S - Didaskoja

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CAPÍTULO SEIS
Sua vocação na família
A igreja estava lotada para o funeral de uma senhora de mais de 80 anos. Ela e seu marido tinham
tido muitos filhos que lá estavam, juntamente com seus netos e bisnetos. Contando também as esposas
das várias gerações ali presentes, mais os sobrinhos e sobrinhas com seus filhos, a igreja estava repleta de
familiares, todos ali presentes diante de Deus para agradecer a ele pela vida dessa mulher e para confiá-la
de volta a ele.
E se essa mulher não tivesse encontrado o seu marido na década de 30? E se eles não tivessem se
casado? Metade das pessoas presentes na igreja, desde os avós até seus netos, que se inquietavam nos
bancos da igreja, não existiria. A união daquele homem e daquela mulher teve consequencias que eles
nem poderiam imaginar, acarretando um grande número de novas vidas que deram origem a novas
gerações, incontáveis batismos, novos casamentos e novas crianças recém-nascidas. Deus estava
claramente agindo por intermédio dessa mulher e de seu marido na família que eles iniciaram.
Todos os cristãos ― na verdade, todos os seres humanos - foram chamados por Deus numa
família. Nossa própria existência é proveniente de nossos pais, que nos conceberam e nos trouxeram ao
mundo. Novamente, Deus poderia ter povoado a terra criando do pó cada nova pessoa separadamente,
mas, em vez disso, ele decidiu que cada nova vida fosse gerada e cuidada pela família.
A família é a mais básica de todas as vocações, aquela na qual o poder criativo de Deus e o seu
cuidado providencial são transmitidos da maneira mais dramática por meio dos seres humanos. Os
antropólogos afirmam que a família é a unidade básica de toda a cultura. A família, com a autoridade
delegada por Deus, também é a base para qualquer outra autoridade humana. Assim, a vocação da
cidadania tem o seu fundamento na família, e a vocação do pai de prover sustento para os seus filhos
determina a sua vocação no trabalho. E mesmo na igreja, a família é elevada à imagem da relação íntima
que Deus têm com o seu povo: Deus é nosso Pai nos céus, a Igreja é o corpo de Cristo.
Nós nascemos numa família, nossa própria existência é resultante de urna mãe e de um pai. Ser
filho é urna vocação, segundo os refonnadores, e seremos sempre filhos para os nossos pais. E pode ser
que nós, como filhos, possamos ser vocacionados para o casamento ― um outro relacionamento que dura
a vida inteira para sermos pais, tendo nossos próprios filhos. Todas essas são vocações divinas e santas que
provêm de Deus.
O MISTÉRIO DO CASAMENTO
"Deus faz que o solitário more em família", afirma o salmista (68.6). Segundo o Gênesis, não era
bom que o homem estivesse só, por isso Deus lhe fez uma mulher, de sua própria carne, instituiu o
casamento e ordenou que fossem fecundos e se multiplicassem (Gn 1-2).
O casamento é uma vocação de Deus. Esta é a principal questão na Reforma, que teve que
combater a idéia de que aqueles que quisessem ter uma vida espiritual deveriam fazer o voto de celibato,
prometendo nunca se casarem nem terem filhos. Ao reunirem textos bíblicos sobre o casamento e a
família, os reformadores insistiram que não há vocação maior nem mais santa do que o casamento, e que
tudo o que se refere ao casamento, inclusive o relacionamento sexual, é dom de Deus.
Na verdade, as Escrituras revelam que o relacionamento íntimo do casamento possui um profundo
significado espiritual. Em algumas notáveis passagens das Escrituras, o apóstolo Paulo descreve a união do
casamento corno "um grande mistério", que fala de Cristo e da Igreja (Ef 5.32). No final dos tempos,
segundo o Apocalipse, a Igreja será revelada corno a Noiva de Cristo, que espera durante a tribulação a
chegada do seu noivo (Ap 21.2,9). 0 grande poema de amor na Bíblia, o livro de Cantares (também
conhecido como Cântico dos Cânticos), com seus desejos e sua sensualidade, na verdade é sobre o
casamento. Mas também tem sido sempre usado para falar do relacionamento entre Cristo e a Igreja, ou
em termos mais pessoais, entre Cristo e o crente.
