Racionalidade econômica ou interesses privados?

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Ferreira, Pedro Cavalcanti. “Racionalidade econômica ou interesses privados?”. São Paulo: Valor
Econômico, 06 de dezembro de 2001. Jel: F
Racionalidade econômica ou interesses privados?
Pedro Cavalcanti Ferreira
Para qualquer pessoa que não esteja participando das discussões ou do dia a dia da política comercial
brasileira, é surpreendente perceber que o bem estar da população e os impactos de longo prazo de
medidas propostas neste campo estão sempre ausentes do debate. Via de regra, privilegia-se análises
parciais onde os ganhos imediatos de um determinado setor são os únicos objetos de interesse e de
política. Os custos envolvidos com a adoção ou manutenção de uma determinada medida de política
comercial são em geral ignorados.
Nas discussões sobre a Alca, sobre reduções nas tarifas comuns do Mercosul ou sobre negociações no
âmbito da OMC, o enfoque da maioria dos agentes envolvidos segue esta ótica e é previsível.
Privilegiam-se as resistências de alguns setores que prevêem perdas e a opinião de outros grupos
comerciais que apóiam a eliminação ou redução de barreiras alfandegárias já que esperam ganhar com
isto.
Desta forma, os interlocutores privilegiados são os representantes dos grandes grupos econômicos e as
decisões são mais de gabinetes que decisões racionais de política econômica que visariam o interesse
público. Ao contrário, o dia a dia da política comercial brasileira - e grande parte das decisões mais
importantes neste campo - é o resultado do poder de pressão de grupos organizados, da atuação dos
lobbies setoriais ou de associações industriais. Estes grupos buscam defender interesses próprios que,
mesmo legítimos, não deveriam ser confundidos, como de fato o são, com aqueles da população brasileira
como um todo.
Evidência estatística apresentada em artigo a ser publicado pelo Instituto Futuro Brasil (*) mostra que
setores industriais com maior poder de barganha conseguem de fato obter vantagens por meio de pressão
política na forma de maior proteção comercial. O problema seria menos grave se isto não tivesse qualquer
efeito de longo prazo. Haveria aqui transferência de renda da população como um todo para os setores
beneficiados com barreiras comerciais e uma perda líquida de bem-estar devido a uma alocação de
recursos que não respeitaria as vantagens comparativas do país, um resultado clássico e estabelecido de
teoria de comércio internacional.
Restrições comerciais, entretanto, implicam em máquinas, insumos e equipamentos mais caros e de pior
qualidade. Isto afeta não só o custo mas também o crescimento da produtividade dos demais setores da
economia. Mais ainda, ao diminuir o fluxo de produtos, restringe-se o acesso doméstico à tecnologia
incorporada nestes últimos, uma das formas mais baratas de nos beneficiarmos de pesquisa e
desenvolvimento dos países mais avançados. Há forte evidência estatística de uma relação significativa
entre proteção comercial e a taxa de crescimento da produtividade industrial. Tudo o mais constante,
quanto maior o nível de proteção de um setor, menor o crescimento da produtividade do trabalho no
passado recente. Há também evidência de que em setores onde há maior importação de máquinas o
crescimento da produtividade é mais acelerado.
Há, portanto, a necessidade de melhor avaliação dos custos de medidas de política comercial que
restringem o fluxo de mercadorias. Os benefícios, via de regra, são facilmente assinalados. A imposição
de cotas ou a manutenção de altas tarifas sobre um mercado aumentam as receitas e lucros de empresas
que nele operam e gera empregos diretos neste setor e indiretos em setores fornecedores.
Mas, como vimos, há custos altos envolvidos para a sociedade como um todo que em geral são ignorados:
além da perda estática devido à má alocação de recursos, há também um impacto dinâmico negativo sobre
a taxa de crescimento devido ao efeito sobre a produtividade. Essas perdas provavelmente são mais
significativas por se acumularem ao longo dos anos: a redução do crescimento hoje significa menor nível
de produto no futuro. O ponto importante é que, se o debate se restringir aos efeitos imediatos de tais
políticas, adotando sempre enfoques parciais que ignoram custos envolvidos ou políticas alternativas,
continuaremos implementando políticas que beneficiam pequenos grupos sociais em detrimento da
maioria. Além disso, os efeitos prejudiciais de tais políticas se dão não apenas no curto, mas
principalmente no longo prazo.
Não nos parece que o país precise de uma política industrial e muito menos de uma política de
substituição de importações. Estas já foram testadas e - no que pese o excelente desempenho em termos
de taxa de crescimento entre 1950 e 1980 - foram incapazes de reduzir significativamente a miséria da
população brasileira, as taxas de mortalidade, o índice de analfabetismo e a exclusão social. O fato da
distribuição de renda brasileira estar entre as piores do mundo e mais da metade da população nordestina
viver abaixo da linha de pobreza atestam que, neste modelo de desenvolvimento, os benefícios, em sua
maioria, são apropriados por uns poucos privilegiados.
Somos uma das nações mais fechadas do planeta, cujo único acordo comercial relevante, o Mercosul,
envolve países irrelevantes do ponto de vista do comércio internacional. Já o México, após o Nafta,
negociou um acordo de livre comércio com a União Européia (UE) que implica em tarifa zero para os
produtos industriais mexicanos a partir de 2003. Seu comércio externo vem crescendo a taxas aceleradas
ao mesmo tempo que o nosso está quase estagnado.
Resistir à Alca ou aos acordos de comércio com a UE é ignorar que o acesso aos mercados dos países
desenvolvidos é a contrapartida que teremos por liberarmos os nossos. E o acesso a estes mercados
significa mais produção e maior produtividade, mais empregos, mais bem-estar e mais crescimento. O
argumento de que estes países impõem restrições aos nossos produtos (aço, por exemplo) não faz sentido
do ponto de vista do bem estar: se o governo americano se curva diante dos lobbies locais, prejudicando
sua população e as industrias que utilizam este insumo, não há porque devamos fazer o mesmo aqui. O
que devemos, é claro, é nos preparar para negociar o melhor acordo possível.
Acordos comerciais como estes irão obrigar nosso país a alinhar sua política monetária e fiscal com a
destes países, o que, longe de nos tirar poder de manobra, aumenta a estabilidade monetária, elimina o
espaço para políticas oportunistas que podem causar inflação no futuro e diminui a incerteza no ambiente
de negócios. Finalmente, reduz-se em muito a capacidade de grupos de interesses, lobbies e setores
econômicos domésticos poderosos influenciarem aspectos importantes de política comercial, impondo ao
país seus interesses particulares. Assim, elimina-se privilégios injustificáveis, reduz-se a um mínimo as
distorções às atividades econômicas e remove-se uma importante barreira ao crescimento. Por mais
paradoxal que aparente ser, quem hoje busca defender interesses populares deveria estar na rua lutando a
favor e não contra a globalização e maior abertura ao comércio exterior.
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