RESPONSABILIDADE CIVIL ERRO MÉDICO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DA CAPITAL JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CÍVEL DO MÉIER PROCESSO Nº: 2003.208.009720-3 PARTE AUTORA: TAÍS LANCATES VILLARES PARTE RÉ: RONALDO VALIM DO VAL AÇÃO: INDENIZATÓRIA SENTENÇA Trata-se de ação indenização por responsabilidade civil por fato do serviço, proposta por TAÍS LANCATES VILLARES em face de RONALDO VALIM DO VAL, objetivando receber indenização por danos morais. Aduz a autora que, no dia 29/01/2002, procurou os serviços do réu, a fim de iniciar tratamento para perda de peso. Nesta ocasião, lhe foi prescrita medicação a ser preparada por farmácia de manipulação, sendo certo que a requerente providenciou a confecção da referida fórmula e iniciou o tratamento em 04/03/2002, ingerindo a medicação até o término das cápsulas, em 12/04/2002, ocasião em que a autora começou a apresentar alterações comportamentais, tornando-se agitada em demasia, falando em altos brados e de forma excessiva, além de salivar demais. Tais fatos chegaram ao seu ápice em 02/05/2002, quando a requerente passou toda a noite em claro, conversando com sua cunhada, ressaltando-se que a conversação versou sobre temas absolutamente inverossímeis. Ao amanhecer o dia, relata que se vestiu para ir ao trabalho, porém, de maneira totalmente inadequada, aparentando estar fantasiada. Ao chegar ao trabalho, apresentou-se em total descontrole, pelo que foi atendida pelo médico plantonista, sendo certo que, logo após, foi levada ao Hospital Pinel, onde foi sedada e medicada. Ressalta que, por cerca de onze dias, foi cuidada por sua genitora, não tendo mais memória de tal fase, alimentando-se excessivamente, dormindo em excesso, dependendo de sua genitora para as necessidades básicas de higiene. Frisa que a sua mãe procurou o réu, a fim de esclarecer o ocorrido, sendo que este a tratava sempre de maneira rude, afirmando ser a suplicante “maluca de pedra”. Destaca a parte autora que todos esses acontecimentos lhe ocasionaram danos irreparáveis, pois passou a ser considerada louca em seus ambientes profissional, social e PROCESSO Nº: 2003.208.009720-3 Página 1 de 7 RESPONSABILIDADE CIVIL ERRO MÉDICO familiar, eis que o seu surto foi testemunhado por várias pessoas de seu convívio. Salienta que, em 11/05/2002, a demandante começou a apresentar melhoras, sendo certo que neste ínterim, iniciou tratamento psiquiátrico, a fim de poder restabelecer sua sanidade por completo, quando foi informada ser portadora de Transtorno Bipolar de Humor. Esclarece que, de acordo com seu médico, tomou conhecimento de que certas substâncias, quando ingeridas, ativam tal moléstia, ressaltando que uma das substâncias prescritas na mencionada fórmula é altamente prejudicial, ocasionando todos os sintomas observados. Frisa que, antes de iniciar o tratamento com o médico réu, jamais apresentou qualquer distúrbio de comportamento. Requer a gratuidade de justiça, indenização por danos materiais, consubstanciados em lucros cessantes, além de indenização por danos morais. Com a petição inicial, vieram os documentos de fls. 11/45. Gratuidade de Justiça deferida à fl. 46. Contestação às fls. 49/64, na qual o réu alega, preliminarmente, a inaplicabilidade da inversão do ônus da prova. No mérito, alega que, quando foi procurado pela autora, realizou a avaliação clínica de rotina, passou os exames e prescreveu medicamento para 40 dias, orientando a paciente com relação à alimentação e, também, com relação ao período no qual deveria ser marcada a consulta de revisão médica. Afirma que, embora a autora tenha marcado a consulta de revisão para o dia 12/03/2002, não compareceu, tampouco entrou em contato com o réu para apresentar alguma justificativa. Alega que não existe qualquer prova nos autos de que a autora iniciou o tratamento na data por ela apontada, ressaltando que, à fl. 24-verso, consta Boletim de Atendimento elaborado pelo Instituto Philippe Pinel em 02/05/2002, onde se verifica que a autora esclareceu como queixa principal ter ingerido “fórmula” para emagrecer e, assim, ter perdido 13 quilos em pouco tempo e, ainda, que a Avaliação do Serviço Social daquele instituto assim constatou: “Terminou namoro recentemente”. Acrescenta que a autora não seguiu a orientação do réu, relativamente à alimentação que deveria ser adotada em seu dia-a-dia, posto que acabou emagrecendo mais do que devia, bem como não obedeceu o período de tratamento indicado e, provavelmente, também não obedeceu a regularidade na administração do remédio, principalmente no que diz respeito aos dias e horários. Alega o réu que, apesar de a autora afirmar que a partir do dia 12/04/2002 já teria começado a perceber alterações comportamentais, afirma, expressamente, não ter estabelecido qualquer relação entre elas e o tratamento para emagrecer, e o que é pior, não fez qualquer contato como réu para noticiar os fatos alegados. Destaca