Ou se . a, Cristo está oculto no casamento. Não que o casamento seja um sacramento, pois até os
que não são cristãos também se casam. Os reformadores insistiam que um sacramento deve ter sido
estabelecido por Cristo como uma comunicação do evangelho, então o batismo e a ceia são os únicos
sacramentos. O casamento é uma condição natural, comum a toda a raça humana, instituído por Deus na
criação. Ele está relacionado ao reino terreno de Deus e por isso é autorizado e regulamentado por leis
civis. 0 casamento não é um sacramento, mas uma vocação. Entretanto, o casamento é uma manifestação
tangível da relação entre Cristo e a Igreja, embora apenas os casais cristãos, pelos olhos da fé, sejam
capazes de perceber como isso ocorre.
Na mesma passagem que qualifica a união conjugal como "um grande mistério" entre "Cristo e a
Igreja" (5.32), o apóstolo Paulo escreve sobre corno marido e mulher devem tratar um ao outro.
As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da
mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. Como, porém, a
Igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido. Efésios
5.22-24
Ou seja, a mulher vê Cristo oculto no seu marido. Ela se submete a ele assim como a Igreja o faz
em relação a Cristo. O marido, por sua vez, deve fazer por sua esposa o que Cristo fez por sua Igreja:
"Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a Igreja e a si mesmo se entregou por ela" (v.
25). A vocação da mulher é a submissão ao marido. A vocação do marido é se entregar por ela.
Essas passagens são interpretadas geralmente de modo muito limitado no que se refere apenas a
"quem é que manda" no casamento. Na verdade, elas realmente tratam da autoridade, mas como iremos
discutir, isso é apenas uma pequena parte - e se a considerarmos como a única parte, ela perde totalmente
o sentido - da vocação. Lembre-se, o objetivo da vocação é amar e servir ao próximo. No casamento, o
próximo da mulher é o seu marido, e o próximo do marido é a sua mulher. A mulher cumpre a sua vocação
amando o seu marido e servindo-o. E ele cumpre a sua vocação amando a sua mulher e servindo-a.
A mulher ama e serve pela submissão. 0 marido ama e serve pela entrega. Ele é chamado a fazer
por sua mulher o que Cristo fez por sua igreja. E o que foi isso? Ele negou a si mesmo, carregou a sua cruz e
morreu por ela. Ele se entregou, continua Paulo, "para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da
lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem
coisa semelhante, porém santa e sem defeito" (vs. 26,27).
Não há nenhum marido controlando tiranicamente sua pobre mulher, nem nenhum grosseirão
preguiçoso refestelado na poltrona esperando que sua esposa faça tudo por ele. Não foi assim que Cristo
tratou sua Noiva, a Igreja; não é assim que ele nos trata. Pelo contrário, o texto nos oferece uma imagem
de um marido que se sacrifica - seus desejos, suas necessidades, sua força, sua própria vida, se for preciso
para o bem da sua mulher. Na verdade, com todas as figuras que se referem ao batismo e com os
pronomes femininos dessa passagem sobre Cristo e sua Noiva, o marido deve se entregar para o bem-estar
espiritual da sua mulher. Do mesmo modo, é muito mais fácil para a mulher se submeter a alguém que
faça isso; sua confiança, sua fé num marido que a ama assim será muito maior.
