. I, c. 12 ss..
341
Nicolau Coelho Landim, Nova et scientifica tractatio ..., I. De syndicatu ..., Ulysipone, 1677, tr. I, c. 46-47.
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120
Tratava-se de um juiz pedâneo de uma aldeia do Alto Paiva que se tomou famoso
pelas suas sentenças de equidade e, ao mesmo tempo, pela consciência da sua
dignidade de juiz local 342.
***
É isto que explica a hierarquização das qualidades dos juízes, tal como
resulta da literatura sobre a sua deontologia.
Entre as principais qualidades exigidas ao juiz, contavam-se, a bondade, a
justa consciência, a prudência e a diligência, ao passo que a eloquência e a
perícia técnica surgiam apenas como qualidades secundárias e moderadamente
requeridas (scientia conveniens et non eminens). Fundadas, decerto, neste dito
do Glosa ordinária, as Siete Partidas admitem também que um juiz não saiba ler
nem escrever, desde que recorra a um “assessor” 343.
Indispensável ao juiz era a capacidade para encontrar a solução adequada
na falta de norma expressa, bem como um conhecimento, normal para os
habitantes, do costume local. Quanto aos direitos comum e régio, o seu
conhecimento não seria fundamental de acordo com o que já se conhece, no
plano da teoria dominante das fontes, sobre as relações entre o direito erudito ou
régio e os direitos locais. Como já se viu, os forais portugueses medievais,
contentam-se com que julguem “direito a seu saber” 344. O Ordenamiento de Alcalá
(3, 1, 41) requer-lhes apenas ” sabiduria para judgar los pleytos derechamente por
su saber, è por su seso”. E, já no sec. XVII, Castillo de Bobadilla 345 descreve do
seguinte modo a sua prática de julgar: «Los jueces inferiores, muchos con poca
christandad, y los más por ignorancia (porque aún no saben gramatica), dexan de
juzgar por las leyes, y juzgan, las más veces por su parecer y alvedrio; y otras
veces, so color y pretexto de estilo y costumbre, como advierte Simancas; y
quando estos tales juzgan, parece más el tiempo y era de Lain Calvo y de Nuño
Rasura, quando se juzgaba a bien visto por uso de Villa y Fuero (aunque con más
verdad, razón y sana intención que al presente)”. Neste texto, a descrição
combina-se com a intenção. Se esta é já a de menoscabo das justiças rústicas, a
descrição coincide bem com a das fontes anteriores.
A mais destes conhecimentos comuns sobre a justiça e sobre o direito
local, a peritia - ao contrário da prudentia ou da conscientia - era uma qualidade
pessoal e podia, portanto, ser suprida com o recurso à un assessor letrado. Com
342
A sentença que ficou na tradição ilustra bem algumas das características do direito tradicional e das relações
por este mantidas com o direito oficial. Tinha sido cometido um homicídio. O juiz, ocasionalmente, tinha presenciado o
crime, não tendo podido intervir. Com base em provas falsas esmagadoras, fora acusada certa pessoa que, todavia, não
era o verdadeiro criminoso, O juiz, impedido pelas regras do direito oficial - nomeadamente, pelo formalismo do processo
escrito - de usar o seu conhecimento privado e, portanto, obrigado a proferir uma condenação, dita a seguinte sentença: “Vi
e não vi; sei e não sei; corra a água ao cimo; deite-se fogo à queimada; dê-se laço em nó que não corra ... Por tudo isto em
face da plena prova do processo constante, condeno o réu na pena de morte, mas dou-lhe cem anos de espera para se
arrepender dos seus pecados. Cumpra-se” (Gama, 1940, 101). A contradição entre o “caso vivido” e o “caso estilizado”,
entre a verdade material e a verdade formal, são expressos pelos paradoxos iniciais. A “manha” da sentença, pelo seu
lado, exprime a vigência subordinada, mas efectiva, do direito tradicional (condizente com os sentimentos jurídicos da
comunidade, encarnados no juiz), sob a égide formal do direito oficial.
343
Também nos estatutos municipais portugueses medievais se previa o recurso a assessores, desta vez
conhecedores do direito local (A. HERCULANO, História de Portugal, 9ª ed., VII, 300 ss.).
344
Portugalliae Monumenta Historica, Leges et consuetudines, II, 10.
345
Politica ..., cit, II, 10, 18.
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121
efeito, a figura do assessor - especialista de direito ao qual juiz podia recorrer - é
conhecida do direito comum e corresponde uma prática muito antiga 346.
A literatura quinhentista e seiscentista não nos dá dos juízes ordinários
uma imagem muito favorável. Pode, é certo, dizer-se que, de um modo geral, ela
não nos dá uma visão muito favorável de qualquer das profissões jurídicas: aos
letrados, censura-lhes o pedantismo e o sacrifício da justiça material à
observância de praxes e fórmulas, aos escrivães censura-lhes o desrespeito pela
vontade das partes (o “ouvir uma coisa e escrever outra”) e a corrupção, aos
juízes censura-lhes a ignorância e a corrupção 347. A mais célebre figuração
literária de um juiz ordinário é a do “Juiz da Beira”, de Gil Vicente (1465-1537):
lavrador iletrado e algo bronco, mas abastado, eleito juiz pela influência da
mulher, Pero Marques julga segundo uma justiça de “cadi”, fazendo pouco caso
das Ordenações.
Uma imagem semelhante nos é dada pelas referências feitas aos juízes na
legislação do século XVII que cria os lugares de juízes de fora: dominados pelos
poderosos locais e protegendo sistematicamente os seus interesses, julgando
segundo a paixão e o ódio, preterindo a justiça (entenda-se o direito régio),
analfabetos e iletrados, totalmente dominados pelos escrivães e advogados 348.
Mas tudo isto deve ser lido na perspectiva de uma estratégia de
desvalorização do mundo rústico pela cultura (também pela cultura jurídica)
jurídica letrada e oficial.
***
Disto resulta um quadro bastante especifico de fontes do direito, quando se
trata do mundo local, ou “rústico”:
a) costumes locais, reduzidos ou não a escrito, cuja existência e eficácia é
atestada, ainda no século XVII, pelas próprias Ordenações - que encarregam os
vereadores da sua publicação, correcção e redução a escrito (Ord. At., I, 27, 7/8;
Ord. Man., I, 46, 7/8; Ord. Fil., I, 66, 28);
b) “posturas”, tomadas em resultado de deliberação do concelho,
normalmente sobre matérias de polícia; o sentido da palavra é, no entanto, mais
geral e, quer a lei, quer a doutrina, apenas põem uma restrição ao objecto das
posturas – é o de que elas não podem ser »gerais», ou seja, que têm de dizer
respeito »ao prol e bom regimento da terra» (Ord. Fil., I, 66, 28);
c) privilégios locais, concedidos pelo rei ou pelos senhores; direitos
adquiridos pelo uso; praxes dos tribunais locais 349;
346
Sobre os assessores letrados: Castillo de Bobadilla, Politica para corregidores.. ., I, p. 33, n. I ss. [1. 1, c. 6,
per totum; M. A. PEGAS, Commentaria ..., cit., t. 5 [ad O., I, 65] gl. 1, n. 4; Th. Valasco, Judex perfectus ..., cit., p. 292, n.
44; Nicolau C. Landim, Nova et scientifica tractatio..., cit. I. De syndicatu judicum, cit., c. 12, n. 18; c. 13, n. lo; c. 24, n. 2-3;
c. 25, n. 33 ss.; A. VALASCO, Opera omnia. I. Decisionum, consulationum ac rerum judicatarum. Collonia Allobrogorum
1740, qu. 26, 1-5; António Cardoso do Amaral, Liber utilissimus..., Conimbricae 1740, v. «Assessor».
347
Fontes literárias: Garcia de Resende, Cancioneiro Geral (ed. cit. Lisboa 1973), I, 215/216, 220, 230; Gil
Vicente, Auto da Feira, Frágoa de Amores, Juiz da Beira e Auto da Barca do Inferno; Jorge Ferreira de Vasconcelos,
Comédia eufrosina (1561).
348
Cf. Alvs. 19. 11. 1631; 13. 12. 1643; 1. 2.1655; 22. II. 1775; 23. 5. 1776; 26. 8. 1776; 7.2. 1782; 21.4. 1795;
7.5.1801.
349
A doutrina tentava contrariar a influência desse direito local. Meios dogmáticos utilizados: a) a decisão de um
juiz inferior não podia constituir ou fundar um stylus; b) certos titulos e direitos não podem ser adquiridos pelo costume; c)
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d) costumes locais e normas casuísticas ditadas pelo sentido comunitário
de justiça.
Este direito aplicado pelos juízes populares era, decerto, um direito
conservador ou mesmo arcaizante. Os séculos XIV e XV tinham trazido grandes
transformações à vida local; nas zonas mais abertas ao exterior, era a influência
do surto mercantil e colonialista; nas zonas agrárias, a recomposição das matrizes
sociais provocadas pela introdução de novas formas de detenção e cedência da
terra, como a enfiteuse perpetuamente renovável e os morgadios. Muitos
costumes e posturas deviam aparecer, nos séculos XVI e XVII, como
desadaptados; em muitos casos, terão sido corrigidos, nos termos das
Ordenações; noutros casos, ter-se-ão encontrado formas espontâneas de os
reinterpretar.
***
O mundo das justiças tradicionais, reflectido, no plano do direito erudito,
por esse reconhecimento do estatuto especial dos rústicos, não era uma realidade
totalmente desprovida de tradução institucional. Tinha, ainda na época moderna,
uma dimensão organizativa e administrativa própria, embora cada vez menos
autónoma e cada vez mais limitada pelas instituições da justiça oficial.
Essa realidade institucional é constituída por aquilo que poderia
denominar-se magistraturas populares e decorre de uma ideia fortemente
enraizada na tradição política medieval - a autonomia jurisdicional dos corpos
sociais “primários”. Pois a ideia segundo a qual o juiz é forçosamente um delegado do poder político central não tem, em contrapartida, mais de dois séculos,
constituindo um reflexo do pensamento politico, que, pela primeira vez, separa
radicalmente a sociedade civil do Estado, reservando a este o monopólio do
poder politico, nomeadamente o poder de criar o direito (por via legislativa ou
judicial).
Em contrapartida, o pensamento jurídico que domina o longo período que a
historiografia actual designa por “Estado” de ordens» concebia o poder político e o
direito como algo que decorria directamente de um poder auto-organizador dos
corpos sociais espontâneos - a família, as corporações e as cidades. Baldo de
Ubaldis exprimiu esta ideia na célebre fórmula em que afirma que o poder dos
corpos para se organizarem e se governarem é tão natural quanto a capacidade
do espírito e da alma para governar os corpos dos animais 350. A este poder de
auto-regulamentação e de auto-governo dos corpos corresponde o conceito
teórico de iurisdictio, que a Glosa definiu como o poder, de natureza pública, para
ditar o direito ou estabelecer soluções de equidade 351, poder esse que, nos termos
da referida fórmula de Baldo, era natural em todos os corpos sociais.
as posturas locais só têm validade depois da confirmação régia (expressa ou tácita) e podem ser revogadas pelo rei
(Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria ..., t. 2, ad III, 64, n. 27; Manuel Álvares Pegas, Commentaria ..., ad I, 66, 28, gl.
30, p., c. 7, p. 260.
350
Sobre o ponto, com desenvolvimento, Hespanha, A. M. et Xavier, Ângela, A. M. Hespanha e Ângela Barreto
Xavier, História de Portugal (dir. José Mattoso), Lisboa, Círculo de Leitores 1997, vol. IV (“O Antigo Regime”), cap. “A
arquitectura dos poderes”, 121-145 (= pp. 113-141, na ed. Editorial Estampa).
351
“Potestas de publico introducta cum necessitate iuris dicendi, et aequitatis statuendae” (gl. “potest”, D. De
iurisd. omnium iudicum, I. ius dicentis, D. 2,1,1))
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Neste contexto, o juiz surge como encarregado de realizar na prática esse
poder de auto-governo “Iurisdictio est ius, officium (iudicis) est exercitium ipsius
iuris”, Petrus de Bellapertica). O juiz é, por essência, um oficial da comunidade
com a função (officium) de resolver os conflitos, de acordo com as normas que ela
própria para si estabeleceu; e não o delegado de um poder heterónomo e
superior, como o do rei. Em Portugal, dir-se-á, no sec. XVII: “parece, em face
desta lei (Ord. fil., II, 45, 13) que, na Lusitânia, não pertencem ao príncipe todo o
poder civil e a jurisdição temporal, já que as cidades, concelhos e povos têm o
poder de constituir para si juízes ordinários, que façam justiça aos litigantes” 352.
A doutrina do direito comum sobre estas questões não era, evidentemente,
nem homogénea nem estática. Progressivamente, uma ideia contrária sobre a
origem do poder de julgar veio insinuar-se neste contexto - a Ideia segundo a qual
o poder de julgar era um atributo essencial do soberano (regalia maior), e a
jurisdição do juiz (e dos restantes oficiais) era apenas uma jurisdição delegada.
De qualquer modo, este reconhecimento da autonomia jurisdicional dos corpos
inferiores não Irá desaparecer antes do fim do Antigo Regime e vai explicar, em
grande parte, o sistema das antigas instituições judiciais (Hespanha, 1994).
A situação que acabámos de descrever não era um devaneio intelectual
dos juristas académicos, correspondendo antes a uma autonomia realmente
vivida pelos corpos inferiores, nomeadamente pelas cidades. Esta concepção do
direito e do ofício dos juízes pôde, assim, desenvolver-se numa completa teoria
sobre as qualidades e funções do juiz 353.
O direito local ou particular - ou, na linguagem da doutrina erudita, os
costumes dos rústicos - era, como já vimos, o direito tradicional dessas
comunidades, estabelecido nas suas assembleias (concilia, juncta, capitula) ou,
mais provavelmente, imposto pelas autoridades tradicionais (domini terroe,
Landesherren, optimates, nobiles et meliores). Difundido, como tradição, na
comunidade local, publicado por bando ou pregão, ele materializava a tradição
comunitária acerca do justo e do injusto, sendo, em princípio, um direito
Intensamente vivido e conhecido por todos. Daí que – como vimos - a sua
aplicação não exigisse estudos académicos, mas antes bom senso e um certo
conhecimento do direito praticado.
***
Em Portugal, as magistraturas populares são muito antigas, constituindo
um dos privilégios mais cobiçados pelas comunidades locais. Na verdade, ter o
seu próprio magistrado não era apenas uma comodidade (ter a justiça em casa),
mas também uma garantia (ter a justiça da casa). Eleitos pelos principais vizinhos
do lugar (meliores terrae), os juízes deviam ser as pessoas mais sensatas e mais
respeitadas da região. Com a progressiva concessão de cartas comunais (forais)
a todo o território, a administração da justiça ficou sendo um monopólio das
magistraturas populares, descontando as poucas terras em que os juízes eram
352
Manuel Álvares Pegas, Commentaria ..., tom. 5, ad II, 45,13, pr., gl. 3, n. 23. Embora acrescente que isto
ocorre “por graça do príncipe”.
353
Cf. Pedro Barbosa, Commentaria ad ... ff. de iudicis, Ulysipone, 1613; Th. Valasco, Judex perfectus, Lugduni,
1652.
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designados pelos senhores 354. Esta situação manteve-se até finais do século
XVIII, apesar da criação, na última metade do século XIV, de magistrados da
coroa de primeira instância (juizes de fora) e de oficiais encarregados da
inspecção das justiças locais (corregedores) 355. Os juizes de fora, fortemente
contestados, pelas populações locais, dificilmente progrediram em número até ao
século XVII. Até meados do século anterior não havia mais de que umas quatro
dúzias para um total de cerca de oitocentos concelhos. Nos meados do século
XVII a situação não se alterara muito - apenas 10 % do total de juízes das terras
eram juízes de fora356. Foi só com o esforço de racionalização da vida
administrativa e judicial do Estado absolutista que se produziu uma modificação
neste estado de coisas. No fim do Antigo Regime 35 % dos juízes eram já
letrados 357.
Nas aldeias mais isoladas, havia juízes de vintena (ou juízes pedâneos, ou
“das aldeias”), eleitos pelso habitantes, com uma jurisdição modesta – julgamento
de contravensões aos forais, jurisdição civil de valor exíguo -, mas, na verdade,
correspondente ao universo dos conflitos mais frequentes nessas também
exíguas comunidades 358. A estes juízes se poderiam ainda juntar os juízes não
letrados das terras senhoriais (v.g., os “juízes das honras”, de que falam as
Ordenações 359).
Deste mundo da justiça tradicional fazem ainda parte os advogados ou
procuradores não letrados, pessoas especializadas nas formalidades do direito e
do processo tradicionais que, nessa qualidade, assistiam as partes em tribunal. O
seu papel não era, em todo o caso, idêntico ao dos advogados letrados nos
processos de direito erudito. A própria designação que lhes era dada («vozeiros»,
«rábulas») permite-nos ainda hoje imaginar o estilo das suas intervenções em
tribunal, mais dirigidas para captar a simpatia dos juízes por meios retóricos e
oratórios do que para esclarecer, distanciada e analiticamente, as questões
técnicas de direito. Por outro lado, a sua presença em tribunal não impedia a
participação pessoal do interessado. Mais do que uma mediação entre as partes,
estes procuradores garantiam antes uma cooperação que não expropriava as
partes da sua qualidade de elementos activos no litígio processual.
Contra estes procuradores, que se arrogavam funções de orientação
técnica e processual, insurgia-se a doutrina erudita. Se o juiz iletrado era tratado
com benevolência (embora altiva e condescendente), a presunção desses
«técnicos populares» que se davam ares de entendidos em direito e se mediam
com os advogados letrados era, pelo contrário, duramente atacada. Na doutrina
portuguesa há quem proponha evitar esses “advogados trapaceiros geralmente
chamados «procuradores do número» e eliminá-los da república como parte
354
Sobre os juizes e o processo em Portugal na Idade Média, cf. Hespanha, 1994, 161 ss., 455 ss. , 592 ss.; para
a Europa central, cf. Wieacker, 1967, 103).
355
Cf. Ibid., maxime, 161 ss., 195 ss..
356
Sobre o número dos juízes de fora e sua relação com o número de concelhos na mesma época, ver
Hespanha, 1994, 196 ss.
357
Cf. Almanach para o sono de MDCCXCIII, Lisboa, p. 330 s.
358
Ord. man. 1, 44, 64; Ord. fil., I, 65, 73.
359
Ord. fil., II, 48, 2-3.
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125
extremamente nociva” 360. Um outro autor observa que esses procuradores
exerciam o seu ofício sem qualquer diploma ou até mesmo sem um exame de um
colégio profissional, como era exigido em Espanha 361.
O romantismo da historiografia do século XIX, juntamente com as
preocupações actualistas de justificação histórica da política descentralizadora,
considerou estas magistraturas populares como um testemunho do carácter
democrático e igualitário das comunidades locais medievais. No entanto, uma
descrição histórica sem mitos não pode confirmar esta visão. Na verdade, os
magistrados populares eram recrutados apenas entre os estratos superiores da
sociedade local. Não contando já com as inabilitações eleitorais que atingiam os
judeus, mouros ou cristãos-novos e os trabalhadores braçais (mechanici,
mercenarii) 362, o modo de ser do sistema eleitoral garantia aos meliores terroe o
monopólio dos cargos judiciais e administrativos electivos 363. Esta prática era
legitimada, do ponto de vista ideológico, pelo princípio “meliores et nobiliores sunt
eligeridi ad officia publica”, entendido pela doutrina num sentido “social” e não
“profissional”. Através destas magistraturas, canalizava-se, afinal, o poder politico
e social da estreita camada dos potentados locais, nobres ou não nobres, a que
na história peninsular do século XIX se chama caciques e que dominavam - então
como mais tarde - os vários registos da vida local: a economia, através da sua
situação de maiores proprietários, muitas vezes melhorada ainda pela
apropriação dos bens comunais; a política, através do monopólio dos cargos
concelhios e da protecção longínqua, mas eficaz, de um nobre na corte; a vida
cultural e espiritual, pela sua estreita ligação com o clero local, que muitas vezes
representava, nos termos do direito de padroado.
Embora não haja investigação que permita traçar um quadro geral a este
respeito, não é excessivamente ousado afirmar que as magistraturas populares
davam voz sobretudo aos interesses da nobreza rural (ou aos vilãos possidentes,
a caminho da nobilitação), que as utilizava para manter o domínio sobre a vida
local. E a partir daqui que pode entender-se melhor a polémica em torno da
criação e extensão dos juízes de fora, contra os quais reclamavam as elites locais
representadas em cortes, mas a favor dos quais se pronunciava, provavelmente,
o povo miúdo (Hespanha, 1994, 439 ss.).
Um tema derradeiro desta incursão no mundo jurídico local é o das
relações dos juízes com as outras profissões jurídicas, nomeadamente escrivães
e advogados 364.
Os escrivães e os tabeliães deviam desempenhar, na vida jurídica local,
um papel mais importante do que o dos juízes. Sabendo ler e escrever e
360
João de Carvalho, De una et de altera quarta Falcidia deducenda, vel non, Conimbricae, 1631, p. 292 (da ed.
de 1746).
361
F. Caldas Pereira, Comm. ad legem si curatorem, y. laesio, n. 100 (em Opera, IV. Coloniae Allobrogorum
1745, p. 335). Em todo o caso, a opinião dos espanhóis sobre estes procuradores tão pouco era favorável: cf. Bobadilla del
Castillo, Politica para corrigedores ..., l. 3, c. 14, n. 33 ss..
362
Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria, t. 5 (ad 1, 67) gl. 1, e. 1, n. 1 Ss.; ibid. (ad 1, 87) gI. 1, c. 1, n. 3;
citando leis de 1612 et 1649. Cf., no entanto, M. A. PEGAS, Commentaria, cit., t. 14 (ad 1,67), n. 35 ss.
363
M. A. PEGAS, Commentaria, t. 5 (ad 1, 67) gl. 1, e. 1, n. 4 (“nobiliores ad officia, & reipublicae magistratus
evocandi”); il cf., ainda, o Regimento de 6. 6. 1612 (em M. A. PEGAS, Commentaria, loc. cit.), e M. PHAEBO, Decisiones
..., ed. cons. 1740, p. 204.
364
V., muito impressivo, Castillo de Bobadilla, Politica para corregidores ..., cit., I. III, e. 14, per totum (t. II, p. 238
ss.).
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dominando a praxe judicial e a arte notarial, eles foram durante vários séculos os
únicos técnicos do direito escrito a nível local 365. Com a expansão do processo de
autos, o seu domínio dos juízes e da vida jurídica local deve ter-se intensificado. A
imagem que deles nos dá a literatura da época é provavelmente correcta:
controlando totalmente os juízes (analfabetos e incapazes de compreender as
peças forenses escritas), venais e arrecadando grossos proventos com os
subornos das partes, os seus rendimentos eram superiores aos dos juízes 366.
Ao lado dos escrivães e dos tabeliães, foram aparecendo os advogados.
Instituição muito antiga no direito português, só no século XVII o advogado passa
a ser um técnico de direito com formação universitária. Nesta qualidade, é natural
que o seu ascendente sobre os juízes fosse grande; alguns autores filiam mesmo
a dignidade do seu cargo no facto de o seu ofício ser o de corrigir a ineptidão dos
juízes ignorantes 367.
É certo que os juízes não estavam totalmente dependentes dos escrivães,
dos tabeliães e dos advogados quer para ler os autos, quer para se informarem
do direito escrito e erudito aplicável. Eles podiam, na verdade, recorrer a assessores, ou seja, a técnicos de direito que escolhiam livremente e que eles próprios
pagavam. Embora a deontología moral os obrigasse a recorrer a um assessor
sempre que se sentissem incapazes de resolver as questões levantadas, a
nomeação de assessores não devia ser muito corrente, dada a dificuldade de os
encontrar localmente e a impossibilidade de cobrir os encargos com os magros
proventos de juiz.
Nesta situação, o prestígio social dos juízes populares não poderia ser
muito grande, sobretudo quando a presença do direito escrito e erudito se tornou
mais notória. Temos provas indirectas desse facto: por um lado, a fuga aos
cargos judiciais (e concelhios em geral) invocando privilégios; por outro lado, o
baixo valor em que era estimado o cargo de juiz (a honra de juiz) para efeitos
fiscais. Os únicos atractivos do cargo - para além do poder político que ele
atribuiria a nível local - seriam as benesses ilegais que ele poderia proporcionar
numa administração judiciária que as fontes nos descrevem como dominada pela
corrupção. A isto se juntaria ainda a ideia, corrente na doutrina jurídica, de que os
ofícios concelhios, e sobretudo os ofícios de juiz, nobilitavam.
Interessante é também a questão das relações dos juízes ordinários com o
mundo dos juristas cultos, formados na tradição escolar do direito comum,
julgando pelos padrões do direito legal ou doutrinal, utilizando como ponto de
referência a problemática e as soluções de uma literatura técnica internacional.
Não podemos hoje saber muito da atitude dos juízes ordinários perante os
juízes de carreira. Como adiante se afirmará, é de supor que a atitude de aberta
365
Um estudo recente de Joana Estorninho (A. Forja dos Homens. Estudos Jurídi-. cos e Lugares de Poder no
Séc. XVII, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004) confirma que uma parte dos notários e escrivães era constituída
por estudantes de direito que tinham interrompido os seus estudos (cf. Castillo de Bobadilla, Politica para corregidores [...] ,
1,6,17). A mesma situação se verifica em Inglaterra, J. Coceburn, “Seventeenth century clerks of assizes - some
anonymous members of the legal profession”, American journal of legal history, 13 (1969) 315 ss..
366
Sobre as rendas e estatuto político-social dos escrivães, cf. Hespanha, 1994, 174 ss. (regime e rendas), 498
ss. (estatuto dos seus ofícios)
367
M. A. Pegas, Commentaria..., cit., t. 4 (ad 1, 48), gl. 1, n. 9. 114 Sobre a importância dos notários como
divulgadores do direito erudito nos meios locais, F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte . . . cit., p. 120 ss.; sobre o «processo
actuário», ibid., pp. 28, 94, 184.
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resistência da primeira fase da recepção do direito comum se tenha transformado
numa atitude de animosidade latente e dissimulada, combinada com uma
impotente admiração por um saber jurídico que dominava a corte e os tribunais
superiores.
***
Como se viu, o estatuto dos rústicos dificilmente pode ser considerado pelo menos, se nele apenas se ler aquilo que é expressamente dito - como uma
forma de repressão de um mundo jurídico alternativo. Bem pelo contrário.
Aparentemente, todo o discurso erudito sobre ele está dominado pela ideia de
condescendência - mais do que de respeito - para com o mundo do direito
tradicional.
Em todo o caso, se a análise for levada um pouco mais longe, poder-se-á
verificar como esse discurso se integra numa estratégia doce, mas inexorável, de
assimilação e repressão. Uma estratégia que recupera no plano simbólico e
ideológico o que abandonara no plano jurídico-institucional.
Com efeito, o discurso sobre o direito dos rústicos - e a própria expressão
«rústico» - é dominado por uma oposição fundamental: a oposição entre saber e
ignorância. Os dois termos desta oposição não estão, porém, em equilíbrio
porque o saber representa já o ideal cultural de uma época, e a ignorância já não
é a inocência original, nem a simples falta de conhecimento, mas, pelo contrário e como já vimos no plano da teologia -, a atitude anti-natural daquele que recusa,
positivamente, a sua realização humana. Toda a violência do discurso erudito
reside neste facto. Classifica-se a si mesmo como o discurso da verdade, produto
da tendência natural do homem para o saber. Ao mesmo tempo, os discursos
alternativos são remetidos para uma zona de recusa contra-natural e obstinada do
saber que os priva de qualquer legitimidade. Por outras palavras, o jurista erudito
nunca considera a prática jurídica dos rústicos como presença de outro direito
enraizado numa outra cultura, mas como manifestação da ignorância malsã, do
arbitrário, do erro, enfim, da “rusticidade”. E se transige com essas práticas é
sempre por razões de ordem táctica, semelhantes às que levaram Castillo de
Bobadilla a aconselhar aos corregedores uma atitude de contemporização
provisória sempre que não pudessem vencer pela força a resistência dos seus
súbditos: «Ni tampoco se dira parcial el Corregidor, si por evitar escandalo,
sedición ò tumulto, acudiére à favorecer al pueblo, lo qual conviene hazerse
algunas veces, ó exceder en la pena, y acomodarse dulcemente al furor, ó humor
del pueblo, para ponerle en razon.. assi conviene que el prudente Corregidor
viendo el pueblo ravioso, condecienda al principio con su apetito; para que
insensiblemente poco a poco le pueda meter en razon: porque oponerse à una
muchedumbre irritada, no es otra cosa que hazer resistencia à un ràpido torrente
que cae de un alto lugar: pero despues poco à poco quitado el escandolo, yra
castigando los sediciosos y culpados en la faccion” 368.
