1 A caridade no magistério de Bento XVI Padre Antonio Aparecido Alves* No pontificado de Bento XVI, a temática da caridade voltou a ocupar uma centralidade no magistério da Igreja. Em sua posse como Bispo de Roma 1, ele afirmou que o amor deve estar presente nas intenções daquele que dirige a comunidade eclesial, tendo definido a Igreja de Roma, citando Santo Inácio de Antioquia, como “aquela que preside no amor”. Além disso, destacou a união profunda existente entre o “amor” e o “mistério da Eucaristia”, que depois seria aprofundada na Exortação Apostólica PósSinodal Sacramentum Caritatis2. Sua primeira encíclica, promulgada em 25 de dezembro de 2005, foi denominada significativamente Deus caritas est3, denotando o sentido teológico de seu Pontificado, que iria se desdobrar nas virtudes teologais da esperança e da caridade, aplicadas à vida cristã que deve informar o mundo e a humanidade. Bento XVI explicitou, na apresentação dessa Encíclica, que sua intenção era de purificar o conceito de “amor” dos diversos matizes que se lhe foram agregando, por vezes desvirtuando seu sentido mais profundo. Assim, é necessário desvincular o amor do sentido reducionista de eros, tal como se apresenta em uma sociedade profundamente hedonista como o é a atual. Hoje, na terminologia que se conhece, o ‘amor’ com frequência está muito distante do que pensa um cristão se fala de ‘caridade’. Por isso, desejava o Pontífice mostrar nessa Encíclica como o eros transforma-se em agape na medida em que o casal “se ama realmente e um não procura mais a si mesmo, a sua alegria, o seu prazer, mas sobretudo o bem do outro. E assim, isto que é eros transforma-se em caridade, num caminho de purificação, de aprofundamento”4. Aqui é importante ressaltar a semântica da terminologia utilizada pelo Papa no documento Deus caritas est, aliás indicada por ele mesmo no anúncio da encíclica, na linha de uma transformação, para entender a correlação entre o Amor Imanente, o amor agápico, puro dom, expresso em Jesus Cristo, e o amor humano, que acontece e se * Padre em São José dos Campos/SP. Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma); Doutor em Teologia pela PUC-Rio. 1 Cfr. L’Osservatore Romano 20 (n. 1848) 14/05/2005, p. 4 [252]. 2 BENTO XVI. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis. Sobre a Eucaristia, fonte e ápice da missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2007, 142p. (Coleção ‘A voz do Papa’, 190). 3 BENTO XVI. Deus caritas est. Sobre o amor cristão. 2ª Edição. São Paulo: Edições Paulinas, 2006, 76p. (Coleção ‘A voz do Papa’, 189). 4 Cfr. L’Osservatore Romano (3), 21/01/2006, p. 1. 2 desenvolve na história. De fato, quando se cruzam essas dimensões, o amor humano, eros ou filia, é transformado na síntese que desde Agostinho a tradição católica chamou de “caridade”, sendo o amor humano penetrado com o Amor Imanente, expresso nessa categoria teológica5. Nessa Encíclica não interessa, portanto, ao Pontífice mostrar a avga,ph, ágape,o Amor Imanente e Transcendente em Deus, na linha de que “Deus é amor” (1Jo 4,16), mas mostrar a economia desse amor, o amor cristão, vivenciado na cotidianiedade, tal como expressa o sub-título da encíclica, pois esse amor é posterior ao Amor Imanente e dele deriva sendo transformado por ele6, podendo esse ser chamado de amor agápico cristão. Esse amor agápico cristão é essencial na vida da Igreja, estando o serviço da caridade ao lado do dever de anunciar a Palavra de Deus e de celebrar os sacramentos. Assim, para a Igreja, a caridade não pode ser entendida como ações pontuais, de caráter de assistência social, como de fato existe na vida eclesial, para atender as necessidades emergenciais, “mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável de sua própria essência”7, quase se reportando à palavra de Jesus dirigida aos seus discípulos na véspera de sua paixão: “Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13, 35). As implicações da caridade para a construção da sociedade se fazem a partir de um viés prático, não se remetendo a