EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DA_____VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO PIAUÍ O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio do Procurador da República in fine assinado, vem, perante Vossa Excelência, com fundamento nos arts. 127 e 129, II e III da Constituição Federal, e nas disposições da Lei nº 7.347/85 e nos artigos 5º e 6º da Lei Complementar nº 75/93, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA em face de: 1) UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, podendo ser citada nesta Capital por sua Procuradoria (Advocacia-Geral da União no Piauí), na Rua Coelho Rodrigues, 2389, Centro, Teresina/PI; 2) ESTADO DO PIAUÍ, pessoa jurídica de direito público, com endereço para citação, através da sua Procuradoria-Geral, na Av. Senador Arêa Leão, 1650, Bairro Jóquei Clube, Teresina/PI; 3) MUNICÍPIO DE TERESINA, pessoa jurídica de direito público, podendo ser citada por meio de sua Procuradoria, Rua Firmino Pires, nº 379, Sul-Centro, Edifício Sairava Center, Teresina/PI, pelas razões de fato e de direito adiante articuladas. 1 I - INTRODUÇÃO Situação silenciosa e gravíssima ocorre diuturnamente no Estado do Piauí. Refiro-me à ineficiência da prestação de serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde que está levando à morte cidadãos brasileiros, em função de um sistema burocrático criado pelo poder público federal, que gera a negativa de prestação dos serviços de saúde pelo Estado do Piauí a cidadãos brasileiros que tenham origem em outros Estados da Federação. Cidadãos brasileiros que não tenham origem no Piauí não estão tendo acesso ao Sistema Único de Saúde. Se em seus cadastros junto ao Ministério da Saúde constar que tem endereço no Maranhão, Pará, Tocantins, Ceará ou qualquer outro Estado da Federação) que não o Piauí, os mesmos sofrerão e muito para conseguir acesso ao Sistema Único de Saúde. Infelizmente, em centenas de casos, esses brasileiros estão sendo barrados no acesso à saúde, todos pobres, carentes, doentes, invisíveis. Por isso, digo que se trata de uma guerra silenciosa em que muitos estão morrendo sem atendimento médico. E a negativa de assistência à saúde ocorre no que há de mais grave. São cidadãos que precisam de tratamentos (cirurgias) de alta complexidade, cuja vida está em risco e o tempo, este é fundamental, está sendo perdido na burocracia inventada pelo poder público federal para o atendimento a pacientes que buscam atendimento médico em Estados da Federação diferente do seu endereço residencial declarado ao poder público. No sistema burocrático inventado pelo Ministério da Saúde diz-se ao cidadão brasileiro que sua origem não é do Piauí, que não reside no Piauí e que o procedimento de saúde (de alta complexidade) não pode ser autorizado. Diz ao cidadão (que está doente, via de regra, precisando de uma cirurgia de alta complexidade), que precisa voltar para o seu Estado de origem (Maranhão, Pará, Tocantins, Ceará e outros) e procurar a unidade de saúde, percorrer o sistema burocrático, e quem sabe, se der tempo, talvez até seja autorizado o tratamento de saúde no Estado do Piauí, se der tempo. Não há muito a ser dito, mas muito precisa ser feito, com urgência. O SUS, todos sabemos é universal, seu acesso é gratuito, especialmente para a população carente, e ainda por cima, doente. Esses brasileiros precisam de assistência médica. E é isso o que se pretende buscar em juízo através desta ação civil pública. II – OS FATOS O Ministério da Saúde, através da Portaria SAS/MS n. 39, de 06 de fevereiro de 2006, instituiu a descentralização do processo de autorização dos procedimentos de tratamento de saúde que fazem parte Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade - CNRAC. No âmbito dos Estados existem as Centrais Estaduais de Regulação de Alta Complexidade (CERAC), responsáveis pela autorização do procedimento de saúde ao 2 paciente do SUS (Art. 4º. da Portaria SAS/MS n.39/06). Dispõe o art. 6º da citada portaria do Ministério da Saúde que somente os Estados com ausência de serviços nas especialidades de Cardiologia, Oncologia, Ortopedia, Neurocirurgia e Epilepsia, poderão efetuar solicitação na CNRAC. Dispõe ainda o parágrafo único do mesmo artigo que “quando da necessidade da utilização de procedimentos nas especialidades contempladas na CNRAC cuja oferta seja existente na UF solicitante, mas insuficiente, a solicitação só será possível após a avaliação técnica da insuficiência pelo Ministério da Saúde. Esta avaliação será solicitada formalmente e endereçada à Coordenação-Geral de Regulação e Avaliação – CGRA/DRAC/SAS/MS que procederá a análise da pertinência do pleito respondendo no prazo de até 45 (quarenta e cinco) dias” (grifos nossos). O art. 9º da citada portaria dispõe que “passa a ser obrigatório o uso do Cartão Nacional de Saúde para a solicitação de procedimentos da CNRAC previstos em portaria”. Este é o ato normativo que procura regular o fluxo de pacientes entre Estados da Federação, especialmente nos casos de alta complexidade, em outras palavras, quando a vida ou morte do paciente só depende desta autorização prevista na multicitada portaria. No cotidiano dos brasileiros que vivem diante dessa situação, veja o que acontece: A cidadã LAURENTINA JOSINA DE SOUSA, portadora de câncer de mama, iniciou tratamento médico em Teresina-PI, através da rede pública de saúde, porém quando da necessidade de realização de cirurgia recomendada pelo médico especialista, esta não foi autorizada pela Secretaria Estadual de Saúde/PI, eis que a cidadã não preenche os requisitos da portaria 39/06, já citada. A cidadã tem origem no Maranhão. Ela reside em Imperatriz/MA e procurou a cidade de Teresina para tratamento pelo