A estratégia da condescendência (no plano prático e institucional)
conjugava-se, assim, com uma estratégia de rejeição (no plano ideológico e
simbólico). Mas, tendo em conta a força expansiva desse capital simbólico
368
Politica para corrigedores ..., III, c. 9, n. 44 (t. II, p. 206).
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extremamente reprodutivo que é o discurso jurídico erudito - porque vai actuar na
formação de todos os quadros políticos e administrativos, quer da administração
central, quer, pouco a pouco, da administração local -, o resultado não podia ser
senão a gradual negação do direito à existência dessa prática jurídica tradicional,
em nome do progresso da razão, de um processo civilizador, de uma teleologia
da história que, ainda hoje, expropriam a legitimidade de muitos outros mundos
culturais minoritários. Neste sentido, o investimento na ideia de que o saber
jurídico letrado (tal como é entendido nos meios eruditos da época medieval e
moderna) é a única base legítima da justiça funciona como meio de expropriação
dos poderes periféricos e é comparável a outras formas contemporâneas de
centralização do poder 369.
Esta estratégia de desvalorização cultural do mundo tradicional começa
logo pela designação de “rústico” que lhe é aplicada. O carácter depreciativo do
termo foi expressivamente documentado por A. Murray. Segundo ele “nos textos
em que as classes sociais eram postas em oposição, «rústico» era utilizado como
sinónimo de pessoa de «estratos inferiores», de tal modo que se contrapunham
os rústicos aos nobres. Paralelamente, a palavra passou a ter uma utilização que
a associava a «estúpido», «rude» ou «mal educado». Na época de Dante e de
Petrarca, tanto em vernáculo como em latim, «rústico» equivalia a «burro» ou a
«besta», sendo a expressão «homens rústicos e bestiais» uma figura corrente de
estilo 370. Simultaneamente, a palavra remetia também para a ideia de simplicidade
de espírito, mas de uma simplicidade que expunha ao desfrute e à exploração.
«Oh! Deus - pode ler-se num texto satírico do século XII -, tu que semeaste a
discórdia entre o letrado e o rústico, concede-nos a graça de vivermos do trabalho
deste, de possuir as suas mulheres, de coabitar com as suas filhas e de festejar o
dia da sua morte» (Murray, 1978, 239).
Os juristas recolhem todo este potencial negativo da palavra e, nos seus
textos, a equivalência entre rústico e ignorante é corrente, fornecendo até, como
vimos, a justificação para a especificidade do estatuto dos rústicos. Dai que todos
os autores sejam unânimes quanto à ideia de que os privilegia rusticorum só se
aplicam aos «rudes e grosseiros» excluindo, pelo contrário, os manhosos ou os
que utilizam a rusticidade como capa para encobrir as suas fraudes. Segundo
alguns autores, este carácter manhoso ou, pelo menos, manipulável, seria mesmo
o mais comum nos rústicos 371. E, por isso, , se eles respondessem de forma
inteligente às questões difíceis que lhes fossem postas, isso deveria ser matéria
para desconfiar, ou de que estavam a mentir, ou de que tinham sido industriados
por outrem. Numa sentença transcrita por Manuel Ákvares Pegas 372, há
testemunhos de camponeses que são desvalorizados porque, sendo eles
369
V., no sentido da equivalência da constituição de um saber abstracto a outras formas de centralização do
poder em desenvolvimento na época moderna, Gerd Spittler, “Abstraktes Wissen als Herrschaftsbasis. Zur
Entstehungsgeschidite bürokratischer Herrschaf im Bauernstaat Preussen”, Kölner Zeitsch. f. Soziologie und
Sozialpsydsologie, 32 (1980).
370
Num texto flamengo dos finais do sec. XII, pode ler-se que um príncipe iletrado é como “um degenerado, um
rústico, como que um animal (cit. por A. MURRAY, Reason anc society ..., cit., 238), enquanto que um texto irónico alemão,
satirizando os homossexuais, diz que “apenas rústicos ... que podem ser considerados como animais, se podem sentir à
vontade tendo relações com mulheres » (ibid.).
371
Cf. Castillo de Bobadilla (Politica para corregidores..., I. 3, t. 3, n. 61/2); v. ainda lac. Menochio, De arbitrariis iudicum
quaestionbus ..., cit., e. 194.
372
Commentaria …, t. 9, p. 400, n. 169.
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129
rústicos, tinham sido considerados como incapazes de compreender os conceitos
jurídicos envolvidos no interrogatório.
***
Como contraponto da ignorância e da rudeza dos rústicos, surgem o
carácter exemplar da ciência jurídica erudita e a excelência da forma escrita.
Dado que o primeiro tema é mais conhecido, ocupar-nos-emos aqui
apenas do segundo.
O crescente prestígio da forma escrita na cultura medieval 373 teve imediata
influência no mundo do direito, onde, aliás, já na antiguidade, a redução a escrito
de leis, contratos e outros actos jurídicos tinha carácter decisivo.
Os juristas do direito comum falam muitas vezes da natureza e das virtudes
do texto escrito, nomeadamente do ponto de vista do direito. Nesse plano, o texto
escrito possui características quase mágicas. Por exemplo, tem a capacidade de
resistir ao tempo e de vencer as barreiras do espaço, de perpetuar a voz dos
mortos, de fazer falar os ausentes. A escrita, diz Manuel Álvares Pegas seguindo com tópicos comuns – “tem um poder tão grande que, por seu
intermédio, aquilo que dizemos fala sem necessidade da nossa voz e transformase numa via para chegar ao leitor” 374. Ao mesmo tempo, um outro jurista afirma
que “a escrita nunca se cala, continua a clamar mesmo depois da morte” 375. A
importância destas potencialidades do domínio do direito é evidente. Com a forma
escrita, a verdade torna-se mais firme. Dai que nas questões mais importantes,
essa seja a forma a utilizar 376. Meio privilegiado de prova, a escrita torna-se,
assim, um factor de verdade e, portanto, de justiça - “para que a mentira não
prejudique a verdade e para que a iniquidade não prevaleça sobre a justiça” 377.
Este elogio da escrita desacredita simultaneamente a oralidade. E de um
descrédito que é não só no plano cultural e ideológico, mas também na prática,
porque, de acordo com um principio já sabido, a escrita passa a ser o meio de
expressão das questões mais importantes. Dai que a forma escrita se torne
obrigatória para um número cada vez maior de actos jurídicos 378.
Quando o direito erudito e escrito se instituiu como modelo, o mundo do
direito tradicional, que não dominava nem a técnica da escrita nem a arte legal,
viu-se privado dos meios de produção simbólica inculcados como legítimos pela
ideologia dominante. Neste sentido, o elogio da ciência e da forma escrita não é
politicamente inocente, mas, pelo contrário, representa uma forma de obter e de
acentuar a expropriação do capital simbólico do adversário. Tão-pouco é inocente
o empenhamento posto no emprego de uma língua técnica (o latim), estranha à
373
O tema da especificidade da escrita, não apenas como suporte da comunicação, mas ainda como elemento
constituinte de uma cultura tem como obras fundadoras Marshall McLuhan, The Gutenberg galaxy; the making of
typographic man, Toronto, Toronto University of Toronto Press, 1962; Jack Goody, The domestication of the savage mind,
Cambridge <Eng.>, New York, Cambridge University Press, 1977; Walter s. Ong, Ramus: method, and the decay of
dialogue, from the art of discourse to the art of reason, New York, Octagon Books, 1974; Orality and literacy : the
technologizing of the Word, London ; New York. Methuen, 1982.
374
Commentaria ad Ordinationes..., ti, (ad I, I, gl. 139, n.5), p. 317.
375
Dominicus Tuscius, Practicarum conclusionum..., cit., v. “scriptura”, concl. 80.
376
Cf. M. A. Pegas, Commentaria …, cit., t. II (ad 1, 5), gl. 17, n. 5.
377
M. A. Pegas, Commentaria..., t. III (ad I, 24) gI. 2, n.3/4, apoiando-se em Santo Isidoro, Fermosinus e outros.
378
Cf. l’énumération de Dominicus Tuscius, Practicarum conclusionum..., cit., v. «scriptura», concl. 87.
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130
maioria das pessoas. Dos numerosos testemunhos neste sentido, escolhemos o
da polémica gerada à volta da publicação em castelhano da Politica para
corregidores y señores de vassallos, de Castillo de Bobadilla. Apesar da edição
em língua vernácula se integrar, segundo Bobadilla, numa estratégia de
vulgarização do direito escrito e erudito 379, o autor não deixa de sublinhar as
vantagens de uma publicação em latim: por um lado, o maior prestígio da língua
latina - isto é, um maior poder de reprodução enquanto capital simbólico; por outro
lado, e sobretudo, o carácter hermético do latim, que evitava o perigo de as
matérias de governo e de justiça “serem do conhecimento geral, o que comporta o
risco do abuso” 380. Por outras palavras, uma opção aparentemente tão inócua
como a adopção de uma linguagem cientifica diferente da natural, manifesta-se
em todo o seu significado político. Mais do que aproveitar a maior adequação e
expressividade de um instrumento linguístico, o que se pretendia era, no fundo,
defender o monopólio do saber e, simultaneamente, remeter o discurso alternativo
para o domínio da rusticidade e da ignorância.
***
A eficácia deste modelo ideológico em que o direito erudito gozava de um
estatuto de padrão para todo o direito, este pico de apogeu da razão jurídica, não
se esgotava no plano mais ou menos difuso (mas a prazo não menos eficaz) da
ideologia implícita dos juristas. Atingia também o plano prático-institucional e
começava, por esse lado, a abalar a vasta protecção aparentemente concedida,
neste nível, ao mundo jurídico tradicional.
De facto, embora a especificidade do estatuto dos rústicos se baseasse na
sua ignorância, o carácter exemplar e natural das soluções do direito erudito
obrigou à introdução da distinção entre a ignorância desculpável e aquela que o
não era. Com base nesta distinção a desculpa de ignorância vê-se confrontada
com inúmeras limitações. Primeiro, a ignorância do direito natural, do direito das
gentes e do direito “notório” ou evidente passa a ser tida como indesculpável 381.
Esta restrição salvaguardava, assim, os princípios fundamentais do direito oficial e
erudito, o novo “miolo da razão jurídica”. Nos degrau seguinte, vemos depois
desenvolver-se a ideia segundo a qual, mesmo relativamente às normas menos
fundamentais do direito escrito, o rústico tinha obrigação de se informar junto dos
peritos, acrescentando-se que esta obrigação radicava em factores naturais e
antropológicos, nomeadamente na tendência espontânea do homem para o
aperfeiçoamento e o saber 382. Finalmente, a ignorância dos rústicos não excusava
perante normas de direito imperativo ou, segundo uma formulação ainda mais
379
Um jurista alemão sugere que – tal como a Bíblia – as leis sejam escritas em vernáculo, para que sejam lidas
por todos, e que todos os chefes de família sejam obrigados a possuir um código das leis em sua cãs (Joh. Goebels,
Tractatus de iure et iudicio rusticorum ..., cit., p. 195).
380
Politica para corregidores. . ., cit., «Proemio», n. 14 ss. Bobadilla tinha tido problemas com a publicação da obra em
castelhano; cf. Benjamin González Alonso, «Estudio preliminar» à edição anastática da Politica, Madrid 1979, 21); sobre
Bobadilla, v. Francisco Tomás y Valiente, “Castillo de Bobadilla. Semblanza personal y profesional de un juez del Antiguo
Régimen”, An. histor. derecho espñol, 45 (1975) 159 ss..
381
Cf. R. Choppinus, De privilegiis rusticorum..., cit., 1. 1, p. 2, e. 5; lac. Menochio, De arbitrariis iudicum..., cit., e.
194, n. 1; JoH. Goebel, Tractatus de iure et iudicio rusticorum..., cit., p. 139.
382
Iac. Menochio, De privilegiis rusticorum . . ., cit., e. 194, n. 22/24: se o rústico podia consultar peritos e não o
fez, a sua ignorância não lhe aproveita pois “todos os homens têm o desejo de saber, sendo, portanto, contrário à natureza
não consultar os que sabem”. Em Portugal, as Ordenações (Ord. fil., I, 58, 8; I, 60, 10) incluem na sindicância que os
cirregedores devem fazer sobre a actividade dos juízes a pergunta sobre se “os juízes se preocupam em saber”.
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131
restritiva, só desculpava nos casos em que o direito oficial o declarasse
expressamente 383.
É precisamente esta ideia de indesculpabilidade da ignorância que explica
o peso negativo que o discurso sobre os rústicos gradualmente adquiriu. Com
efeito, à medida que a consciência jurídica europeia se deixa dominar pela
tradição do direito erudito, a situação da rusticidade torna-se cada vez mais
escandalosa. Por trás de cada rústico há um astuto: «raros são os que não são
manhosos», diz Bobadilla, enquanto outros os acusam de usar a sua aparente
simplicidade de espírito para escaparem às obrigações para com os senhores 384.
Ai radica a animosidade contra os advogados populares e o desprezo com
que eram tratados os juízes populares.
A violência doce da racionalização e da ordem agiam, no entanto, noutros
planos.
Por exemplo, na imposição de uma ordem judicial que expropriava as
partes da intervenção pessoal e as obrigava a fazerem passar as suas pretensões
peto crivo de um advogado erudito. Para justificar estas medidas, os juristas
invocavam a necessidade de instaurar ordem nas audiências, e a ideia de que a
serenidade e a imparcialidade do julgamento eram incompatíveis com o
burburinho, a indisciplina, a incontenção e o empenhamento emocional das partes
quando eram autorizadas a intervir directamente no processo («iudex debet
procuratorum, advocatorum, vel parttum clamorosam garrulitatem reprimere»,
escreve Florentino).
Pelo contrário, a mediação do advogado erudito garantia não só um
tratamento selectivo das «alcovitices» das partes - ou seja, a construção de um
objecto processual diferente do objecto real do litígio -, como também garantia
uma intervenção neutra, metódica e distanciada, segundo as regras do processo
erudito. No fundo, tratava-se de acentuar as características do processo escrito
mais antinómicas relativamente à estrutura do processo tradicional, e de reduzir
ao silêncio a dinâmica e o discurso alternativos.
Ainda sobre este ponto, o exemplo das regras políticas formuladas por este
autor paradigmático que foi Castillo de Bobadilla continua a ser muito instrutivo.
Tudo o que significasse espontaneidade, vivacidade ou rusticidade da audiência
devia ser proscrito. Desde a imposição de um formalismo estrito na forma de
convocar a audiência 385, até à observância de uma regra estrita de silêncio que
383
R. Chopinnus, De privilegiis rusticorum ..., cit., 1. 1, p. 2, e. 5 e literature antes citada..
384
«Solo es de advertir, que de los privilegios de la ignorancia concedidos a los labradores, no gozan los rusticos
sagazes, como ya oy lo son casi todos, y de otras muchas malas calidades, segun escriven Tiraquelo, Otalores, y otros, è
en especial que son inclinados àhurtar, y maliciosos en el vender, y cautelosos en aguardar los tiempos de mayor
necessidad, para vender mas caros los frutos de la tierra, causando la necessidad de la hambre, y que padezcan los
pobres por su culpa, hasta que les suban los precios. Y estas y otras malicias usan, mayormente los labradores convezinos
à pueblos grandes, y assi non ay en ellos aquella sinceridad antigua, por la qual merecio llamarse santa la rusticidad, en
especial lo~ labradores que traen escrivania en la cinta, de los quales se puede tener todo recato y reze-lo: y assi por esto
las leyes de Partida, hablando del privilegio y favor de Ia ignorancia d~ los rusticos, requiren que sea labrador simple o
aldeano necio. Finalmente no gozan lo~ labradores de los privilegios de la ignorancia, sino en los casos expressados en
derecho’ (Castillo de Bobadilla, Politica para corregidores..., t. II, p. 33 s., n. 62). Juan Gutierrez, citado por Bobadilla,
considerava o género dos rústicos como «furacissimum et rapacissimum» (muito dado ao furto e à rapina).
385
«Y acostumbran en algunas partes llamar à audiencia por voz de pregonero, el qual por la plaça, y escritorios
pregona que vengan à audiencia; y esto me parece grosseria, y assi lo quité en algunas ciudades è hize poner en las
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132
impedisse a intervenção pessoal e emotiva, a negociação directa (“chicana”), a
interpelação retórica própria do processo tradicional 386, tudo devia confluir para
uma dramatização formalista e distanciadora do litígio.
Perante esta violência doce do mundo do direito oficial, a estratégia dos
rústicos parece coincidir -tanto quanto é possível interpretá-la através das
indicações fornecidas pelas fontes eruditas - com o que foi descrito pelos
etnólogos como uma estratégia de fuga e dissimulação 387. Só em momentos de
profundo desespero - como os das guerras dos camponeses na Alemanha, da
Fronda em França, dos «communeros» em Castela ou, em Portugal, das revoltas
populares que povoaram a primeira metade do século XVII - é que o mundo
tradicional se insurgiu abertamente contra a progressiva intromissão do poder
politico central nos assuntos locais, quer no domínio da fiscalidade quer no
domínio da justiça.
Em geral, no entanto, o rústico utilizava a fuga, a dissimulação, a reserva
mental, a mentira como meios para escapar aos mecanismos da justiça oficial. As
fontes eruditas atestam a resistência dos rústicos para recorrerem ao tribunal, a
tal ponto que a doutrina erudita considera esse medo da justiça do Estado uma
causa justificativa da contumácia 388. A mentira, pelo contrário, é considerada uma
característica das populações rústicas, tal como o perjúrio 389. As Ordenações
consideraram a mentira um hábito tradicional das populações do norte do País
(precisamente a zona em que as tradições jurídicas e culturais estariam mais
enraizadas), o que levou à criação de um regime especial de juramento para
essas zonas 390. Quanto à dissimulação e à reserva mental, ambas constituem um
ponto obrigatório de todas as descrições das «faltas» dos rústicos 391.
audiencias una campana, para que se tocasse quando se fuesse à la audiencia» (Politica para corregidores . . ., cit., 1.3, e.
14, n. 13).
386
“Advierta el Corregidor, que en las audiencias publicas aya silencio, quanto sea possible, à por la major parte,
suele aver confusion y turbacion de parecer de muchas voces y mala orden, y estilo, y floxedad, que algunos jueces tienen;
y assi, aunque à otro proposito, dixo una ley de Partida estas palabras ‘E deve otro si mandar, que los suyos esten
callando, è non fablen, si non quando ge lo mandaren; è esto por dos cosas: la una, porque el roydo de las machas
palabras faze que los ornes no se entiendan unos à otros, etc. [...]. Por el qual rumor de vozes, à por no estar atentos los
jueces, muchas vezes no perciben los echos de los negocios, y proveen disparates, y fuera de propositos en desautoridad
y verguença suya, y en perjuyzio de las partes. [...]. Para remedio desto se provea que las partes pidan por peticion
callando, o quando esto non aya lugar, porque la gente pobre è ignorante no lo sufre, mande que encarguen los negocios à
los procuradores de la audiencia, los quales los propongan por peticion, cada uno por su orden y antiguedad, diziendo el
primero, y tras aquel el segundo, y assi todos los otros, hasta el utimo: à que las lean los escrivanos por la misma orden; y
no se consienta que se atreviesse alguno de los otros À turbar el juizio, ni replique al que propone, si no el que tuviere
poder de la parte contraria, el qual puede alegar, è informar de Ia justicia de su parte, hasta que le manden callar: y desta
suerte se despacharan mas negocios, y mejor entendidos. Esta orden se ha dado por juezes polidos de las audiencias y
Chancillerias Reales; y en años atras avia en las audiencias ordinarias la confusion y vozes que en carnicerias, hasta que
se dio orden de los procuradores hiziessen autos por peticion y assi creo que es ya comun estylo en todas partes, aunquo
algunos dizen que dan sus dineros y causas a los procuradores, y que por ser pobres, so avian de escusar de darles poder
y paga, pues ellos podian ser por si oidos. [...] Estando en este tribunal, no conviene, ni aun se puede sufrir, que el
Corregidor, à los que aIli estuvieren, digan palabras ociosas, à de burlas, à feas, à injuriosas, ó indecentes, ni refieren
cuentos ni patrañas, como algunos tienen por gracia, con que impiden su audiencia, y aun enfadan la gente de ella. No se
consientan ahi desacatos ni menosprecios, ni que atreven unos contra los otros [...]. Ni tampoco aya grandes risas [...].
Remedio el juez los tales excessos con graves y no injuriosas palabras, y sino callaren mandandoselo, à ante el juez so
hablare con muy altas vozes, y sin el devido respecto, à profinando en el atravessarso quando habla el juez, podra sin
processo y sin acusador multar à los que lo hizieren coe alguna pena para pobres, à con prision [...]” (Politica para
corregidores. .., l. 3, e. 14, n. 14-23).
387
Gerd Spittler, “Abstraktes Wissen als Herrsdsaftsbasis …”, cit., 575 ss.
388
Cf. lac. Menochio, De arbitrariis iudieum quaestionibus ..., e. 153, n. 7.
389
Iac. Menochio, De arbitraiis iudicum quaestionibus ..., e. 194, n. 12/13.
390
Cf. Ord. Fil. I, 86, 5, bem como o comentário de M. A. Pegas.
391
V. o texto de Castillo de Bobadilla antes e, ainda, Henricus de Susa, Summa, 1577 (ed. Aalen 1962), fol. 276, n. 42
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133
Violência doce da «razão jurídica», resistência passiva da «rusticidade». E
este carácter velado e «não violento» do conflito que pode ocultá-lo aos olhos da
historiografia. Principalmente quando esta, já iludida pelas múltiplas formas contemporâneas de violência «doce» e muitas vezes dominada por uma visão
teleológica da história (ou seja, uma visão segundo a qual o presente é a
concretização do progresso da razão), ao aperceber-se de conflitos deste tipo, os
banaliza como «preço do progresso» e os inclui, sem reservas, na categoria de
sacrifícios inerentes ao processo de «modernização».
***
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7. Selvagens e bárbaros ii.
Luís de Molina 392 é autor de um dos mais completos e precoces
tratamentos das questões jurídicas levantadas pela escravatura dos negros. O
texto ocupa as disputationes 32 a 40 do livro II, do Tractatus de iustitia et de
iure 393, ocupando cerca de 30 fólios compactos. O facto de estar escrito em latim
394
e perdido no meio de uma obra genérica de direito faz com o texto que seja
geralmente desconhecido 395.
Trata-se de um dos primeiros discursos teológico-jurídicos completamente
articulados sobre a escravização dos negros. Tendo esta primeira parte do
Tractatus de iustitia et de iure sido editado em Cuenca em 1593, o texto é anterior
a essa época. Dado o seu carácter articulado e desenvolvido, poderá ter
constituído uma apostila destinada ao ensino, em Coimbra ou em Évora, durante
o período de 26 anos em que o autor aí deu aulas (1566-1590) 396. As Relectiones
de Indiis, de Francisco Vitória (1483-1546) - em que o dominicano, mestre de Luís
de Molina, trata do estatuto jurídico antropológico dos ameríndios, percorrendo
um iter argumentativo semelhante - são de 1538-1539; a Apologética história, de
Bartolomé las Casas – em que o tema da escravatura é abordado num sentido
mais decisivamente emancipador – é de 1551; o tratadinho sobre a escravatura
em África do mesmo Las Casas – um requisitório contra o trato português de
escravos, sem relevante elaboração doutrinal - , pode ter sido escrito em 1553 397.
Toda a discussão sobre a escravatura é, no entanto, muito tardia, se
considerarmos que o trato começa logo nos meados do séc. XV.
Comparativamente, as reacções doutrinais à conquista, destruição e escravização
dos índios americanos são quase imediatas, não distando da descoberta da
América mais do que uns quinze anos. Há razões para isso. Em primeiro lugar, a
escravização de africanos não era desconhecida na Europa, onde já antes
chegavam escravos negros; pertencia, inclusivamente, à tradição romana, cuja
literatura se refere com frequência a escravos núbios. Nesse sentido, era algo de
392
Nasce em Cuenca, 1536; estudante em Coimbra (artes e teologia); discípulo de Pedro da Fonseca; professor
em Coimbra e em Évora (26 anos); morre 1600; De iustitia, Cuenca, 1593-1609; Moguntia, 1659
393
1ª ed. Cuenca, 1593-1609.
394
Desta parte existe, porém, uma tradução castelhana, Madrid, Imprensa José Luis Cosano, 1941 (trad. de
Fraga Iribarne).
395
Últimos exemplos: Medina, 1996 (que, no entanto, destaca um texto de Fernando Oliveira, de interesse muito
menor, embora anterior); Wehling, 1999, que se ocupa expressamente do estatuto jurídico dos escravos (neste caso, outra
limitação é a redução do direito à lei régia, desconhecendo a importância da doutrina. O texto de Bartolomé Las Casas, na
sua História das Índias, sobre a escravatura portuguesa em África, que recentemente teve uma edição autónoma, é muito
menos profundo e original.
396
Consultado o índice de literatura jurídica existente nos arquivos e bibliotecas portuguesas, não encontrei
outras obras relacionadaas, nem com esta temática da escravidão, nem com a dos africanos ou dos índios. Em todo o
caso, aparecem pareceres de vários teólogos jesuítas (de Fernão Teles, de Gaspar Goncalves, e do próprio Luís de
Molina) sobre o casamento dos índios, que poderão ser relevantes (em Bib. Púb. Évora, cod. CXVI\1-55, fl. 100).
Impressos, sobre a escravização dos negras: Martín de Ledesma, Secunda quartae, Coimbra, 1560; Domingo de Soto, De
iustitia et de iure, l. IV, q. 2, a. 2 (ed. 1968, p. 289 a; um pouco posteriores a Molina, Baptista Fragoso, Regimen reipublicae
chrisrianae, 1641, III, l. 10, disps. 21 e 22, e Fernando Rebelo, De obligationibus iustitiae et charitatis, Lugduni, 1608.1608,
I, lib. I do prael., qs. 9 e 10.
397
É a data para que se inclina o seu melhor exegeta (Inacio Perez Fernández, v. Las Casas, 1996).
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136
estabelecido no direito da Europa. Depois, impendia sobre a Guiné a suspeita do
contágio muçulmano e, com isso, sobre os seus habitantes o labéu de inimigos,
os quais podiam ser escravizados nos termos da teoria da guerra justa.
Mas, sobretudo, a responsabilidade moral dos reis de Portugal sobre a
escravização que se fazia em África seria menor do que a dos reis de Espanha
sobre a escravização dos Índios. De facto, estes eram vassalos do rei, que tinha
em relação a eles o dever de protecção, enquanto que os africanos eram
vassalos dos seus reis, tendo sido originariamente escravizados em terras fora do
domínio do rei de Portugal. Às autoridades civis e religiosas portuguesas só
poderiam ser assacadas responsabilidades pelo trato sucessivo à compra e à
exportação para terras portuguesas. Claro que se punham problemas morais e
jurídicos relativos à situação anterior. Mas estes eram problemas pessoais dos
sucessivos compradores, interessantes no plano da confissão dos pecados, mas
irrelevantes em sede de política global. E, desde Vitória, que no centro da
preocupação destes juristas está a regulação ético-jurídica da política das coroas.
Neste texto, Molina é subsidiário da grande discussão castelhana 398 sobre
o estatuto dos índios americanos. E, nomeadamente, da doutrina fixada pelo seu
mestre Francisco Vitória 399. Mas a sua aplicação à metade portuguesa do mundo
e aos africanos é feita com um enorme cuidado de diagnóstico. Percorrendo
vários cenários, faz desfilar grandes frescos político-sociais, não apenas do trato
de escravos, mas também das sociedades nativas. Recorre a informantes,
frequentemente padres da Companhia, conta pequenas histórias que ilustram
situações típicas, dá indicações precisas sobre os termos do negócio
esclavagista 400.
Em suma, trata-se de um texto que, tratando da escravatura, permite ir
muito mais longe na compreensão do imaginário europeu sobre os nativos não
europeus, nomeadamente sobre os negros que, mesmo na sociedade
metropolitana portuguesa, passaram a constituir um elemento do quotidiano
social. De facto, pensar o problema da escravatura era pensar o razão pela qual
uns homens estavam sujeitos a outros homens. Para um jurista e, sobretudo, para
um jurista cristão, a questão não era trivial. Desde os romanos que o direito tinha
fixado a opinião de que os homens nascem naturalmente livres. como é ensinado
logo num dos primeiros textos do Digesto. Para os cristãos, o dogma da
universalidade da Salvação implicava a unidade do género humano.
É neste contexto que o tratado de Molina é inovador e interessante.
