Krugman, Paul. “Oh!Canadá!” São Paulo: O Estado de São Paulo, 24 de outubro de 1999. OESP 24-10-99 PAUL KRUGMAN Oh, Canadá! Estava na hora. Nós que trabalhamos no campo da teoria monetária internacional estavámos ansiosamente aguardando há uma década o momento em que Robert Mundell receberia seu Prêmio Nobel em Ciências Econômicas, tão ricamente merecido. A obra de Mundell é tão central para este campo, tão "seminal" - um termo super-usado que aqui realmente se aplica - que, em muitas questões controvertidas, suas idéias servem de base para ambos os lados do debate. Mas um leigo pode estar confuso por não saber exatamente qual o Mundell premiado e o que realmente significou o seu prêmio. A página editorial do Wall Street Journal declarou, de maneira meio patética, que este é um Nobel do "supply-side" (favorável à economia do lado da oferta). Nisso não há nenhuma surpresa: as tentativas do editor Robert Bartley de fazer jus a uma justificativa intelectual tornaram-se cada vez mais desesperadas nos últimos anos . Uma expansão econômica Clintoniana de oito anos faz com que os "sete anos de vacas gordas" de Reagan pareçam positivamente "pobres e esfarrapados", enquanto heróis do "supply-side", como Jude Wanniski, parecem mais doidos a cada dia que passa. Por isso, o Wall Street Journal vai querer puxar ao máximo a "sardinha para sua brasa". (Mas, afinal , desde quando Bartley se preocupa com o que alguns suecos pensam?) Não sei se interessa, mas é bom saber que a citação formal dos méritos do agraciado, feita pelo Comitê do Prêmio Nobel, não menciona nada do que Mundell escreveu desde que foi adotado como mascote por Bartley e outros há cerca de 25 anos. O jovem Mundell, cujas teorias ainda dominam os manuais de economia, foi quem ganhou o prêmio. Ora, se não é um Nobel do "supply-side", então o que é? Bem, que tal se a gente o considerar um Nobel canadense? Não sei muito bem porque as questões de política canadense são universalmente encaradas como coisas sem graça - nem sei porque a frase "Valiosa Iniciativa Canadense" (Worthwhile Canadian Initiative), vencedora do velho concurso para a escolha da manchete mais chata, ainda parece tão engraçada (sim, eu também acho que é engraçada). Talvez isso tenha que ver com a maneira de falar dos canadenses, não é mesmo? Mas, quando se trata de assuntos monetários internacionais, o Canadá foi muitas vezes um caso muito interessante - o país que desafia as tendências, que demonstra com o exemplo a futilidade da sabedoria convencional do momento. Agora, por exemplo, a capacidade do Canadá de prosperar com um dólar independente é o melhor argumento que conheço contra os eurófilos britânicos, que insistem que seu país deve entrar na União Monetária Européia (EMU) para não perecer. E quando o jovem economista canadense Robert Mundell escreveu sua obra mais influente, em princípios da década de 1960, muito provavelmente foi a diferença canadense que o inspirou a pensar diferentemente dos outros. Em 1960, o mundo era assim: quase todos países tinham taxas fixas de câmbio, com suas moedas presas ao dólar norte-americano. Os movimentos internacionais de capital eram drasticamente limitados, em parte por normas governamentais, em parte pela lembrança do não-pagamento de empréstimos e das desapropriações da década de 30. E a maioria dos economistas que refletia a respeito do sistema monetário internacional dava por suposto, quer explícita quer implicitamente, que esta era a maneira como as coisas continuariam a funcionar em futuro previsível. Mas o Canadá era diferente. O controle dos movimentos de capital ao longo de sua longa fronteira com os Estados Unidos nunca havia sido uma coisa prática; e os investidores norteamericanos se sentiam menos nervosos em colocar seu dinheiro no Canadá do que em qualquer outra parte do mundo. Em vista destes movimentos não-controlados de capital, o Canadá não podia fixar sua taxa de câmbio sem renunciar ao controle total sobre sua própria política monetária. Como não queria tornar-se um distrito monetário sob o controle do Federal Reserve, desde 1949 até 1962 o Canadá tomou a decisão quase excepcional de deixar sua moeda flutuar em relação ao dólar norte-americano. Em nossos dias, a alta mobilidade do capital e uma taxa de câmbio flutuante constituem a norma, mas naqueles dias estas coisas pareciam chocantes - ou teriam parecido chocantes - se alguém mais, com exceção dos canadenses, estivesse envolvido. E assim talvez tenha sido o caso do Canadá que levou Mundell a perguntar, em uma de suas três mais famosas contribuições, como a política monetária e