Eu diria também que assim como Cristo é aquele que inicia nosso relacionamento com ele (nossas
boas obras são o fruto, a reação natural ao seu amor por nós), cabe ao marido a liderança em criar esse
tipo de casamento bíblico. E ele não faz isso lançando no rosto de sua mulher o texto de Efésios 5.22,
insistindo furiosamente que ela deve se sujeitar a ele. Se usarmos a analogia do nosso relacionamento com
Cristo, é evidente que nunca seremos obedientes apenas por causa da lei, só porque nos disseram para
que assim o fizéssemos. ("se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu Cristo em vão" [GI 2.2 1 ]). A
obediência vem em resposta ao sacrificio de Cristo. Se o Casamento reflete o relacionamento entre Cristo
e a Igreja, com Cristo no papel de marido, então o marido precisa primeiro se entregar pela sua mulher, e
em conseqüência disso, a mulher, em resposta, desempenhando o papel da igreja, irá se submeter às boas
intenções que ele tem para com ela.
O texto de Efésios prossegue falando sobre a questão do casamento, inclusive abordando suas
dimensões fisicas e sexuais:
Assim também os maridos devem amar a sua mulher como ao próprio corpo. Quem ama a esposa a si
mesmo se ama. Porque ninguémjamais odiou a própria carne; antes, a alimenta e dela cuida, como também
Cristo o faz com a Igreja; porque somos membros do seu corpo. Eis por que deixará o homem a seu pai e a
sua mãe e se unirá à sua mulher, e se tornarão os dois uma só carne. Grande é este mistério, mas eu me
refiro a Cristo e à Igreja. Não obstante, vós, cada um de per si também ame a própria esposa como a si
mesmo, e a esposa respeite ao marido.
Efésios 5.28-33
Longe de denegrir o corpo, como os cristãos são freqüentemente acusados de fazer, a Bíblia afirma
a nossa natureza fisica. Além disso, esse texto nos fala da unidade de Cristo com o seu povo, não apenas
em vagos termos "espirituais", mas em termos de "corpo". A igreja é o corpo de Cristo. E mais ainda, Cristo
deu o seu corpo, pregado na cruz, pela sua igreja. Na instituição da ceia, ele diz: "Isto é o meu corpo
oferecido por vós" (Le 22.19).
No princípio da criação, quando Deus estabeleceu o casamento (o apóstolo Paulo está citando
Gênesis 2.24), ele ordenou que o marido e a mulher se tomassem "uma só carne". Isso é realmente "um
grande inistério". A natureza da unidade de Cristo com a Igreja, que significa sermos o corpo de Cristo na
terra, e a entrega do seu corpo por nós levantam inúmeras questões teológicas. Mas nesse texto, trata-se
de uma aplicação bem prática do casamento. O marido deve amar a sua esposa assim como ama o seu
próprio corpo. Nunca deve maltratá-la ou machucá-la mais do que faria consigo mesmo. 0 apóstolo Paulo
também não afasta as implicações sexuais que os corpos do homem e da mulher devem compartilhar.
Mais adiante, ele é mesmo bem explícito:
O marido conceda à esposa o que lhe é devido, e também, semelhantemente, a esposa, ao seu marido. A
mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, e sim o marido; e também, semelhantemente, o marido
não tem poder sobre o seu próprio corpo, e sim a mulher. Não vos priveis um ao outro, salvo talvez por
mútuo consentimento, por algum tempo, para vos dedicardes à oração e, novamente, vos ajuntardes, para
que Satanás não vos tente por causa da incontinência.
1 Coríntios 7.3-5
Essa passagem é bem surpreendente no que concerne à dimensão sexual do casamento. 0 marido
e a mulher devem satisfazer um ao outro sexualmente. Seus corpos não pertencem apenas a eles, mas à
outra pessoa: o corpo da mulher pertence ao marido, e o corpo do marido pertence à mulher. Eles não
devem "privar um ao outro" de sexo, salvo por mútuo consentimento para se devotarem à oração, mas
isso deve ser apenas "por algum tempo" e, depois disso, devem se "ajuntar novamente".
