GLOBALIZAÇÃO, INTEGRAÇÃO REGIONAL E O ACESSO A SAÚDE: O CASO DA FRONTEIRA NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Lislei Teresinha Preuss1 Resumo: Neste artigo discute-se a globalização, os sistemas e o acesso à saúde nos municípios da Fronteira Noroeste do Rio Grande do Sul (RS). A população fronteiriça na qual se faz referência é constituída por pessoas que residem ou transitam na linha das fronteiras do Brasil e da Argentina, na busca pelo acesso a saúde. Utiliza-se como marco de referência a saúde enquanto um direito universal, o que sugere ultrapassar os usuais limites territoriais de cada uma das nações. Trata-se de contribuir, através de uma reflexão teóricocrítica, para manter o debate e a preocupação acerca desta temática. Palavras chave: globalização, fronteiras, direito à saúde, Introdução Neste artigo propõe-se a discutir como o acesso à saúde nos municípios fronteiriços, da região Fronteira Noroeste2 do Estado do Rio Grande do Sul (RS) frente às transformações societárias atuais, vem sendo efetivado. Os pressupostos teóricos que orientam a construção deste têm como base o processo de globalização da produção, da política e da cultura, sob a hegemonia do capital financeiro (STIGLITZ, 2003). O ponto de partida da discussão decorre dos resultados de pesquisa3 realizada sobre a procura de atendimento no sistema de saúde brasileiro por estrangeiros argentinos nesta região do Rio Grande do Sul4. Diante disso, os eixos de análise deste artigo são a rearticulação mundial do capital, a formação dos blocos econômicos e o acesso aos 1 Doutoranda em Serviço Social pela PUC/RS; Mestre em Serviço Social pela UFSC; Professora da UNIJUI. E-mail: [email protected]. 2 Em relação às características físico-naturais da região estudada, pode-se salientar que a sua localização é geograficamente periférica e economicamente deprimida; muitos dos municípios são fronteiriços e com características de desenvolvimento tardio. Esta região localiza-se distante dos centros de poder e podem-se observar alguns fenômenos como migração interna e contrabando, elementos de tensão no cotidiano de fronteiras. É composta pelos seguintes municípios: Alecrim, Alegria, Boa Vista do Buricá, Campina das Missões, Cândido Godói, Doutor Maurício Cardoso, Horizontina, Independência, Nova Candelária, Novo Machado, Porto Lucena, Porto Mauá, Porto Vera Cruz, Santa Rosa, Santo Cristo, São José do Inhacorá, Senador Salgado Filho, Três de Maio, Tucunduva e Tuparendi. 3 Pesquisa realizada no Mestrado em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Integra a produção do Núcleo de Estudos e Pesquisa Estado, Sociedade Civil, Políticas Públicas e Serviço Social. 4 Torna-se relevante marcar que o estudo foi feito na região indicada visto que estudos anteriores (NOGUEIRA, 2003; PREUSS, 2007; DAL PRÁ, 2006; SILVA; NOGUEIRA; SIMIONATTO, 2007; GIOVANELLA et all 2006) comprovam a diversidade cultural, econômica e social existente ao longo da linha de fronteira. serviços de saúde. Problematiza-se a dificuldade de acesso à saúde na região, utilizando-se como marco de referência a saúde como um direito universal, como um direito à vida, ultrapassando os usuais limites territoriais de cada uma das nações e impondo novas regulações. Assim, o debate sobre o tema dos direitos sociais e de saúde não se restringe aos limites dos Estados-nações, mas alarga-se para os blocos regionais, na esteira das exigências econômicas, conformando novos espaços de regulação (CAVALCANTI, 2008). O texto inicia com uma breve análise do contexto internacional, salientando a tendência mundial à formação de blocos econômicos regionais e os sistemas de saúde. Na seqüência realiza-se uma reflexão sobre o direito a saúde nas regiões fronteiriças. Para finalizar apresentam-se considerações finais. Evidentemente, não se esgota o tema, ao contrário, espera-se que este texto sirva para suscitar debate no que tange a temática 1 A globalização e os sistemas de saúde Nas últimas décadas, intensificaram-se os debates sobre a faixa de fronteira, tendo em vista os processos de regionalização em curso. Os processos de integração regional entre países são motivados por questões econômicas e geopolíticas e se realizam em ritmo mais rápido nestas áreas em relação à harmonização da proteção social. Acordos comerciais preferenciais estão muito difundidos entre países e, devido ao caráter econômico, são regulados, no âmbito mundial, pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Os