que um quadro maníaco depressivo, atualmente denominado como distúrbio bipolar, pode ter desencadeantes de ordem farmacológica ou de ordem emocional. Por fim, ressalta que não foi adunada à inicial qualquer prova de que o medicamento prescrito à autora pelo réu tenha sido administrado com regularidade. Afirma que não restou comprovado que a substância fluoxetina seja capaz de desencadear o distúrbio bipolar e que tenha sido esta a causadora da crise maníaco-depressiva por que passou a autora, bem como que não comprovou a PROCESSO Nº: 2003.208.009720-3 Página 2 de 7 RESPONSABILIDADE CIVIL ERRO MÉDICO autora que tenha sofrido os danos de ordem material e moral apontados. improcedência dos pedidos. Requer a Réplica às fls. 71/72, acompanhada dos documentos de fls. 73/79. Manifestação da parte ré sobre os novos documentos às fls. 82/84. Em provas, manifestação das partes às fls. 85 e 87. Frustrada a tentativa de conciliação, conforme ata à fl. 97. Decisão saneadora à fl. 98. Agravo Retido às fls. 118/120. Laudo pericial às fls. 159/167. Manifestação da parte ré sobre o laudo pericial às fls. 169, com apresentação do laudo do assistente técnico às fls. 170/189, e impugnação da parte autora às fls. 191. Manifestação do Dr. Perito sobre a impugnação à fl. 195. Na audiência de instrução e julgamento, foram ouvidas as testemunhas (fls. 275/276), sendo certo que a autora desistiu do depoimento pessoal do réu, conforme ata à fl. 274. É O RELATÓRIO. DECIDO. Compulsando os autos, verifico que a única questão preliminar suscitada pelo réu, qual seja, a de inaplicabilidade da inversão do ônus da prova, já foi decidida e foi, inclusive, objeto de agravo retido, como se depreende de fls. 118/120, o que será apreciado pelo juízo ad quem, quando do julgamento de eventual recurso de apelação. Não foram suscitadas outras questões preliminares, pelo que passo à análise do meritum causae. Primeiramente, cumpre salientar que a responsabilidade civil no caso em análise é de cunho subjetivo, por força do artigo 14, parágrafo 4o da lei 8.078/90. Assim, além da imprescindível prova do dano e do nexo de causalidade, mister se faz ainda a determinação da culpa do réu para efeito de responsabilidade. Com efeito, o parágrafo 4o do art. 14 do CDC abre uma exceção ao princípio da objetivação da responsabilidade civil por danos. Trata-se do fornecimento de serviços por profissionais liberais cuja responsabilidade será apurada mediante verificação de culpa. Explica-se a diversidade de tratamento em razão da natureza intuitu personae dos serviços prestados por profissionais liberais. Tais profissionais são contratados ou constituídos com PROCESSO Nº: 2003.208.009720-3 Página 3 de 7 RESPONSABILIDADE CIVIL ERRO MÉDICO base na confiança que inspiram aos respectivos clientes. Assim sendo, somente serão responsabilizados por danos quando ficar demonstrada a ocorrência de culpa subjetiva em quaisquer de suas modalidades. Sobre a culpa, cabe trazer à colação os ensinamentos do Desembargador Sérgio Cavalieri: “…Diante das circunstâncias do caso, deve estabelecer o juiz quais os cuidados possíveis que ao profissional cabia dispensar ao paciente, de acordo com os padrões determinados pelo uso da ciência, e confrontar essa norma concreta, fixada para o caso, com o comportamento efetivamente adotado pelo médico. Se ele não observou, agiu com culpa…”. (in Programa de Responsabilidade Civil, 4a edição, Ed. Malheiros, pág. 370/371). Entretanto, em que pese o fato de a responsabilidade ser subjetiva, pode haver inversão do ônus da prova, se necessário. Neste sentido, cabe assinalar o entendimento doutrinário dominante: “Se o dispositivo comentado (art. 14, par. 4o da lei 8078/90) afastou, na espécie sujeita, a responsabilidade objetiva, não chegou a abolir a aplicação do princípio da inversão do ônus da prova. Incumbe ao profissional provar, em juízo, que não laborou em equívoco, nem agiu com imprudência ou negligência no desempenho de sua atividade. Nem se deve deslembrar que o dispositivo excepcional supõe a contratação de um profissional liberal que, autonomamente, desempenha seu ofício no mercado de trabalho. Trata-se, portanto, de disciplina dos contratos negociados, e não dos contratos de adesão a condições gerais. No que tange aos contratos de prestação de serviços firmados com os profissionais liberais, muito importa distinguir os contratos negociados, previstos neste parágrafo, dos contratos de adesão, que costumam ser firmados com sociedades civis ou associações profissionais. Estes últimos- derivados da especial relação que se estabelece entre o fornecedor de bens ou serviços ofertados ao público e seus eventuais adquirentes ou utentes, designados consumidores- retratam, com tipicidade, as verdadeiras relações de consumo. A relação derivada dos contratos de adesão e condições gerais se caracteriza pela ostensiva tutela jurídica de uma das partes, o consumidor, que o Código de