Essa liberdade sexual dentro do casamento é muito diferente - e muito mais libertadora - do que
as atitudes contemporâneas em relação ao sexo. Não há a idéia de que "é o meu corpo, e posso fazer o
que quiser com ele". Não, não é o seu corpo - é o de seu cônjuge, é o corpo de Deus. Certamente não há
peri-nissividade sexual aqui. 0 sexo deve encontrar sua expressão completa no casamento, para que
Satanás não tente o homem e a mulher com o artifício da falta de autocontrole, levando-os à infidelidade e
à imoralidade sexual. A questão ilustra um princípio sobre vocação que será discutido posteriormente em
outro capítulo: uma coisa pode ser boa quando feita dentro de uma vocação, mas ruim quando feita fora
dessa vocação. 0 sexo fora do casamento é errado, não porque haja alguma coisa errada com o sexo.
Dentro da vocação do casamento, é uma coisa muito boa. Fora do casamento, no entanto, é uma coisa
ruim. Você não foi vocacionado para fazer sexo com nenhuma outra pessoa que não seja o seu cônjuge.
Você não tem autoridade para ter essa relação física verdadeira com alguém com o qual você não está
casado.
Há uma boa razão pela qual deve existir uma vocação para fazer sexo: pela sua natureza e pelo seu
propósito, o sexo leva a outra vocação, a da maternidade e a da paternidade.
O MILAGRE DA PATERNIDADE E DA MATERNIDADE
O poder criador estabelecido em Gênesis - a capacidade de criar uma nova vida - se manifestam
nos seres humanos que se ajuntam e o nascimento de uma criança é um verdadeiro milagre. Isso acontece
com tanta freqüência que as pessoas tendem a esquecer que é algo surpreendente e é um milagre exceto,
geralmente, quando acontece com elas.
Quando um casal tem um filho, o milagre da natureza que aconteceu é palpável. Embora a mãe e o
pai tenham concebido a criança - que possui o seu DNA ― naturalmente, foi Deus quem fez a criança por
meio deles. "Tu me teceste no seio de minha mãe" (SI 139.13). Deus, o doador da vida, na verdade está
presente e trabalhando na concepção e na gravidez.
Quando as crianças nascem, estão num estado de total dependência. Não sabem comer sozinhas,
não sabem falar, não podem nem mesmo se locomover. Precisamos cuidar de todas as suas necessidades:
dar banho, vestir, alimentar, acalmar. Elas dependem totalmente dos seus país. Essa imagem é também
uma imagem da dependência que temos de Deus, não somente quando somos jovens, mas na verdade,
por toda a vida. Mais uma vez, Deus cuida da criação por meio de sua mãe e de seu pai, e o amor que eles
sentem por seu filho é o reflexo da imagem do amor de Deus.
Os pais, como Deus, não só trazem seu filho à existência como também ― assim como Deus,
sustentam a vida de seu filho. Ou seja, os pais não estão tanto sendo "como Deus", mas é Deus que está
agindo por meio do que eles fazem. Ele está oculto na vocação dos pais.
Além do mais, os pais como Deus, ou como instrumentos de Deus, agem para transmitir a fé para
seus filhos. 0 grande poeta cristão Sir Edmund Spenser escreveu no seu poema de casamento,
"Epithalamion", sobre como, na concepção de um filho, uma alma imortal passa a existir, um potencial
cidadão do reino dos céus. É tarefa dos pais, ou melhor, é a vocação dos pais ensinar "a criança no
caminho em que deve andar" (Pv 22.6) e ensinar a ela a Palavra de Deus (Dt 4.9; 6.7). Nas igrejas que
praticam isso, os pais levam seus filhos para serem batizados.