extensos limites internacionais do Brasil com os demais países da América Latina, e especialmente os integrantes do MERCOSUL, vêm sendo objeto de preocupações, visto que tais processos afetam sobremaneira as regiões fronteiriças. Com a constituição do MERCOSUL, essa preocupação assumiu características mais específicas, tanto no plano econômico quanto no social. Os fenômenos de intensificação do livre comércio apresentam reflexos sobre o setor social, além da persistência de antigas questões relacionadas à faixa de fronteira, tal como a discrepância nos serviços de saúde entre os países, que se aguça nestes espaços. A constituição e consolidação dos blocos econômicos é um passo intermediário no processo de abertura comercial. Assim a integração se configura como meio de obter o crescimento econômico dos países participantes através da abertura de mercados. A emergência e a organização do mundo em blocos regionais não é algo recente e não surge repentinamente. Faz parte da estratégia de alianças econômicas, políticas e militares de um conjunto de países como, por exemplo, os situados a oeste na Europa 2 Ocidental. Na América Latina, seguindo esta própria lógica, tem-se o MERCOSUL5 como fruto da nova divisão do mundo e da rearticulação mundial do capital. As novas realidades, relações, instituições e estruturas, não só econômicas, mas também sociais, políticas, culturais, religiosas, lingüísticas, demográficas, geográficas e outras, estabelecem condições e possibilidades de novos intercâmbios, ordenamentos, estatutos. Juntamente com a mundialização da economia, política e cultura, emergem desafios relativos aos mais diversos aspectos da sociedade propriamente global (IANNI, 1996). Para Ianni (1996) a globalização é uma configuração histórico-social abrangente, coexistindo com as diversas formas sociais de vida e trabalho, assinalando condições e possibilidades, impasses e perspectivas, dilemas e horizontes. Uma totalidade complexa, contraditória, simultaneamente integrada e fragmentária, expressando um novo ciclo de expansão do capitalismo, como um modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. É um processo hegemônico sob múltiplos aspectos, neste sentido, produto de processos sociais, econômicos, políticos, culturais. O processo de globalização é conseqüência do aprofundamento da internacionalização do capital e do enfraquecimento dos Estados Nacionais. Estes se tornam cada vez menos nacionais e mais enxutos, pois a globalização restringe imensamente a ação econômica do Estado. No âmbito da sociedade global, o Estado-nação perde parte do seu significado tradicional; o Estado é obrigado a rearticular-se, a reorganizar-se internamente (IANNI, 1996). A internacionalização da política, da economia e do capital, através do livre comércio e o fenômeno da integração regional, promoveu uma nova concepção sobre espaço regional e território. Hoje se percebe a existência de múltiplos, complexos e mutáveis recortes regionais. As chamadas comunidades supranacionais – Comunidade Econômica Européia /CEE/União Européia, NAFTA, MERCOSUL, CAN, etc. – particularmente a primeira, impuseram uma nova lógica às relações internacionais e conseqüentemente atingiram profundamente as pretensões de uma soberania deslocada de qualquer vínculo, limitação ou comprometimento recíproco. O que se percebe, aqui, é uma radical transformação nos poderes dos Estados parte destas estruturas de caráter supranacional, especialmente no que se refere a tarifas alfandegárias, aplicação de normas jurídicas de direito internacional sujeitas à apreciação de Cortes de Justiça supranacionais, emissão de moeda, alianças militares, acordos comerciais, direitos humanos, etc. (MORAES, 2002, p. 28). 5 Estudos (BELLO, 2005) apontam que o MERCOSUL tem enfrentado dificuldades para se firmar como mercado comum, não alcançando as expectativas inicias do Tratado de Ouro Preto. 