398
Sobre ela, a obra de autoridade é Pagden, 1988. Mais recentes, mas mais tradicionais, Bravo Lira, 1989,
Sánchez-Brlla, 1992,
399
1486-1546. Professor em Salamanca, de 1526 a 1546. Vitória funda a Escola Ibérica de Direito Natural, tendo
como principais discípulos Domingo de Soto Luís de Molina, A Escola Ibérica de Direito Natural desenvolveu-se sobretudo
à volta das universidades hispânicas da Contra-Reforma, especialmente Salamanca, Valhadolide, Coimbra e Évora. Os
seus representantes são, quase todos, religiosos jesuítas ou dominicanos. Eis os nomes principais: Francisco Suarez, S.J.,
(1548-1617, Tractatus de Legibus ac Deo Legislatore, 1612), Domingo de Soto, O.P., (1494-1560, De iustitia et de iure libri
X, 1556 [ed. aumentada]), Melchor Cano (1509-1560, De locis theologicis, 1563; Adnotationes in IIa.Iiae, ms. Bib. Univ.
Salamanaca), Diego de Covarrubias de Leyva, O.P., (1512-1577, Regulae Peccatum de regulis iuris relectio, 1554, Opera
omnia, 1576), Martin Azpilcueta Navarro (_1491-1586, Relectio cap. Ita quorumdam de Iudaeis, 1550; Opera omnia, 1589),
Afonso de Castro, O.F.M., (1495-1558, De potestate legis poenalis, 1550); Baptista Fragoso, S.J., (1559-1639, Regimen
reipublicae christianae, 1641). Bibliografia: Pereña, 1981, Costello, 1974, Villey, 1961.
400
Sobre a teologia juesuítica e a questão dos escravos, v. Luís Felipe Alencastro, O trato dos viventes:
Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, (São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 168 s..
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Começa por descartar a hipótese de haver homens que, por natureza,
estavam destinados a servir. Com isto, afasta-se de Aristóteles e da sua teoria
dos “servos naturais”. Mas, ao mesmo tempo, arranja um lugar teórico para esses
homens que, no ultramar como na Europa, pareciam estar, como os menores,
destinados a ser dirigidos por outrem. Esse lugar é a teoria da casa e das
relações domésticas. Os negros ou os ameríndios eram como que meninos, a
carecer de direcção, de educação. Os trabalhos que teriam que prestar aos seus
senhores eram como que pagas graciosas da protecção e direcção recebidas; tal
como os serviços obsequiosos dos filhos a seus pais. E, neste sentido, do que se
trata não é de escravatura, mas de uma dependência doméstica, como outras que
a sociedade e o direito conheciam.
Escravos, em termos rigorosos, havia-os também. Negros ou brancos,
pelos motivos estabelecidos pelo direito civil. É desses que Molina se ocupa
longamente.
Este modo de por as coisas, aponta para uma indistinção entre europeus e
não europeus. Mas, ao descrever as causas da escravização e ao discutir a sua
verificação nas sociedades nativas, Molina deixa escapar mais imagens sobre
elas, sobre as quais se constrói o senso comum.
***
A primeira questão que Molina coloca é a a questão fundamental de saber
se um homem pode estar sujeito ao domínio de outro, a título de propriedade
(Tractatus [...], tr. 2, d. 33, col. 156 E). Chama, a este propósito, a então tão
glosada distinção aristotélica entre servidão civil e servidão natural (Política, I, 2; I,
3-4; I, 6), relacionando esta última com a imbecilidade e rudeza de certos
homens, que os tornava incapazes de se auto-governarem 401.
No entanto, na esteira de uma orientação que se tornara comum desde o
seu mestre Francisco de Vitória 402, pouco partido tira dela para a discussão da
escravidão. Em primeiro lugar, porque a distinção aristotélica tinha laivos de
heresia, ao supor uma divisão fundamental na Humanidade e ao, com isto, pôr
em causa a sua unidade e, por aí, o carácter universal da Salvação. Em segundo
lugar porque, para Molina, o que estava em discussão não era a aptidão abstracta
de certos homens para se regerem por si, mas a questão concreta de saber com
que justificação de direito positivo, em África e na Ásia, certos homens eram, de
facto, objecto de propriedade.
Como veremos, o carácter prático da questão não diminui o seu alcance
teórica, nem a priva da virtualidade de criar imagens sobre os nativos. Talvez
antes pelo contrário. Como a questão fica “arrumada” em termos de uma grande
teoria baseada na especial natureza de certos homens, muitos outros tópicos têm
que ser mobilizados – nomeadamente, a partir dos discursos sobre o mundo
doméstico ou sobre o mundo dos rústicos – para explicar – e integrar no senso
comum - este facto chocante de homens iguais a nós (digamos, “homens plenos”)
serem, não nossos consócios, mas nossas coisas.
401
Sobre esta teoria de Aristóteles, Pagden, 1988, 69-74; fontes, Política, 1254b, 1255a, 1259 b.
402
Cf. Vitória, De indiis, I, 23; na trad. esp. utilizada, p. 83.
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138
Como já foi salientado na discussão da escravização dos índios
americanos 403, as questões relevantes tinham evoluído muito a partir dos
primeiros contactos de europeus com nativos de outros mundos. Aquando da
descoberta, o problema era o do estatuto, teológico, ético, jurídico, político, dos
“novos homens”. Nisso se trabalhou desde as “juntas” de teólogos e juristas
convocadas pelos reis de Espanha a partir de 1504, durante todo o primeiro
quartel do séc. XVI 404. Coerente ou incoerentemente com a resposta a essa
questão teórica, esse estatuto fora sendo definido pela prática ao longo de
décadas. E, agora – no caso de Molina, quase cem anos depois do início da
escravização moderna dos africanos - do que se tratava era de saber quais os
limites da legitimidade, em termos de direito civil, da situação estabelecida. Ou
seja, retornando ao direito civil europeu e dando como assente que este admitia a
escravização de homens plenos, o que se discutia era se se verificavam na África
e na Ásia aquelas particulares causas que o direito positivo estabelecia como
títulos justos de escravização.
Como veremos, não bastava uma resposta exclusivamente em termos de
direito positivo europeu. Este apenas avaliava a justiça do acto pelo qual os
europeus tornavam homens livres em escravos (nomeadamente, pela guerra justa
e pela condenação penal). Mas, como um dos títulos legítimos de escravidão era
a compra de alguém já escravo, a investigação tinha que recuar, averiguando a
legitimidade da anterior escravização, nos termos do direito positivo da nação em
que se consumara. Pois o comprador europeu não adquirira senão aquilo que o
vendedor possuía; e, se este não fosse legítimo proprietário do alegado escravo,
o comprador europeu também não o era, sendo obrigado a restituí-lo à liberdade
e a indemnizá-lo pelo trabalho prestado e outros eventuais danos. Ou seja, a
compra não era constitutiva do estado de escravidão, não constituía um seu título
originário. Era, antes, um título meramente derivado, pressupondo uma anterior
situação de escravidão e não transferindo para o comprador senão os exactos
direitos do vendedor.
É esse o sentido das investigações de Molina sobre as instituições, os
costumes e as situações de facto das sociedades africanas e asiáticas. Embora –
como de resto acontecia com os direitos positivos da Europa – as valorações
indígenas estivessem sempre sujeitas ao controlo superior das valorações do
direito natural. Daí as questões sobre a justiça dos seus costumes, da seu
processo judicial, das suas guerras. ou seja, a questão da sua conformidade com
o direito natural. Não porque as ordens jurídicas locais não fossem, enquanto tal,
relevantes, mas porque esta relevância não era absoluta.
Este reconhecimento das ordens jurídicas e políticas locais decorre ainda
do facto de, no Império português, a imposição sistemática do senhorio lusitano
ter sido muito mais tardia do que no império espanhol. Em África, como bem se vê
em algumas das notas de Molina, a sujeição políticas das comunidades locais era
esporádica e, frequentemente, muito indirecta. Daí que a responsabilidade do rei
de Portugal pela ordem jurídica e moral dessas sociedades fosse muito atenuada.
Apenas lhe cumpria fazer respeitar os cânones da justiça nas comunidades
403
Pagden, 1988, 18. A obra de Pagden terá arrumado, nas suas grandes linhas, a questão do pensamento
espanhol da Segunda Escolástica sobre os índios americanos. Neste texto, assumem-se as suas conclusões.
404
Cf. Pagden, 1988, 51 ss..
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portuguesas residentes em África, como as de Cabo Verde e de S.Tomé, e no
trato por elas gerido. E disso não se esquece Molina, nas censuras que expressa
aos responsáveis civis e eclesiásticos dessa zona.
***
De servos naturais não se ocupa, portanto, Molina. Desde logo porque,
como explicava Vitória, em rigor, esses escravos naturais não eram verdadeiros
escravos, desses sobre que se tivesse propriedade, que pudessem ser objecto de
negócios jurídicos; desses cuja propriedade podia ser livremente ocupada. Ao
falar de servidão, o que o Estagirita quer dizer é, metaforicamente, que estes
servos por natureza, dada a sua debilidade de engenho, devem ser guiados por
outros mais capazes. E que estes últimos, neste limitado sentido, são seus
senhores 405. “Na verdade, é impropriamente que se chama servidão a esta
natureza: ela não atribui a outrem qualquer direito sobre os homens com esta
natureza. É apenas por uma certa equidade, e não pela justiça, que a própria
natureza das coisas aconselha a que eles próprios voluntariamente se sujeitem
ao poder dos mais sabedores e elegantes, apenas com o fim de serem por eles
regidos para seu próprio bem” (Molina, ibid., p. 156, C-E).
Tratava-se, afinal, de um estatuto semelhante ao dos filhos, das esposas,
ou dos rústicos, sujeitas à autoridade (potestas, manus) do pater, sem que se
pudesse dizer que eram coisas suas. Também um pouco como os filhos e as
mulheres – embora nestes casos intercedessem sentimentos diferentes (piedade,
amor) -, a orientação e protecção recebidas deviam gerar sentimentos de gratidão
ou de reconhecimento, criando obrigações para estes servos: “Por sua vez,
correspondendo [os servos] com obediência, observância [manifestação de
respeito] e honra, ou mesmo com serviços e dádivas, por conta do governo a que
se sujeitam” (ibid.); tanto mais – acrescento eu, com base noutros autores que o
explicitam 406 - que a natureza parecia ter compensado a debilidade do
entendimento com a robustez física, como que denotando aquela especialização
que os fazia mais próprios para servir, com o trabalho físico, do que para
governar, com o engenho intelectual. As mesmas obrigações impendiam sobre os
filhos e a mulher, que deviam obsequia ao pater, e com os camponeses rústicos,
que deviam serviços e honra aos seus senhores 407.
Enfim, estamos num mundo de debilidades já conhecido. O seu imaginário
básico é o que surge originariamente ligado aos menores, fracos, carentes de
protecção e de educação. Mas que se estende, primeiro, aos rústicos do interior
e, depois, a estes rústicos do ultramar que são os negros e os ameríndios 408.
Por outro lado, o discurso sobre os servos naturais estava longe dos
objectivos de Molina, porque, nos diversos cenários que percorre, embora
405
Cf. Vitória, De indiis, I, 23 (p. 83).
406
Cf. Pagden, 1988, 73, referindo Aristóteles. Este argumento é, no entanto, usado parcimoniosamente por
todos os que querem fugir à conclusão da natureza genética (e não apenas psicológica ou meramente cultural) desta
diferenciação.
407
Cf. cap. 5.3.7. deste livro.
408
Sobre esta equiparação de rústicos a selvagens, a propósito das estratégias catequéticas e missionárias das
zonas rurais europeias, v. Prosperi, Adriano, Tribunali della coscienza [...], Torino, Einaudi, 1996., ____; para Portugal,
Federico Palomo, Fazer dos Campos Escolas Excelentes. Fazer dos campos escolas excelentes :los jesuitas de Evora, la
mision de interrior y el disciplinamiento social en la epoca confesional (1551-1630), EUI PhD Theses, 2000.
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140
encontrasse gente carecida de alguma direcção, não era dessa que tratava a sua
dissertação, cujo tema era a escravização individual e não essa situação colectiva
de carência de orientação.
***
A servidão civil, essa sim, traduzia-se num domínio de propriedade em
sentido próprio, sendo os escravos “dos seus donos, [embora apenas, sublinho
eu] relativamente ao trabalho e utilidade que se podem tirar deles” (ibid., 156 D).
Esta servidão, introduzida pelo direito das nações contra a liberdade natural e
original dos homens (D., 1,5,4) 409, também se traduzia – como a servidão natural num favor, pois representava, em geral, a comutação de uma consequência mais
pesada, como a morte (às mãos do vencedor, do carrasco ou pela fome,
conforme as fontes, ou títulos da escravatura, que enuncia a seguir). Daí a
etimologia de “servo”, palavra que diziam originada em servare, conservar, pois
os escravos seriam aqueles prisioneiros que os vencedores conservavam vivos,
em vez de os passaram à espada.
Este é o tema de Molina, a cuja ordem de exposição nos ateremos daqui
em diante.
O primeiro título da servidão civil é a guerra justa 410. Da guerra justa trata
longamente Molina mais adiante (tr. 2, ds. 98 ss.), concluindo ser justa a guerra,
declarada pelo príncipe (col. 415 C), que “vinga injúrias, sempre que uma nação
ou cidade deva ser castigada, por ter deixado de vingar o que pelos seus
injustamente foi feito, ou de entregar o que por injúria foi levado” (col. 413 A).
Concretizando, justa era a guerra que visasse: (i) recuperar coisas nossas
injustamente ocupadas; (ii) submeter súbditos injustamente rebelados; (iii) vingar
e reparar injúrias injustamente recebidas 411 (tr. 2, d. 104, col. 431 D ss.). Embora
não estivesse excluída a guerra ofensiva, dirigida à recuperação de coisas
próprias, ao ressarcimento dos danos causados e à vingança das injúrias
sofridas, a guerra justa era, desde logo, a guerra defensiva, nos seus distintos
objectivos 412. Nestes termos, era claro que era injusta a guerra motivada pela
ambição de “ampliação do império, a glória ou comodidade próprias” (col. 435 C).
Porém, alguns casos de guerra – e, portanto, de escravização – eram mais
controversos. Como estes têm a ver com pontos centrais para a definição do
estatuto antropológico e jurídico dos indígenas, é conveniente que os
desenvolvamos aqui.
O que é que se podia dizer que seria tão nosso que a sua usurpação
justificasse razoavelmente a guerra ? Naturalmente, as coisas de uma nação: o
seu território, as suas cidades, as suas riquezas naturais (pescarias, riquezas
minerais, etc.). Mas, além destas coisas, que são nossas por se integrarem no
409
A liberdade natural era justa, nas condições edénicas da idade de ouro; sobrevindo circunstâncias que
puseram termo a essa idade (como a guerra, o pecado, o crime e a fome), a introdução da escravatura não se teria tornado
menos justa, como consequência adequada destas infelizes novidades (col. 157, D).
410
Excepto entre cristãos, pois existiria um costume prescrito de que os cristãos (mas não os infiéis) não
reduzam cristãos vencidos à escravidão (ibid., col. 158.1 E; 158.2 A).
411
Como prestar auxílio a inimigos com quem tenhamos guerra justa (col. 432 A); defender criminosos por nós
justamente punidos (col. 432 C); violar pacto ou aliança (ibid.)
412
Era neste plano que se legitimava a guerra contra “os sarracenos e turcos”, por parte daqueles que sofreram
as suas ocupações e injúrias, ou parte dos seus herdeiros (na falta destes, do Papa) (ibid, col. 435 A/B).
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património próprio, também aquelas que são nossas por pertencerem a um
património comum a todos, como, por exemplo, o direito de passagem. Molina
pisa, aqui, terrenos delicados. Por um lado, pode citar, na sequência de Francisco
Vitória, exemplos em que as Sagradas Escrituras reconheciam este direito
humano a vaguear e a fixar-se aqui e além, sem prejuízo dos indígenas (ibid, col.
432). Mas, por outro lado, isto era, justamente, o que portugueses e espanhóis
impediam, com base na doutrina do mare clausum. Ou por isto, ou porque Molina
estava consciente das injustiças e violências que tinham decorrido para os povos
indígenas do reconhecimento deste direito, a solução perfilhada afasta-se da do
seu mestre.
Segundo Vitória seria de direito das gentes viajar para outras províncias e
viver aí, desde que sem prejuízo dos indígenas. Esse direito estender-se-ia à
utilização dos portos e dos rios, pois também estes seriam comuns de todos.
Além disso, pelo mesmo direito das gentes, seria justo negociar nessas
províncias, comprando e vendendo. E acrescenta que, se estranhos ou indígenas
costumassem minerar ouro e prata, pescar pérolas ou extrair ouro em lugares
públicos, não poderiam impedir outros de o fazer, concluindo que, se os “bárbaros
do novo mundo” proibissem isso aos espanhóis, gerariam para estes um motivo
de guerra justa (ibid, col. 433 A). Molina discorda: “Parece-nos o contrário. Na
verdade, tudo isso é lícito a qualquer um pelo direito das gentes, enquanto não for
proibido pelos habitantes locais e, além disso, na medida em que o estrangeiro
necessite gravemente do uso daquelas coisas. Nesse caso, não pode ser
licitamente proibido de as extrair, pois isso tanto é postulado pela lei da caridade,
como pelo princípio de que a divisão das coisas não pode impedir aquele que
careça extremamente de uma coisa de usar dela, mesmo contra a vontade do
dono”. No entanto – prossegue -, depois da divisão das coisas e das províncias,
estas não ficam a ser menos daquela comunidade (“república”) a quem foram
atribuídas como próprias do que de todas as outras que sobre elas têm
pretensões comuns, em caso de necessidade extrema. E daí que, tal como a
qualquer particular, “seja lícito aos governadores daquela república proibir todos
os estrangeiros de usar daquelas coisas que são próprias da república e comuns
a todos os seus cidadãos, desde que aqueles estrangeiros não necessitem delas
de modo grave e extremo; como também podem não querer qualquer comércio
com eles, não lhes fazendo com isso qualquer injúria, de onde possa decorrer
causa justa de guerra” (ibid, col. 433). “Vemos não poucas repúblicas fazerem
isto” – remata, sibilinamente, mente parada, porventura, na doutrina do mare
clausum. “E – acrescenta (ibid.) - tanto mais poderá proibir o comércio, o uso dos
portos e a habitação de estranhos quanto mais poderosos estes lhe parecerem.
Pode, de facto, justamente temer que por detrás destes usos esteja aquilo que é
próprio da malícia humana; ou que decorram daí incómodos para o seu próprio
comércio ou residência. E por esta razão pode evitar todas aquelas ocasiões […]”.
O ponto era quente. A antropologia católica tinha definido a comunicação
como um dos traços naturais e distintivos do homem (cf. Pagden, 1988, 178-180).
A ponto de – como já vimos a propósito dos rústicos - o isolamento e a falta de
abertura ao contacto caracterizarem o selvagem (homo in sylva, homem da
floresta, homem não político,) e estarem na origem da sua involução humana. E,
a partir da ideia de que manifestações desta natureza comunicativa eram, para
além da língua, o trato e o comércio, o direito a ser admitido ao comércio tinha
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entrado – embora não unanimemente - no catálogo dos direitos comuns de todos
em relação a todos 413.
É desta opinião quase comum e politicamente conveniente que Molina se
afasta enfaticamente. Qualquer nação se pode fechar ao comércio, como pode
reservar para si a exploração das suas riquezas, mesmo que haja precedentes da
sua concessão anterior a estrangeiros: “Se uma província concedeu a
estrangeiros algumas daquelas suas coisas comuns, seguramente não perdeu a
sua liberdade, de modo a não poder negar o mesmo a outros estrangeiros. Pois
pode conceder a quem bem quiser o uso íntegro das suas coisas e negá-lo a
outrem. De facto, não se pode negar que os portos, os rios e as minas de ouro
pertencem ao domínio daqueles de quem é a província e, por isso, podem estes
reservar para si o direito de pescar, proibindo aos outros as pescarias nesse
lugar”. E o exemplo de contraprova surge oportuno: “Tal como o rei de Espanha e
Portugal as podem proibir a estrangeiros, de facto proibindo que nas costas da
Turdetana, vulgo Algarve, ou nas de Sevilha, que se pesquem atuns” (ibid., col.
433/444).
Um pouco diferente era o caso de direitos emergentes de outra forma de
comunicação – o anúncio do Evangelho. Teriam os cristãos o direito de proclamar
a outros a Boa Nova, em termos tais que a proibição de entrada de missionários
ou a injúria que lhes fosse feita desse motivo a guerra justa ?
Molina, neste caso, segue a opinião comum: “No entanto, os Cristãos têm
o direito de anunciar o Evangelho em toda a Terra, enviando missionários aos
infiéis, protegendo-os e obrigando os infiéis, não a aceitarem o Evangelho, mas a
que não impedirem nem os missionários de, pelo menos, o anunciar, nem os seus
de, pelo menos, o ouvirem, receberem e viverem de acordo com ele. Se alguma
nação, rei ou dinasta fizerem o contrário, é-nos lícito obrigá-los a isso pela guerra
e punir a injúria assim feita ao Evangelho e à fé. E, para que isto seja possível,
podemos seguramente navegar até eles, e habitar nos seus portos e terras na
medida em que isto for necessário para que cumpram a sua missão. Nesta
medida, podemos também exercitar com eles algum comércio, mesmo contra a
sua vontade” (ibid., 434 A/B). De qualquer modo, aconselha medida no exercício
deste direito, consciente de como, na prática da época, as exigências da
missionação tinham sido alargadas abusivamente a outras totalmente apartadas
da finalidade catequética: “Embora, se se puder fazer isso de forma acomodada,
tal seja mais conveniente, sendo preferível enviar-lhes uma delegação que com
eles negoceie, mandando os missionários sozinhos ou com poucos
acompanhantes, do que obter isto pela força […]” (ibid.).
Finalmente, o último apartado de direitos que justificavam a guerra justa.
Não teriam todos os homens o direito a que todos respeitassem as normas
básicas do comportamento humano ? Reduzindo à escravidão ou, pelos menos,
assumindo a direcção política das comunidades que violassem grosseiramente
esses preceitos ?
413
V., v.g., Vitória, Relectio prima de indiis, III, 2-4. A posição de Vitória é, no entanto, mais invasiva do que a de
Molina, já que reconhece mais abertamente o carácter comum a todos dos bens não ocupados, bem como restringe mais o
direito de uma nação a não autorizar estrangeiros a aproveitar das suas riquezas (nomeadamente no caso de haver
precedentes).
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Esta questão reconduz-se, como facilmente se vê, à questão da escravidão
natural. Ao chegar aqui, na sua discussão dos fundamentos da guerra justa,
Molina remete, por isso, para a discussão anterior, limitando-se a resumir as
conclusões: “Não temos que discutir aqui se é causa justa para sujeitar uma
nação à guerra o facto de ela ser bárbara e rude; de modo a que seja regida por
outrem que a imbua de bons costumes, para que mais tarde se possa reger por
si. Não faltaram os que acharam que isto era razão suficiente para se pudessem
reduzir à escravatura todos os brasileiros e outros habitantes do Novo Mundo,
para além dos africanos; com a consequência de que quem os comprasse como
escravos adquiria o domínio deles, sendo privados das suas terras e expropriados
de todas as suas outras coisas. Ora, como se mostrou na disputatio 32, essa
causa não é suficiente para que sejam sujeitos à escravidão, ficando assim
destruído o fundamento de que os autores usavam para afirmar que se podia
espoliar de forma consequente das terras e dos bens quem os possuía” (ibid, ,
435 D).
E não teriam os cristãos o direito castigar com a guerra outro tipo de
usurpadores de coisas comuns à Humanidade, como seja a religião verdadeira ?
Por outras palavras, a idolatria não seria uma causa justa para a guerra ? O ponto
tinha-se tornada actual porque, contra a corrente teológica dominante. alguns
franciscanos tinham admitido a possibilidade de, restaurando o espírito de
Cruzada, legitimarem a guerra como forma de cristianização. Um destes tinha
sido Alfonso de Castro, teólogo e jurista catalão um pouco anterior, que legitimara
assim a subjugação pela Espanha das nações do Novo Mundo. O fundamento
era, a um tempo, bíblico e natural: por um lado, “Deus mandou os filhos de Israel
destruir muitas nações […] (ibid, col. 435 E); por outro, “estes pecados opõem-se
às luzes da razão, tal como a sodomia, a cópula com a mãe e irmãs e outros
crimes” (ibid.). A conclusão de Molina é nitidamente contrária 414:
“Primeira conclusão. Não é lícito ao Papa, ao Imperador ou a
qualquer outro príncipe punir pecados que se oponham às luzes da razão,
desde que não tenham jurisdição sobre os pecadores. Pois tais pecados
não são daqueles que causem injúria a inocentes [abona-se em Vitória e
Covarrubias). Pois punir supõe uma vingança de alguém por alguma culpa,
bem como superioridade ou jurisdição sobre aquele que deve ser punido
ou sobre aqueles que receberam a injúria […]. Porém, nem o Papa nem o
Imperador têm qualquer jurisdição sobre tais infiéis [...], nem os pecados
deles ofendem os seus súbditos ou alguns inocentes, que devam ser
defendidos por direito natural, pois apenas são ofensas a Deus [...] O
mesmo se diga dos pecados contra a lei da natureza e de todos os outros
que não resultem em prejuízo de alguém, pois a sua punição apenas
compete a Deus” (ibid, col. 436 B/E) 415.
As segunda e terceira
justo que o príncipe punisse
436 E); bem como o seria
pecados de que resultasse
414
conclusões inferem-se da doutrina da primeira: seria
os infiéis sobre os quais tivesse jurisdição (ibid, col.
punir os infiéis e todos aqueles que cometessem
injúria para inocentes (como imolarem inocentes,
No mesmo sentido, Vitória, Relectio prima de indiis, II, 16; III, 15 (restrição quanto ao prejuízo de inocentes)..
415
Quanto ao argumento escriturístico de Paulo de Castro, Molina responde que só se pode punir pela guerra no
caso de expressa ordem de Deus, como acontecera nos casos relatados na Bíblia, (ibid., 426 E).
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matarem-nos e comerem-nos, ou oprimi-los com leis tirânicas). Acrescentando
que nem era necessário que o crime fosse consumado, bastando que houvesse
ritos ou costumes desse tipo; nem obstava que os mesmos nativos, virtualmente
sujeitos a tais práticas, as quisessem, pois seria justo libertar da morte mesmo
aqueles que a aceitam. Nesta última parte – em que se aproxima de Vitória
(Relectio, col. 2, n. 15 et al.) – aborda um ponto de certo alcance prático. Pois,
quer em África, quer, sobretudo, na América, os seus contemporâneos tinham
identificado costumes desses. A única limitação a este invasivo princípio era a de
que não seria justo exceder a causa da guerra, usurpando, nomeadamente, os
bens dos inimigos para além das despesas da guerra e da retribuição pela injúria
e danos (ibid, col. 437 D).
***
A segunda causa da servidão civil era a condenação em crime que,
segundo um justo arbítrio, merecesse tal pena, sendo certo que esta nunca se
poderia aplicar senão ao criminoso, mas nunca aos seus descendentes. Embora,
reduzido este ao estado de escravidão, tal estado se perpetuasse na
descendência (ibid, col. 158 C-160 C). Como veremos adiante, Luís de Molina, ao
aplicar estes princípios à escravização na África, elabora uma fina análise
casuística aplicada às diferentes situações concretas.
De âmbito geral era a questão de saber se, oferecido um certo preço por
aqueles que, “em África e no Brasil”, estavam na iminência de ser mortos, ou por
serem prisioneiros de guerra, ou por terem sido condenados à morte, o
“comprador” que assim os resgatava, os podia manter como escravos (ibid, col.
162 D/E). Tudo dependia, dizia Molina, da justiça ou injustiça da morte iminente.
Se esta era justa, o “comprador” podia mantê-los como escravos, “pois ninguém é
obrigado pela lei da justiça ou da caridade a salvar, nestes casos, alguém da
morte. Pelo que é justo pedir um preço pelo salvamento, designadamente a troca
da morte pela escravização” (ibid, col. 162 D/E) 416. Já se a morte fosse injusta, a
questão seria mais difícil, pois, pela lei da caridade, quem resgatou alguém
injustamente ameaçado não fez mais do que o seu dever, não tendo direito, por
isso, a qualquer recompensa. Mas Molina hesita: “sendo os homens ciosos dos
seus bens e atentas as vantagens corporais e espirituais [da escravidão, quando
comparada com a morte] para o escravo, mesmo nestes casos deve-se
considerar a [perda da] liberdade como contrapartida justa da salvação da vida”
(ibid, 164 A/D).