Os catecismos da Reforma atribuem a instrução dos filhos nas verdades da fé não apenas aos
pastores, mas ao "chefe da família". O bem-estar espiritual do filho deve ser cultivado não só na igreja,
mas na família, que na verdade tem a principal responsabilidade. Isso não diminui de maneira alguma o
papel da igreja, cujos programas de catecismo e classes de escola dominical atuam em favor dos próprios
pais. Um dos modos em que os país exercem a sua responsabilidade é quando cuidam para que seus filhos
sejam criados na igreja. Mas a família é algo como uma mini-igreja em si própria, com "o chefe da família"
normalmente o pai, embora a imprecisão do termo possa dar essa vocação à sua mãe se ela estiver
criando seus filhos sozinha - é um minipastor para o rebanho de sua família.
Dizer que um pai é uma espécie de minipastor não significa, de modo algum, o papel real do ofício
pastoral, embora os pastores de uma congregação devam se lembrar que os pais têm autoridade soberana
sobre os seus filhos, e os pastores não devem fazer nada que enfraqueça nem contradiga a função dos pais
(A única exceção deve ser feita em relação ao evangelho, quando o chamado para seguir a Cristo deve ter
prioridade mesmo sobre os laços da família [Lc 14.26]). Mesmo nesse caso, no entanto, o mandamento de
"honrar pai e mãe" não deve ser quebrado (Êx 20.12), mesmo no caso de pais não-crentes.
Quando as Escrituras dizem, referindo-se aos mandamentos da Palavra de Deus, para "ensiná-los
diligentemente a seus filhos", elas nos dizem também que "delas falarás assentado em tua casa, e andando
pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te" (Dt 6.7). Reuniões devocionais em família, leitura da Bíblia,
instrução moral e - especialmente importante - o perdão mútuo dos pecados e a proclamação e aplicação
do evangelho fazem parte da fonnação espiritual dos filhos que acontece na família.
A magnitude do papel dos pais, o poder notável que os pais e as mães têm para criar, alimentar e
moldar seus filhos, tanto fisica como espiritualmente, está relacionada ao fato de que Deus é o verdadeiro
pai. Em toda a Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento, Deus se revela como nosso "Pai".
Especificamente, Jesus nos ensinou a orar "Pai nosso que estás nos céus". Ele é a fonte da nossa vida,
nosso provedor, nosso protetor, nossa autoridade. E o que acontece com os filhos - nestes dias atribulados
- que não têm país presentes em sua vida? Deus promete ser seu pai, diretamente, o "pai dos órfãos" (SI
68.5). 0 fato de Deus ter escolhido o homem, esse vaso de barro comum, desorientado e passível de erros
para desempenhar a paternidade é mais um de seus milagres.
A VOCAÇÃO DE SER FILHO
Nem todo mundo é vocacionado para ser pai ou mãe, naturalmente, mas todos possuem pais. Ser
filho também é uma vocaçao santa, com funções e obrigações específicas. Mesmo quando somos adultos,
enquanto nossos pais estão vivos, somos como crianças para eles, e isso permanece sendo o principal
papel de nossa vocação na família.
Um bebê não tem muito o que fazer: comer, dormir, evacuar e ser o centro das atenções da
mamãe e do papai, que o atendem de todas as maneiras possíveis. Como se isso já não fosse o bastante,
obviamente, outra coisa que ele faz é chorar.
Observe que Agostinho utiliza da imagem de sua própria infancia em suas Confissões.
Primeiramente, numa aplicação precisa e completa da doutrina da vocação, ele relaciona a maneira como
foi alimentado, quando bebé, às obras de Deus:
Mas a consolação das tuas misericórdias (cf SI 5 1. 1; 94.19) tem me sustentado, pois assim tenho ouvido dos
pais de minha carne, da qual e na qual tu me formaste no devido tempo, porém eu disso não me lembro.
Assim fui acolhido pelas consolações do leite humano, mas não era a minha mãe nem as minhas amas que
enchiam por si mesmas os peitos de leite. Eras tu, Senhor, que, por intermédio delas, me davas o alimento
da infância, segundo os teus desígnios e segundo as riquezas que depositaste até no mais íntimo das coisas.