fiscal funcionaria numa economia em que o capital fluísse livremente para dentro e para fora do país, em resposta a qualquer diferença entre as taxas de juros internas e as taxas externas? Mundell respondeu que isso dependia da maneira como esse país administrava sua taxa de câmbio. Se o país insistisse em manter o valor de sua moeda em termos do valor constante, ou fixo, das moedas de outras nações, a política monetária se tornaria inteiramente impotente. Somente deixando a taxa de câmbio flutuar, a política monetária reconquistaria sua eficácia. Mais tarde, Mundell ampliaria sua visão inicial, propondo o conceito da "trindade impossível": movimento livre de capital, taxa fixa de câmbio e uma eficiente politica monetária. O problema é que não se pode ter tudo isso. Um determinado país deve escolher dois desses três pontos. Pode fixar a taxa de câmbio sem enfraquecer seu banco central, mas somente por meio da manutenção de controles sobre os fluxos de capital (como a China o faz em nossos dias); pode deixar o capital movimentar-se livremente, conservando porém a autonomia monetária, mas somente deixando a taxa de câmbio flutuar (como a Inglaterra ou o Canadá); ou pode optar por deixar o capital livre e estabilizar a moeda, mas somente abandonando qualquer capacidade de ajustar as taxas de juros para combater a inflação ou a recessão (como hoje o faz a Argentina ou, neste assunto, a maioria da Europa). E qual escolha deveria fazer um país como o Canadá - onde os controles do capital não eram uma opção séria? Deveria explícita ou implicitamente renunciar a ter sua própria moeda, ou continuar com o padrão do dólar norte-americano, ou valeria a pena assumir os riscos de pagar o preço de uma taxa flutuante do dólar canadense em relação ao dólar americano, em troca da capacidade de estabilizar ativamente a economia doméstica? O debate sobre como definir "a melhor área monetária possível" é interminável, mas Mundell estabeleceu seus termos, sugerindo em particular que uma característica-chave dessa área seria tipicamente a alta mobilidade interna dos trabalhadores, isto é, a disposição e capacidade dos trabalhadores de passar de regiões em declínio para regiões em expansão. (Este é , incidentalmente, um critério que a Europa - cujo regime de moeda única Mundell apóia agora entusiasticamente - evidentemente não satisfaz). É difícil avaliar hoje como a colocação destas questões por parte de Mundell e a maneira como ele tentou resolvê-las eram novidades insólitas naquela época. Mas, se examinarmos a literatura monetária internacional no momento em que Mundell estava em seus dias de glória, temos a impressão de que ele estava 15 a 20 anos à frente de seus contemporâneos. Estes ainda estavam pensando em termos de um mundo controlado, de um mundo em que a moeda se movia onde e quando as autoridades a mandavam mover-se. Ele porém estava pensando em termos de um mundo em que a moeda se movia livremente, maçiçamente, para onde quer que pudesse ganhar o mais alto retorno. Na época, somente o Canadá, graças ao seu gigantesco vizinho, vivia num mundo parecido com o que ele imaginava. Hoje, todos nós vivemos nesse mundo. E, se lermos qualquer manual importante de economia internacional - como o perene best-seller, escrito por Krugman e Maurice Obstfeld - ainda acharemos que a metade monetária do livro está baseada, em grande parte, nos papéis escritos por Mundell em princípios da década de 60. Então quem é este economista que o Wall Street Journal acha que está do seu lado? Bem, os economista mudam seu estilo e suas opiniões à medida que vão se tornando mais idosos. Mundell mudou mais do que a maioria deles. Aqueles primeiros escritos "seminais" eram agudos e minimalistas: antecipavam , com notavel presciência, o mundo feroz, confuso, descontrolado, da moderna macroeconomia internacional. Contrastando com isso, os escritos de Mundell, desde princípios da década de 70, foram discursivos - poderíamos até dizer divagantes - e freqüentemente revelam uma espécie de nostalgia das certezas perdidas do padrão-ouro. (E, certamente, ele disse algumas coisas que podem, com algum esforço, ser interpretadas como apoio à economia do lado da oferta). O teórico precoce antecipou a década de 90; o estadista mais velho voltou a dar mais atenção a década de 1890. Assim, você pode fazer sua opção e ver qual o Mundell que prefere: mas o Comitê do Prêmio Nobel basicamente homenageou o Mundell mais jovem, esse economista que foi suficientemente iconoclasta para imaginar que, entre todos os outros lugares, o Canadá era a economia do futuro. E ele estava certo.