***
A terceira causa de escravização era a venda. De facto, diz, os homens –
livres por direito natural - são donos de si mesmos e da sua liberdade, da qual
podem dispor (ibid, 160 D); a única restrição que se põe é a de a venda poder ser
feita levianamente, quer quanto às circunstâncias, quer quanto ao preço (ibid, col.
160 D-161 C). A conclusão de Molina é arriscada, pois pressupõe a
disponibilidade plena de bens pessoais fundamentais, como a liberdade (ou, por
paralelismo, a vida). No entanto, a prática estava documentada nas Escrituras
(ibid, col. 160 D), sendo ainda aceite pelo direito romano. Ou seja, era uma prática
416
Apenas se exigia que o preço não fosse ridículamente baixo, caso em que a obtenção do escravo seria
excessivo prémio para o preço pago.
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recebida – onde o tivesse sido - pelo direito civil. Já aonde o direito civil não a
tivesse recebido expressamente, não valeria, dado o princípio da liberdade natural
dos homens. Esta última restrição não deixa de ter interesse, pois obrigaria à
prova concreta de que a venda de si mesmo era usada naquela sociedade onde o
escrvao tinha sido comprado pelos europeus, exigindo, assim, averiguações
concretas das situações, de direito e de facto.
De direito era, além da existência de costume permitindo a venda de si
mesmo, a existência de igual legitimidade para vender os filhos in potestate (cf. D
161 D). Questões de facto, existiam muitas, que Molina tratará em relação a cada
um dos vários teatros da escravização.
***
O último título justo de escravização era o nascimento, valendo aqui a
regra geral de que o filho segue a condição da mãe (partus sequenter ventremI, o
[estado do] parido segue o [estado do] ventre), nomeadamente por razões de
certeza (mater semper certa, pater nunquam, a mãe é sempre certa, o pai nunca);
já que por razões genéticas, contrário seria a solução mais correcta, dada a
prevalência genética do macho sobre a fémea 417.
***
Formulados os princípios gerais sobre a legitimidade da escravidão, Molina
abre uma detalhada descrição do trato de escravos, organizado por grandes
cenários geográficos (Tractatus de iustitia et de iure, tr. 2, disp. 34).
O primeiro cenário é o da Guiné Superior (Guiné de Arriba, dizia-se então
em vernáculo), expressão que, aqui, é referida à Costa da Guiné e de Cabo Verde
(ibid, disp. 35).
Esta zona fora a primeira em que os portugueses tinham comprado
escravos. Na segunda metade do séc. XVI já não era a principal nem a mais
rentável, pois o preço dos escravos não era tão baixo como na Guiné de Baixo
(Congo, Angola). Apesar de os impostos pagos à coroa ascenderem a mais de
um terço do preço de compra dos escravos 418.
Como não havia nestas paragens qualquer guerra com Portugal, o único
título de redução à escravatura tinha que ser anterior à compra pelos
portugueses, nomeadamente a escravização em guerras indígenas ou a
condenação à servidão 419. Embora aí só raramente houvesse reis poderosos -
417
O facto de, em matéria de servidão, o estado do filho seguir o da mãe e não o do pai era uma excepção ao
princípoio geral de que era o estado do pai que determinava o do filho (v., infra, cap. ___); por isso, alguns teólogos e
juristas achavam a decisão chocante; por detrás dela estava, porém, fundada numa longa tradição textual, para além de
que, no plano prático, mantinha na escravidão os filhos que os donos fizessem nas suas escravas, o que não era incomum.
Mas mesmo isto – de um pai ser dono dos seus filhos – levantava repugnâncias.
418
Segundo Molina, os mercadores pagavam ao rei, através dos contratadores de Cabo Verde, que tinham o
negócio arrendado, uma quarta do preço do escravo, mais 5 % das três partes restantes. Chegados as peças a Portugal,
pagavam a décima dos escravos chegados. Do remanescente, pagavam 10 % de sisa, a não ser que os escravos fossem
reexportados (ibid, disp. 35). Os contratadores tinham o privilégio de pagar apenas 300 rs. de sisa, o que fazia supor que o
preço normal de um escravo fosse superior a 3 000 rs.. Sempre que os escravos fossem exportados para outro destino que
não Portugal, de cada escravo exportado, pagavam 10 moedas de ouro. Quando a exportação se fizesse da costa
directamente para Portugal, sem passar pelas ilhas, pagavam emPortugal, uma quarta parte dos que chegassem, 5 % dos
restantes ¾, bem como sisa.
419
A não ser, residualmente, algum que tivesse sido comprado para o salvar da morte infligida pelos seus (ibid.,
col. 166 B).
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estando antes divididas as populações em muitos regulados -, as guerras
internas, acompanhadas de pilhagem e cativeiro de inimigos, abundavam, sem
que existisse uma noção de justiça da guerra. Assim, o requisito central para a
justa escravização pela guerra era muitíssimo problemático (ibid., col. 166 D).
Face aos princípios gerais, tudo isto teria que ser averiguado pelos
compradores, para se certificarem de que o escravo tinha sido justamente feito
tal. No entanto, o sistema de mercado não permitia isto. Mal os portugueses
chegavam a um rio ou porto, logo acorriam os africanos, esforçando-se por lhes
vender escravos. Para mais, alguns portugueses, a que chamavam Tangomaos,
exerciam o comércio com os africanos. Os portugueses não inquiriam dos títulos
dos vendedores, comprando tudo o que lhes aparecesse a bom preço.
Perguntados em confissão sobre os aspectos morais do negócio –, que se
limitavam, diga-se, à legitimidade do título de escravização –, os compradores
admitiam que alguns dos escravos não o fossem justamente; escudando-se,
porém, no facto de - pela intermediação de “tangomaos” e de contratadores - não
negociarem directamente com os vendedores. E, se algum escrúpulo de
consciência têm, “basta-lhes pensar na conversão dos africanos e na melhor vida
que aqui os africanos têm do que lá teriam” (ibid., col 167 B); pois, se não os
comprassem, seriam imediatamente mortos pelos seus. Este clima de
complacência estendia-se às próprias autoridades religiosas. Na verdade, o bispo
de Cabo Verde, bem como os sacerdotes aí residentes, davam a absolvição aos
“tangomaos” … a menos que estes faltassem à confissão ou vivessem
amancebados.
Se se podia duvidar da justiça das guerras intestinas, o mesmo acontecia
com a justiça das penas: “Acontece também que naqueles lugares a justiça é
administrada debaixo de alguma árvores pelo rei e alguns anciões, por votação; e,
assim, alguns são condenados à escravatura perpétua em lugar da morte […] Na
verdade, furtos levíssimos, como o de algumas galinhas ou coisa ainda menos
grave, costumam ser punidos com a pena capital ou com a escravidão. Foi-me
dito que um daqueles régulos mandou vender aos portugueses um filho seu
apanhado a cometer um certo furto leve” (ibid., col. 166/167). A que acrescia a
existência de penas colectivas, transmissíveis à família do condenado.
Não existiria aqui, no entanto, senão rarissimamente, a prática do
canibalismo. “Diz-se, porém, que há certos anos irrompeu na zona uma certa
rainha, com um grande exército, que subjugou muitos régulos, e cuja comida dos
soldados era constituída, em grande parte, por negros, os quais matavam, para
lhes comer a carne” (ibid., col. 167 E).
***
O cenário seguinte é o da Guiné de Baixo, ou costa de S. Tomé, que
incluía o trato do Congo e de Angola.
O comércio de escravos era, aí, muito rendoso. Os escravos da Guiné
Inferior deviam ser exportados primeiro para a ilha de S. Tomé e daí para Portugal
ou para o Brasil. No caso de os mercadores concordarem em exportá-los
directamente de Angola para o Brasil pagavam ao fisco 3 000 rs. por cada peça.
Dos que eram exportados para S. Tomé, pagavam ao rei ou aos seus
contratadores quantias iguais às que vigoravam para a Guiné Superior.
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No reino do Manicongo, os negros não se vendiam como escravos, porque
eram cristão (ibid, mesma disp.). Mas os portugueses que aí habitavam, a que se
chamava “pombeiros”, bem como outros negros, iam comprar grandes
quantidades de escravos ao interior, vendendo-os aos portugueses.
No reino de Angola (correspondente ao antigo reino N’dongo 420), a situação
era diferente. Tratava-se de um reino vastíssimo, habitado por nações que a si
mesmas se designavam de Ambundos, e dividido em muitas províncias, regidas
por régulos, chamados “sobas”, cujos distritos se chamavam “mirindas”. Havia
oitenta anos, um destes sobas fizera guerra aos outros, com ajuda dos
portugueses que estavam no Manicongo, subjugando-os e fazendo-os seus
tributários. Assumira o título de Angola Inene, que quer dizer grande, “à maneira
de Imperador”. A cidade capital era Cabaça (ie.e, Kabasa). Tendo pedido ao rei
de Portugal para ser cristão, com oferecimento de minas de parta e comércio de
escravos, foram-lhe enviados religiosos de S. Tomé e, em 1560, uma embaixada,
sob a chefia de Paulo Dias de Novais, com quatro padres jesuítas que
substituíram os anteriores. Desentendimentos ulteriores levaram a que os
portugueses tenham movido guerra contra o filho de Angola Inene, Dembo Angola
(i.e., N’gola N’dambi Inem ia N’djenge). Paulo Dias de Novais chefia uma
expedição punitiva, em 1574, não sem que a Mesa da Consciência tenha emitido
instruções para que a guerra só fosse movida em última instância e sempre sem
violência ou ganância exagerada. Tudo isto – diz Molina - iria sendo verificado,
nas confissões, pelos jesuítas que acompanhavam a expedição. Foi então
ocupada Luanda e, depois de Angola Inene ter sido substituído pelo seu sobrinho
Quilonge Angola (i.e., N’gola Kiluanji kia Samba), estabeleceram-se relações
pacíficas, ajudando-o os portugueses em novas guerras contra sobas vizinhos 421.
Os escravos existentes em Angola eram, além destes cativados na guerra
justa dos portugueses, os escravos comprados, os oferecidos pelos sobas e os
pagos como tributo. Como nestas três últimas categorias, se exige um título de
escravização anterior ao recebimento deles pelos mercadores portugueses,
Molina embrenha-se numa averiguação sobre os costumes indígenas, tentando
avaliar da justiça dos motivos de redução à servidão nessas sociedades.
Assim, começa por explicar a estrutura político-social dos angolanos (ibid.,
col. 170 E). Em cada mirinda, haveria quatro espécies de homens. Primeira, os
mocotas 422, que eram nobres entre eles e por isso livres. Depois, os que eram
filhos de homens naturais daquela mirinda, a que se chamavam “filhos da
Mirinda”; agricultores e mecânicos, eram também livres. Em terceiro lugar, os que
se chamavam quisico, que eram escravos adscritos à mirinda, como nos
morgados, pois passavam, com toda a sua prole, para o sucessor da mirinda. Em
quarto lugar, os escravos que chamam mobicas, que eram aqueles que o soba e
outros privados adquiriam e de que dispunham livremente, não apenas vendendoos aos portugueses, como também, e de há muito, entre si 423.
420
Sobre o qual, v. Birmingham, 1970, 35-41. Bibliografia sobre esta e outras sociedades políticas africanas da
zona em Martins, 1999.
421
A situação volta, depois, a inverter-se (ibid., col. 170).
422
Confere com Birmingham, 1970, 69.
423
Sobre a estrutura social e política do norte de Angola no séc. XVII, v. Birmingham, 1970; Heinze, 1974. Sobre
a evolução política, Birmingham, 1970, 42 ss..
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Os mobicas seriam, normalmente, escravizados nas frequentes guerras
que os sobas tinham entre si, por não conhecerem a noção de guerra justa e por
isso ser promovido pelas próprias práticas judicias. Na verdade – conta Molina –
“foi-me contado dos sobas que reinam em Angola que, sendo frequentes os
litígios entre eles, a que chamam mochanos, os deferem ao rei. Este, no entanto,
vai adiando a resolução da causa, enquanto as partes lhe oferecem serviços.
Quando estes cessam, por um e outro lado estarem exaustos, o rei responde no
sentido de que resolvam a causa pela guerra entre ambos” (ibid., col. , 171 D).
Já os nativos das duas primeiras categorias (originariamente, homens
livres teriam sido reduzidos à escravidão por imposição de penas, justas ou
injustas. De seguida, Molina empreende uma descrição razoavelmente detalhada
das práticas judiciais indígenas, tendente a avaliar a justiça das condenações. O
primeiro défice de justiça decorria, segundo ele, de não haver regra de
julgamento, processo formado, nem identidade entre o acusado e o punido.
Depois, condenava-se por meros indícios 424. Finalmente, apenas se admitia
contestação judicial das decisões do soba se toda mirinda, ou a maior parte, se
queixasse dele; se um privado o fizesse, entendia-se que incorria no crime de
lesa majestade. Já se imagina quanto isto poderia chocar um jurista europeu da
época, imbuído de uma concepção jurisdicionalista e garantista do poder e do
direito (cf. Hespanha 1989g). Finalmente, era-se condenado por crimes próprios
ou de parentes, “por certezas ou suspeitas, muitas vezes forjadas pelos sobas”.
Destes costumes judiciais aproveitavam portugueses, condescendendo
com eles o governador português, que os chegava a utilizar para condenar os
sobas. “Alguns destes sobas – conta Molina - obedecem ao rei de Portugal, tendo
como responsáveis certos portugueses que são como que senhores deles,
dividindo com os sobas os seus bens e escravos. Nem os religiosos podem
persuadir estes portugueses do contrário, pois dizem que aquele costume não é
injusto segundo o costume da sua pátria, antes necessário em face das
características da região. Também me foi dito que os governadores portugueses,
quando querem condenar um soba, usam os modos da pátria deste, reunindo em
assembleia militar os sobas e propondo a questão contra o réu perante juízes
para isso deputados. E que, segundo o costume da região, se parecer que o réu
merece a morte e que é punido como culpado de lesa-majestade, não só o matam
a ele, mas imediatamente incluem na condenação aqueles que lhe estiveram
sujeitos como soldados, sejam nobres, sejam filhos da mirinda, matando muitos
deles, e reduzindo os outros à escravidão. Acorrem então à casa daquele soba,
esquartejam-no e reduzem a escravos todos os membros da família, mesmo a
mulher e os filhos, de modo que muitos inocentes são miseravelmente feitos
escravos, locupletando-se os portugueses com eles todos e com os seus bens,
por causa do mal praticado por apenas um” (ibid., col. 172 C) .
Alguns exemplos ilustram a injustiça de algumas práticas de redução à
escravatura: “Só o rei Angola tem pavões, e em grande número. Fez uma lei
424
“Se o soba tem um leve indício de alguém trama a sua morte ou de que se quer revoltar contra ele, ou ajudar
alguém contra o rei, ou algo de semelhante, redu-lo à escravidão, confisca-lhe todos os bens, não só seus, mas também
dos seus familiares e apropria-se de tudo o que lhe pertencia, sem qualquer investigação ou figura de juízo; mas mais: se
algum dos súbditos descobrir algum facto verdadeiro, que é negado pelo soba, é por isso reduzido à escravidão, ou morto
com todos os seus parentes, bastando uma testemunha para condenar alguém pelos crimes que lhe imputam” (ibid., col.
171 E/172 A).
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segundo a qual se alguém lhes tirar uma pena, ele mesmo e todos os seus
parentes são mortos, reduzidos à escravidão e espoliados de seus bens. Fez
outra, segundo a qual quem tiver ventosas nas palmeiras, para tirar daí vinho de
palma, seja morto ou feito escravo com todos os seus parentes. E têm outras leis
semelhantes, plenas de avareza, crueldade e injustiça […] Se algum defunto
deixa alguma dívida, o soba recebe em cativeiro todos os filhos, mesmo que o
débito seja pequeno e os filhos valham muito mais. Em tempo de paz, os homens
de uma mirinda costumam raptar os que são de outra mirinda, vendendo-os como
escravos. Acontece que em certo rio, em que o senhor do lugar é nosso inimigo,
os negócios de escravos só se fazem de noite, levando africanos para o navio
como cativos, a fim de serem vendidos. Também dizem que os senhores das
mirindas mandam alguns a certos lugares, nos quais têm preparadas
emboscadas, para que aí os cativem e vendam aos portugueses. Como também
vendem os filhos e as filhas aos portugueses, por um espelho ou um guizo, ou
outro qualquer objecto que os portugueses tenham e que lhes agrade. Também
se diz que nesta Guiné inferior muitos são canibais, acontecendo frequentemente
que oferecem no mercado público os escravos aos mercadores e, a não ser que o
mercador suba o preço de certo escravo a mais do lucro que se pode obter no
mercado pela sua carne, antes matam ali o pobre do escravo em vez de o
venderem vivo, tal é a fereza e barbárie dos homens” (ibid, col. 173 C).
No entanto, os mercadores portugueses – os de fora, os pombeiros ou os
habitantes dos reinos de Manicongo e Angola – não cuidavam dos títulos de
escravidão, aceitando promiscuamente todos os escravos, desde que o preço
lhes fosse conveniente. Nem os sacerdotes que moravam na Ilha de S. Tomé lhes
incutiriam qualquer escrúpulo a esse respeito.
***
A partir dos inícios do séc. XVI, abre-se um outro cenário, o de
Moçambique ou, mais precisamente, o de Sofala. O comércio dessas paragens
incluía, além de outras mercadorias, também escravos, “grandes e robustos,
chamados cafres, que levavam para a Índia e, alguns, para Portugal”.
Inicialmente, os escravos eram apenas os comprados. A partir de D.
Sebastião, altura (1569) em que se leva a cabo uma expedição punitiva,
capitaneada por Francisco Barreto, contra o reino de Monomotapa, começa a
haver escravos feitos em guerra; embora Molina pondere que, nos últimos
tempos, este reino não tenha dado causa de guerra justa, invadindo ou
depredando os estabelecimentos portugueses (ibid, , §§ 15 e 16). Quanto aos
escravos comprados, cabia pôr a questão do título: nomeadamente, se eram
escravos de guerra, haveria que distinguir a guerra justa do simples roubo. Como
parecia haver por aí canibalismo, havia que considerar a possibilidade de terem
sido resgatados, pela escravidão, de destino ainda mais fero. E, de qualquer
modo, constatava-se que o trato de escravos já existia antes, vendendo-os os
nativos tanto aos portugueses como aos maometanos, entrando, através destes,
num trato mais alargado (ibid, § 17).
***
Outro cenário era o da Índia. Para aí, traziam os portugueses escravos de
várias nações, com as quais tinham guerra ou comércio. Com algumas (Calicute,
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150
Samatra, Java, Malaca e Achem) os portugueses teriam guerra justa, fonte
legítima de escravização. Com outras (Cambaia, Pegu, China e Japão), os
portugueses não tinham guerra. Mas dizia-se que “nesses reinos, quando reina a
fome, os homens se vendem a si mesmos e aos filhos por preço baixíssimo, não
só a nós mas também aos infiéis” (ibid, col. 175 B/C). Na sequência das medidas
de repressão das religiões locais, inauguradas pelo concílio de Goa de 1567,
constituições e provisões régias proibiram que os infiéis não muçulmanos
vassalos de Portugal possuíssem escravos, promovendo-se a sua libertação por
quem os tivesse, mediante certa indemnização, a fim de que os libertos se
tornassem mais facilmente cristãos 425. Os muçulmanos já estariam rigorosamente
proibidos de terem escravos ou de os venderem (ibid, § 19). Mas, em qualquer
dos casos, Molina duvida que se façam averiguações sobre a legitimidade dos
títulos de escravização.
***
O último cenário era constituído pela China e pelo Japão.
Quanto à China, existiam as maiores dúvidas sobre o justo título de
escravização dos escravos comprados: “Consta, de facto, que a província da
China vive em paz perpétua, não tendo guerras a não ser com os Tártaros, que
porém estão muito longe dos nossos comércios”. Por outro lado, a imagem da
China como república política ideal, fazia com que o autor supusesse que também
aí não haveria fome que obrigasse as pessoas a venderem os filhos. A única
hipótese de legítima escravização resumia-se aos piratas com os quais se tinham
guerras justas. De qualquer modo, piratas não seriam as escravas chinesas tão
apreciadas em Portugal. Daí que se devesse presumir que os escravos chineses
eram todos comprados a furto e que, qualquer que fosse o preço pago, nunca se
tornam propriedade legítima, a não ser que intercedesse prescrição de boa fé.
Mesmo neste caso, a melhor opinião era a de que a liberdade nunca prescreveria
(ibid, col. 176).
Quanto ao Japão, Molina opinava que “entre os príncipes japoneses as
guerras são frequentíssimas, embora se deva duvidar da sua justiça”. Quando
muito, devia presumir-se que as guerras dos príncipes japoneses cristãos o
fossem, dado que tinham confessores cristãos. Mas, uma vez mais, o autor
duvidada que se fizesse exame da situação dos escravos que os portugueses aí
compravam.
***
Estabelecidos os princípios gerais e definidas as situações de facto, podese examinar com detalhe a legitimidade da escravização dos negros, tal como
tinha sido examinada a questão da escravização dos índios pelas juntas reunidas
pelo Imperador Carlos V 426. Molina está a proferir um discurso inaugural, já que a
questão nunca fora sistematicamente examinada. Em parte – julga ele - porque o
trato se tinha introduzido paulatinamente; em parte porque “poucos homens
letrados e tementes vão àquelas paragens, não admirando que ninguém tenha
425
Concessão da liberdade ao escravo de infiéis que se converta (CL 5.3.1559, Pereira, 1954, II, 114 ss.). Cf.
Wicki, 1969; Instruções ao Pai dos Cristãos, de Alexandre Valignano, S.J., Ajuda 49-IV-49, fls. 226.
426
Sobre elas, Pagden, 1988, 50 ss..
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151
sugerido isso ao rei” (ibid, col. 178 B/C). É certo que Bartolomé las Casas se tinha
pronunciado sobre a ilegitimidade da escravização dos africanas, na sua Historia
de las Indias (inédita até 1875); mas, ainda que Molina tivesse conhecido o
manuscrito (o que era bem provável), dele não tiraria grande coisa no plano da
fundamentação doutrinal, já que o texto de Las Casas, fundamentalmente
baseado nos relatos de João de Barros, é mais um libelo emotivo do que um juízo
deliberativo.
Combinando a doutrina com a caracterização das situações, Molina
formula algumas regras gerais.
***
A primeira é a de que, se os escravos provêm de territórios onde há guerra
justa e foram exportados no tempo dela, se presume serem justos escravos; o
mesmo se diria tendo cessado a guerra, mas não havendo rumor de que aí se
fizessem escravos injustamente, pois se presumiria que eram cativos de guerra
ou filhos deles (ibid, 178D-179A).
A questão complica-se com a da caracterização da guerra como justa ou
injusta, sobre a qual Molina apresenta uma extensa casuística 427. A opinião de
Molina sobre as guerras entre os africanos é muito negativa: “Rarissimamente se
presume que sejam justas. Os que se julgam mais poderosos invadem e oprimem
os outros; e são esses que mais escravos exportam, apoiando as injustiças dos
outros e tirando aos escravizados injustamente a sua liberdade. Alguém digno de
fé e que vivera com os cafres por muito tempo, contou-me que pouco escrúpulo
se tinha em comprar escravos e que, por exemplo, havia nessa região um rei que
tinha súbditos audazes e ferozes, temidos dos outros. O qual para obter grande
quantidade de escravos, costumava atacar de noite os lugares vizinhos,
espalhando soldados por diversas aldeias, para que entrassem ao mesmo tempo,
uns numa aldeia e outros noutras. De tal modo que o rumor chegasse aos lugares
próximos, com a notícia de que ele estava a chegar e de que as suas armas eram
superiores; e com a ameaça de que, a não ser que todos se dessem em
escravidão, seriam mortos. Então, os pobres, para não morrerem todos, entravam
nas casas, e deixavam de fora os filhos e as filhas, outros a mulher e, deste
modo, os davam para serem vendidos. Um companheiro do nosso padre Gonçalo
da Silveira 428 escreveu-nos sobre os costumes daqueles homens, contando que é
tanta a sua barbárie que, se um é espoliado, faz o mesmo a um outro qualquer só
para obter aquilo que lhe tiraram. Daí resulta quão raramente se deve presumir
ser justa a guerra entre africanos” (ibid., col., 189 E). Tão pouco se pode presumir
que entre os africanos existe guerra por pacto tácito e comum [de que os
427
Ibid., col. 185 B, concluindo, como regra geral que, sendo duvidosas as questões sobre a justiça das guerras,
é lícito a um terceiro comprar coisas tomadas por qualquer das partes. No caso de guerras injusta de ambas partes,
movidas pela cobiça e falta de vontade de fazer a paz, como acontece em muitas guerras dos infiéis e dos bárbaros,
podem comprar-se os cativos de guerra (ibid., col. 186 D). Isto porque como que se teria gerado um pacto mútuo de cativar
os vencidos, que obriga os beligerantes e aproveita a terceiros (ibid., col. 187 B). “Talvez esta decisão – conclui Molina
ironicamente - não deixe de sossegar as consciências daqueles que compram escravos na Guiné superior e na Cafreria”
(ibid., col. 187 D).
428
Sobre o qual, v. Vitam Gonzali Silveirae Societatis Iesu Sacerdotis in urbe Monomotapa martyrium passi die
XV Martii MDLXI, Lugduni apud Horatio Cardon 1612. Tradução italiana por P. Francisco Maria de Amatis, ed. de Jacobo
Mascardo, Roma, 1615. Tradução alemã por P. Joao Volckio Bavaro, S.J., Augusta, 1614. Tradução castelhana, Vida del
bienaventurado Padre Gonçalo de Silveira, sacerdote de la Compañia de Iesus, martirizado em Monomotapa, ciudad en la
cafraria, s. l., s. d., Madrid, 1614, Roma, 1615.Dados biográficos.
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vencidos ficarão escravos]. Mesmo que houvesse alguma conjectura verosímil de
existir tal guerra entre africanos, não concederíamos aos mercadores ser justo
comprarem escravos antes de positivamente se certificarem que aquele escravo
foi cativado em guerra justa” (ibid., col., 190 A).
E conclui: “Opino que estas guerras de que os portugueses se abastecem
de escravos, são mais latrocínios do que guerras”. A existência do comércio
esclavagista português teria, além disso, um efeito de depravação dos costumes,
pois promoveria a escravização entre os africanos que, aliás, não teriam a quem
vender os escravos, pois os comerciantes maometanos não chegavam nem a
uma em à outra Guiné (ou seja, nem ao Golfo da Guiné, nem ao Congo e Angola
(ibid., col., 190 C).
***
A segunda regra diz respeito aos que, numa e noutra Guiné, foram
reduzidos à escravidão por crime público pelas autoridades do lugar. A sua
escravização era legítima, embora já fosse injusto escravizar a mulher, os filhos
ou os parentes do criminoso; a não ser por crime atroz, como os crimes contra a
república, pois – recorde-se - esse era também o regime da lesa-magestade
europeia.
A punição devia, porém, ser proporcionada, de acordo com um prudente
arbítrio. Assim, seria justo punir com a escravização, para além dos crimes
puníveis com a morte, os crimes que, na Europa, se punissem com as galés,
como, por exemplo, o adultério da mulher, o atentado ao pudor de uma mulher, o
furto de coisa notável segundo os critérios do lugar. Não assim os furtos leves,
“pois nem no exército os punimos assim” (ibid, 180 A). Justificava-se ainda a
escravização no caso em que a compra do escravo representasse a forma de o
livrar da morte. No entanto, Molina pondera que, tanto a gravidade do crime como
a oportunidade da pena, deviam ser avaliadas pelas circunstâncias do lugar. E,
assim, se para os ibéricos era absurdo punir o roubo de galinhas com a morte,
havia que considerar que, em sociedades em que o roubo era praticamente
inexistente, se justificava a punição pesada mesmo dos mais leves. Para que –
acrescenta Molina – essa sociedade não chegasse à desregra das europeias.
***
Regras ulteriores dizem respeito aos escravos que se vendessem
voluntariamente como tal. A frequência com que tais vendas (sobretudo de filhos
e mulheres) eram invocadas obrigava a que houvesse o cuidado de inquirir das
suas circunstâncias (ibid, 180 D). Assim. Na Índia e em sítios em que as grandes
fomes levavam os infiéis a venderem os filhos ou a si mesmo, seria justo comprálos, sempre que a sua decisão fosse livre e que existisse da sua parte uma
grande necessidade. Como cada um é dono de si, podia vender livremente a sua
liberdade; e, se o contrato fosse válido segundo a lei do lugar, teria que se aceitar
(ibid., col. 182 B). Para mais, a servidão cristã seria melhor do que o estado de
grave necessidade, sobretudo pela oportunidade de conversão. A compra seria,
assim, um acto de caridade, o equivalente à ajuda que se deveria prestar a um
necessitado, se este fosse cristão. Ou seja, a ajuda um necessitado pagão não
era exigida pela lei da caridade, como acontecia no caso de o necessitado ser
cristão; e, se efectivada, legitimava que se obtivesse em troca a escravização dp
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ajudado (ibid, 181 C). No entanto, como corria que, muitas vezes, os filhos dos
nativos lhes eram roubados, os confessores deviam inquirir disso, bem como da
venda dos filhos sem grave necessidade (ibid.).