Tu também me concedeste não desejar mais do que de ti recebi, e às minhas amas desejarem me oferecer o
que tu lhes deste. Porque por um impulso controlado por ti, o desejo instintivo delas era me oferecer o leite
que tinham em abundância recebido de ti. Pois o bem que chegou até mim por intermédio delas lhes era
bom, todavia não era proveniente delas, mas por intermédio delas. Na verdade, todas as coisas provêm de
ti, ó Senhor, Deus meu da minha salvação (2Sni 23.5). Só percebi isso quando tu clamaste a mim graças aos
dons concedidos por ti, tanto interiormente em espírito, quanto exteriormente no corpo (Livro 1, Capítulo 6,
págs. 6,7.).
Agostinho não é geralmente associado com a doutrina da vocação, mas não pode haver uma
análise melhor. A seguinte declaração se aplica ao que damos e recebemos em qualquer vocação: "Pois o
bem que chegou até mim por intert-nédio delas lhes era bom, todavia não era proveniente delas, mas por
intermédio delas".
Embora um pouco rude, ele pinta um quadro realista da percepção de um bebé quando descreve
por que ele sempre chora.
Pouco a pouco, comecei a perceber quando devia e queria manifestar meus desejos para aqueles que
poderiam satisfazê-los uma vez que eu não era capaz. Porque meus desejos provinham do meu interior, e os
adultos estavam no mundo exterior e não tinham meios de penetrar na minha alma. Então, eu esperneava e
emitia sons, sinais que fizessem significar meus desejos, um número pequeno de sinais que era capaz de
fazer, mas que estava no meu alcance fazê~los: pois não havia semelhança real. Quando não conseguia, ou
porque não era compreendido ou porque era algo que me faria mal, costumava ficar indignado com os
adultos por causa de sua desobediência e com outras pessoas que não estavam submissas aos meus
interesses, em conseqüência do que me vingava deles pelo choro.
(Livro 1, Capítulo 6, pág. 7.)
A indignação de um bebê, a insistência em ser o centro do universo e querer que os adultos façam
tudo o que ele quer são para Agostinho um sinal do pecado original, um ato infantil de rebelião cósmica
que se prolonga até mesmo quando somos adultos.
No entanto, certamente o que as crianças fazem é parte de sua vocação. Por exemplo, brincar é o
que as crianças fazem e o que se espera que façam. Aprender faz parte da vocação de uma criança. Tudo o
que elas fazem para crescer faz parte da vocação delas, e é uma vocação que todos têm.
Se o fato de sermos filhos é uma vocação, então Deus também estaria oculto nela? Uma vez que
Deus é nosso pai celestial, os seres humanos serão sempre filhos para ele. Todavia, no mistério da
Trindade, Deus é o Pai e é também o Filho. Jesus Cristo é o Filho de Deus e o Filho do homem. Ao encamar,
ele nasceu como um bebê, sujeitou-se a seu pai e a sua mãe e cumpriu perfeitamente o desejo do Pai
celestial. Jesus Cristo, gerado e não criado, é o divino Filho, o modelo, a fonte e o santificador da infância.
Se a infância é uma vocação, como a criança pode amar o próximo e servi-lo? Quem é o próximo
da criança? A resposta é simples, são os pais.
"Honra teu pai e tua mãe" (Êx 20.12). O mandamento é claro e obrigatório, um princípio moral
igual ao de não matar ou não roubar. Lutero coloca isso de um modo pungente na sua explanação sobre o
mandamento no seu "Catecismo Maior". Os filhos, afirma ele, precisam "compreender que o corpo e a
vida que têm foram recebidos de seus pais e que foram alimentados e cuidados por seus pais, caso
contrário teriam perecido inúmeras vezes em sua própria imundícia", uma referência à obrigação daqueles
que trocavam suas fraldas. "Aqueles que olham para essa questão desse ângulo e pensam sobre isso irão espontaneamente
prestar honra a seus pais e estimálos como aqueles por intermédio dos quais Deus lhes tem concedido tudo de bom" (404).