SUS. A cidadã procurou o Ministério Público Federal. Este, através deste signatário, oficiou ao Secretário Estadual de Saúde recomendando extrajudicialmente a adoção das providências para o tratamento médico da cidadã, nos termos da prescrição médica. A resposta da Secretaria de Saúde é que, cumprindo rigorosamente a Portaria n. 39/06 do Ministério da Saúde, “a paciente deveria possuir cadastro CNRAC na Central Estadual de Regulação de Alta Complexidade de origem (ou seja, do Maranhão) por ser a solicitante do procedimento, onde informaria a identificação da paciente, o motivo e a pertinência da solicitação e a indicação do procedimento para validação pela CNRAC. Só então é que o Estado do Piauí poderia receber qualquer paciente oncológico. Como a paciente não possui CNRAC na origem, o Estado do Piauí não pode realizar o procedimento. São as regras do SUS que a SESAPI precisa cumprir. Caso a paciente cumpra as requisições da Portaria n. 39/06 estará apta a receber o devido tratamento” 3 A burocracia estatal criou uma barreira para o cidadão doente que lhe pode custar a própria vida. No caso concreto, só se esqueceu a autoridade estadual de saúde de dizer que a cidadã deveria se deslocar de Imperatriz/MA, dirigir-se à São Luis/MA, dar entrada na documentação pertinente, e esperaraté 45 dias, nos termos da portaria 39/06, para quem sabe - quem sabe - talvez até seja autorizado o seu atendimento no Estado do Piauí. A cidadã LAURENTINA JOSINA DE SOUSA está literalmente perdida, sem assistência médica, sem saber a quem mais recorrer. Sua esperança agora é a Justiça . Este é um caso que chega ao conhecimento do Ministério Público Federal, quando se sabe que centenas de outros não chegam sequer ao conhecimento do Ministério Público, por absoluta descrença no funcionamento das instituições. E também por impossibilidade física mesmo de se deslocarem, em face do quadro grave de saúde em que já se encontram esses cidadãos. Veja-se este segundo caso, cujo destino do cidadão foi a morte: Trata-se de expediente do Ministério Público Estadual dirigido ao Ministério Público Federal. Narra a via crucis da cidadã Raimunda Freire Sales que procurou o Ministério Público Estadual do Piauí para narrar o seu desespero para tentar conseguir autorização para a cirurgia do seu filho JOSEMILSON FREIRE SALES. Pelo fato de a documentação de seu filho ser da cidade de Novo Horizonte/CE, a cirurgia não foi realizada. JOSÉMILSON FREIRE SALES veio a falecer em 27 de março de 2008, sem a realização da cirurgia pelo SUS. Conforme a Sra. Raimunda Ferreira, seu filho sofreu muito, principalmente por que não teve o atendimento que precisava antes de falecer. Ainda assim, a cidadã Raimunda Freires Sales retornou ao Ministério Público Estadual para pedir providências em relação a outras pessoas que estão nesta situação para que não sofram a peregrinação que seu filho se submeteu para conseguir uma cirurgia, e ainda assim, morreu sem fazê-la. Vidas precisam ser salvas. Veja-se a declaração da Sra. Heloísa Azevedo da Costa junto ao Ministério Público Federal, tomada em 09 de maio de 2008: “Que é esposa do Sr. Manoel Deoclides da Costa. Que o mesmo é portador de câncer no fígado, conforme documentos que apresenta. Que o Sr. Manoel da Costa iniciou tratamento médico no Hospital Getúlio Vargas, seguindo para o Hospital São Marcos conveniado ao SUS. Que o paciente mora em Teresina com a declarante. Que possuem um terreno no Município de Chapadinha no Estado do Maranhão. Que em visita ao terreno o Sr. Manoel da Costa tomou conhecimento de um cadastramento para atendimento pelo SUS. Que nessa oportunidade fez seu cadastro, recebendo um cartão. Que por esse motivo seu cartão do SUS e o cartão do Hospital São Marcos possuem o endereço do Estado do Maranhão. Que o Sr. Manoel da Costa realizou todo o tratamento no Hospital São Marcos em Teresina-PI, através da rede pública de saúde, vez que conveniada ao SUS. Que após todos os exames e procedimentos realizados, o médico responsável entendeu pela necessidade de cirurgia. Que procurando o setor competente para a marcação da cirurgia tomou conhecimento de que o Hospital não realizaria 4 o procedimento indicado pelo SUS, vez que o paciente é de origem do Estado do Maranhão. Que também não seria atendida em outro Estado, em função do início do tratamento ter sido realizado no Estado do Piauí. Que tal situação inviabiliza qualquer tratamento de saúde para o seu caso, pois é sabido que em Chapadinha/MA, município de sua origem, não há profissional, nem hospital especializado. Além disso, que reside em Teresina há mais de cinquenta anos. Que seu marido está em situação de risco de vida. Que se encontra inclusive tomando morfina. Que o médico deixou claro a necessidade da realização urgente da cirurgia. Que vem à presença desta unidade do MPF para solicitar a adoção de providências no sentido de que lhe seja garantida a assistência médica necessária ao tratamento de saúde do Sr. Manoel da Costa na cidade de Teresina/PI. Neste caso, como em tantos outros, o cidadão está à mercê da própria sorte, sem assistência médica, sem nenhuma perspectiva de tratamento de saúde. Sua esperança agora é a Justiça. No mesmo sentido é a situação da Sra. Balbina de Sousa Bezerra. É portadora de câncer no útero. Que morou muito tempo em Teresina, residindo agora em Timon/MA, e por esse motivo, por esse único motivo, não é autorizado o tratamento cirúrgico no Estado do Piauí. Sua esperança agora também é a Justiça. Somente no período de janeiro a junho de 2007, houve um total de 232 pacientes de outros Estados que não conseguiram autorização para o tratamento médico que tanto necessitavam, em função de sua origem (isto apenas em relação à especialidade