considerações de ordem teórica. A caridade, ou o agápico cristão, deve informar a vida toda dos fiéis, sendo propriamente o que os distingue de outros atores sociais, não somente em sua vida pessoal, mas também profissional, econômica e política. Assim, o serviço da caridade em ordem à instauração da justiça, que ele reputa como objeto da política, é de competência dos leigos, agindo aqui a Igreja mediatamente. O Papa distingue, de outro lado, as ações ou estruturas caritativas, que visam responder às necessidades imediatas dos sofredores, na linha do bom samaritano, sendo uma caridade organizada. Nessa atividade, a Igreja não atua indiretamente, mas imediatamente, como diretamente responsável8. 5 TRACY, David. O modelo católico da caritas: autotranscendência e tranformação. Concilium 141 (1979/1), p. 122-123. 6 KLOPPENBURG, Boaventura. Deus Caritas est. Comentários à Encílica de Bento XVI sobre o amor cristão. Grande Sinal 3 (2006), p. 263-264. 7 BENTO XVI. Deus caritas est. Sobre o amor cristão. 2ª Edição. São Paulo: Edições Paulinas, 2006, n. 25, p. 42. (Coleção ‘A voz do Papa’, 189). 8 Id., n. 29, p. 52-53. 3 Outra encíclica de Bento XVI, avidamente aguardada, deveria se referir propriamente às questões sociais, enriquecendo o patrimônio da Doutrina Social da Igreja. O anúncio dessa terceira encíclica foi feita na Oração do Ângelus do dia 29/06/2009, onde o Pontífice explicitou que seu objetivo, na encíclica que ele denominou Caritas in veritate, era o de retomar as temáticas sociais contidas na encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI, aprofundando alguns aspectos do desenvolvimento integral de nossa época, à luz da caridade na verdade 9. De fato, o conteúdo do documento evidencia a impostação cristã da questão do desenvolvimento econômico, apresentando , no entanto, alguns nuances importantes para essa pesquisa. O primeiro desses nuances é a referência da caridade à Deus, no sentido em que Santo Tomás lhe dá quando fala do objeto da caridade, isto é, que a caridade é amar a Deus e ao próximo por causa de Deus10. Assim, nessa encíclica, a caridade vem apresentada como uma força que impele os cristãos a se empenharem na causa da justiça e da paz, sendo que essa tem sua origem em Deus, sendo mesma apresentada como a via mestra do compromisso social cristão e a fortiori da Doutrina Social da Igreja11. Nesse sentido, vem o próprio nome da encíclica, que relaciona “caridade” e “verdade”. A verdade se expressa na fé pessoal e comunitária no Deus bíblico, que estabeleceu um diálogo com seu povo, ouviu seus clamores e desceu para libertá-los (Ex 3, 7-8). Se a caridade não é exercitada à luz dessa verdade, ela se torna uma “reserva de bons sentimentos”12, sem nenhuma incidência prática. Outra contribuição dessa encíclica, pertinente para essa pesquisa, é a correlação que o Pontífice estabelece entre “justiça”, “caridade” e “bem comum”. A justiça é intrínseca à caridade, pois não se pode dar ao outro do que é próprio, sem antes dar-lhe o que é de direito, sendo a justiça a “medida mínima” da caridade. Decorrente disso, vem o empenho pelo bem comum, uma vez que não se pode amar o próximo sem se empenhar eficazmente em ações que dêem respostas às suas necessidades reais 13. É relevante essa correlação, porque em geral essas realidades são consideradas de forma estanque e por vezes reducionista. Cfr. L’Osservatore Romano (27), 04/07/2009, p. 6. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. A Fé, a Caridade e a Prudência. São Paulo: Edições Loyola, 2004,Vol. V, II seção da II parte, Questão 25, artigo 1. 11 Cfr. Bento XVI. Caritas in Veritate. São Paulo: Edições Paulinas, 2009, n. 2, p. 4. (Coleção ‘A voz do Papa’, 193). 12 Id., n. 4, p. 7. 13 Id., n. 6-7, p. 8-10. 9 10 4 Finalmente, a contribuição do magistério de Bento XVI tem sido importante, enquanto resgata essa dimensão da caridade e a articula com outras facetas da vivência social. Assim, a caridade se torna elemento organizador da vida em sociedade, se desdobrando em suas exigências de justiça e bem comum.