No entanto, as crianças podem ser envergonhadas e constrangidas por seus próprios pais. Lutero,
muito realista, reconhece que, com toda probabilidade, os pais terão falhas.
Precisamos enfatizar para os jovens que eles devem respeitar os seus pais como representantes de Deus, e
lembrar que, embora eles possam ser fracos, deficientes, impotentes e esquisitos (!), eles ainda continuam
sendo pai e mãe concedidos por Deus. Não devemos lhes negar honra por causa de suas falhas. Por isso não
devemos julgá-los, sejam eles como forem, mas sim pensar na vontade de Deus, que criou o mandamento e
ordenou que as coisas fossem como são (401).
Por mais "esquisitos" que eles possam parecer! Lutero faz aqui uma distinção útil para se
compreender todas as vocações, a diferença entre pessoa e cargo.
Vocação se refere ao fato de uma pessoa ser vocacionada para determinado cargo. A autoridade,
as prerrogativas e a presença divina pertencem ao cargo, e não à pessoa que o exerce. Os pais podem ser
"fracos, deficientes, impotentes e esquisitos", mas eles ainda exercem o cargo de pais e mães. Isso não se
deve a sua própria capacidade, mas porque, devido ao poder criador da sexualidade estabelecido no plano
divino do corpo humano, eles se tomaram pais, Da mesma maneira, em outras vocações, como a do juiz,
por exemplo, ele é uma pessoa comum com fraquezas e defeitos, mas quando está desempenhando seu
cargo, investido da lei e da autoridade do estado, o juiz pode ter em suas mãos o poder de vida e morte. 0
chefe pode ser um imbecil, mas, ainda assim, o funcionário deve seguir suas ordens. Um pastor pode ser
fraco na fé, mas em virtude do seu cargo, os casamentos que ele realiza ainda são válidos, e, mais
importante ainda, assim também são válidos os batismos e evangelizações que realiza. A pessoa que
desempenha um cargo é um pecador que precisa da graça e do perdão de Deus, e embora seja possível
pecar na vocação e contra ela, como iremos ver - no caso de pais que maltratam seus filhos em vez de
arná-los - o cargo em si é um dom de Deus.
O relacionamento entre pais e filhos continua mesmo depois que eles crescem e se tomam
adultos. Ainda são filhos e filhas. Enquanto os pais estiverem vivos, eles devem ser honrados. Ao discutir o
tratamento dado à viúva na igreja, o apóstolo Paulo diz que "se alguma viúva tem filhos ou netos, que
estes aprendam primeiro a exercer piedade para com a própria casa e a recompensar a seus progenitores;
pois isto é aceitável diante de Deus" (ITin 5.4). Muitos homens e mulheres mais velhos têm aversão ao fato
de ficarem dependentes dos filhos -algumas vezes eles preferem a eutanásia em vez de se tomarem um
"peso" para os seus filhos. Porém, a família se resume à dependência. Primeiramente, os filhos - deitados
no berço, sujando a fralda e precisando ser limpos e alimentados - eram completamente dependentes de
seus pais. Mas chegará um tempo em que, igualmente, os pais ficarão dependentes dos filhos. Embora
essa reversão de papéis possa ser traumática para os dois lados, retribuir o que os pais e avós fizeram faz
parte da vocação da família.
Nesse contexto, o apóstolo Paulo continua, fazendo uma dura advertência contra o abandono de
membros da família quando eles precisam: 44se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos da
própria casa, tem negado a fé e é pior do que o descrente" (ITni 5.8). Rejeitar a família é equivalente a
rejeitar a Deus, uma vez que ele está na família.