3 Neste sentido, profundas mudanças se estabelecem nas relações Estado e sociedade civil, orientadas pela ideologia neoliberal e traduzidas nas políticas de ajustes recomendadas pelo Consenso de Washington. Vale lembrar que de acordo com Stiglitz (2003) as políticas adotadas pelo Consenso de Washington importaram-se pouco com as questões de distribuição de renda ou com a justiça social. Através da intervenção estatal a serviço dos interesses privados torna-se necessário a redução da ação do Estado para o atendimento das necessidades das grandes parcelas da população mediante a restrição de gastos sociais, em nome da chamada crise fiscal do Estado. A globalização também levou a uma atenção renovada às instituições intergovernamentais internacionais tradicionais, como o caso da Organização Mundial da Saúde (OMS), que vem se ocupando com a melhoria das condições de saúde no mundo em desenvolvimento (STIGLITZ, 2003) O mundo globalizado e os diversos mecanismos de colaboração entre as nações instigam a se repensar os direitos sociais como garantias somente nacionais. Assim, o debate sobre este tema, especificamente, o de saúde não se restringe aos limites dos Estados-nações, mas alarga-se para os blocos regionais, na esteira das exigências econômicas, conformando novos espaços de regulação. 2 O direito a saúde nas regiões fronteiriças O tema da atenção à saúde em áreas fronteiriças6 apareceu no debate na primeira metade da década do século XXI, essencialmente orientado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) (ASTORGA, 2004). Este tema entrou na agenda internacional mais pelas conseqüências do reordenamento econômico, e menos pela insatisfação e demanda dos gestores e população residente na área. Há, entretanto, o reconhecimento do aumento dos fluxos e intercâmbios de pessoas, de serviços e de produtos decorrentes dos processos de integração regional, repercutindo diretamente nos indicadores sanitários e demográficos das cidades fronteiriças, que se tornam corredores econômicos (GIOVANELLA, 2004). É a partir deste período que se identificam um maior número de estudos sobre esta questão, notadamente em regiões onde os conflitos sociais são mais candentes ou apresentam maior visibilidade, como o limite entre o México e os Estados Unidos. Na América Latina, somente nos últimos quatro anos houve um relativo adensamento da 6 A Constituição brasileira de 1988 define como faixa de fronteira a área compreendida dentro de 150 quilômetros perpendiculares à linha do limite do território brasileiro. Atualmente se estabeleceu o uso do termo linha de fronteira, que seria o território municipal que compõe a divisa nacional. Cidadesgêmeas são as que se defrontam com outras de outro país, sem limites físicos marcantes. 4 produção, que, na maioria das vezes, está voltada para aspectos epidemiológicos e de vigilância sanitária. Como as políticas sociais são construções históricas e permeadas por condições estruturais, a atenção a esta política social não é homogênea nos países da América Latina. Os sistemas de saúde dos países integrantes do MERCOSUL possuem distintos desenhos de políticas tanto nos aspectos organizacionais e financeiros quanto de cobertura. Ainda que exista contigüidade no território epidemiológico e sanitário para além das fronteiras, os países têm perfis populacionais, de infraestrutura e de responsabilidades sanitárias variados. Existem diferenças significativas que reverberam diretamente neste espaço geopolítico, criando desigualdades que se refletem no estatuto da cidadania. Se reconhece os problemas próprios dos sistemas de saúde dos países, devido às assimetrias na distribuição de serviços sanitários, além da diversidade de concepção – componentes valorativos da população sobre as questões que dizem respeito à saúde. Agravam-se, assim, as desigualdades sociais e iniqüidades nas regiões situadas ao longo da linha da fronteira. A demanda em saúde por parte dos estrangeiros, nestas situações, transita para o campo das relações internacionais. “Esse status amplia a dimensão do problema ao inserí-lo no campo das relações diplomáticas, orientadas por outras lógicas” (GUIMARÃES E GIOVANELLA, 2005, p. 11). Nesta realidade, condicionada por interesses econômicos e pelo jogo de atores sociais ligados à globalização econômica, as desigualdades marcam e acentuam as iniqüidades, identificando-as com os determinantes sociais. Os eixos de desigualdade social como classe, gênero, etnia, origem e território se fortalecem devido à convivência de duas realidades distintas em termos de língua, raça, sistemas políticos, monetários, de segurança de proteção social. É importante destacar que o Brasil possui 17 mil quilômetros de linha de fronteira, com dez (10) países da América do Sul, abrangendo onze (11) estados e quinhentos e oitenta e oito municípios (588). A fronteira com os demais países do MERCOSUL é integrada por 69 municípios e uma população estimada em 1.438.206 habitantes (IBGE, 2008). Tradicionalmente, tratada como local