médica oncologia). Apenas 128, no mesmo período de janeiro a junho de 2007, conseguiram autorização (relação anexa – fls. 94/106 do Procedimento Administrativo 1.27.0470/2007, do MPF/PI). Vê-se que o procedimento criado pelo Ministério da Saúde, que tem a finalidade de fazer fluir o tráfego de pacientes entre Estados da Federação, acabou gerando um drama na vida de centenas de brasileiros que não conseguem atendimento médico. A questão toda está relacionada aos custos para o tratamento médico desses cidadãos. O cidadão de outro Estado que precisa de tratamento médico no Piauí é praticamente um órfão do Estado, que ninguém quer cuidar. O Estado onde o mesmo busca o tratamento (no caso o Piauí) vai arcar sozinho com um custo de um paciente de outro Estado da Federação. O Estado de origem do cidadão (Maranhão, Pará, Tocantins, Ceará, entre outros) não irá repassar valores para custear as despesas médicas desse cidadão em outro Estado. Por isso, se criou a central de regulação e se editou a Portaria n. 39/06, pelo Ministério da Saúde, mas, infelizmente, a solução produzida pelo Ministério da Saúde, acabou gerando a impossiblidade de atendimento médico aos pacientes, em face de barreiras burocráticas insuperáveis para quem já está doente e necessitando de um procedimento médico de alta complexidade. A questão dos custos pelo tratamento médico que é responsabilidade dos 5 entes públicos (União, Estados e Municípios), acaba sendo transferida para o cidadão. É ele, o cidadão, que precisa percorrer uma via crucis infindável, muitas vezes insuperável. O tempo corre contra o cidadão. Qual a solução? O que busca o Ministério Público Federal? Definitivamente não pode ser a aberração jurídica criada pelo Ministério da Saúde, através da Portaria n. 39/06, eis que ofensiva à Constituição Federal, pois cria mecanismo de restrição no acesso à saúde, ofendendo o princípio do acesso universal à saúde previsto na Constituição Federal Com efeito, a Portaria n° 39, de 06 de fevereiro de 2006, da Secretaria de Atenção à Saúde/Ministério da Saúde, no seu art. 6°, determina que “somente os estados com ausência de serviços nas especialidades de Cardiologia, Oncologia, Ortopedia, Neurocirurgia e Epilepsia, poderão efetuar solicitação na CNRAC”. Afirma também a referida Portaria que “quando da necessidade da utilização de procedimentos nas especialidades contempladas na CNRAC cuja oferta seja existente na UF solicitante, mas insuficiente, a solicitação só será possível após a avaliação técnica da insuficiência pelo Ministério da Saúde”. De acordo com a citada Portaria, os pacientes de outros Estados que necessitarem de atendimento médico nas referidas especialidades na cidade de Teresina só poderão ser atendidos no caso de ausência dos serviços em seu Estado de origem, devendo fazer solicitação à CNRAC (Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade) ou então comprovar que a oferta em seus estados de origem seja insuficiente, com a prévia avaliação técnica da insuficiência pelo Ministério da Saúde. Importante destacar que o Cartão Nacional de Saúde do SUS, que deveria ser um instrumento de facilitação do atendimento em nível nacional, na verdade está inviabilizando qualquer tratamento que o paciente necessite fora de seu Estado, pois identifica a origem do Estado do seu possuidor, impedindo a universalização do atendimento do SUS. Dos fatos depreende-se que vedar o atendimento de pacientes oriundos de outros Estados, mais do que uma forma disfarçada de discriminação, constitui flagrante inconstitucionalidade. Segundo o texto constitucional, é direito de todos e dever do Estado assegurar aos cidadãos a saúde, adotando políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e permitindo o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (arts. 6º e 196 da CF). A par dos direitos constitucionalmente assegurados a todos, mormente os concernentes à vida e à saúde, o legislador estabeleceu, em sede constitucional e legal, o dever do Estado, através dos seus diversos órgãos de gestão e de execução, de dispor à sociedade uma prestação de serviço de saúde pública universal e de qualidade. Resta evidente e indiscutível que a saúde é um direito a ser preservado pelo Estado, em prol da coletividade, e, efetivamente, assegurado através das políticas públicas destinadas a esse fim social. É dizer, a saúde é DIREITO SUBJETIVO DO CIDADÃO, não dependente da reciprocidade, ou seja, o Estado é obrigado a prestar-lhe, independentemente de 6 qualquer contraprestação, sendo-lhe defeso sonegar-lhe tal direito, sob qualquer hipótese. Todavia, no caso que ora se cuida, vê-se que o Estado - entendido esse termo em seu sentido lato - não tem cumprido com seu inalienável e intransferível dever de bem prestar um razoável serviço de saúde pública, fazendo com que pessoas fiquem presas à burocracia, buscando atendimento médico em locais distantes de suas residências, enquanto as suas enfermidades se agravam, desprovidas do indispensável atendimento que seu caso está a exigir, estabelecendo-se, entre os responsáveis pelo atendimento, um verdadeiro jogo de empurra, levando com que ninguém saiba ao certo a quem ou a onde se dirigir para obter o socorro indispensável, circunstância que, a bem da verdade, resulta, irrefragavelmente, em prejuízos irreversíveis, como os que se relata nesta oportunidade. Desse modo, ante a absurda e inadmissível realidade, a qual revela profundas distorções ocorrentes nos serviços públicos médico-assistenciais, cuja prestação pela União, Estados e Municípios constitui garantia constitucional aos cidadãos, visa a presente tutela assegurar aos jurisdicionais oriundos de qualquer Estado da Federação, dependentes do atendimento médico-intensivo prestado