O PROPÓSITO DE DEUS PARA AS VOCAÇÕES DA FAMÍLIA
A família é a vocação fundamental. Outras autoridades terrenas derivam da autoridade exercida na
família. "Porque qualquer outra autoridade derivou e se desenvolveu da autoridade dos pais", afirma
Lutero no seu "Catecismo Maior", ao relacionar a paternidade e a maternidade a outras vocações. "Pai,
pelo sangue, pai de um estabelecimento (funcionários) e pai da nação (governantes civis). Além disso, há
também os pais espirituais (pastores)" (408).
Embora a autoridade dentro da família e de outras vocações seja bem real, esse não é o objetivo
da vocação. Muitas pessoas abordam a questão da autoridade quando pensam em vocação, discutindo
que autoridade os pais têm sobre os seus filhos, o marido sobre a sua mulher, e depois passam a outras
vocações para tentar imaginar que tipo de autoridade os empregadores, govemantes e pastores têm. É
verdade, também, que todas as autoridades legítimas provêm de Deus, que certamente está presente
nessas vocações. Porém, reduzir esses relacionamentos à questão da obediência é construir a doutrina da
vocação fundamentada apenas na lei, quando se trata também de uma questão de evangelho. A essência e
o objetivo das vocações do cristão - do ponto de vista de que uma pessoa está exercendo uma vocação e
sendo um instrumento para a ação de Deus - são o amor e o serviço.
Numa família bem-estruturada, os pais amam e servem a seus filhos. Os filhos amam e servem a
seus pais. A mulher ama e serve a seu marido. O marido ama e serve a sua mulher. Do mesmo modo, os
empregados e empregadores, os govemantes e os cidadãos, os pastores e a congregaçao amam e servem
uns aos outros.
Uma vez que algumas vocações têm autoridade, geralmente não é necessário que aqueles que
estejam nessas vocações exijam autoridade; não há razão para exigir o que eles já possuem. Essa
autoridade é real, queiram ou não. O que foi dito sobre marido e mulher também é certamente válido para
pais e filhos, govemantes e cidadãos: reconhecer a autoridade tende a ser uma resposta ao amor e serviço
que eles receberam. Os filhos obedecerão mais prontamente aos pais que eles sabem que os amam; os
cidadãos obedecem com mais presteza aos govemantes que trabalham pelo bem de seu povo.
Com certeza, pecamos em nossas vocações da família. Depois de exaltar a autoridade dos pais - e a
de outros govemantes terrenos - no seu "Catecismo Maior", Lutero os conclama imediatamente à tarefa:
"Todos agimos como se Deus tivesse nos dado filhos para nosso prazer e diversão", afirma ele, “corno se
não tivéssemos nada a ver com o que eles aprendem ou o modo como eles vivem" (409). A autoridade
acarreta obrigações para com os que estão sob os nossos cuidados. Não se trata simplesmente de ser
servido, mas é uma forma especial de servir (cf. Mt 20.25-28).
Os pais não são vocacionados para essa nobre função com o fim de negligenciar, mimar nem
maltratar os seus filhos. Deus não abençoa um homem casado para que ele domine e se aproveite de sua
mulher. Uma mulher não recebe a vocação da maternidade para abortar o seu filho. 0 abuso de crianças, a
crueldade mental, a negligência, a frieza de coração, as brigas domésticas, a incitação dos filhos à ira (Ef
6.4) - nada disso tem a ver com as intenções de Deus para a família e são pecados contra a vocação.
Os pais são bênçãos para os seus filhos. Os filhos são bênçãos para os seus pais. 0 marido é uma
bênção para a mulher. A mulher é uma bênção para o marido. Embora o tesouro dos dons de Deus esteja
escondido em "vasos de barro" (2Co 4.7) - nossa própria carne passível de erros e fracassos - ele continua a
derramar o seu amor por meio dos seres humanos que ele colocou em famílias.
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