de particularidades culturais e caracterizada pelo baixo desenvolvimento sócio-econômico e balizada por profundas iniqüidades sociais, é justamente nas regiões de fronteira que existe uma significativa procura pelos serviços públicos de saúde no Brasil, seja pela facilidade e/ou qualidade de atendimento, seja pela ineficiência do sistema dos países vizinhos, seja pela urgência e/ou emergência do tratamento. Discutir acesso à saúde nos municípios fronteiriços é extremamente oportuno e pertinente na medida em que se vive num mundo globalizado onde as fronteiras 5 aparentemente foram derrubadas. Há a livre movimentação de capitais, produtos e informações, contrapondo-se às restrições impostas à circulação humana. Em tempos de globalização, quando os movimentos migratórios revestemse de uma complexidade extrema, antigas questões, relativas às relações entre os habitantes nascidos no país e os estrangeiros, são reinventadas, desdobrando-se em processos de estranhamento no que diz respeito à diferença, à discriminação ou à xenofobia declarada. A estas seriam impostas novas questões, que concernem aos distanciamentos existentes entre os direitos do Estado e os direitos humanos (MENEZES, 2007, p. 209). Mesmo sendo internacionalmente aceito que qualquer indivíduo, imigrante ou não, estrangeiro ou não, tenha titularidade de direitos considerados fundamentais, visando garantir o respeito ao seu direito à vida, à liberdade, à igualdade e à dignidade, bem como ao pleno desenvolvimento de sua personalidade, esta aceitação não se tem desdobrado em garantias individuais e coletivas (MENEZES, 2007). O direito à saúde, enquanto um direito social tem permeado a atual agenda política nacional: de um lado, setores do segmento popular democrático tentam reduzir os impactos das medidas econômicas de ajuste, buscando, no plano institucional, ampliar recursos de ordem fiscal para a área. De outro lado, sujeitos políticos articulados com as propostas governamentais, preconizam uma redução dos investimentos, propondo formas que pretendem mais eficazes para reduzir as desigualdades, pautando-se pela ótica da necessidade e não do direito. Tais posições agitam as bandeiras da igualdade e equidade, respectivamente. Permeando esta antinomia - igualdade versus equidade, encontram-se os princípios que fundam as democracias modernas - liberdade e igualdade. Na saúde estes princípios se traduzem, operacionalmente, em escolhas quanto a tipos de assistência, seletividade, amplitude de cobertura e cuidados. A definição dessas prioridades vem sendo feita, nos últimos anos, a partir de uma subversão no paradigma de saúde, apontada oportunamente por Berlinguer (1999). Essa subversão apresenta um múltiplo reducionismo - na visão de saúde, no foco em fatores individuais de saúde e doença, na proteção seletiva aos pobres, na saúde vinculada a aspectos essencialmente financeiros, e ao que define como trágicas escolhas, isto é, "para quem". Tal alteração parecer ser a responsável pelo crescimento de grupos e iniciativas que recolocam em pauta o debate pela eqüidade na saúde. Com a concretização do SUS houve avanços significativos na legislação brasileira, sendo algumas categorias consolidadas como características do SUS: universal, integral, descentralizado, racional, organizado em base às necessidades da população, eficiente e eficaz, democrático e equânime. Na Constituição e na Lei Orgânica de Saúde é o princípio 6 de igualdade de assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios, que se desdobra na universalização de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência. Universal e igualitário são os dois conceitos centrais nestes textos legais (BRASIL, Lei 8080). Portanto, o acesso aos serviços de saúde é um direito constitucional e uma responsabilidade compartilhada entre os poderes da Federação, conforme consta na legislação vigente. No Brasil, a Constituição Federal promulgada em 1988 reconhece e institui o acesso aos serviços de consumo coletivo na área social como um direito de cidadania. El acceso a servicios de salud es un componente central de los derechos económicos y sociales. En la medida en que la sociedad pueda garantizar a todos sus miembros la atención pertinente ante las vicisitudes en materia de salud, se avanza en la materialización efectiva de estos derechos y en su exigibilidad. Con ello se fortalece en la ciudadanía el sentimiento de mayor protección y pertenencia a la comunidad (CEPAL, 2006, p. 