no Estado do Piauí, o atendimento hospitalar necessário e indispensável à recuperação de sua saúde, especialmente no que tange ao atendimento de procedimentos de alta complexidade, quando a situação de cada um assim o exigir, de acordo com o prudente e respaldado critério dos profissionais médicos que os estejam atendendo. Ante todo o exposto, restou demonstrado que o Sistema Único de SaúdeSUS, em diversas esferas de atuação – Federal, Estadual e Municipal –, tem violado o direito constitucional e legal à saúde, não apenas dos casos citados nesta ação, mas de todos aqueles que se encontrem em semelhantes condições. O recebimento de tratamento adequado, pelo portadores de enfermidades que necessitam de procedimentos de alta complexidade, afigura-se, então, direito difuso, transindividual, de natureza indivisível, do qual são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. Ora, nítido está que o objetivo primordial da presente demanda, para a qual está devidamente legitimado a figurar no pólo ativo o Ministério Público Federal, é a proteção de um dos direitos individuais e coletivos mais relevantes e que restou violado com o não-fornecimento, pelo SUS, de tratamento clínico e cirúrgico: à vida. Aliás, configura-se com tal negativa, a subsunção ao tipo penal do artigo 135, do Código Penal – OMISSÃO DE SOCORRO – na modalidade qualificada prevista no parágrafo único, caso demonstrada a lesão corporal de natureza grave, quando não no tipo da lesão corporal grave, ou gravíssima, conforme venha o paciente a sofrer prejuízos oriundos da falta do referido tratamento. III – A FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA Os fundamentos básicos do direito à saúde no Brasil estão elencados os artigos 196 a 200 da Constituição Federal. Especificamente, o artigo 196 dispõe que: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de 7 outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". O direito à saúde, tal como assegurado na Constituição de 1988, configura direito fundamental de segunda geração. Nesta geração estão os direitos sociais, culturais e econômicos, que se caracterizam por exigirem prestações positivas do Estado. Não se trata mais, como nos direitos de primeira geração, de apenas impedir a intervenção do Estado em desfavor das liberdades individuais. Neste sentido, Alexandre de Moraes, trazendo excerto de Acórdão do STF, preleciona que: “Modernamente, a doutrina apresenta-nos a classificação de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos. Como destaca Celso de Mello: ‘enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade’ (STF – Pleno – MS n° 22164/SP – rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17-11-1995, p. 39.206)” (grifo acrescido)1 1. Destarte, os direitos de segunda geração conferem ao indivíduo o direito de exigir do Estado prestações sociais (positivas) nos campos da saúde, alimentação, educação, habitação, trabalho, etc. Cumpre ressaltar, outrossim, que baliza nosso ordenamento jurídico o PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, insculpido no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal e que se apresenta como fundamento da República Federativa do Brasil. Daniel Sarmento, em sua erudita obra intitulada “A Ponderação de Interesses na Constituição”, assevera que: “Na verdade, o princípio da dignidade da pessoa humana exprime, em termos jurídicos, a máxima kantiana, segundo a qual o Homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio. O ser humano precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em razão dele. Nesse sentido, a pessoa humana deve ser concebida e tratada como valor-fonte do ordenamento jurídico, como assevera Miguel Reale, sendo a defesa e promoção da sua dignidade, em todas as suas dimensões, a tarefa primordial do Estado Democrático de Direito. Como afirma José Castan Tobena, el postulado primário del Derecho es el valor próprio del hombre como valor superior e absoluto, o lo 1 1 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1998. p. 44-45. 8 que es igual, el imperativo de respecto a la persona humana. Nesta linha, o princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado. A despeito do caráter compromissório da Constituição, pode ser dito que o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de respeito irrestrito ao ser humano razão última do Direito e do Estado” (grifo acrescido) 2. Visando concretizar o mandamento constitucional, o legislador estabeleceu preceitos que tutelam e garantem o direito à saúde. Nesse sentido, a Lei n.º 8.212/91 dispõe que: “Art. 1º A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social. (...) Art. 2º A Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Parágrafo único. As atividades de saúde são de relevância pública e sua organização obedecerá aos seguintes princípios e diretrizes: a) acesso universal e igualitário; b) provimento das ações e serviços através de rede regionalizada e hierarquizada, integrados em sistema único; c) descentralização, com direção única em cada esfera de governo;” (grifos acrescidos). Assim, corroborando o mandamento constitucional, a Lei Orgânica da Seguridade Social reafirma o compromisso do Estado e da própria sociedade no sentido de “assegurar o direito relativo à saúde”. A Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece: “Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (...) ) SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 59. 9 Art. 4°. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das funções mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS.” (grifos acrescidos). O artigo 7° da citada lei estabelece que as ações e serviços públicos que integram o Sistema Único de Saúde serão desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198, da CF, obedecendo, ainda, aos seguintes princípios: “Art. 7° (...) I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - Integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; (...) XI – conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população”. (grifo acrescido). Verifica-se, dessarte, que a própria norma disciplinadora do Sistema Único de Saúde elenca como princípio a integralidade de assistência, definindo-a como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. É dever do Sistema Único de Saúde fornecer a obrigatória conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população, de modo a prover os doentes com os meios existentes e eficazes para seu tratamento. No mesmo sentido é a orientação da NOAS-SUS n.º 01/2002, editada pela PORTARIA GM/373, de 27/2/2002, e resultante de negociação firmada pelos gestores de saúde de todos os níveis federativos, tendo sido previamente aprovada pela COMISSÃO INTERGESTORES TRIPARTITE – CIT e pelo CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE – CNS, contando ainda com as contribuições do CONSELHO DE SECRETÁRIOS ESTADUAIS DE SAÚDE – CONASS e pelo CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS MUNICIPAIS DE SAÚDE – CONASEMS. A nota introdutória (verdadeira exposição de motivos) da NOAS-SUS n.º 01/2002 reconhece que, desde a publicação da NOAS-SUS n.º 01/2001 (26/1/2001), “FORAM IDENTIFICADOS ENTRAVES NA OPERACIONALIZAÇÃO DE DETERMINADOS ITENS, DECORRENTES DAS DIFICULDADES PARA ESTABELECER O COMANDO ÚNICO SOBRE OS PRESTADORES DE SERVIÇOS 10 AOS SUS E ASSEGURAR A TOTALIDADE DA GESTÃO MUNICIPAL NAS SEDES DOS MÓDULOS ASSISTENCIAIS, BEM COMO DA FRAGILIDADE PARA EXPLICITAÇÃO DOS MECANISMOS NECESSÁRIOS À EFETIVAÇÃO DA GESTÃO ESTADUAL PARA AS REFERÊNCIAS INTERMUNICIPAIS”. Reconhece a nota introdutória que “NESTE SENTIDO, A COMISSÃO INTERGESTORES TRIPARTITE – CIT, EM REUNIÃO REALIZADA EM 22/11/2001, FIRMOU ACORDO CONTEMPLANDO PROPOSTAS REFERENTES AO COMANDO ÚNICO SOBRE OS PRESTADORES DE SERVIÇOS DE MÉDIA E ALTA COMPLEXIDADE E O FORTALECIMENTO DA GESTÃO DOS ESTADOS SOBRE AS REFERÊNCIAS MUNICIPAIS.” Em decorrência, a NOAS-SUS n.º 01/2002 traça como estratégia principal de hierarquização dos serviços de saúde, na busca de maior equidade, o estabelecimento de um PROCESSO DE REGIONALIZAÇÃO, mediante a elaboração de um Plano Diretor de Regionalização – PDR. O item 3 da norma preconiza que: “O PDR fundamenta-se na conformação de sistemas funcionais e resolutivos de assistência à saúde, por meio da organização dos territórios estaduais em regiões/microregiões e módulos assistenciais; da conformação de redes hierarquizadas de serviços; do estabelecimento de mecanismos e fluxos de referências e contra-referência intermunicipais, OBJETIVANDO GARANTIR A INTEGRALIDADE DA ASSISTÊNCIA E O ACESSO DA POPULAÇÃO AOS SERVIÇOS E AÇÕES DE SAÚDE DE ACORDO COM SUAS NECESSIDADES.” (grifos acrescidos). Apregoa, ainda, a norma, o acesso dos cidadãos aos serviços de saúde, o mais próximo possível de sua residência, bem como “o acesso de todos os cidadãos aos serviços necessários à resolução de seus problemas de saúde, em qualquer nível de atenção, diretamente ou mediante o estabelecimento de compromissos entre gestores para o atendimento de referências intermunicipais” (grifos acrescidos). Após fornecer os conceitos-chaves a serem utilizados na implantação dos PDR’s no item 5, a NOAS estabelece, no item 6.1.1, alínea b, que “ o PDR deve contemplar a perspectiva de redistribuição geográfica de recursos tecnológicos e humanos, explicitando o desenho futuro e desejado da regionalização estadual, prevendo os investimentos necessários para a conformação destas novas regiões/microregiões e módulos assistenciais, observando assim a diretriz de possibilitar o acesso do cidadão a todas as ações e serviços necessários para a resolução de seus problemas de saúde, o mais próximo possível de sua residência.” (grifos acrescidos). Ao dispor sobre A POLÍTICA DE ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE/CUSTO NO SUS, a NOAS, no item 23, fixa o elenco de atribuições do Ministério da Saúde: “1.5 DA POLÍTICA DE ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE/CUSTO NO SUS 23. A responsabilidade do Ministério da Saúde sobre a política de alta 11 complexidade/custo se traduz nas seguintes atribuições: a – definição de normas nacionais; b – controle do cadastro nacional de prestadores de serviços; c – vistoria de serviços, quando lhe couber, de acordo com as normas de cadastramento estabelecidas pelo próprio Ministério da Saúde; d – definição de incorporação dos procedimentos a serem ofertados à população pelo SUS; e – definição de incorporação dos procedimentos a serem ofertados à população pelo SUS; f – estabelecimento de estratégias que possibilitem o acesso mais equânime diminuindo as diferenças regionais na alocação dos serviços; g – definição de mecanismos de garantia de acesso para as referências interestaduais, através da Central Nacional de Regulamentação para Procedimentos de Alta Complexidade; h – formulação de mecanismos voltados à melhoria da qualidade dos serviços prestados; i – financiamento das ações.” No item 23.1, exsurge, de forma inequívoca, a responsabilidade solidária da União e dos Estados-membros, por intermédio, respectivamente, do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde, para a garantia de acesso da população aos procedimentos de alta complexidade, verbis : “23.1. A garantia de acesso aos procedimentos de alta complexidade é de responsabilidade solidária entre o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde dos estados e do Distrito Federal.” Ao Município incumbe, por sua vez, de acordo com o item 25.1, a regulação dos serviços de alta complexidade quando se encontrar na condição de Gestão Plena do Sistema Municipal: “25.1. A regulação dos serviços de alta complexidade será de responsabilidade do gestor municipal, quando o município encontra-se na condição de gestão plena do sistema municipal, e de responsabilidade do gestor estadual, nas demais condições.” Em norma dirigente (conceito de José Joaquim Gomes Canotilho), de conteúdo programático, os itens 26 e 27 da NOAS prescrevem que: “26. As ações de alta complexidade e as ações estratégicas serão financiadas de acordo com Portaria do Ministério da Saúde. 