No caso destas compras da liberdade, também o preço podia ser matéria
de escrúpulo por excessivamente módico. Exceptuava-se, porventura, o caso da
Guiné Inferior (Congo e Angola), onde a liberdade quase parecia não ter valor.
Nos restantes cenários, o preço era variável.
Em alguns lugares da Índia, compravam-se filhos aos pais por 4 a 6 reais
de prata 429. No reino de Cambaia, vendiam-se os filhos por 6, 8 ou 10 pardaus 430.
Revendiam-se em Goa a 15 a 50 pardaus, dependendo da qualidade dos
meninos. Quando a fome aumentava, o preço descia (ibid., col. 183 E). Porém,
entendia o autor que a modicidade do preço era compensada pela lonjura e
custos da viagem (ibid., col. 183 D). Molina adverte ainda, a este propósito, “que o
preço dos meninos não se mede pelo seu valor útil, mas em muito mais, a não ser
que interviesse alguma circunstância peculiar pela qual se devesse comprar
aquele menino por menos do que os outros (como no caso de a sua vida correr
grande risco e se ter que fazer grandes despesas para o curar ou alimentar,
morrendo se continuasse em poder dos pais)” (ibid., col. 184 A). Seja como for, se
se tivesse comprado um escravo por um preço muito baixo, mas usual na região e
no tempo, pela grande oferta ou muita miséria, não se seria obrigado a dar ao
escravo o diferencial entre o preço pago e o justo preço, pois o preço era comum
e justo. Quando muito, poder-se-ia dever (moralmente) manumitir o escravo,
passado o tempo correspondente ao preço pago (ibid., col., 184 D/E).
Na Guiné, comprava-se um escravo por um espelho dos usados pelas
mulheres portuguesas pobres ou por outros bens, como meio côvado de pano
azul, verde ou vermelho, objectos de vidro ou de cobre. De tal modo que o
escravo não custava ao mercador mais do que uma moeda de ouro 431 ou menos
ainda. Os mercadores não o negavam. Mas argumentavam que os grandes lucros
eram dos pombeiros ou tangomaos; que muitos escravos morriam; que eles
mesmos corriam muitos riscos de saúde, por causa do clima; e que pagavam
impostos ao rei (ibid., col. 182 E/183 A). Molina, pela sua parte, tem deste assunto
uma apreciação prudente: “Não ouso condenar este trato da Guiné. Aquelas
coisas que nós aqui vilipendiamos, são lá apreciadas. E o seu longo e perigoso
transporte fá-las caras lá”. Por outro lado, a abundância de escravos fazia baixar
o seu preço, a ponto de os africanos os negociarem por preços muito baixos,
como contas de marfim, que usam ao pescoço como adorno, ou dentes de
pantera (ibid., col. 183 C).
***
Em face destas conclusões parciais e de todas as dúvidas que se moviam
sobre a justiça do estatuto da generalidade dos escravos, Molina conclui muito
duramente sobre o conjunto da problemática: “É claramente para mim muitíssimo
verdadeiro que este negócio de comprar escravos naqueles lugares de infiéis e de
429
Um real de prata equivale a 2 vinténs, ou seja, 40 réis (informação de Bluteau).
430
Um pardau corresponde a um quarto de cruzado (cem reis), informa Molina.
431
Uma moeda de ouro equivaleria a um cruzado, segundo Bluteau.
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os exportar de lá é injusto e iníquo, e que todos os que o praticam pecam
mortalmente e ficam em estado de condenação eterna, a menos que excusados
por ignorância invencível, na qual nunca ouvi afirmar que estivessem. Além disso,
o rei e todos os que têm as chaves do poder real, bem como o bispo de Cabo
Verde e da Ilha de S. Tomé, e ainda os que os ouvem em confissão, cada um no
seu grau e ordem, devem cuidar de examinar estas coisas e de estabelecer o que
são permitidas ou não, para que a justiça se restabeleça eficazmente nos últimos
casos. A não ser que conheçam algo, que eu desconheço, ou que os esclareçam
outros princípios que eu ignore, afirmo que se trata de um pecado mortal, não
apenas contra a caridade, mas ainda contra a justiça” (ibid., col. 188 C). Com o
ónus para os mercadores – acrescenta – de restituir e indemnizar aqueles de que
seja verosímil a presunção da injustiça do título, o mesmo valendo para os que os
comprem sem cuidarem destes assuntos (ibid., col. 188 A/C). “Só isto – remata deveria ser suficiente para condenar em pecado mortal de injustiça o negócio dos
escravos, de que discutimos; pois os portugueses não fazem nenhuma inquirição
junto dos africanos acerca da justiça da guerra nem de outros títulos sob os quais
os escravos que se vendem são escravizados, antes os compram
promiscuamente, o que quer que seja que lhes seja dito” (ibid., col. 189 B).
“Nada digo aqui – acrescenta ainda - das sevícias de que estes escravos
são objecto, desde que são trazidos do interior pelos Tangomaos ou pelos
pombeiros até que se exportam por mar. Por exemplo, cortam o braço de um que
abandonam morto, servindo-se dele como chicote para bater nos outros, a fim de
que, com o medo da morte, se ponham a caminho. E exercem ainda sobre eles
outras sevícias […] Do mesmo modo, nada digo das sevícias que sofrem
frequentemente nos navios em que se exportam, e que são muitas, pois, para que
se lucre muito, exportam tantos que é forçoso que muitos morram em virtude da
estreiteza dos navios, nos quais permanecem fechados, como em cárceres, dia e
noite (ibid., col., 190 E). Nem nada direi do concubinato, tanto dos Tangomaos
com as mulheres que exportam, quer com as que ficam ao seu serviço naqueles
lugares em que não têm mulheres, o mesmo se passando com os mercadores.
Nem falarei dos concubinatos dos escravos entre si, pois exportam os homens
juntamente com as mulheres. Estas coisas e outras semelhantes são vícios dos
negociantes, pois o próprio negócio, em si mesmo, não produziria estas ilicitudes
e injustiças. Compete cuidar destas coisas tanto aos bispos, párocos e
confessores, como aos governadores daquelas províncias e deste reino e a
outros ministros reais, fazendo com que, eventualmente, se expeça alguma lei
sobre isto” (ibid., col., 191 A).
E remata: “Os eventuais bens espirituais que se podem extrair deste
negócio não o justificam. Não se pode fazer o mal para que resulte o bem, além
de que aqueles que exportam os escravos não estão a pensar no bem espiritual
deles, mas no seu lucro temporal” (ibid., col. 191 D). Evocando o monopólio do
trato, pretendido pelos reis de Portugal ao abrigo das bulas papais de partilha do
mundo 432, Molina problematiza a sua legitimidade com base no princípio, antes
enunciado, de que o mal nunca pode produzir o bem. É que, sendo a conversão
dos nativos a causa pela qual fora concedido o monopólio deste e doutros tratos
aos reis de Portugal e prejudicando a natureza do trato a obtenção do fim
432
Romanus Pontifex (1455), Inter caetera (1456), Eterni Regis (1481) e duas bulas de 1493.
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espiritual, a concessão pontifícia caduca por insubsistência da sua causa final. E
caducada a concessão do Papa, a legitimidade de comércio alarga-se a todas as
nações, pois por direito das gentes é comum (ibid., col. 191 D). Quanto aos
proveitos materiais para a comunidade, “se se promovesse o comércio, a
mineração de ouro e prata e a agricultura, tinham-se tantos lucros como com a
escravatura” (ibid., col., 191 D).
***
Esta exposição das opiniões de Molina – que prolongámos pelo interesse
intrínseco e pela generalizada inacessibilidade do texto – permite-nos agora
salientar o que há de mais relevante neste tratamento da questão do estatuto
jurídico-antropológico dos africanos, sobretudo se em confronto com a doutrina
geral da época sobre o estatuto dos ameríndios.
Sublinho, em primeiro lugar, que Molina afasta implicitamente, logo desde
o início, a aplicação da teoria da servidão natural de Aristóteles aos africanos. De
facto, depois de referir a existência (teórica) de homens que, pela debilidade do
seu intelecto e pela robustez dos seus corpos, são servos 433 por natureza, anuncia
que do que vai tratar, a propósito do trato esclavagista africano, é da servidão
civil 434.
Com isto, situa as sociedades africanas no mundo das sociedades civis, ou
seja, das sociedades plenamente humanas. E, de facto, ao longo de toda a
detalhada averiguação das causas da escravização nos vários cenários
geográficos percorridos, a servidão por natureza nunca aparece aplicada a
qualquer nação, sendo o estatuto dos escravos antes explicado pelas várias
causas particulares da servidão civil.
A questão de saber se a extrema barbárie autoriza a escravização dos
nativos ou a destruição das suas instituições também é respondida de forma que
salvaguarda a natureza humana e civil dessas sociedades. Na verdade, a
barbárie e fereza não legitimariam a guerra justa por parte dos europeus, a não
ser que prejudicassem gravemente inocentes. Mas aqui, já não é a barbárie ou
selvajaria que legitima a guerra, mas antes a tirania sobre inocentes. E essa,
segundo a leitura comum da época, bem pode ocorrer em sociedades civilizadas
e políticas.
É certo que algumas vezes se destaca o carácter selvagem e fero dos
costumes africanos. O canibalismo é referido como existindo na Guiné inferior. O
carácter endémico e injusto da guerra é considerado como um apanágio da
sociedade africana. A ferocidade das penas é realçado, o mesmo acontecendo
com o carácter arbitrário do processo e a crueza tirânica do governo. No entanto,
todos estes elementos são mobilizados, não como sinais de uma radical selvajaria
e inumanidade destas comunidades, mas antes como características isoladas de
particulares regimes políticos, que deviam ser consideradas para a avaliação das
situações de escravidão. O canibalismo surge no âmbito da discussão sobre o
carácter liberatório da escravidão em relação a um mal maior. A injustiça das
433
Embora não, em termos rigorosos, escravos.
434
Esta linha de argumentação aparece também em Francisco de Vitória, que desvaloriza a relevância da teoria
aristotélica da servidão natural (Política, I, 6, 1254a) para o ponto em causa (Vitória, Relectio prima de indiis, I, 23).
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guerras, no âmbito da discussão sobre a legitimidade de escravização dos
vencidos. A desordem judicial na avaliação da justiça da eventual pena de
escravidão. Nunca se toma qualquer destes traços como o sintoma de uma
involução humana, legitimando a destruição ou escravização global dessas
comunidades. Nem nunca se aponta para as vantagens políticas e morais do
estabelecimento de qualquer direcção dos portugueses sobre as comunidades
indígenas. Pelo contrário, as ideias de intromissão violenta no governo nativo,
para finalidades de educação espiritual ou política, são sempre recusadas com
base numa larga cópia de argumentos, dos quais se salienta o de que educar
pressupõe alguma jurisdição e que, sobre os africanos, nem o Papa, nem o
Imperador, nem os reis de Portugal têm nenhuma.
Em todo o caso, o discurso de Molina não deixa de ser devastador para
qualquer ideia de assimilação entre africanos e europeus. Embora constituindo
comunidades políticas – e situando-se, portanto, no âmbito da humanidade –,os
africanos são claramente marcados de diferentes. E, dentro da diferença, de mais
bárbaros e incivilizados. Os seus reis são tirânicos, governando com trapaças e
não admitindo recurso judicial das suas decisões; a sua justiça faz-se sem ordem
nem figura de juízo; as suas penas são desproporcionadas e estendem-se aos
familiares do criminoso; os seus costumes são ferozes, incluindo o canibalismo.
Nunca é dito que isto decorra de uma especial natureza psicológica ou moral,
nem sequer que tenha origem nas circunstâncias ambientais dos trópicos. Serão
o produto de costumes deseducadores, de maus governantes, de carência de
direcção mais esclarecida. No fundo, o mesmo mal de que padeciam as
comunidades camponesas europeias, já descritas sobre a epígrafe de rústicos.
É claro que, para aspirar a um papel civilizador, os europeus também não
reuniam grandes trunfos, segundo a análise que vimos a expor. De qualquer
modo, no caso dos europeus, as aberrações representarim traços individuais, que
destoavam de um sentido comum de justiça. E, por outro, os vícios e bausos
inventariados acabam por se inscrever num cálculo racional de benefícios que,
embora perverso, é lógico e até sofisticado – o cálculo comercial da maximização
dos lucros.
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158
8. Pobres e miseráveis 435.
Neste capítulo, trata-se do significado social da pobreza na sociedade
europeia moderna e dos deveres que daí decorriam para com os pobres e para
com os dignos de misericórdia, fosse qual fosse o motivo disso.
Constatemos, logo desde o início que de acordo com o pensamento
teológico-jurídico dominante - tal como foi expresso pelos grandes juristas ibéricos
da segunda metade do séc. XVI – os pobres tinham um direito reconhecido a ser
auxiliados, a que correspondia o dever das pessoas comuns (ou das corporações,
como misericórdias, câmaras, tribunais) de os ajudar. Os próprios poderes
colaboravam nesse cumprimento deste dever, criando impostos com finalidades
caritativas, recolhidos ou nas “arcas das [obras] pias”, existente nos concelhos ou
arrecadados por estruturas criadas para o efeito, como as mampostarias dos
cativos, cuja missão era arrecadar e administrar os donativos e as taxas
destinadas a remir os cativos e tratar das negociações da sua remissão.
Na medida em que a pobreza era um estado de injustiça, a questão que se
punha era a de saber se os pobres poderiam tomar pela força aquilo de que
tivessem necessidade. Por exemplo, se podiam roubar para comer. Os juristas
eram muito cuidadosos com essa questão; contudo, a ideia de que os pobres
tinham um direito natural aos bens excedentes era largamente dominante.
Ironicamente, esta ideia de direito aos bens vagos ou excedentes seria também a
forma comum de legitimação jurídica do direito dos europeus às terras “vagas”
das suas novas colónias.
A semente desta linha de pensamento já estava presente na Segunda
Escolástica ibérica, que aparentemente achava um tanto poética a promessa de
Cristo de que aos pobres apenas haveria de caber um lugar no reino dos Céus.
Foi, no entanto, com John Locke, que ela haveria de frutificar. O conceito de
direito a auxílio – que era bastante como, para várias formas de auxílio, num
435
Miseráveis:
* Os privilégios não lhes aproveitam quando a miséria é intencionalmente causada, (Forenses, cap. 11, ns. 73 e
120)
* Não podem renunciar ao privilégio de foro, Forenses, II, cap. 11, n. 102.
Paupertas ad obligatione num liberat, licet eam suspendat et sopitam (adormecida) habeat, t. 3, ad 1,10, gl. 5, n.
19; de onde o devedor de dízimas, desde que pobre, não esteja obrigado ao seu pagamento
De quibus pauperibus praesumatur, tom. 4, ad 1,62, gl. 20, n. 8 (remissivo); mais, gl. 23 (sobre obras pias e
esmolas: pouco interessante).
* Valasco, De privil. Pauperarum
* Bento Gil, Tractatus de jure, et privilegiis honestatis in duo divigintiarticulos distributus quibus universum
pertinet, explicatur, Olyssipone, apud Petrum Craesb., 1618
* uma pretensão da monjas de S. Bernardo de Tavira de serem miseráveis, Forenses, II, 828 (processo contra
Mateus Gonçalves Rendeiro, 1665)
* a Ord. Concede o privilégio a todas as monjas, enquanto miseráveis e isto quer sejam ricas, quer
tenham jurisdição, ib.; o A. julga de limitar nas que têm jurisdição por exegese dos termos da Ord.. Mas alarga o argumento
no sentido de que o privilégio só deve aproveitar às monjas das ordens mendicantes, que não têm bens, ib. (S. Francisco,
S. Domingos, S. Agostinho, Carmelitas, Jesuitas.
Paupertas voluntaria commendatio, S.Th, 3, q.40, 3.
A pobreza não é a pefeição mas um instrumento de prefeição, 2-2-, q. 188, a.7, ad 1.
Riqueza causa três males [impedimentos da caridade:a solicitude que as riquezas exigem; o amor das riquezas;
glória vã], que se se evitam pela pobreza, 2-2-, q. 188, 7c
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direito comunitarista (não individualista), como o ius commune – e um alívio das
situações de pobreza constituiu, então, a base em que assentou a doutrina
jurídica da pobreza, tanto como a da guerra justa. Embora o medo da vadiagem –
que apareceu e se agravou a partir do séc. XIII – tenham temperado o vigor
destas posições de socorro dos que não tinham o suficiente.
Independentemente das ideias clássicas sobre a pobreza, o pensamento
cristão tinha sido profundamente marcado pelo dito de Cristo “Beati pauperes
spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum” [“Bem aventurados sejam os
pobres em espírito, pois deles é o reino dos Céus”] (Mateus, 5, 3; Lucas, 6, 20),
dito que era confirmado – vistas as coisas por um outro lado, que realçava ainda
mais a ideia de igualdade de posses – pela parábola do rico, do camelo e do
buraco da agulha 436. A expressão “pobres em espírito” abriu uma vasta discussão
entre os exegetas, que se perguntavam a quem se estaria a referir Cristo, ao
antecipar prognósticos sobre o último e definitivo juízo de Deus 437; porque é que
era deles o reino dos Céus; e se isto não constituía, afinal, uma distorção na
Salvação. Fosse como fosse, era assente que os pobres constituíam a parte mais
querida ou eleita da humanidade; e isso explicava a situação de favor em que
teologia, ética e direito os colocavam.
Paralelamente a este discurso cristão sobre a pobreza, existia um outro
sobre a caridade, a versão cristã de uma virtude clássica no mundo pagão – a
liberalidade.
Já a liberalidade (liberalitas) apresentava aspectos paradoxais, na relação
netre deveres e direitos e entre ética e moral. Na verdade, a liberalidade era uma
virtude pessoal; de modo que não implicava qualquer tipo de obrigação. No
entanto, como virtude, era algo de devido, regulado por normas que se impunham
tanto ao doador como ao donatário 438. Assim, estes actos arbitrários de
liberalidade – actos gratuitos, por isso chamados “de graça” eram envolvidos por
um conjunto de normas que os transformavam de gratuitos em quase devidos.
Antidorais (do grego antidora) era o nome para estas obrigações quase-legais que
cobriam vastos domínios das relações sociais 439.
O carácter obrigatório da caridade (charitas)
(misericordia) foi ainda reforçado pela teologia cristã.
e
da
misericórdia
Para muitos teólogos, a caridade estava no centro das virtudes cristãs, de
acordo com as quais o povo cristão havia de ser salvo ou condenado no Juízo
“Como é difícil para aqueles que têm riquezas entrar no reino dos Céus ! Meus filhos, como é duro para
aqueles que se fiam na riqueza entrar no reino de Deus ! É mais fácil para um camelo passar pelo buraco de uma agulha
do que para um rico entrar no reino de Deus” (Marcos 10:23-25). Outra declaração relativa à relação entre pobreza e
santidade: “Sigam o vosso caminho, vendam tudo o que tiverem e dêem o produto aos pobres; e tereis tesouros no Céu;
vinde, tomai a cruz e segui-me (Marcos, 10:21).
436
437
Foi ainda recentemente que, em algumas traduções das Igrejas nacionais se abandonou a tradução de
“pauperes spiritu” pela conveniente locução “pobres de espírito”, que se apresentava como menos arriscadas para a ordem
estabelecida.
438
Cf., para um comentário cristão à teoria da liberalidade de Aristóteles, Thomas Aquinatis, In decem libros
Ethicorum Aristotelis ad Nochomachum exposition, ed. used. Roma, Marietti, 1964.
439
S. Clavero, B., Antidora. Antropología Católica de la Economía Moderna. Milán. Giuffrè. 1991; António Manuel
Hespanha, "Les autres raisons de la politique. L'économie de la grâce" (versão castelhana em La gracia del derecho,
Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993).
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160
Final 440. Assim, ajudar os pobres, nomeadamente pela esmola, tornou-se num
dever crucial para os cristãos. S. Tomás de Aquino (1225 (?)-1274) discute o
tema na Summa Theologica (IIa-IIae, qu. 32) 441. Uma das questões versa o tópico
440
Cf., v.g., Albertario de Brescia, um frade italiano franciscano do séc. XIII insistia em que, no dia do Juízo Final,
Deus não iria perguntar nada acerca de roubar, matar, mentir, blasfemar, praticar simonia ou usura, etc., mas apenas sobre
o activo de cada um actos de misericórdia e de esmola (“Plus eciam dico vobis, quia sola datio elemosinarum videtur esse
datio quare Dominus det nobis regnum eternum, et sola denegatio helemosinarum est ratio quia Dominus det nobis
eternum supplicium. Quod possumus videre aperte per Evangelium Domini. Nam, in ultima sentencia, quam daturus est
Dominus in die iudicii, dicet bonis, qui erunt adextris: "Venite, benedicti Patris mei, percipite regnum, quod vobis paratum
est ab origine mundi." Et reddet rationem, quare dicit: "Namque esurivi, enim et dedistis mihi manducare: sitivi, et dedistis
michi bibere: nudus fui, et opuistis me: hospes fui, et collegistis me: infirmus et in carcere fui, et visitastisme," nec dicet:
"Quia fuistis sobrii, casti, humiles, et devoti, continentes, mites, vel talia bona fecistis," sed tantummodo rationem
helemosinarum redens, dicet: "Esurivi, et dedistis mihi manducare, etc." Similiter, et converso, dicet malis, qui erunt a
sinistris: "Ite, maledicti, in ignem eternum" et reddet rationem, quare dicens: "Esurivi enim, et non dedistis mihi manducare:
sitivi, et non dedistis mihi bibere: nudus fui, et non cooperuistis me: hospes fui, et non collegistis me: incarcere et infirmitate
fui, et non visitastis me." Nec reddet aliam rationem. Non enim dicet: "Quia fuistis latrones, fures, homicide, falsarii,
blasffemi, symoniaci, luxuriosi, incontinentes,immites, superbi, invidi, vel quia talia mala fecistis." Sed tantummodo rationem
helemosine sibi vel pauperibus denegate pretendet,dicens: "Esurivi enim, et non dedistis michi manducare, etc.", Albertano
of Brescia, Sermo secundus [quem Albertanus, causidicus brixiensis, composuit inter Fratres Minores et causidicos
brixienses, in congregatione, quam faciunt more solito]. http://www.thelatinlibrary.com/albertanus.sermo2.html). V. Mateus,
25, 31 ss. (31: "Quando o Filho do homem vier em sua glória, com todos os anjos, assentar-se-á em seu trono na glória
celestial. 32: Todas as nações serão reunidas diante dele, e ele separará umas das outras como o pastor separa as
ovelhas dos bodes. 33: E colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda. 34 : "Então o Rei dirá aos que
estiverem à sua direita: 'Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que lhes foi preparado desde a
criação do mundo. 35: Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui
estrangeiro, e vocês me acolheram; 36: necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de
mim; estive preso, e vocês me visitaram'. 37: "Então os justos lhe responderão: 'Senhor, quando te vimos com fome e te
demos de comer, ou com sede e te demos de beber? 38: Quando te vimos como estrangeiro e te acolhemos, ou
necessitado de roupas e te vestimos? 39: Quando te vimos enfermo ou preso e fomos te visitar?'. 40: "O Rei responderá:
'Digo-lhes a verdade: o que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram'. 41: "Então ele dirá aos
que estiverem à sua esquerda: 'Malditos, apartem-se de mim para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos. 42:
Pois eu tive fome, e vocês não me deram de comer; tive sede, e nada me deram de beber; 43: fui estrangeiro, e vocês não
me acolheram; necessitei de roupas, e vocês não me vestiram; estive enfermo e preso, e vocês não me visitaram'. 44:
"Eles também responderão: 'Senhor, quando te vimos com fome ou com sede ou estrangeiro ou necessitado de roupas ou
enfermo ou preso, e não te ajudamos?' 45 "Ele responderá: 'Digo-lhes a verdade: o que vocês deixaram de fazer a alguns
destes mais pequeninos, também a mim deixaram de fazê-lo'. 46 "E estes irão para o castigo eterno, mas os justos para a
vida eterna".
441
“Se dar esmola é um acto de caridade? Objecção 1. Pareceria que dar esmola não é um acto de caridade.
Porque sem caridade não se podem praticar actos de caridade. Ora é possível dar esmolas sem sentir caridade, como se
diz em 1 Cor. 13:3: «Se eu tiver que distribuir todos os meus bens para dar de comer aos pobres [...] e não o fizer por
caridade, isso não me aproveita em nada». Daí que dar esmola não seja um acto de caridade. Objecção 2. Além disso, a
esmola são tidas como uma obra de satisfação dos pecados, segundo Daniel, 4:24: "Redime os teus pecados com
esmolas”. Ora a satisfação é um acto de justiça. Por isso, a esmola é um acto de justiça e não de caridade. Objecção 3.
Acresce que oferecer sacrifícios a Deus é um acto de religião. Mas dar esmolas é um serviço a Deus, segundo Heb. 13:16:
«Não se esqueçam de fazer o bem e distribuir, pois por meio de tis sacrifícios obtém-se o favor divino». Por isso, dar
esmolas não é um acto de caridade, mas de religião. Objecção 4. Diz, ainda, o Filósofo (Aristóteles, Ética. IV, l) que dar
para uma finalidade boa é um acto de liberalidade. Ora isto é particularmente verdadeiro no caso das esmolas. Então, dar
esmolas não é um acto de caridade. Em contra. Está escrito em 2 João. 3:17: "Aquele que é rico e que viu o seu irmão em
necessidade e afastou dela a sua malga, como pode a caridade de Deus permanecer nele ?». Respondo que. Os actos
externos pertencem à virtude relativa ao motivo por que se praticam tais actos. Ora o motivo para dar esmola é aliviar os
necessitados. Daí que alguns tenham definido a esmola como «um acto que algo é dado a um necessitado, provocado pela
compaixão e em honra de Deus», motivo que pertence à misericórdia, como foi dito acima (30, 1,2). Daí que seja claro que
dar esmola é, propriamente falando, um acto de misericórdia. Isto revela-se no próprio nome, pois em grego eleemosyne
deriva de ter pena eleein, tal como o latim "miseratio". E como a pena é um afecto pertencente à caridade, como se viu
acima (30, 2, 3, Objecção 3), segue-se que dar esmola é um acto de caridade por meio da pena ou comiseração. Reposta
à objecção 1. Um acto de virtude pode ser tomado de dois modos: primeiro, materialmente, pelo que um acto de justiça é
fazer aquilo que deve ser feito; e tal acto de virtude pode então ser feito sem a virtude respectiva, pois muitos, sem terem o
hábito da justiça, fazem o que é justo, ou orientados pela luz da razão, ou por medo, ou na esperança de lucro. Em
segundo lugar, falamos de uma coisa constituir formalmente um acto de justiça e, assim, um acto de justiça é fazer aquilo
que é justo do mesmo modo que o faz um homem justo, ou seja, com prontidão e gosto, não podendo tal acto de justiça
existir sem a virtude. Neste sentido, dar esmola pode realizar-se materialmente sem caridade, mas dar esmola
formalmente, i.e., por amor de Deus, com prazer e prontidão, e tanto quanto cada um pode, não é possível sem caridade.
Resposta à Objecção 2. Nada impede que o acto próprio de uma virtude seja prescrito por outra, dirigindo-o esta ao seu
próprio fim. É deste modo que a esmola se conta entre os actos de satisfação, na medida em que a piedade pelo
sofrimento de outrem se dirige à satisfação de um pecado e, nesta medida, a compensar Deus, tendo a natureza de um
sacrifício e sendo, nessa medida, prescrito pela religião. De onde a resposta a esta objecção se torna evidente. Resposta à
objecção 4. A esmola pertence à liberalidade, na medida em que a liberalidade remove um obstáculo a esse acto, o qual
poderia resultar do amor excessivo pelas riquezas, do qual resulta que uma pessoa as busque mais do que deve”, Summa
Theologica (v. versão inglesa, com uma boa tradução, em http://www.newadvent.org/summa/.).