77). A área da saúde tem despertado interesse em relação aos serviços e ações desenvolvidos nos municípios fronteiriços do MERCOSUL, pois, além do aspecto econômico, há um significativo número de pessoas estrangeiras que procuram por tais serviços e ações no Brasil, conforme foi revelado no estudo de Nogueira (2003). Essas pessoas não possuem titularidade formal, pois não possuem nacionalidade brasileira, de cidadania e os gestores dos sistemas locais de saúde sentem-se pressionados a atender a população fronteiriça, não possuindo, muitas vezes, condições técnicas e recursos financeiros para tanto. Diante disso, instala-se a dificuldade em prover o acesso de maneira universal e integral, preconizado pela Constituição Federal de 1988. Com a implantação do SUS, a eqüidade na saúde avançou principalmente no que se refere à ampliação do acesso, implantação e implementação de novos programas; se ampliou à cobertura de inúmeros serviços, porém ainda há persistência de desigualdade de acesso da população no sistema de saúde. Persistem diferenças de acesso, limites e oportunidades diferenciadas em função de critérios seletivos e excludentes. O princípio da universalidade tem contribuído para a ampliação do acesso aos serviços de saúde, porém não tem criado condições para o estabelecimento da eqüidade. Torna-se necessário, para isso, a reformulação e adaptação de programas e ações, objetivando equilibrar a distribuição e a organização de serviços conforme as necessidades específicas de cada segmento social, que apresenta um variado leque de demandas, nem sempre percebidas e atendidas pelo Poder Público. Existem diversidades e disparidades regionais que dificultam a concretização dos princípios da universalidade e eqüidade conforme proposto no Sistema Único de Saúde 7 (SUS), não garantindo e efetivando o direito à saúde, principalmente nos municípios de fronteira aqui delimitados. Nestes, o acesso aos serviços não está sendo garantido concretamente, sendo que muitas vezes ocorre a violação do direito. Regiões de fronteiras, consideradas muitas vezes como periféricas, pode-se afirmar que o acesso aos serviços de saúde e demais políticas sociais ainda é bastante desigual. Se considerar a situação do lugar, o problema da acessibilidade assume uma feição diversa para o cidadão. Estar em uma região periférica significa dificuldades e entraves para dispor de meios efetivos para atingir as fontes e os agentes do poder e de informações. A população vê-se desfavorecida no que se refere à pressão sobre o governo central, pois os organismos do Estado e autoridades públicas estão distantes (SANTOS, 2000). Na região Fronteira Noroeste do RS, as categorias de eqüidade e universalidade de acesso tornam-se ainda mais complexas para os que se propõem a garantir tais princípios à população na área da saúde, pois se sabe do trânsito de pessoas entre fronteiras. Estrategicamente, as pessoas buscam resolver suas demandas e exigências de sobrevivência no país que tem maior estrutura de atenção e que disponibiliza mais serviços na área. Diante disso, pode-se afirmar que as demandas de saúde não respeitam fronteiras e limites geográficos. A diferenciação no padrão de qualidade e nos meios de acesso aos serviços ofertados entre os países vizinhos são estímulos para as migrações. Acredita-se que nesta região o número real de usuários é diferente da população oficial, esta considerada para definir os valores dos repasses financeiros. A categoria acesso, compreendida enquanto acesso aos serviços de saúde7 e aos demais serviços e políticas sociais a todos os indivíduos, constituem-se na efetivação do direito de cidadania, na garantia da cidadania plena – conforme assegurado na legislação brasileira. O acesso extrapola a sua dimensão geográfica ou mesmo relativa à mobilidade da população usuária. É um dado de realidade no qual a população estrutura as suas estratégias de acesso aos serviços a partir da referência do seu cotidiano e na sua vinculação com as condições mais imediatas de disponibilidades oferecidas. Evidencia-se que o reconhecimento do direito à saúde não é um dado a priori, mas se constrói no cotidiano das relações travadas entre os usuários e suas demandas, o Estado e a sociedade civil. Qualquer direito universal, como direito de cidadania, requer que o Estado oferte serviços adequados e o acesso integral a diferentes níveis de atendimento, contemplando as demandas e necessidades dos cidadãos. Nesta região estudada, o acesso 7 Há uma diferença significativa entre direito à saúde e direitos a serviços de saúde. Enquanto o primeiro se traduz na formulação de linhas políticas gerais e amplas, contendo a própria definição de saúde e vinculando-se à justiça social, o segundo termo envolve alocação de bens, organização de serviços e ações de saúde. 