27. O Ministério da Saúde definirá os valores de recursos destinados ao custeio da assistência de alta complexidade para cada estado.” 12 O item 44.2 da NOAS admite expressamente a contratação de serviços na rede privada sempre que não estiverem disponíveis na rede pública, ou mesmo quando, ainda que existentes na rede pública, sejam insuficientes para o atendimento da população: “44.2. O interesse público e a identificação de necessidades assistenciais devem pautar o processo de compra de serviços na rede privada, que deve seguir a legislação, as normas administrativas específicas e os fluxos de aprovação definidos na Comissão Intergestores Bipartite, quando a disponibilidade da rede pública for insuficiente para o atendimento da população”. Verifica-se, do teor desta novel Norma Operacional de Assistência à Saúde, que, no atendimento dos serviços de saúde, a União, por intermédio do Ministério da Saúde, abandonou a antiga posição de mero órgão de supervisão e distribuição de recursos, passando à condição de responsável solidária, nos serviços de média e alta complexidade. Por último, no caso concreto, deve-se ressaltar que efetivamente restou maculada a garantia constitucional da Saúde, como direito de todos e dever do Estado, que se não possuísse acepção de valor/interesse social, não mereceria tratamento individualizado pela Carta Magna de 1988, no Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo II (Da Seguridade Social), Seção II. A exigência de uma prestação de serviços de qualidade, na seara da saúde pública, implica coordenação de esforços, porque conjuntos, das entidades públicas federal, estadual e municipal, com o fim de bem promover a prestação de serviços médicos e hospitalares em prol da coletividade. Assim, diante dos fatos já relatados, a Ação Civil Pública é o instrumento jurídico dotado de eficácia e legitimidade para promover a responsabilização dos entes políticos envolvidos, obtendo do Poder Judiciário o provimento jurisdicional que assegure ao cidadão seu direito ao tratamento médico-hospitalar que esteja a carecer. IV - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL A competência da Justiça Federal vem disciplinada no artigo 109 da Constituição Federal de 1988: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; (...) “§ 2°. As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal”. Os recursos destinados ao tratamento médico são provenientes do Sistema 13 Único de Saúde, de cujo financiamento participam, dentre outras fontes, a União Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, consoante dispõe a Constituição Federal: “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; participação da comunidade. Parágrafo único. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. A Lei n.º 8.080/90 estabeleceu, também, que: “Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.” Por conseguinte, a União, em cumprimento ao seu dever de participar do financiamento do SUS, repassa ao Estado do Piauí e ao Município de Teresina recursos para a finalidade apontada. Ante o exposto, figurando a União como parte ré, justificada está, nos termos do artigo 109, I, da CF/88, a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento da presente demanda. V - A LEGITIMIDADE PASSIVA DOS RÉUS A legitimidade passiva dos réus, União Federal, Estado do Piauí e Município de Teresina, decorre, inicialmente, da Constituição Federal: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. A Lei n.º 8.080/90, por sua vez, disciplina a organização, direção e gestão do Sistema Único de Saúde, nos seguintes moldes: “Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: 14 I - no âmbit o da União, pelo Ministério da Saúde; II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente” (grifo acrescido). Depreende-se, destarte, que o Sistema Único de Saúde ramifica-se, sem, contudo, perder sua unicidade, de modo que de qualquer de seus gestores podem/devem ser exigidas as “ações e serviços” necessários à promoção, proteção e recuperação da saúde pública. Por fim, destaca-se, também, que embora a Norma Operacional da Assistência à Saúde – NOAS-SUS – 01/2002 preceitue ser responsabilidade solidária entre o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde dos Estados a garantia de acesso aos procedimentos de alta complexidade, ela também determina, como já dito, que “a regulação dos serviços de alta complexidade será de responsabilidade do gestor municipal, quando o município encontrar-se na condição de gestão plena do sistema municipal, e de responsabilidade do gestor estadual, nas demais situações”. Até mesmo porque a União, em cumprimento do seu dever de participar do financiamento do SUS, repassa ao Estado do Piauí e ao Município de Teresina recursos financeiros para a finalidade apontada. Da jurisprudência, por seu turno, sobre o dever constitucionalmente imposto a cada um dos entes federativos de garantir e promover a saúde, extrai-se do Egrégio Supremo Tribunal Federal: “O preceito do artigo 196 da Carta da República, de eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’. A