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161
de saber se a esmola é um acto de caridade ou um acto de justiça (qu. 32, art. 1:
“Objecção 2. Além disso, a esmola são tidas como uma obra de satisfação dos
pecados, segundo Daniel, 4:24: "Redime os teus pecados com esmolas”. Ora a
satisfação é um acto de justiça. Por isso, a esmola é um acto de justiça e não de
caridade”). Uma resposta neste sentido levaria a que os pobres tinham direito a
ser auxiliados. São Tomás sustenta o contrário, excluindo que as esmolas
constituam qualquer espécie de retribuição (pelos pecados, em vista da
salvação), pertencendo assim à esfera da justiça. Contudo, ao discutir a questão
“Se dar esmolas é uma matéria obrigatória (artº 5), ele sublinha que cada um tem
o dever externo de ajudar os pobres, imposto pela razão natural, a qual –
acrescento eu – também é, para São Tomás, a fonte do direito natural 442.
Portanto, embora não seja concebido como um dever legal, dar esmola é,
contudo, classificado como uma espécie de dever, de um nível superior,
decorrente da razão natural, cuja exclusão da esfera da justiça se explicava, não
pela inexistência de um dever, mas fundamentalmente pela falta de um direito
correspondente.
Mas porque é que não havia um direito à esmola ?
Não por razões substanciais, nomeadamente por causa do carácter
absoluto do direito de propriedade (dos ricos).
Realmente, a posição de São Tomás incorpora uma concepção de
propriedade muito peculiar. O segundo tipo de argumentos que ele considera dos
que negavam à esmola a natureza de um comando prescritivo é precisamente o
da pretensão de que os direitos de propriedade seriam absolutos: “Objecção 2.
Além disso, é garantido pela lei que cada um use e conserve aquilo que é seu.
Ora para o conservar não pode dar esmolas e, assim, é legal não dar esmolas e,
por consequência dar esmolas não é objecto de um preceito”. Na sua resposta,
São Tomás desenvolve o tema da propriedade de um modo que nega o seu
carácter absoluto e a transforma numa espécie de compropriedade com os
necessitados. “Os bens temporais que Deus nos deu – escreve ele – são nossos
enquanto propriedade; mas no que respeita ao seu uso, eles não nos pertencem
só a nós, mas também àqueles que nós podemos socorrer com aquilo que temos
para além das nossas necessidades” 443.
Mais tarde e mais próximo, Domingo de Soto (Segóvia, 1494 - Salamanca,
1560) será ainda mais claro sobre este ponto. Ao discutir a quem devem ser
atribuídos os bens cujo dono é desconhecido (ou os créditos cujo credor
desapareceu), o ponto de partida da argumentação de de Soto é que, segundo o
442
“Responde que. Como o amor do nosso próximo é matéria de preceit, aquilo que constitui uma condição
necessária para esse amor é também matéria de preceito. Ora o amor do próximo requer não apenas que lhe queiramos
bem, mas ainda que lhe façamos bem, segundo 1 João. 3:18: «Amemos não apenas com palavras e com a língua, mas
com actos e com verdade». E para se dizer bem e fazer bem a uma pessoa, devemos socorrê-la nas suas necessidades:
isto faz-se pela esmola. Por isso, dar esmola é matéria de preceito. Todavia, como os preceitos dizem respeito a actos de
virtude", segue-se que todas as esmolas devem ser matéria de preceito, na medida em que são exigidas pela virtude,
nomeadamente enquanto são exigidas pela recta razão” (ibid.).
443
A frase seguinte, num tom pré-proudhoniano, quase consideravam as desigualdades da propriedade como um
roubo (de uso): “Daí que S. Basílio diga [Hom. super Luc. xii, 18: «Se reconheceres que eles" scil. Os teus bens temporais.
your temporal goods, "provêm de Deus, será ele injusto por os distribuir desigualmente ? Porque é que tu és rico enquanto
outros são pobres, a não ser que tu tenhas o mérito de um bom serviçal e ele a recompensa da paciência ? O que se
passa é que tu escondes o pão que mata a fome dos pobres; que tu deitas fora o vestido do homem nu, que tu atiras para
o lixo os sapatos do descalço, que tu enterraste o dinheiro daquele que precisava; e que, deste modo, tu cometes uma
injúria [um acto ilícito] em relação a todos os que podias ajudar». Santo Ambrósio expressa-se do mesmo modo”” (ibid.)..
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direito natural (de acordo com um dito que vem logo no início do Digesto de
Justiniano, D., Hermogenianus, 1,1,5), os bens são comuns a toda a
humanidade 444. Apenas o ius gentium, já de factura humana, embora
tendencialmente universal, teria dividido a propriedade. Daí que esses bens que
tivessem deixado de estar repartidos pertenceriam, de novo, à república:
“Contudo – escreve ele – como o Vigário de Cristo toma a seu cargo os pobres no
seio da república cristã, é justo que estes bens, que são comuns a toda a
sociedade, sejam destinados ao socorro das necessidades dos pobres membros
dessa sociedade […] uma vez que aquilo que é supérfluo deve ser dado aos
pobres e esses bens podem ser considerados como supérfluos para a república.
No entanto, esses não passam para os pobres como herdeiros dos credores
originais; pelo contrário, dá-los aos pobres é dá-los aos seus credores
originais” 445. A opinião de de Soto surge a propósito de uma polémica da época
acerca da tentativa da Coroa (ou das cidades) de levarem à prática uma política
para a pobreza 446. O oponente de de Soto defendia que “pedir não era um direito
natural, mas antes uma infeliz necessidade. Em consequência, as leis que
proibiam a esmola privada a favor de uma assistência centralizada apenas
limitavam a liberdade individual de pedir em nome do bem comum 447. Em
contrapartida, o dominicano “mantinha teimosamente que pedir era um direito
humano fundamental, de modo que limitá-lo haveria de resultar num risco para a
vida dos pobres. Além de que tanto o direito natural como o direito
consuetudinário permitiam a qualquer um procurar livremente a maneira de prover
às suas necessidades (ibid.).
Assim, a opinião de de Soto sobre um direito natural dos pobres aos bens
que lhe sejam indispensáveis baseia-se nesta posição sobre a legitimidade –
ainda que restringida por certas normas – do roubo quando cometido por pessoas
extremamente carenciadas:
444
Compare-se com uma versão da mesma questão, apresentada, já no séc. XIX por Leopold August
Warnkönig (Philosophia
iuris
delineatio;
Bibliopolio,
1855
(agora
em
http://books.google.com/books?id=_X8EAAAAYAAJ&dq=introducta+dominia&source=gbs_summary_s&cad=0), p. 104 ss).
A propósito da legitimidade natural da compra e venda, o autor aborda a questão antecedente da origem da propriedade
privada e do poder de excluir outrem do uso das coisas próprias. Depois de referir a opinião dominante na Antiguidade e
entre os medievais (cita Platão, Lactâncio, Thomas Morus e Campanella.), de que a propriedade originariamente foram
comum a todos e não privada. Teria sido com Hugo Grócio e com os restantes escritores jusracionalistas (de que refere
Grócio, Puffendorf, Thomasius, Fichte) que surgira a nova ideia de que a “propriedade privada era justa em si mesmo e,
portanto, instituída por direito natural”, não deixando de notar a importância (rei gravitas) política que esta discussão tinha
no seu tempo: “Precisamente nos nossos tempos, alguns negam isto, especialmente os Comunistas, como são chamados
entre os seus sectários franceses (p. 105), pelo que a questão devia ser discutida detidamente. A sua conclusão é a de que
a propriedade privada ou provém ou de uma convenção tácita dos homens, ou de supremas leis públicas (cita Hobbes,
Rousseau, Bentham e literatura francesa recente) ou da ocupação e transformação por meio do trabalho (cita Locke, Kant
e os seus seguidores).
445
Domingo de Soto, Tractatus de iustitia et de iure, Cuenca, Salamanca, 1556,, ed. bilingual (latina.castelhana),
Madrid, Ministério de Justicia, 1982, lib. IV, qu. VII, ed. cons., p. 363. Cf. also Thomas Vio Cajetanus, De eleemosynae
praecepto, c. 3.
446
A opinião de de Soto no sentida da existência de um direito directo dos pobres sobre estes bens relaciona-se
também com uma dura polémica com Juan de Medina, também conhecido como Juan de Robles, De la orden que en
algunos pueblos de España se ha puesto en la limosna para remedio de los verdaderos pobres, Salamanca in 1545 [= La
charidad discresa, practicada con los mendigos, y utilidades que logra la republica en su recogimiento, Valladolid,
1757].). acerca da assunção pelas cidades (ou repúblicas) do dever de aliviar a miséria dos pobres. De Soto desenvolveu
os seus argumantos numa obra de 1545; In causa pauperum deliberation [=Deliberación en la causa de los pobres]. Sobre
o tema. Maureen Flynn, Sacred Charity. Confraternities and Social Welfare in Spain, 1400-1700, Ithaca, NY: Cornell
University Press, 1989; Abel Athouguia Alves, "The Christian Social Organism and Social Welfare: The Case of Vives,
Calvin and Loyola", Sixteenth Century Journal, 20/1(1989), 3-21.
447
Greg Cooney CM, “The Social
(=http://www.vincentians.org.au/vinstudiesconsc.htm).
Conscience of Vincent
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163
de
Paul”,
in
Oceania
Vincentian
“A esta cuestión se responde con tres conclusiones. Primera: Las cosas
que sobran al hombre, por ley natural pertenecen al sustento de los pobres. Así lo
dice la autoridad de San Ambrosio [...] Y Ia razón natural se desenvuelve de la
siguiente manera. Ningún derecho de gentes, ni ningún derecho humano puede
derogar el derecho natural, o el divino, que son superiores a aquellos; pues bien
el derecho natural y la Providencia divina han dispuesto que las cosas inferiores
se empleen en remediar las necesidades de los hombres, para quienes fueron
creadas. Por consiguiente cuando tales cosas por sobreabundar no son
necesarias a quien las posee, no hay ley ninguna humana que pueda prohibir que
se empleen en servicio de los pobres.
Segunda conclusión: Esto no obstante, nadie puede, fuera de extrema
necesidad, quitar sus bienes a aquel a quien le sobran. Se prueba esto, porque
aunque tal persona, que es rica, está obligada a repartir estos bienes, sin
embargo pueden presentarse muchos pobres en diversos lugares y tiempos, entre
los cuales es conveniente que el mismo dueño haga caritativamente su
distribución.
Tercera conclusion: En caso de necesidad extrema, esto es, cuando es
evidente y apremiante, en este caso quien la padece puede lícitamente echar
mano a los bienes ajenos para socorrerse, lo mismo oculta, que abiertamente. La
conclusión ya ha sido hecha muchas veces; porque el derecho de conservación
es tan innato en el hombre, que ante él tienen que ceder el paso todas las otras
cosas [... 448] La palabra, extrema, parece que, efectivamente quiere significar
esto. Sin embargo se responde que no ha de esperarse a llegar a aquella que se
cree vulgarmente. Porque hay quienes juzgan como extrema necesidad aquella
que ya no tiene remedio posible. Por consiguiente se tiene como articulo de
extrema necesidad cuando ves a un hermano acercarse al peligro de enfermedad
incurable, o de otra calamidad que suele amenazar a los hombres, aquel, repito,
en que se puede prevenir, y evitar una grande desgracia” 449. A questão da
obrigação jurídica de dar esmola tinha ainda outras dificultares; mas Domingo de
Soto vai procurando afastá-las 450. A resolução final é claro: o roubo, em casos de
extrema necessidade, é lícito, por direito natural, tal como o é, ainda, o roubo
praticado por um terceiro para ajudar alguém que esteja numa pobreza extrema.
Uma e outra coisa fundavam-se num supremo direito à vida, de hierarquia
superior a outros direitos – como o de propriedade, que são funcionais em relação
à mesma conservação da vida:
“À la segunda dificultad concedemos sinceramente que el hurto es una
acción intrínsecamente mala; y de tal manera que, como hemos afirmado en el
448
Domingo de Soto estabelece, em seguida, a distinção entre grave e extrema necessidade, como fronteira
entre o roubo ilícito e lícito. Remete para S. Tomás, Summa theol., IIa.IIae, q. 32
449
Porém, “La necesidad que pone al hombre en peligro de perder el honor, aunque no se considere como
extrema, es sin embargo grave, y obliga bajo pecado grave a aquel que tiene posibilidad de prestarle ayuda” (ibid.).
450
“No faltará, sin embargo, quien proteste contra nosotros en este caso. Hemos dicho ya muchas veces, ya en
otros lugares, ya también hace poco que nadie puede ser forzado a lo que solamente le obliga la caridad, sino tan sólo a lo
que le obliga la justicia; y en caso de extrema necesidad nadie está obligado a ayudar a otro sino por caridad; puesto que si
estuviera obligado en virtud de la justicia, quien en algún caso no socorriera, quedaría obligado a restituir, cosa que no se
admite. Por tanto tampoco la autoridad pública puede en este caso obligar, ni tampoco quien se halla en peligro coger
particularmente nada de otro. Se responde a esto que poco importa que digas que en tal necesidad media algún motivo de
justicia, porque propiamente no es otra cosa más que una misericordia, pero misericordia que obliga rigurosísimamente. Y
la razón de que en este caso obligue es el derecho especial que cada uno tiene de conservar su vida” (ibid.)..
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libro 2, Dios, como dador de la ley natural, no puede dispensar en ella. Pero,
como hemos dicho hablando de la prohibición del homicidio, que en el precepto
general: «No matarás», por lo mismo que es un precepto natural, en él no se
incluyen los casos que la misma naturaleza no puede incluir, tampoco en el
precepto: «No robes». Y así tampoco con la prohibición del hurto pudo prohibirse
la apropiación de una cosa ajena, cuando la misma naturaleza lo permitió. Por lo
cual tal apropiación no constituye hurto, sino una apropiación autorizada por Ia
naturaleza. // Finalmente a la tercera se responde que con el mismo derecho
puede uno apropiarse de lo ajeno para socorrer al indigente en la misma
necesidad. Pero fuera de ella San Agustín prohíbe que se hagan limosnas de lo
robado” 451.
Subjacente a esta discussão estavam questões, quer teológicas, quer
políticas. Entre as primeiras, a ideia de um compromisso pessoal como elemento
essencial da Salvação; entre as últimas, a ameaça de repressão política dos
pobres provocada medidas legais a que nos referiremos 452.
Por isso, ainda que um direito à esmola não fosse formalmente garantido,
esta falha legal relacionava-se primordialmente com um aspecto técnico. Pois o
facto de quer o supérfluo dos ricos, quer o necessário aos pobres tivesse que ser
acertado por uma decisão prudencial (de um tribunal, porventura) 453, tornava o
direito dos pobres em algo de meramente virtual. Foi por isso que, mais tarde,
haveria de ser introduzida uma nova política da pobreza que dava a autoridades
públicas o poder de tomar a seu cargo o auxílio aos pobres, de acordo com
critérios objectivos e gerais (“pobres merecedores”).
A entrega a autoridades públicas da gestão do problema da pobreza
correspondia à emergência da questão da pobreza como questão social e política,
relacionada com a vaga de agitação surgida, a partir do séc. XIII, com o aumento
da massa dos pobres, agitação expressa na vagabundagem, violência colectiva,
heresias, e relacionada com a fome e escassez de meios de sobrevivência 454.
Esta foi a razão pela qual a desconfiança numa misericórdia puramente
pessoal como modo de atalhar a pobreza surgiu entre as elites, dando origem a
tentativas de a regular por meio de posturas das cidades. Os primeiros exemplos
são alemães (decreto imperial de Carlos V, de 1531, proibindo pedir esmola;
ordonnances locias de Gant e Bruxelas, em 1537; de Bruges, em 1560; decreto
real, em Espanha, de 1540, impondo limitações ao direito de pedir esmola, em
Zamora, Salamanca e Valladolid). O caso mais famoso foi o de uma ordonnance ,
de Ypres (1534), que deu origem a uma polémica doutrinal sobre a natureza da
pobreza e sobre a política para a combater, em que intervieram, tanto os
451
Domingo de Soto, De Iustitia & lure, Lib. V, Qu. III, p. 427 ss..
452
Greg Cooney CM, “The Social Conscience …”, cit..
453
Domingo de Soto, De Iustitia & lure, Lib. V, Qu. III, cit..
454
Michel Mollat, Les pauvres au Moyen Âge, étude sociale, Paris, Hachette 1978; Jean-Pierre Gutton, La société
et les pauvres en Europe (XVIe-XVIIIe siècles), Paris, Presses Universitaires de France, 1974; Giancarlo Maiorino, At the
margins of Rennaissance. Lazarillo de Tormes and the picaresque art of survival, Penn State Press, 2003, 21 ss.; Bronislaw
Geremek, Poverty. A history, Oxford, Blackwell, 1994; Laura de Mello e Souza. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira
no século XVIII,. Rio de Janeiro, Graal, 1982; Isabel dos Guimarães Sá, As Misericórdias Portuguesas de D. Manuel I a
Pombal, Lisboa, Livros Horizonte, 2001; Isabel dos Guimarães Sá, Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e
poder no Império Português, 1500-1800, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1997.
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professores de teologia da Sorbonne, como o conhecido humanista espanhol
Juan Luis Vives 455, uns e outro defendendo a natureza política da questão e
propondo medidas também políticas – e não meramente pessoais – para a tratar.
Para Vives, “a caridade como base para ajudar os pobres não funciona, em
virtude do egoísmo humano. O que ele propõe, mais do que a esmola individual
movida pela compaixão, é antes que os cidadãos cometam às autoridades
públicas que ocorram às necessidades dos pobres” 456. O motivo da esmola seria,
principalmente, o bem da sociedade e só secundariamente a compaixão pelo
pobre. Daí que, mesmo naqueles casos em que o pobre carecesse das coisas
mais básicas, a esmola era uma questão sobretudo de justiça, pois se esperava
que o beneficiado compensasse a cidade com trabalho útil (e tanto mais duro e
desagradável quanto mais culposa fosse a pobreza 457. Embora a proposta de
Vives aparecesse como uma resposta cristã ao problema da pobreza, o que ele
fazia era encarar o auxílio aos pobres como um instrumento importante de
controlo social 458. Isto é visível na obrigatoriedade, prescrita por alguns estatutos
urbanos, de que os pobres usassem certas marcas pregadas nas roupas 459, como
acontecia com os judeus ou com os loucos 460. A partir do séc. XVII, as políticas
públicas em relação aos pobres tornaram-se ainda mais duras, com a invenção
das casas de trabalho forçado (Zuchthäuser) 461.
Por sua vez, a reforma luterana passou insistir na ideia de que o pobreza
não era um estado favorecido pelo cristianismo, mas antes um mal social que
devia ser tratado e, se possível, curado: “os pobres deixaram de ser objectos de
uma caridade meretrícia, tornando-se próximos que deveriam ser servidos por
meio da justiça e da equidade” 462; tendo sido este novo ponto de vista a despertar,
nas cidades e principados luteranos, uma política repressiva da mendicidade.
Paralelamente, uma imagem nova, mais complexa e contraditória, dos
pobres ia sendo construída também no mundo católico, combinando as iniciais
imagens evangélicas com estas nova imagética ligada às questões política da
ordem social, degradante para os pobres, agora aproximados doa vagabundos e
das pessoas de má vida e, com isso, feridos de interdições 463.
Neste momento, ocorre salientar dois traços principais.
Em primeiro lugar, que a teologia europeia tradicional – e, com ela, o direito
– atribuía aos pobres reais direitos de partilhar os recursos criados pela
455
De subventione pauperum (1526).
456
Vives, De subventione pauperum, Liv. II, Cap. 2, in F. R. Salter (ed.), Some Early Tracts on Poor Relief,
London, Methuen, 1926.
457
Ibid., Liv. II, Cap. 3, in in F. R. Salter (ed.), Some Early Tracts on Poor Relief, cit., 12-13.
458
Abel Athouguia Alves, "The Christian Social Organism and Social Welfare: The Case of Vives, Calvin and
Loyola", Sixteenth Century Journal, 20/1(1989): 3-21, p. 7.
459
Por exemplo, uma cruz amarela.
460
Greg Cooney CM, “The Social Conscience …”, cit..
Cf., em resumo, Thomas Munck “Forced Labour, Workhouse-Prisons And The Early Modern State: A Case
Study”, em http://www.history.ac.uk/eseminars/sem6.html.
462
Carter Lindberg, “Luther on Poverty,” in Timothy J. Wengert (ed.), Harvesting Martin Luther’s Reflections on
Theology, Ethics, and the Church, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2004, 140-41, cit. em
http://www.elca.org/jle/article.asp?k=751.
461
463
Cf., por exemplo, Bento Fragoso, Regímen reipublicae christianae, Lugduni, 1641-1652 (ed. útil., Colonia
Allobrogum, 1737), Pars I, lib. IV, p. 602: proíbe que se tomem como testemunhas, nomeadamente nas causas criminais,
por não serem equiparados a maiores pelo direito (cita D., In l. 3 in principio, ff. de testibus).
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providência divina, pelo menos na medida das suas extrema necessidade e
carácter supérfluo dos bens disponíveis. A concessão destes direitos incluía o
reconhecimento do direito de auto-apropriação, mesmo por furto nos casos
extremos.
Para além disso, o direito estabelecia uma especial protecção dos pobres e
outras pessoas miseráveis, concedendo-lhes privilégios de foro, que lhes
permitiam avocar as causas em que interviessem para o tribunal da corte, tal
como acontecia com os desembargadores 464. Isto porque, “inspirando a natureza
à piedade pelo seu abandono pela fortuna” (ibid. n. 42, p. 182), se entendia que a
grandeza de alma (magnanimitas) do rei lhes criaria uma situação mais favorável
nesses tribunais 465. Esta vantagem – que, realmente, podia representar apenas
alguma comodidade ou mesmo apenas uma distinção simbólica, obrigando a
outra parte a prescindir do seu foro e a ter que propor a acção no foro da parte
privilegiada – fazia, apesar de tudo, com que a qualidade de pobre fosse
artificialmente procurada; como acontecia com os pais de muitas filhas nobres,
que tinham obrigação de dotar 466
No entanto, isto podia facilmente transbordar os limites da ordem social,
sobretudo nume época de fome e miséria endémicas, assumindo formas de
logro 467 ou mesmo violência individual ou colectiva 468. Daí que os pobres
comecem a ser hierarquizados quanto aos seus méritos para receberem esmolas.
Se compulsarmos juristas do séc. XVII – por exemplo, o português Manuel
Álvares Pegas 469 - vemos como estes méritos realmente não se relacionavam com
a a miséria ou pobreza (inopia, paupertas), mas com características que
indiciavam a sua maior ou menor conformidade com os padrões da ordem. Assim,
no caso de terem que se escolher os pobres a contemplar com um legado
testamentário “a favor dos pobres”, deveriam ser escolhidos os mais pobres, mas
464
V., para Portugal, Ord. III, 5, 3.: comentário extenso em Manuel Alvares Pegas, Commentaria da Ordinationes
[...] , tom. XIII, ad dicta Ord., p. 181 ss..
465
Realmente, as “pessoas miseráveis” incluíam um círculo mais vasto do que os pobres: os estrangeiros, os
doentes, os hospitais, mosteiros e comunidades, os camponeses, as prostitutas e os expostos, os velhos, os mercadores
quando se encontrem nessa actividade, os sem trabalho. Nesta enumeração constata-se o cruzamento de lógicas diversas,
aconselhando a favorecer, em matéria de foro, estas diversas categorias de pessoas.
466
Cf. Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles [...], Conimbricae, Antonio Simoens Ferreyra,
1737, II, cap. 11, n. 106 (p. 828).
467
Citando o poeta Juvenal, Manuel Álvares Pegas considera que “os pobres são capazes de todos os ludíbrios”,
pelo que devem ser afastados de todos os cargos de autoridade (Commentaria ad Ordinationes [...], Tom. I, ad tit. I, I, gl.
20, ns.12 a 15 (p. 179).
468
A violência colectiva era severamente tratada pelo direito. O direito romano tratava-a como vis publica,
punindo-a severamente. V. A. M. Hespanha, "Da 'iustitia' à 'disciplina'. Textos, poder e política penal no Antigo Regime",
Anuario de história del derecho español (Madrid, 1988); versão portuguesa, Estudos em homenagem do Prof. Eduardo
Correia, Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra, 1989; versão francesa, "Le projet de Code pénal portugais de 1786.
Un essai d'analyse structurelle", La Leopoldina. Le poltiche criminali nel XVIII secolo, vol. 11, Milano, Giuffrè, 1990, 387447.
469
Nos seus Commentaria ad Ordinationes [...] , cit, tom. IV, ad I, 62, § 16, gl. 23, ns. 10 ss.O tratado peninsular
mais completo sobre o estatuto dos pobres é o de Gabrielis Alvarez de Velasco, Vallisoletani, Novi Regni Granatensis
senatoris, De privilegiis pauperum et miserabilium personarum ad legam unicam cod. quando imperator inter pupillos &
viduas, aliasque miserabiles personas cognoscat [microform] : tractatus in duas partes divisus : editio tertia : accedunt
Joannis Mariæ Novarii jurisconsulti Lucani, De privilegiis miserabilium personarum item de incertorum et male ablatorum
privilegiis tractatus duo: opera juris studiosis et in foro versantibus omnino necessaria, ac bonarum literarum sectatoribus
accomodatissima. II tomos, Lausonii & Coloniæ Allobrogum, 1650; outra ed.: Marci-Michaelis Bousquet & Sociorum, 1739.
1739.
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167
também os mais nobres, começando pelos”parentes [do falecido], os da mesma
cidade ou paróquia” 470, os religiosos (ibid., ns. 10-3)
Por outro lado, assistimos a uma concentração no Estado de políticas
destinadas a responder a problemas sociais (desde a pobreza à violência). Até ao
séc. XV, as competências para lidar com estas questões estavam dispersas e
emaranhadas, permitindo um leque alargado de formas de intervenção social e
uma constelação complexa de formas de legitimação dos processos de terapia
social. A partir de agora, tudo tende a concentrar-se nas mãos do Estado; os
deveres (morais e quase-legais) relativos aos pobres tendem a desaparecer, o
mesmo acontecendo ao direitos destes de partilhar – mesmo pela força – os bens
de que necessitassem de uma forma considerada como extrema. O que deles
fica, é a imagem da sua dependência, fragilidade, plasticidade em relação aos
poderosos – quase como meninos -, mesclada com a da sua eventual violência
desesperada e do potencial perigo que isto representava, quer para a ordem
social, quer para os bens dos ricos.
É esta imagem mais tardia do pobre – contaminada pelas imagens, da
vagabundagem, da insídia e da violência e oposta a uma primitiva sensibilidade
evangélica de solidariedade comunitária que se comunica ao direito – que nos
leva a incluir a categoria da pobreza entre as categorias da descriminação. Em
todo o caso, não se encontra na literatura teológico-jurídica da Europa meridional
aquela ligação entre pobreza e abandono de Deus que, segundo a leitura que
alguns autores fizeram da teologia luterana, haveria de relacionar a pobreza com
um castigo divino.
470
Admite-se que o testamenteiro se possa beneficiar a si mesmo ou aos seus filhos, se forem pobres (ibid., n.
13)
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168
9. Mobilidade.
9.1.
Introdução.
O tema da mobilidade social é, do ponto de vista histórico, um desses
temas equívocos que, por parecer que são de sempre, ocultam facilmente o facto
de ser, sobretudo, de hoje.
Não creio ter encontrado nunca, numa fonte histórica da Época Moderna,
uma referência a “mobilidade social”. Pelo menos, nunca a encontrei com este
sentido actual de algo de natural ou, menos ainda, de benéfico.
Alguma mobilidade, começava, desde logo, por ser impossível. Não se
podia deixar de ser mulher, por exemplo. Demente era também um estado
tendencialmente definitivo. Menor, deixava, naturalmente, de se ser; mas apenas
pela passagem objectiva e natural do tempo, a menos que interviesse algo de
extraordinário como a graça real da emancipação. Selvagens e rústicos podiam,
relativamente, aperfeiçoar-se. Mas os progressos eram problemáticos e lentos,
ligados a um êxito educativo decerto longo como o das crianças, mas de
resultados muito mais incertos. Menos definitivos eram os estado de mecânico ou
de pobre. Pois se podia mudar de profissão ou enriquecer. Mas, mesmo nestes
casos, a mudança tinha que respeitar ritmos e passos que não dependiam senão
em muito pouco da vontade prórpria.
A ideia central deste capítulo é a de que a mudança social não era apenas
rara e difícil na ordem dos factos – como hoje ainda, de certo modo, o é, pelo
menos nas sociedades estabilizadas. Mas a de que rea, além disso, excepcional
e indesejável, na ordem da das imagens sobre a vida.
Não quero com isto dizer que a situação (económica, social, cultural) das
pessoas não mudasse, para melhor ou para pior. Quero antes sugerir que esta
mudança: (i) quase não se via, (ii) pouco se esperava, (iii) e mal se desejava.