8 integral aos serviços de saúde por estrangeiros argentinos, no que se refere aos aspectos legais, não ocorre; sabe-se que ocorre o acesso por outras vias, mas não por direito. Portanto, o grande desafio enfrentado por municípios fronteiriços é concretizar esses serviços. Sabe-se das dificuldades de executar as políticas sociais na atualidade, visto que são utilizadas não só por usuários brasileiros, mas também por usuários estrangeiros (NOGUEIRA, 2003; PREUSS, 2007; DAL PRÁ, 2006; SILVA; NOGUEIRA; SIMIONATTO, 2007). Em municípios de fronteira, os serviços de saúde oferecidos assumem uma importante dimensão no cotidiano dos sujeitos que ali residem e transitam, na medida em que as posições dos gestores podem facilitar ou limitar o acesso destes, contribuindo ou não para a garantia deste direito. Considerações finais O ponto de partida para construção deste artigo foi a discussão sobre a globalização, os sistemas e o acesso à saúde nos municípios da Fronteira Noroeste do Rio Grande do Sul (RS) Se reconhece que, de maneira contraditória, os processos de integração regional colocaram em cheque as evidências do direito como um direito limitado à idéia de nacionalidade, de uma cidadania construída a partir do Estado-nação. O direito ao acesso à saúde ainda está ligado à condição de nacionalidade, consequentemente a cidadania está atrelada ao espaço, ao território, à identidade nacional. A globalização impulsionou a concepção de um sistema de saúde melhor, além de uma sociedade civil global ativa, lutando por uma democracia e maior justiça social. O problema não está na globalização, mas na maneira como ela foi gerida (STIGLITZ, 2003). Porém, evidencia-se que a integração regional constitui-se como uma das expressões das transformações da estrutura da produção econômica mundial. Neste sentido, pode-se dizer que a integração proposta pelo MERCOSUL (acredita-se que nos demais blocos econômicos também) o enfoque dado à integração é principalmente econômico, em detrimento do aspecto social. Constituir e garantir o que é dito na expressão “saúde um direito de todos e dever do Estado” implica vários questionamentos. E, assim, cabe questionar quais são os direitos dos cidadãos fronteiriços na zona ou faixa de fronteira. Em relação a esta temática, tal reflexão tem uma dimensão relevante e polêmica, na medida em que ainda são nebulosas a compreensão e a legislação sobre o acesso à saúde de estrangeiros. Independentemente da concepção, atribui-se ao Estado o papel de garantir ao cidadão os direitos a saúde para todos sem restrições. Ou seja, cabe a ele a responsabilidade de coordenar, viabilizar e garantir o acesso aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde e assegurar condições de vida favoráveis a todos, independentemente de sua nacionalidade. 9 Direitos e garantias de cidadania ultrapassam os limites geográficos e legais das instituições e práticas de cada país, passando a ser compartilhados em todo o bloco, ainda que sob estrita regulação. Assim, a integração é compreendida não como um fim em si mesma; é, antes, um processo em diversos domínios, com diferentes passos, multidimensional e com múltiplos níveis. O acesso de estrangeiros argentinos aos serviços de saúde brasileiros vem se consolidando apenas em situações de emergências, casos de risco de vida e de atenção à doença e não na atenção à saúde. O princípio de eqüidade não está sendo garantido, pois há uma distância do ideal dos direitos humanos, indivisíveis e universais proclamados – Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em Resolução da III Sessão Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 – de promover o respeito universal, a observância e proteção aos direitos humanos e liberdades fundamentais de todos. Afastam-se, ademais, de outros acordos internacionais posteriores dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC. Referências ASTORGA J. , Ignácio. Estudo da Rede de Serviços de Saúde na Região de Fronteira Argentina, Brasil e Paraguai: 2001-2002. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2004. 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