referência, contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do artigo n° 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade, afigura-se-me como fato incontroverso, porquanto registrada, no acórdão recorrido, a existência de lei no sentido da obrigatoriedade de se fornecer os medicamentos excepcionais, como são os concernentes à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), às pessoas carentes. O município de Porto alegre surge com responsabilidade prevista em diplomas específicos, ou seja, os convênios celebrados no sentido da implantação do Sistema Único de Saúde, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por outro lado, como bem assinalado no acórdão, a falta de regulamentação municipal para o custeio da distribuição não impede fique assentada a responsabilidade do Município. Decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei. Reclamam –se do Estado (gênero) as atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde e da segurança pública, cobertos, em si, em termos de receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É 15 hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínio de conforto suficiente para atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem.(...)” (Voto do Min. Marco Aurélio, proferido no RE 271.286-8-RS) (grifos acrescidos). Os demandados, portanto, como integrantes e gestores do Sistema Único de Saúde, figuram como partes passivas legítimas, uma vez que a decisão postulada projetará efeitos diretos sobre suas respectivas esferas jurídicas. VI – A LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A norma do artigo 127, da Constituição Federal, prescreve que ao Ministério Público, instituição essencial à função jurisdicional, compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Estabelecido este vetor, dispõe em seguida: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) II – Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia. III - promover o inquérito civil público e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos”. Pela análise do texto normativo transcrito, verifica-se que o constituinte incumbiu especificamente ao Ministério Público a relevante missão de defesa do patrimônio público, do meio ambiente e qualquer outro interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo de relevância social. Em harmonia com a Carta Federal, preceitua a Lei Complementar n.º 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União: “Art. 5º São funções institucionais do Ministério Público da União: (...) V - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública quanto: a) aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde e à educação. (...) Art. 6º Compete ao Ministério Público da União: (...) VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para: (...) 16 c) a proteção dos interesses, individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, á criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor.” Dessarte, afigura-se legítima a atuação do Ministério Público Federal para a defesa de direitos e interesses difusos, entre os quais se insere o direito à saúde, exteriorizada, in casu, na busca de provimento judicial que assegure aos portadores de enfermidade de alta complexidade o recebimento de todo tratamento clínico e cirúrgico, a critério dos médicos do SUS, que se fizerem necessários. O direito à saúde, além de ser direito individual fundamental, é direito social (art. 6° da Constituição Federal), reconhecendo a doutrina, ainda, a existência do direito coletivo ou mesmo difuso à saúde pública. Além disso, a partir da relevância social atribuída aos serviços de saúde no art. 197 da Constituição Federal, o Ministério Público Federal tem legitimidade para o ajuizamento de ação individual ou coletiva que busque garantir a prestação do serviço nos moldes estabelecidos na Constituição, conforme art. 129, II e III, da Constituição Federal. E, na tutela coletiva da saúde pública, o Ministério Público Federal pode referir e formular requerimentos em relação a situações individuais paradigmas, incluídas na tutela pretendida em relação ao tipo de serviço oferecido a todos. Nesse sentido, inúmeros são os julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que assentam a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação coletiva que busca tutela do direito à saúde, em moldes semelhantes à presente (STJ, 6ª T., REsp 1998.00422595/PE, Rel. Min. Vicente Leal, DJU 1°/07/2002, p. 410; e TRF4R, 3ª T., AI 2003.04.01.041369-9/SC, Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, DJU 21/01/2004). O próprio Supremo Tribunal Federal no voto do Relator, Ministro Celso de Mello, proferido no julgamento do agravo regimental no RE 273.834-4/RS, assenta a legitimidade do Ministério Público para buscar a tutela do direito à saúde, em face da relevância pública atribuída na Constituição Federal às ações e serviços de saúde." A Constituição Federal delineou o novo perfil do Ministério Público, outorgando-lhe a missão de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis. Na presente ação, o Ministério Público Federal protege o direito à saúde, o que a princípio caracteriza um direito difuso. VII - A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA Dispõe o artigo 273 do CPC que: “Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I – haja fundado receito de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II – fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu”. (grifos acrescidos). 