Desde logo, quase não se “viam” – no sentido de que não tinham relevo
social maior -, algumas mudanças que hoje são, pelo contrário, evidentes. Por
exemplo, as mudanças na fortuna. Enriquecer ou empobrecer não era, na
verdade, um facto social decisivo, do ponto de vista da categorização das
pessoas. A figura do nobre empobrecido, mas apesar disso nobre, ou do burquês
enriquecido, mas todavia burguês, são características da literatura moral ou
pícara das sociedades modernas, sobretudo na Europa do Sul. Como veremos
adiante, a riqueza não é, em si mesma, um factor decisivo de mudança
socialmente aceite.
Outras mudanças produziam-se num tempo tão largo que se tornavam
invisíveis. Tal é o caso da ascensão social paulatina, tanto que a memória já nem
sequer a pode registar a anterior (quae memoria non exstat). Admite-se que terá
havido uma mudança, mas a “posse de estado” – ou seja, a convicção social de
que se possuía o estatuto actual - é tão antiga, tão arraigada (radicata), que a
mudança mais se presume do que se nota.
Em contrapartida, a mudança rápida e notória, o menos que se pode dizer
é que não é de esperar. É como que um milagre. E, como facto extraordinário,
tem que provir de poderes extraordinários, desses que podem alterar a ordem das
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coisas, como o poder da graça do rei. O qual, por rescripto, emancipa, legitima,
enobrece. As formalidades destes actos denotam o seu carácter ímpar e fora do
normal curso das coisas humanas. São como que sacramentos temporais, em
que a intervenção suprema muda a natureza das pessoas. No plano espiritual,
correspondem-lhe os outros sacramentos, os divinos, que, eles também,
modificam os estados. O baptismo, que abre o estado de cristão; o matrimónio,
que cria o estado de casado; a ordem, que inaugura o estado clerical, a extrema
unção, que prepara o fim de todos os estados.
A mudança rápida não só não se espera. Em geral, tão pouco se deseja.
Mudança e confusão de estados são, para o homem moderno, sinais de
perturbação social e de convulsão da ordem política. Sinais, como diz alguma
fonte, de tempos “muito voluntários”; ou seja, de tempos em que os golpes da
vontade (do rei, dos particulares) tendem a sobrepor-se ao objectivo e praetervoluntario curso do mundo.
É a partir desta cultura de base do homem moderno que a “mobilidade
social” tem que ser estudada. Qual é a mobilidade possível e legítima ? Quais são
os mecanismos ou as vias legítimas de mudança ? Quais os tempos ? Quais os
riscos ? Quais os títulos de prova ? As respostas a estas preguntas, sobre as
quais se constroem estratégias de vida, estão implícitas num universo de crenças
e de pre-comprensões que aqui trataremos de descrever genericamente.
Sem o conhecimeno deste código moral, a interpretação das mutações no
universo social moderno resulta muito problemática. Dramatizando un pouco a
afirmação, diria que os factos brutos - de que um enriqueceu, de que outro se
tornou nobre, de que um terceiro doou os seus bens e entrou em religião -, em si
mesmos, sem esta referência a un código específico (ou local) de avaliações de
actos e de situações, são inúteis, no plano da interpretação histórica. Explico. Se
se quiser compreender o significado destes factos para os homens da época - e,
asim, entender as suas acções ou reacções relativamente à mudança social –
temos que recuperar os quadros mentais dentro dos quais a mutação social
encaixa e cobra sentido. Sem isto, ou nos limitamos a narrar factos sem sentido
ou - o mais frequente – imputamos-lhes implícitamente os sentidos que têm hoje
em dia.
Nesta recuperação das modalidades, limites e sentidos da mudança social
na sociedade de Antigo Regime, seguiremos o seguinte percurso. Começaremos
por mostrar quão pouco dependia a ascensão social da vontade de cada um, das
decisões de cada um sobre a sua própria vida ou mesmo das decisões de outros
sobre ela (cf., 9.2. ).
Mostraremos, em contrapartida, como as hierarquizações sociais e o
trânsito através delas são o produto de equilíbrios inscritos na natureza e
mantidos pelos sentidos da honestidade e da justiça (cf., infra, 9.3. ). Ao ponto de
que, quando se pede em justiça um estatuto social, na verdade não se está a
reclamar a “mudança social”, mas o reconhecimento de pertença a um lugar já
seu. Está a invocar-se a estabilidade, não a mobilidade.
E pur si muove ... E, no entanto, as pessoas ganham e perdem estatutos, a
sociedade move-se. Como a natureza, porém. Por processos regulados, dotados
de processos e ritmos próprios. O tempo, por exemplo, faz mudar as coisas, fá-las
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170
ganhar novas naturezas, enraizar-seem novos estatutos (cf., infra, 9.4.1. ).
Apesar, do que antes se disse sobre a indisponibilidade dos estados, também as
“obras” - ou seja, os comportamentos e trabalhos de cada um - podem influir algo
sobre o seu estado, com os limites que serão descritos (cf. Infra, 9.4.2. ).
Finalmente, um último factor de mudança, que parece poder quebrar estas leis de
bronze da natureza – a graça. Esse dom incausado e livre pelo qual alguns –
nomeadamente, o rei – podem mudar o estado das pessoas. Mesmo aqui, neste
dom~inio de mudanças quase miraculosas, os limites existem, não faltando quem
acabe por equiparar a graça a uma outra espécie de justiça (cf., infra, 9.4.3. ).
9.2.
Ordem e vontade. Um mundo relativamente indisponível.
Num passo central da Summa theologica (Ia, q. 21, 4c), S. Tomás de
Aquino coloca uma perturbante questão sobre a eficacia da vontade criadora de
Deus. Escreve ele, formulando o paradoxo que lhe serve de ponto de partida:
“A justiça é dar o devido, a misericórdia é remediar a miseria. E,
assim, tanto a justiça como a misericordia presupõem algo de prévio [un
padrão, uma ordem] para operar. A creação, por sua vez, não presupõe
nada. Por isso, na creação não há nem justiça nem misericordia. Porém,
contra isto, diz o Salmo (Ps., 24,10): todas as estradas do Senhor são de
misericordia e de verdade”.
Aqui, o elemento paradoxal está no facto de que, se atribuimos a Deus
uma plena liberdade de institução da ordem do mundo, renunciamos a fundar esta
ordem na justiça ou na misericórdia. Se estabelecemos que estas duas virtudes
estão na raíz mesma das coisas, então negamos ao acto instituidor de Deus a
natureza gratuita e creadora.
A solução dada por S. Tomás é a de submeter o acto creador a um plano
devido, preexistente na sapiência e na bondade de Deus. A graça original cria o
mundo segundo um plano inteligente e racional. E, neste sentido, participa da
justiça. Os actos subsequentes de graça e de misericórdia continuam a participar
da justiça, na medida em que, longe de representar actos arbitrários, aperfeiçoam
ainda mais a justiça: “Deus actua misericordiosamente não contra a justiça, mas
operando para além da justiça […] pelo que não tira a justiça, mas institui a
plenitude da justiça” (Summa theol., I, q. 31, a. 3).
Ou seja, a justiça (o equilibrio) do mundo é uma característica permanente
e que se impõe sempre à vontade. Ainda que esta, actuando extraordinariamente
(como que por milagre), possa aperfeiçoar a ordem actual. Em vista, no ntanto, de
uma ordem virtual ainda mais perfeita.
No final, o que se está a discutir é o modelo de relações entre justiça,
graça, e misericordia, questão que, sendo central na teología, o é también na
teoría dos actos humanos, maxime dos actos de governo. E, muito em concreto,
nesta questão de saber como podem os homens mudar a ordem social e moverse nela.
São estes, portanto, os marcos que determinam o imaginário dos procesos
de mudança social.
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171
9.3.
O equilibrio.
9.3.1. Honestidade.
A mudança de situação na sociedade é, antes de tudo, um proceso natural;
como a mobilidade das estaciones do ano, a gestação dos seres vivos, a
corrupção o da revolução das cosas. Por isso, tem os seus procesos e trâmites
devidos, produz efeitos também devidos e esperados, tem os seus tempos e
ritmos, sobretudo, exige uma duração que lhe permita “ganhar naturalidade”.
O conceito aqui central é o conceito de honestidade. A honestidade é a
virtude que procura o bem racional (bonum rationale); e que, por isso, tem como
raiz a regra da razão (cf. Summa theol., 2-1, q. 39, 2, ad 1). Daí que o honesto se
relacione com a “disposição perfeita e optima” (ibid., 2-2, q. 145, a1), lição que já
vem de Aristóteles. Não admira pois que o honeste vivere, considerado como um
dos preceitos do dereito (D., 1,1,10,2), seja o viver de acordo com os preceitos da
natureza 471.
Ainda segundo o filósofo, o honesto está íntimamente ligado com a honra e
esta com a hierarquia natural das coisas e a reacção que esta deve suscitar. “O
honesto - escreve (Summa theol., 2-2, q. 145, 1) - importa débito de honra. Mas a
honra é a reacção adequada à excelência de alguém”. Assim, a prestação das
honras devidas é a atitude de quem mantém uma postura honesta. Esta titude,
ainda que interior, tem manifestações exteriores, como a conversação. De onde, a
conversação honesta é a que traduz adequadamente, nos seus termos, nos seus
temas e nas suas fórmulas, a relação justa (ajustada) entre os conversadores.
Também é grande a proximidade entre honestidade e beleza (decus), já
que uma e oytra indicam proporção justa. “A beleza do corpo consiste em que o
homem tenha os membros do corpo bem proporcionados, con aquela claridade
das cores devidas. E, correspondentemente, a beleza espiritual consiste em que a
sua conversação ou os seus actos sejam bem proporcionados segundo a
claridade espiritual da razão. Mas isto pertence à razão do honesto que, como
dissemos, é a virtude que modera todas as coisas humanas segundo a razão”
(ibid., 2-2, q. 145, a2).
Já se vê que no polo oposto à honestidade está o falso, o artificial, o
desordenado ou disforme.
Honesto deve ser, por exemplo, o uso do matrimonio. Justamente porque
se enraizava na natureza, o matrimonio devia ter um uso honesto; ou seja, devia
consistir em practicas (máxime sexuais) cuja forma, ocasião, lugar, frequência,
não dependiam do arbitrio o do desejo dos cônjuges, mas de imperativos naturais.
Numa palavra, das finalidades naturais e sobrenaturais do casamento: (i)
procreação e educação da prole; (ii) mútua fidelidade e sociedade nas coisas
domésticas; (iii) comunhão espiritual dos cônjuges e (iv) - objetivo consecuente à
471
Bento Gil, Tractatus de jure, et privilegiis honestatis in duo diviginti articulos distributus quibus universum
pertinet, explicatur, Olyssipone, apud Petrum Craesb., 1618, maxime art.6.
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172
queda do género humano, pelo pecado original - o remédio contra a
concupiscência 472.
Honestas devem ser as viúvas. São-no as que observam as regras de viver
aceites como própias (pudicitia vidualis), evitando hábitos e ornatos imprópios de
viúvas, assim como as conversas ociosas e o trato com homens deshonestos 473.
Ainda que o “habitus non facit viduas 474 (aut monacus)”, o qualificativo de
“honesto” acompanha frequentemente a referência ao traje. É que “os vestidos
manifestam a qualidade da pessoa e provocam o respeito” 475; de onde, as
pessoas honestas se devam acomodar ao que os usos do lugar determinam para
cada categoria de pessoa (cf., v.g., Partidas, II, 18).
O mesmo se diga das ocupações e profissões. Os mecánicos, por ejemplo
- categoría em que se incluyem profissões tão diversas como ourives, regatões,
carniceiros, barbeiros, caldereiros, tendeiros, moleiros, tecedores, alfaiates,
pescadores e marinheiros, pintores, chapeleiros - estão impedidos por uma
honestidade que se transmuta frequentemente em regras de direito de se
intrometer em profissões não mecânicas, mas inclusivamente de assumir
profissões mecânicas alheias. “É adequado - escreve Pegas citando outra
autoridade - responsabilizar o alfaiate que se intrometa em seara alheia. E parece
que não apenas relativamente a ministérios eclesiásticos, mas também na esfera
dos mesmos oficios mecânicos. Entre os quais, um não pode meter-se em no do
outro. Por exemplo, o de semeador, ou de fabrcante ou outro, devendo ser
coimados caso o fagam […] Tão pouco pode um oficio assumir a insígnia ou sinal
de outro […] A origem destas interdições é evitar que se perturbem os oficios e se
disolva no caos o governo político […] do mesmo modo, não é justo que alguém
se ocupe [públicamente, com tenda aberta] de diversos ofícios, pois desta mistura
de ofícios se seguiría a confusão e a desordem na República” (ibid, VII, p. 256, 12). Este uso honesto dos oficios aconselha também que cada um siga os oficios
dos seus pais, “pois normalmente os filhos constumam imitar os pais, de modo a
que são más proclives às artes que os pais exercen” (ibid., p. 257, 5). Como
refere Camões, descrevendo os usos dos indios de Calicut:
“Porque os que usaram sempre um mesmo ofício,
De outro não podem receber consorte,
Nem os filhos terão outro exercício,
Senão os de seus pais até à morte”
(Lusíadas, VIII, 38)
Interesante é ainda a relação da honestidade com as riquezas.
São conhecidos os tópicos anti-crematistas da tradição evangélica 476. A
acumulação de bens é aí frequentemente posta sob suspeita de imoralidade. Nas
comunidades camponesas, de economía fechada, os bens servem necessidades
472
Cf. supra.
473
Cf., v.g., Manuel Alvares Pegas, Commentaria in Ordinationes Regni Portugalliae, tom. VII, Ulysipone 1682, p.
243, ns. 11 ss..
474
Ibid., n.12.
475
Ibid., p. 250, n. 10.
476
Para os lugares comuns sobre riqueza e pobreza na tradição literária da época moderna, v., por todos, Joseph
Langio, Florilegii magni, seu Polyantheae floribus novissimis sparsae, Lugduni 1631, s.v. “Divitiae”, “Paupertas”.
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de gozo, não de acumulação; excepção feita para a acumulação natural - v.g.,
para semente ou para prover a infortúnios, própios ou alheios, futuros e
imprevisíveis (más colheitas, denças). Ainda mais longínqua de uma vida natural
é a acumulação de bens que não servem necessidades directas ou naturais,
como é ou caso dos metais preciosos ou da moeda. Se buscar a plétora de bens
naturais (frutos, gado, terra) já é problemático desde o ponto de vista de uma
economía natural, muito mais o é a acumulação de bens que, por si mesmos, não
matam a fome nem vestem o corpo 477. A esta distinção se refere S. Tomás,
quando distingue a riqueza moderada e natural (divitiae naturales [panem et
vinum]), da riqueza artificial (divitiae artificiales [pecuniae]) 478.
Para além disso, a aquisição da riqueza tem os seus trâmites e os seus
tempos. Não deve ser buscada por si, mas consituir o resultado de uma gestão
prudente do seu. Não deve ser conseguida à custa da liberalidade ou da caridade.
E, com isto, leva tempo a ser conseguida. Riqueza rápida é sinal de ambição
ilegítima ou de conduta deshonesta.
A distinção fundamental em materia de riqueza é, então, esta que separa a
riqueza honesta, pelos seus fins e pelos seus meios, da deshonesta. A riqueza
honesta é a obtida por meios justos e para fins justos. É, sobretudo, a riqueza
antiga, já incorporada nos equilíbrios da sociedade. Quando conforme a este
padrão de aquisição, a riqueza pode inclusivamente denotar virtudes, como a da
prudencia, da frugalidade ou da modéstia, e, neste sentido, testimunha o agrado
de Deus. A esta riqueza se refere o mesmo S. Tomás, quando diz que “segundo a
opinião vulgar, a excelência das riquezas faz o homem digno de honra, siendo por
isso que, algumas vezes, a palavra honestidade se aplica à prosperidade exterior”
(ibid., 2-2, q. 145, a1 ade 4). Ou os juristas, quando afirmam que a riqueza induz
nobreza 479.
A riqueza é, portanto, ambivalente na sua valoração. Mas mesmo a
honesta também resulta equívoca nas suas consequências morais.
Por uma parte, está cheia de perigos, ao criar o risco continuo de
esquecimento da ordem natural e das suas exigências. Assim, suscita a glória vã,
i.e., uma gloria não justificada, artificial, não natural. Cria o amor perverso
(desordenado) pela própria riqueza. E, finalmente, gera um estado de contínua
solicitude e atenção que prejudica o cuidado com a justiça e com a caridade (ou
seja, com as virtudes que mantêm a ordem) 480.
Por outro lado, apresenta sinais contraditórias. Para além de um sinal de
benevolência de Deus, é, em termos puramente humanos, um factor de
estabilidade, pois liberta os homens de apuros materiais, facilitando a rectidão e
477
As imagens negativas sobre o comércio arrancan também desta suspeita sobre a busca directa da riqueza,
maxime, monetãria.
478
Summa theol., 2-2, q.188, ad 5.
479
Cf., v.g., M. A. Pegas, Commentaria…, IV, ad 1,35, gl. 10, n. 24, citando textos de autoridade (Tiraquellus, De
nobilitate, cap. 3; Escobar, De puritate sanguinis, p. 2, q. 1, gl. 4); cf. também, Pegas, ibid., VII, ad. 1, 90, gl.8, n. 1 (“ex
divitiis nobilitas creatur”).
480
Summa theol, 2-2, q. 188, 7c
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evitando a corrupção a que os pobres são atreitos. Dá claridade e lustre à
nobreza, permitindo que viva com esplendor e sem sordidez 481.
Em suma. A riqueza pode constituir um meio legítimo de mudança de
estado, se ela mesma não resultar de um processo ilegítimo de aquisição de
bens. Por isso, em vez de legitimar a mobilidade social, a riqueza carece, pelo
contrário, ela mesma de legitimação. Em si mesma, não garante a justiça da
hierarquia social ocupada; antes necessita da legitimação da justiça (nas formas e
tempos da sua aquisição) para poder ser reconhecida.
Manuel Álvares Pegas, o já citado jurista português de seiscentos, discute
esta problemática relação entre riqueza e justiça, a propósito da questão de saber
se os ricos devem preferir aos pobres nos cargos e honras públicos. O aspecto
central é o de saber se a riqueza é presunção de virtude, sobretudo, de aptidão
para facer justiça, o dever primeiro do magistrado.
“Os ricos - explica - oferecem em general confiança, considerando-se que
não cometem pecado, nem traição, nem mal algum. [Um passo do Digesto]
aconselha, de forma elegante, a que não se elejam pobres como magistrados;
pois, como ensina Ulpiano, para as honras [cargos] públicas [os pobres] não são
iguais aos [ricos], uma vez que dificilmente se podem sustentar do seu. Assim,
não é de modo algum útil ou honesto eleger magistrados desta qualidade,
sobretudo cuando haja quem tenha convenientes fortuna e publico esplendor.
Também se requere que não tenham necessidades, pois os que as experimentam
não podem dispor de tempo para o exame diligente e necessário da justiça” 482.
Para além de que “os pobres são fácilmente corrompidos pelo negócio [das
influencias] […] E, por isso, tornam-se suspeitos […]. O que faz com que
frequentemente os homens muito pobres feitos magistrados se tornem venais”
(ibid., n. 19)”. Este discurso a favor da riqueza como qualidade dos magistrados a que se acrescenta a consideração de que “sem as riquezas a dignidade das
familias torna-se pouco, conservando se com elas o decoro e a honra” (ibid., n.
20) - culmina com a conclução de que “para as honras [ofícios e digniades da
república], os ricos são de preferir aos pobres”. Contudo, não deixa de se
apresentar a outra face da avaliação moral da riqueza: “No entanto, também, a
partir de outros exemplos das vantagens da pobreza e dos inconvenientes da
riqueza, se mostra que os pobres não devem ser excluídos das magistraturas e
oficios. E, inclusivamente, que não é de atender à riqueza nas eleições” 483 (ibid, n.
23).
Deste breve excurso resulta que a mobilidade social natural é, antes de
tudo, a mobilidade que não fere a natureza das coisas, a honestidade. Que não é
falsa, fundada em títulos obtidos por burlas ou enganos. Que não é artificial,
“voluntária”, contrária aos procesos establecidos e devidos. Que não é
desordenada, introduzindo o caos ou a disformidade na sociedade. Que, enfim, se
faz no âmbito da ordem e dos processos nela inscritos para a sua própria
modificação. Só esta configura a verdadeira mobilidade: pelo contrário, a outra, a
481
M. A. Pegas, Commentaria …, I, ad. 1,1, gl. 19, n. 2-7; ibid., IV., ad 1,35, gl. 10, n. 22 (“de vituperio et laudes
divitiarum”).
482
Ibid., IV., ad 1,35, gl. 10, n. 18 ss..
483
A este propósito, cita Navarrete, Conservação de monarchias, disc. 28; Bento Pereira, Librum Problematum,
cui inscribebat Pallas togata, & armata. Eborae, 1636, 12, p. 137.
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“desordenada”, a deshonesta, a injusta, configura descalabro, revolução ou
comoção, que necesitam de ser corrigidas.
9.3.2. Justiça.
Restablecendo a honestidade está a justiça. Daí que as clasificações
sociais e os processos de mudança entre elas sejam matéria de justiça e de
direito. A sua definição, construcção e regulação eram então obra do direito. Não
da lei positiva, mas da lei da natureza. Não de um direito voluntário, mas de
mecanismos jurídicos objetivos inscritos na ordem das coisas. Tal lei e tal ordem
eran, por sua vez, investigáveis por esse saber cujo objeto era, justamente, o de
escutar a natureza das cosas (a iurisprudentia – tinha deixado escrito Ulpiano no
Digesto [D., 1,1,10,2] - est divinarum, atque humanarum rerum notitia).
Assim, a taxonomia social é, antes de tudo, uma taxonomia jurídica. Ou
seja, uma taxonomía jurídicamente regulada, determinando o direito os efectos de
cada status, assim como as causas da sua adquisição ou perda.
Diga-se, todavia, que esta actividade classificadora do direito e de os seus
“sacerdotes” não nasce de uma livre e autónoma imaginação social por parte dos
juristas. Como vimos, o discurso jurídico é variamente aberto ao contexto social e
às suas imagens.
Neste caso das clasificações sociais, os juristas trabalham sobre
informações que lhes chegam do exterior do direito. Do mundo físico-biológico
recebem dados sobre as particularidades biológicas dos sexos, sobre a idade,
sobre os lugares (de nascimento); do senso comum, recebem clasificações
múltiplas que incorporam quase directamente no seu discurso, mediante
conceitos como os de fama, de usus, de mores. Do mundo da decisão política,
cobram também factos progresivamente mais relevantes, na medida em que a
capacidade classificadora do monarca se vai impondo, como uma otra natureza
criada por via da graça. Quero dizer que, ainda que a ordem dos estados sociais
seja recortada com auxilio de categorias jurídicas e que os efectos deste recorte
sejam produzidos pelo direito, este recebe de distintos contextos não jurídicos
informações relevantes, com que os resultados do labor classificativo do direito
obtem uma fácil caução social.
No entanto, para além de uma natureza jurídica, as taxinomías sociais
têm, como dissémos, uma origem jurisprudencial. Ou seja, não são apenas coisas
de legisladores, são coisas sobretudo de doutores, de doutores em direito,
autores de livros de teoria e, muitas vezes, de obras de grande impacto prático
também. Esta origem jurisprudencial das classificações ou taxonomias sociais é
um facto de primeira importância.
Em primeiro lugar, pela particular eficácia social que lhes confere esta
particularidade de constituir clasificações jurídicas, ou seja, de ganharem efeitos
de direito. Não é que a coercibilidade do direito fosse uma realidade massiva
actual na sociedade de Antigo Regime (tal como não a é hoje em dia). Pontos de
vista recentes, de historiadores e sociólogos, sublinham justamente o carácter
marginal do direito, enquanto ordem coercitiva, nesta sociedade. Ainda assim, a
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176
coercibilidade dos efeitos de direito, mesmo como horizonte apenas virtual,
promove a sua aceitação social espontânea - i.e., independentemente da
posibilidade ou da vontade dos poderes de levar por diante a sua imposição
coactiva.
Em segundo lugar, o estatuto discursivo dos textos jurídicos fomenta
enormemente a sua disseminação social, pois as fórmulas jurisprudenciais
traduzen, de forma compactada e aforística, comprensões (teológicas, filosóficas,
éticas) muito elaboradas sobre a sociedade. Provêem normas e esquemas
classificadores claros e nítidos, usados por juristas e por leigos, na sua versão
original ou na sua forma vulgarizada, msmo popular.
Finalmente, porque os esquemas classificatórios de natureza jurídica são
actuados com um forte envolvimento cerimonial e litúrgico que aumenta o seu
impacto "educador" (“inculcador”, P. Bourdieu).
O carácter jurídico destas clasificações tem todavía importância ainda num
outro plano. Ou seja, enquanto atribui competências privativas a certos actores
sociais - os juristas - para gerirem as taxinomías. A declaração destas categorías
e a sua aplicação concreta cabe, então, a entidades determinadas, não
dependendo difusamente da fama pública (vox populi, ainda que esta possa ser
um dos critérios relevantes para determinar o status de uma pessoa) nem das
decisões arbitrárias do centro político. Não é excessivo insistir no alcance político
deste facto, que explica a centralidade das decisões judiciais (e, por isso, da
litigância em tribunal) na constitução das hierarquías sociais.
Uma questão suplemental é a de saber de que lógica classificativa são os
juristas subsidiários ao efectuar estas distinções de categorías sociais.
Ainda que uma leitura funcionalista – que tende a ver nelas expedientes
para organizar o dominio social de uns grupos sobre outros - seja a mais comum
na historiografia actual, suspenderemos aqui a referência a uma lógica "social",
ficando-nos, como se verá, pela descrição de uma lógica quase exclusivamente
"textual". As concessões que faremos a uma sociología mais clássica (i.e., mais
dominada pelas determinações extra-textuais) são únicamente duas. Por um lado,
salientar as vantagens do poder social que advem aos juristas (face à sociedade
e face à coroa) do facto de as classificações doctrinais terem a primazia sobre as
clasificações legais. Por outro lado, chamar a atenção para a importância que tem
o facto as clasificações sociais se fundarem em criterios doutrinais, logo fluidos e
mudantes, e não em criterios estritamente legais (logo fixos e estáticos). Por
exemplo, quando a doutrina remete para o senso comum - como no caso da
definição da nobreza fundada na publica aestimatio, a reputação pública -, as
clasificacções doutrinais abrem-se às classificações "vividas".
9.4.
A mudança.
A sociedade de estados não é uma sociedade de castas. Os equilibrios
estabelecidos podem evolucionar. Esta (limitada) dinâmica - a que chamaríamos
“mobilidade social” - era imputável, ou a um auto-movimento da natureza,
fecundado pelo tempo, ou às obras dos agentes.
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9.4.1. Ordem e tempo.
O transcurso do tempo tem, no mundo da política e do direito da
sociedade de Antigo Regime, um poder constitutivo hoje desconhecido.
O tempo constituía (como no caso do costume) ou reforçava (como no
caso da firmatio legis) o direito. Enraizava situações jurídicas com uma força
semelhante à da sentença e seguramente maior do que o documento. Fazia com
que se ganhassem bens, por meio do seu uso diuturno; ou que se perdessem por
não se protestar contra um tal uso por parte de outros. Inutilizava direitos a
prestações ou a meios de defesa jurídica. E tudo esto com uma eficácia e uma
amplitude que nos resultam hoje surprendentes.
Esta eficácia jurídica do tempo tem que ver com as representações de
então sobre a forma pela qual se manifesta a natureza. De novo, recurremos a S.
Tomás para uma explicitação de imagens comuns, translatícias e pervasivas
nestes séculos. Ao falar da natureza das criaturas livres, o teólogo, amparado em
Aristóteles, distingue entre as disposições temporárias e as qualidades, a que
chama hábitos, "que não se modificam fácilmente, por terem causas imóveis"
(Sum. theol., 1-1, q. 49, a. 2 e 3). Estos hábitos, "que importam alguma
diutrnidade" (ibid.), relacionam-se directamente com a natureza, ou porque se
adequam ao seu estado actual, ou porque manifestam a tendência do ser para
buscar os seus fins naturais (ibid., 1-1, q. 49, a.3, resp.). Se alguns hábitos foram
infundidos directamente por Deus (infusi: ibid., 1-1, q. 51, a.4), outros, em
conrapartida, são adquiridos. De facto, pela prática de actos múltiplos e diuturnos,
os seres livres podem ganhar qualidades suplementares as quais, mesmo não
podendo contradizer a sua natureza primeira, a desenvolvem (ibid., 1-1, q. 51,
a.2).
Esta ideia de que os seres livres têm uma natureza mutável que, ao
mesmo tempo, se manifiesta (natureza actual) e se desenvolve (natureza
potencial) por actos continuos no tempo explica a importância que o tempo tem na
constitução da ordem jurídico e político.