17 Justifica-se, in casu, o pedido de antecipação da tutela pelo fato de estarem caracterizados, ao lume do artigo 273, do Código de Processo Civil, todos os pressupostos autorizadores de sua concessão, a saber: “Assim sendo, conclui-se que o primeiro requisito para a concessão da tutela antecipatória é a probabilidade de existência do direito afirmado pelo demandante. Esta probabilidade de existência nada mais é, registre-se, do que o fumus boni iuris, o qual se afigura como requisito de todas as modalidades de tutela sumária, e não apenas da tutela cautelar. Assim sendo, deve verificar o julgador se é provável a existência do direito afirmado pelo autor, para que se torne possível a antecipação da tutela jurisdicional. Não basta, porém, este requisito. À probabilidade de existência de direito do autor deverá aderir outro requisito, sendo certo que a lei processual criou dois outros (incisos I e II do art. 273). Estes dois requisitos, porém, são alternativos, bastando a presença de um deles, ao lado da probabilidade de existência do direito, para que se torne possível a antecipação da tutela jurisdicional. Assim é que, na primeira hipótese, ter-se-á a concessão da tutela antecipatória porque, além de ser provável a existência do direito afirmado pelo autor, existe o risco de que tal direito sofra um dano de difícil ou impossível reparação (art. 273, I, CPC). Este requisito nada mais é do que o periculum in mora, tradicionalmente considerado pela doutrina como pressuposto da concessão da tutela jurisdicional de urgência (não só na modalidade que aqui se estuda, tutela antecipada, mas também em sua outra espécie: a tutela cautelar)”. (CÂMARA, Alexandre, Lições de Direito Processual Civil. Lúmen Iuris: São Paulo, 2000. pp. 390-1). O fumus boni iuris, ou seja, a plausibilidade do direito invocado, consubstancia-se no princípio constituicional do acesso univesal à saúde. que demonstram, de forma inequívoca, que os cidadãos brasileiros que necessitam de atendimento/acompanhamento por médicos especialistas no Estado do Piauí, independentemente do Estado de origem dos mesmos, direito constitucional que vem sendo sistematicamente negado pelo SUS. O periculum in mora é notório e gritante, e decorre do risco da ocorrência de seqüelas irreversíveis à saúde dos pacientes, inclusive a morte, em decorrência da falta do tratamento médico adequado. Ademais, consistindo o pedido de antecipação de tutela em um atuar positivo do Estado, está-se diante de uma verdadeira obrigação de fazer, qual seja, a de prestar o tratamento médico necessário, suficiente e adequado aos pacientes. Posto isto, é de aplicação, também, o art. 461 do CPC, quanto ao cabimento de “providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”. Destarte, tendo em vista a gravidade e urgência do caso, impõe-se a determinação das medidas necessárias à efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, qual seja, o amplo e irrestrito acesso aos serviços médicos necessários, com seu integral e efetivo tratamento, aos pacientes que necessitem de procedimentos médicos de alta complexidade, nos termos da prescrição médica, qualquer que seja o Estado de origem do cidadão. 18 Da mesma forma que deve ser autorizado o acesso aos serviços médicos de cidadãos brasileiros de qualquer Estado de origem, é consectário lógico também que a União Federal tem a obrigação de responder financeiramente por tais pacientes, ressarcindo ao Estado do Piauí os valores decorrentes desses serviços médicos em pacientes de outros Estados. Todos os requisitos legalmente exigidos para o deferimento da antecipação do provimento jurisdicional encontram-se presentes. Em razão do exposto, o Ministério Público Federal requer a Vossa Excelência: a notificação da UNIÃO FEDERAL, na pessoa de seu representante legal para, querendo, pronunciar-se, nos termos do artigo 2°, da Lei n.º 8.437/92, sobre a presente ação; a notificação do ESTADO DO PIAUÍ, na pessoa de seu representante legal para, querendo, pronunciar-se, nos termos do artigo 2°, da Lei n.º 8.437/92, sobre a presente ação; a notificação do MUNICÍPIO DE TERESINA, na pessoa de seu representante legal para, querendo, pronunciar-se, nos termos do artigo 2°, da Lei n.º 8.437/92, sobre a presente ação; a concessão da antecipação de tutela, a fim de que seja determinado à UNIÃO, ao ESTADO DO PIAUÍ e ao MUNICÍPIO DE TERESINA, de forma solidária, o amplo e irrestrito acesso dos usuários do SUS aos serviços de saúde necessários, especialmente os procedimentos médicos de alta complexidade, com seu integral e efetivo tratamento, independentemente da oferta dos serviços em seu Estado de origem, cessando o caráter discriminatório da Portaria n° 39/2006 do Ministério da Saúde; a concessão de antecipação de tutela, a fim de determinar especificamente à UNIÃO o ressarcimento dos valores financeiros necessários ao Estado do Piauí e ao Município de Teresina para arcar com o tratamento médico dos cidadãos brasileiros que tenham origem (moradia) em outro Estado da Federação. VII – DOS PEDIDOS PROCESSUAIS E DO PEDIDO FINAL Ante todo o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL vem requerer a Vossa Excelência: a) a citação dos entes demandados, na pessoa de seus representantes legais, para, querendo, contestarem a presente ação e acompanhá-la em todos os seus termos, sob pena de revelia; b) a confirmação/, por sentença definitiva de mérito, de todos os pedidos de antecipação de tutela; c) a dispensa do pagamento das custas, emolumentos e outros encargos, em vista do disposto no artigo 18, da Lei n.° 7.347/85; 19 d) a juntada da documentação anexa (procedimentos administrativos que tramitaram no MPF), protestando ainda por todas as provas admitidas em juízo, que se fizerem necessárias ao pleno conhecimento dos fatos. Dá-se à causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Termos em que se pede deferimento. Teresina, 14 de maio de 2008. TRANVANVAN DA SILVA FEITOSA Procurador da República 20