De facto, se uma prática se repete ao longo dos anos, isto não somente
manifesta uma vontade tácita dos actores neste sentido, mas manifesta e institui
neles disposições naturais (habitus) correspondentes. E, dado o optimismo
ontológico que caracteriza esta mundividência, é assumido que estas disposições
sociais ou individuais se adequam aos equilíbrios mais racionais, mais justos, da
sociedade.
Esta é a justificação profunda da eficácia constitutiva da “posse de estado”
nas mudanças de situação jurídica das pessoas. A reputação continua, publica e
inveterada de pertencer a certo estado, ainda que infundada, institui como que
uma segunda natureza que se acrescenta, desenvolve e apaga a pristina.
Portanto, para fazer a prova de estado, não há que certificar um estado original ou
essencial, bastando comprovar esta natureza “exterior” e “superveniente”
construída pela reputação diuturna e durável.
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É este conceito de mutabilidade da natureza - que distingue os estados
das castas - que marca decisivamente as matrizes intelectuais de comprenção da
“mudança social”. Não há mobilidade legítima (autêntica, honesta) que não
obedeça a este modelo de desenvolvimento da natureza pelo tempo. Natureza e
tempo são, assim, os progenitores da mobilidade social. Mas, na medida em que
a nova natureza engendrada pelo tempo é também e ainda natureza, a sociedade
muda ficando igual. Então, a aparente mobilidade social é concebida, ao final,
como estabilidade social, a misma estabilidade que caracteriza a sempre mutável
natureza do mundo físico ou astral. A “evolução” é “revolução”, mas no sentido
original de volta ao mesmo punto.
Este ponto é bem ilustrado na aquisição da nobreza, em que a fama
prescripta constituye o melhor título. "Grande jurisdicção - escreve, na segunda
metade do século XVII, o jurista portugués João Pinto Ribeiro 484 - tem ou tempo
sobre a estima, & reputação da nobreza". De facto, nesta sociedade em que a
aparência manifestava a essência e em que a natureza se lia na tradição, a
nobreza interior não podía deixar de manifestar-se exteriormente, desde que se
deixasse passar um tempo suficiente. Como no domínio da religião, a justificação
de um estado de nobreza interior não podía fazer-se com puras disposições
interiores (nobilitas probatur per actus, qui faciunt veram disctintionem inter
nobilem et plebeum 485, [a nobreza prova-se por actos que fazem o nobre diferente
do plebeu]). Em contrapartida, ela deveria exprimir-se por actos repetidos ao largo
da vida (nobilitas non nascitur in ictu oculi 486, [a nobreza não nasce numpiscar de
olhos]). Só esta prática diuturna de um viver nobre podería criar essa pública
estimação de nobreza que, según Melchior Phaebus é o criterio chave para
distinguir os nobres (insuper nobilitas consistit in hominun existimatione, [a
nobreza consiste sobretudo na avaliação dos homens]) 487.
9.4.2. Obras.
O exemplo da nobreza servirá ainda para discutir outra via de aquisição ou
perda de status, esta dependente da vontade própria – as obras.
As Ordenações afonsinas portuguesas (1446) definem assim os tres
principais estados da sociedade: "defensores são um dos três estados que Deus
quis per que se mantivesse ou mundo, ca assi como os que rogam pelo povo
chamam oradores, e aos que lavram a terra, per que os homens hão de viver e se
mantêm são ditos mantenedores, e os que hão de defender são chamados
defensores" (Ord. af., I, 63, pr.).
Fica claro que a classificação se funda na diversidade de funções sociais
dos agentes, ainda que este distinto desempenho de funções não derive das
484
Ribeiro, João Pinto, Sobre os títulos de nobreza de Portugal e os seus privilégios, en Obras varias, Lisboa,
485
Phaebus, Melchior, Decisiones senatus regni Lusitaniæ [...], Lisbonæ, 1619 (ed. cons. 1760), I, d. 106, n. 35.
486
Fragoso, Baptista, Regimen reipublicae christianae, Collonia Allobrogum, 1641-1652, I, l. 3, disp. 6, n. 198 [n.
487
Phaebus, Melchior, Decisiones senatus regni Lusitaniæ [...], cit., d. 106, n. 35.
1730.
7].
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179
vontades pessoais, mas tenha a ver com as qualidades e virtudes naturais de
cada um.
Assim como tantas otras distinções entre as coisas, a nobreza, por
exemplo, derivaría da própria ordem. Esta teria dado a umas coisas a primazia
sobre as outras, em razão da sua utilidade ou da sua beleza (ratione utilitatis vel
pulchritudinis): "Em todas as coisas bem regidas, & governadas, há-de haver esta
ordem: que isto é o que a natureza principalmente em si contém" 488, Vera, 1631,
3). Daí que a nobreza seja, por tanto e em princípio, um estado natural que
residiria inclusivamente nas coisas inanimadas (ouro, pedras preciosas), ou nos
animais carentes de razão (falcão, boi, leão) ou mesmo nas cualidades (como as
cores 489).
Nos homens, como nas coisas da natureza, esta nobreza natural derivaría
da virtude, sobretudo daquela virtude que torna alguém ou alguma coisa apta a
dominar (Aristóteles, Politica, IX; Etica, IV). Como dirá Bártolo (citado por Juan de
Otalora 490), reside "no hábito electivo [i.e., na habituação de bem decidir] acerca
das coisas que respeitam à preeminencia e ao domínio". Neste sentido, a nobreza
refere-se à posse de certas qualidades espirituais, que, também em principio, ou
se adquirem pelo sangue, ou pelo menos, se enraizam por tradição familiar;
reside nos genes, reproduzindo-se como as características naturais das pessoas.
E, por isso, seria também irrenunciável e indisponível, pois ninguém poderia fugir
ou dispor da sua própria natureza.
Porém - e chegamos com isto ao ponto mais interessante - existía uma
outra nobreza, mais exterior e mais aleatória (por assim dizer), ganha por obras,
correspondente ao exercicio de certas funções ou ofícios da república.o
Os tratadistas chamam-lhe, por oposição à anterior, nobreza política 491,
pois deriva, não da natureza, mas de normas de direito positivo, como os
costumes da cidade 492. Deste tipo é a nobreza que se adquire: (i) pela
ciência (doutores, licenciados, mestres de artes, bacharéis 493; (ii) pela milicia
“armada” (cavaleiros de ordens militares, oficiais militares (condestável, almirante,
capitães mores, capitães de fortalezas, cavaleiros de companhias de cavalos,
capitães e alferes de ordenanas); (iii) pela "milicia inerme" (ibid., 362 ss.: oficiais
palatinos - v.g., mordomo mor, camareiro-mor, moços da câmara, trinchante-mor,
estribeiro-mor, capitães da guarda e dos jinetes; membros do Conselho de
Estado, notários regios, secretarios regios, oficiais da fazenda); (iv) pelo exercicio
de certos oficios: governos de armas das provincias (ibid., n. 405), presidentes
dos tribunais de justiça da corte; conselheiros regios (ibid., n. 412); chanceler-mor
(ibid., n. 413); juízes das chancelarias e audiencias (ibid., n. 421); corregedores
488
Vera, Álvaro Ferreira de, Origen da nobreza politica [...], Lisboa, 1631, p. 3.
489
Wissman, Hermann, De iure circa colores, Lipsiaae, 1683.
490
Otalora, Juan Arce e, Summam nobilitatis Hispaniae, & immunitatis regiorum tributorum causas, jus [...],
Granatae, 1553, 15 v..
491
Carvalho, João de, Novus et methodicus tractatus de una, et altera quarta deducenda, vel non legitima,
falcidia, et trebellianica [...], Colloniae Allobrogum, 1634 (ed. cons., 1746), n. 200 ss.; Freire, Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis lusitani, Conimbricae, 1789, I, 3; Lobão, Manuel de Almeida e Sousa, Notas a Melo, Lisboa, 1828-1829,
56; sobre o tema, Hespanha, António Manuel, "A nobreza nos tratados jurídicos dos sécs. XVI e XVII", Penélope, 12(1993),
27-42.
492
Carvalho, João de, Novus et methodicus…, cit., n. 264 ss..
493
Carvalho, João de, Novus et methodicus…, cit., n. 283 ss..
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180
(ibid., ns, 424-425); provedores (ibid., n. 426); juízes regios (ibid., n. 428 ss.);
juízes ordinarios, vereadores, almotacés e alguazis, procuradores dos concelhos,
meirinhos e alcaides (ibid., n. 432-442, 445); mas só nas terras em que fosse
costume reservar este lugar a nobres.
Neste caso, o título adquisitivo de nobreza não é nem a natureza pristina,
nem a natureza adquirida pelo largo curso do tempo, mas a vontade de promoção
expressa em obras adequadas ou eficazes para a mudança de estado.
Entre estas obras estão o desempenho de oficios militares (militia armata)
ou curiais (militia inerme). Mas estão também o estudo que leva à ciencia ou,
ainda que de forma mais problemática, o negocio que leva à riqueza.
No que toca à ciência, era comum a opinião de que produzia nobreza. São
conhecidas os louvores da ciência e do estudo contidas na tradição literaria da
Europa tradicional. As Escrituras definem a ciência como coisa de Deus (“scientia
pro divinae cognitione", 2, Cor.,, vers. 6; “scientiarum dominus est Deus”, I, Salm.,
2, vers. 3). Os filósofos, por sua vez, antepunham a ciência ao culto da virtude
(“Procedit scientia, virtutis qultum”, Aristóteles, Politica, lib. 3). Em quanto os Pais
da Iglesia descreviam o iter que levava da ciência à beatitude e a Deus (“Via ad
Deum est scientia, quae ad institutionem recte et honeste vivendi pertinet. Est
disciplinae bonitas et beatitudo. Per scientiam igitur ad disciplinam, per disciplinam
ad bonitatem, per bonitatem ad beatitudinem, Hugo de S. Vítor, De instructione
novitiorum). Assim, o estudo não pode ser senão uma actividade moralmente
benéfica, que torna a alma solícita para a honestidade: “Labor scholastiqus otium
non est, sed negotium et quod animus reddit ad honestatem solicitu”, escreve
Séneca, nas Cartas). A conclução de que o estudo e a ciência produzem nobreza
é consequência natural 494: “Scientia homines nobiles facit”, escreve o jurista
Pegas 495, “donde se deduz que o bacharel goza de nobreza” 496.
Também por obras se podía perder a nobreza. Os fundamentos da perda
da nobreza eram o reflexo, em negativo, dos fundamentos da sua aquisição.
Assim, a nobreza perdia-se por factos que infirmassem a presunção de virtude,
que produzissem a infâmia (como a prática do crime de lesa majestade) ou que
prejudicassem a reputação pública (como o exercicio do comercio sórdido ou de
profissão vil).
Quanto à riqueza, existía o testemunho favorável de Aristóteles, que fazia
equivaler a nobreza à fortuna antiga ([divitia] nihil aliud est quam inveteratae
divitiae 497; [est] acquisita ex propria industria, vel divitis 498). Mas é claro que, para
uma parte dos autores, a proposição não era evidente. A afirmativa fundava-se
antes num realismo sociológico, na observação das leis da vida (nobilitas
494
Aristóteles, De anima, 1; Politica, 4,4. Fontes jurídicas: l. providendum, C. de postulando (Fragoso, 1601, I, l.
3, disp. 6, n. 149).
495
M. A. Pegas, Commentaria, cit., IV, ad I, 35, gl. 8, n. 3.
496
M. A. Pegas, Commentaria, cit., VII, ad I, 90, gl. 4, n. 9.
497
Phaebus, Melchior, Decisiones senatus regni Lusitaniæ [...], Lisbonæ, cit., I, d. 14, n.8.
498
Ibid., I, d. 14, n. 20.
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181
plerumque consistit in divitis 499), sobretudo dadas as dificuldades de levar uma
vida à maneira da nobreza sem o apoio da fortuna 500.
As obras são, por tanto, os complementos indispensáveis de uma vontade
de mudar. Tal como, no plano sobrenatural, são o complemento indispensável da
fé. A pura vontade, como a pura fé, são incapazes de produzir resultados. Mas
inclusivamente o tipo de obras eficazes para produzir a mudança de estado é
definido, não pelo agente, mas pela natureza das coisas.
9.4.3. Graça: gratidão, liberalidade e misericórdia.
Neste mundo social indisponível, ossificado e de mudanças lentas e
prefixadas, a mobilidade social não podía resultar nem da vontade, nem de
mudanças instantâneas. Só o tempo, a vontade traduzida em obras adequadas, a
riqueza honestamente adquirida, podiam modificar a ordem social estabelecida e
prescrita, quando podiam.
No entanto, existía a posibilidade de mudos dramáticos, não inscritos no
ordem do mundo, alterando prodigiosamente os equilibrios establecidos,
provenientes de manifestações livres da vontade. Como milagres, semelhantes
aqueles pelos quais Cristo mudara a agua em vinho ou ressuscitara Lázaro.
Esta irrupção gratuita e absoluta da vontade ordenadora na ordem criado
era a graça. A graça é o dominio de afirmação da vontade, pela qual se criam,
espontanea e arbitrariamente, situações novas. A saber, se transmitem bens ou
se outorgam estados.
Num mundo concebido como estando sujeito a uma ordem constitucional,
os actos gratuitos têm que ser considerados como coisa rara e excepcional 501.
Sobretudo se alteram substancialmente o estado das pessoas ou a distribução
dos bens e vantagens, operando mudanças dos equilibrios sociais equiparáveis,
no plano da natureza, aos milagres de Deus.
Estes milagres de engenharia social e política, quando não caibam a Deus,
cabem aos seus vigários no mundo - os reis. A graça régia é um aspecto menos
recordado das capacidades taumatúrgicas dos reis. Por meio da graça, eles
operam autênticos milagres sociais e políticos: legitimam filhos bastardos,
enobrecem peões, emancipam filhos, perdoam criminosos, atribuem bens e
recursos.
A importancia e generalidade dos mecanismos de graça justifica que nos
detenhamos um poco na sua teoría subjacente.
O núcleo duro das virtudes morais é constituido pela justiça 502, a
disposição para “atribuir a cada uno o suyo”, realizando e mantendo a ordem.
499
Cabedo, Jorge de, Practicarum observationum sive decisionum Supremi Senatus regni Lusitaniae, Olyssipone
1602-1604, 2 vols. (ultª ed. 1734), I, dec. 73, n. 5.
500
“Nobilitas sine divitis sordescit”, Barbosa, Remissiones doctorun [...], ad V, 139, n. 7; sobre o tema, v. Vera,
Álvaro Ferreira de, Origen da nobreza politica [...], cit., p. 349 ss..
501
Por isso, as doações entre particulares, superiores a certa quantia, devian ser confirmadas pelo rei
(insinuação).
502
S. Tomás, Summa theol., 1-1, qq. 57-122.
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Todavia, alguns deveres, apesar de não poderem ser configurados como de
justiça, contribuem igualmente para a manutenção da ordem.
Tais são, por exemplo, os deveres de gratidão. Aqui, não existiria uma
acção jurídica pela qual se demandasse alguém para "que recompense outrem
pelo que este lhe fez" (ibid., q. 80, a. un., resp.). Nem por isto seria menor a
exigência, pois a não satisfação do débito (apesar de não tutelado legalmente),
subvertiría a honestidade dos costumes. É isto que explica a firmeza que têm as
expectativas a retribuções (ou remunerações) por parte daqueles que prestam
favores (benfeitores o benemerentes).
O caso típico de cumprimento de deveres de gratidão na sociedade de
Antigo Regime é o das mercês régias, remuneratórias dos serviços dos vasalos.
Estos serviços não eram estritamente devidos, importando alguma componente
graciosa, algum favor, que constituia o beneficiário em gratidão. A mercê era,
então, o pagamento do dever de gratitdão, um dever não estritamente legal, mas
quase-jurídico (antidoral, para utilizar a palavra grega que exprime esta fortísima
obrigação) 503. Esta extrema proximidade com a justiça autorizva a que se
utilizasse a palavra acção para descrever o quase-direito dos clientes (maxime, os
vasalos do rei que lhe tivessem prestado serviços) às mercês. Na generalidade
dos juristas, estes deveres de doação (mas de doação remuneratoria) de mercês
são mesmo considerados como estritos deveres de justiça comutativa (ou seja, da
justiça que exige que a uma prestação corresponda outra, equivalente e inversa)
e, por tanto, deveres jurídicos em sentido estrito 504.
O jogo conjunto destes fortísimos deveres explica bem a estrutura quasejuridica das relações de hierarquia na sociedade de Antigo Regime. Ao superior
(praestans) - pai, senhor, etc. – deve-se-lhe continuamente (ainda que não
legalmente), veneração, expressa em piedade e obséquios (dos filhos em relação
aos pais), auxilio e conselho (dos clientes em relação aos patronos). Como a
satisfacção destes deveres não legais e, portanto, não exigíveis importa alguma
gratuidade (algum favor), aos inferiores que os tenham cumprido deve-se lhes o
afecto (affectus) da gratidão (expressa nos efeitos [effectus] das mercês).
Ainda menos exigíveis do que os deveres de gratidão eram os deveres
cujo incumprimento não ofendesse radicalmente os bons costumes (e.g., os
deveres que derivavam da liberalidade, da afabilidade ou da amizade). O seu
carácter menos devido faria com que, aqui, se pudesse falar de natureza gratuita
da prestação e afirmar, por tanto, que "pouco eram devidos" (parum habent de
rationem debiti, Santo Tomás, Sum. theol., ibid.: "O que não é dado por mérito do
precedente, é dado gratis. A graça exclui a razão de débito", Sum. theol., 1-1, q.
111, 1 ad 2). Estão compreendidos nesta classe os deveres de liberalidade, de
amizade, de caridade ou de magnanimidade. Ou seja, em termos mais gerais, a
graça. Dependente mais de uma disposição liberal do que de uma necessidade
de cumprir um dever estrito, a graça constituía, no entanto, um dever, por ser
exigido, nuns casos mais, em otros menos, por situações (ou relações) objetivas
em que as pessoa se encontram. Os amigos devem-se graças (liberalidades,
503
Clavero (1991), Bartolomé, Antidora. Antropología católica da economía moderna, Milano, Giuffrè, 1991.
504
Um outro caso típico de dever de gratidão é o dever, para o mutuante, de pagar os juros da quantia mutuada,
no caso de mútuo oneroso (ou usura) (cf. Clavero, Antidora …, cit.).
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favores) mútuos; os poderosos devem protecção aos humildes (amizade,
liberalidade). Os ricos devem esmola aos pobres (caridade). E alguns - como o rei
-, pela especial dignidade em que estão colocados, devem tudo isto numa forma
superlativa (magnanimidade).
Embora não se trate de deveres jurídicos nem de deveres tão estritos
como os da religião, da piedade familiar ou da gratidão, não se trata menos de
deveres, de vínculos derivados da natureza do homem e das relações sociais.
Neste sentido, alguns autores aproximam os deveres de graça da justiça
distributiva ("a qual é galardonar e remunerar cada um, segundo o que merece,
da qual justiça é muito próprio dos reis usar", Privilégio de João I de
Castela [1444] 505.
A teoria da graça prova, de novo, as limitações da ideia de mudança social
na sociedade moderna. A aquisição de novos estados - seja pela nobilitação, seja
por acrescimos patrimoniais devidos a mercês, seja pela extinção de diminuições
estatutárias, como a menoridade ou a condenação criminal - era considerada
como um mero reconhecimento de situações devidas (ainda que não legalmente
ou em justiça), como um retorno à ordem momentaneamente olvidada ou
ofendida. Ou, talvez melhor, a graça consistiria no aperfeiçoamento da antiga
ordem por uma outra de nível superior. A mudança convertendo-se, assim, numa
rectificação ou numa reconstituição.
A graça não representa, então, uma erupção absolutamente arbitrária da
vontade no dominio dos equilíbrios sociais. Ao revés, a graça realiza também, à
sua maneira, a ordem. A mobilidade social que desencadeia é apenas aparente.
No fundo, a nova posição atribuída ao agraciado já lhe era devida, ainda que não
jurídicamente. Esta proximidade em relação à justiça é tão forte que, para se
significar a pretenção do postulante a uma graça ou mercê, se fala precisamente
de acção.
A eficácia - decisiva, mas limitada - da graça na constitução de estados
também é discutida a propósito da aquisição da nobreza por rescripto regio.
Para Baptista Fragoso, que escreve em Portugal em finais do século XVI, a
nobreza concedida pelo príncipe não deixa de constituir, por oposição à nobreza
interior, natural, uma "nobreza extrínseca"; é a "qualidade atribuida por quem
detém o principado, em virtude da qual aquele que a recebe é assinalado como
superior ao plebeu" (nobilitas extrinseca est qualitas illata per principatum
possidentem, que quis acceptus ostenditur ultra honestos plebeios 506).
De facto, esta independência da qualidade de nobre em relação a um acto
de graça régia reflectia a ideia de que a hierarquia das pessoas consiste numa
disposição da natureza, na existência de uma ordem natural e não num facto da
vontade política. A vontade política não podia senão declará-la, concedê-la
expressamente (ratificá-la) a quem já a têm implícitamente (a "quem a merecem"),
como que de raíz. "[A nobreza] - ensina Álvaro Ferreira de Vera - é uma qualidade
concedida por qualquer príncipe àquele, que a merece, ou porque descende de
505
Deus, Salustiano de, Graça, merced e patronazgo real. A Camera de Castilla entre 1474-1530, Madrid,
C.E.C., 1994, 103.
506
Fragoso, Baptista, Regimen reipublicae christianae, cit., I, l.3, disp. 6, pg. 316, n. 131.
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pessoas, que a mereceram por serviços feitos à República, assim nas armas,
como nas letras; ou por se ter avantajado aos mais em qualquer memorável
exercício" 507. Ainda que este autor afirme que "os reis são os que concedem
essencialmente a nobreza e fidalguia" (ibid., 6), as causas eficientes destas
últimas são a virtude e a linhagem, sendo o rei somente a causa formal (ibid.).
No entanto, outros atribuem à acção do príncipe um carácter mais criador.
Tal como Deus, ele seria a verdadeira causa eficiente da nobreza: "do mesmo
modo que junto de Deus é nobre quem Deus pela sua graça torna grato ao
mesmo Deus, assim no mundo é nobre quem o príncipe, por lei ou pela sua
graça, faz grato ou nobre" (Bártolo, cit. por Otalora 508). Assim, o arbitrium principis
não teria limites.
"A nobreza pertence só ao rei, sendo uma superioridade real e induzindose por concessão régia ou privilégio" (nobilitas ad solum Regem pertinet, & est
superioritatis regalis: & nobilitas inducitur ex regis concessione, seu privilegio),
afirmam Jorge de Cabedo, escrevendo em finais do século XVI 509, e Melchior
Febo, um poco mais tardio 510. Entre esta nobreza dativa e a nobreza generativa
não existiria nenhuma diferença (ibid., n. 138). António Gama é todavía mais
decisivo: ninguém adquire a nobreza por si mesmo, mas por dignidade de oficio
ou por concessão real (nemo acquiritur nobilitatem a seipso, sed a dignitate oficii,
vel concessione regis) 511. Ou seja, a ideia de que o príncipe tem a capacidade
para decidir da nobreza, tanto ou mais que a natureza, está a tornar-se,
progressivamente, comum ou, inclusivamente, dominante.
Em todo o caso, se se tratasse - não das categorias especificas de
nobreza cortesã conhecidas das etiquetas palacianas ou proto-burocráticas - mas
da categoria geral de "nobre", tal como se encontrava nas fontes de direito
comum, a doutrina requeria títulos de nobreza menos dependentes do favor real e
mais próximos dos hábitos sociais, tais como "viver à maneira da nobreza" ou "a
fama inveterada".
A misericordia é um tipo especial de graça suscitado pela tristeza que nos
causa a situação daqueles (os miseráveis 512) a quem a fortuna (= o acaso, a
desordem permitida pela ordem) tirou os seus direitos (o seu lugar natural na
ordem). Esta tristeza - devida a que não tem algo a que tende o apetite natural 513 é como que uma nostalgia da ordem que o acaso não deixou que se realizasse.
507
Vera, Álvaro Ferreira de, Origen da nobreza politica [...], cit., p. 5 ss..
508
Otalora, Juan Arce e, Summam nobilitatis Hispaniae, & immunitatis regiorum tributorum causas, jus [...], cit., fl.
509
Cabedo, Jorge de, Practicarum observationum […], cit., I, dec. 73, n. 1.
510
Phaebus, Melchior, Decisiones senatus regni Lusitaniæ [...], cit., I, d. 14.
511
Gama Pereira, António da, Decisionum Supremi Senatus..., Ulyssipone 1578 (ultª. ed. 1735), dec. 86, n. 5.
17 v..
“Os miseráveis - escreve o jurista português Manuel Álvares Pegas - são aqueles cuja natureza nos move a
sentir pena (Commentaria …, cit., XIII, ad lib. 3, t. 5, gl. 5, cap. 6, n. 4.: forasteiros, estrangeiros, cativos, os saidos da
cadeia, enfermos, comunidades, hospitais, agricultores, rústicos, meretrizes, expostos, mercadores em viagem; cf.
Sórzano, lib. 2, cap. 28), pais de muitos filhos, universidades, estudantes.
512
513
S. Tomás, Summa theol., 2-2, q. 30, a.1.
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A doação misericordiosa (também chamada esmola) é então uma espécie
de doação liberal, caracterizada pelo seu específico impulso (ou seja, pelo desejo
de aliviar a miséria alheia) 514.
Tal como a doação liberal, a esmola, atribuindo bens não devidos e, com
isto, alterando os equilíbrios estabelecidos, não relaxa a justiça. De facto, “Deus como explica S. Tomas (Summa theol., I, q. 31, a. 3)-, ao actuar
misericordiosamente, não apaga a justiça, mas realiza a sua plenitude”.
Apesar de todas as suas limitações, a graça - sobretudo a graça régia constitui o principal mecanismo de mobilidade dramática e rápida, mas
socialmente reconhecida, na sociedade de Antigo Regime. Este facto determina a
importância política da realeza nos procesos sociais de mudança. A graça régia
não é tão importante por ser uma fonte de benefícios - como o era também, v.g., o
comércio -, mas por ser uma fonte de legitimação social desses benefícios. Nos
casos em que nem obras adequadas nem tempo prescrito pudessem justificar a
ascenção social, a graça do rei restava como único meio de cohonestar a
mudança de estado.
514
Ibid., 2-2, q. 31 1c.
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186
i
[Capacidade jurídica (Rechtsfähigkeit) – susceptibilidade de se ser titular de direitos e obrigações (CG, I, 167
ss.)
Artº 1º do CC de 1867: “Só homem é susceptível de direitos e obrigações. Nisto consiste a sua capacidade
jurídica ou a sua personalidade” (Cód. civil brasileiro de 1917, “Todo o homem é capaz de direitos e obrigações na ordem
civil”)
“nascimento com vida e figura humana” (artº 6º) [os “monstros”, p. 178]
Que o CC abra com um artº em que isto enfaticamente se declara não é uma coincidência.
A subjectivação jurídica dos animais na sociedade de AR (ratos de Autois, defendidos por Crasseneux, o boi de
Alfândega da Fé)
A permanência da escravatura, ressalvada, para África, pelo artº 3º do decº de 18.11.1869.
Também não é constitui um acaso o cuidado posto pela doutrina na interpretação da palavra “homem”.
Capacidade de exercício de direitos (Handlungsfähigkeit) – capacidade de exercitar por si os seus direitos e
cumprir as suas obrigações.
pressupõe a capacidade de deliberar e de querer
Incapcidade geral – menores e interditos por demência
Incapacidade relativa.
Representação por procurador nos actos não pessoais (não no casamento, testamento, perfilhação e
nacionalização)
Capacidade contratual, capacidade processual e capacidade delitual (ou imputabilidade)
Falência – Cód. comercial 1833, CC 1888, Cód. de falências de 1899, Cod. proc. com, de 1905
Infames e indignos, p. 233
ii
Keila Grinberg, LIBERATA. A lei da ambigüidade. As ações de liberdade
da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000.
Sumário
Prefácio / Wanderley Guilherme dos Santos - 7
Agradecimentos - 11
Exposição das Razões - 13
A Liberdade de Liberata - 15
Surpresas nos Porões do Arquivo - 21
A Liberdade de Liberata II: a volta dos filhos escravizados - 29
Embargos e Pareceres - 37
O Estado entre Senhores e Escravos - 39
A Lei da Ambigüidade - 49
Revisão do Processo - 59
Fim de Liberata - 61
Curadores - 63
Advogados - 71
Citações - 79
Leis - 83
Veredicto - 93
Interpretação do Direito - 95
Bibliografia - 101
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Gráficos - 107
Anexo - 119
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188
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