defesa do Consumidor presume necessária, diante de sua manifesta fragilidade no embate com o poder contratual dos fornecedores. Por sua vez, os contratos ditos negociados, nas relações consumeristas, estão muito próximos dos contratos estritamente privados, nos quais prevalece a regra do pacta sunt servanda, que supõe a igualdade dos poderes contratuais das partes, em obséquio ao pensamento liberal, que sempre repudiou a tutela legal dos hipossuficientes”. (in Código brasileiro de defesa do consumidor, comentado pelos autores do anteprojeto, ed. Forense universitária, 8a ed., 2004, grifo nosso). O contrato em tela é negociado, pois foi firmado diretamente com o profissional, sendo em face dele, inclusive, que foi intentada a presente ação. Assim, em que pese o teor da decisão que inverteu o ônus da prova, não vislumbro necessidade de aplicar qualquer norma diferenciada para proteção da autora, de forma a desigualar a PROCESSO Nº: 2003.208.009720-3 Página 4 de 7 RESPONSABILIDADE CIVIL ERRO MÉDICO isonomia existente entre as partes. Considerando-se o grau de esclarecimento da autora, reputo importante frisar que, nos dias atuais, a sistemática quanto aos métodos de emagrecimento é de conhecimento público, pois é objeto de noticiários na imprensa escrita e falada. O tema é notícia em revistas, jornais, telejornais, bem como em programas televisivos. Fala-se usualmente acerca da matéria, em especial, acerca das conseqüências de cada um dos métodos de emagrecimento no corpo humano, esclarecendo-se, inclusive, quanto às prováveis soluções e métodos alternativos aos medicamentos. Sendo assim, não estava a autora obrigada a buscar tal método para emagrecer. De qualquer sorte, mesmo após a inversão do ônus da prova determinada, tenho que, no presente caso, não restou comprovado o nexo causal, tampouco a alegada imperícia do réu. Muito embora haja prova dos danos experimentados pela autora, nem mesmo o laudo pericial acostado aos autos atestou a existência de nexo causal entre os medicamentos prescritos pelo réu à autora e os transtornos narrados na inicial. Ora, em questões de alta indagação científica e, em especial, naquelas da área da medicina, em que pese ser pacífico o entendimento de que o magistrado pode formar seu livre convencimento através de outros elementos, entendo que não se pode deixar de levar em consideração de maior peso o laudo do perito, eis que distante do interesse das partes e muito melhor preparado para o exercício da função que lhe é atribuída como auxiliar da justiça. Neste diapasão, o laudo de fls. 158/167 assim conclui: “A análise dos documentos contidos nos autos, as diligências procedidas e a entrevista com a autora, levam o perito à conclusão de que a mesma é portadora de Transtorno Bipolar do Humor. Não existindo relação causal entre a medicação prescrita pelo réu e as alterações mentais por ela apresentadas”. (grifo nosso). O laudo ainda afirma que: “Deve ser chamada atenção que os sintomas da doença não decorrem de efeitos fisiológicos diretos de uma substância (uma medicação ou outro tratamento). Tratamento antidepressivo prolongado capaz de determinar episódio de mania não conta para o diagnóstico e transtorno bipolar do humor( fl. 163)...A substância não é agente etiológico do transtorno bipolar, que como já se esclareceu, tem sua origem, com grande grau de certeza, genética...transtornos emocionais de monta não podem ser descartados como causa determinante da eclosão do surto (fl. 165)...Não há nos autos indícios de que os componentes da fórmula nas doses em que foram prescritos podem ser responsabilizados, de forma categórica, pela ativação de uma doença de etiologia genética (fl. 166)”. Consta ainda do laudo que não há incompatibilidade de uso entre os medicamentos receitados pelo réu. Frise-se que, mesmo após a impugnação do laudo pela autora, o perito do juízo ratificou integralmente os temos do laudo pericial, a fl. 195. Ainda que não se considerasse o laudo pericial, o Dr. Luis Mário Januário Medeiros Duarte, médico psiquiatra que atendeu a autora e testemunha arrolada pela própria demandante, assim afirmou em juízo: “...que acompanhou a autora durante vários meses, até que ela ficasse assintomática;....que considera o ocorrido não um erro médico, mas sim um diagnóstico que foi feito apenas após a utilização da medicação, supondo que tenha sido a medicação; ...é possível que o medicamento tomado pela autora tenha feito eclodir o seu PROCESSO Nº: 2003.208.009720-3 Página 5 de 7 RESPONSABILIDADE CIVIL ERRO MÉDICO transtorno, mas esclarece que isto pode ocorrer com qualquer médico , até mesmo com os psiquiatras; que mesmo um antidepressivo poderia agravar a situação...” (fl. 276- grifo nosso). Deve ser salientado também que, quando da consulta, o réu fez solicitação de diversos exames de rotina à autora, tais quais, hemograma, colesterol, triglicerídeos, ácido úrico, glicose, tireóide, urina e fezes, sendo certo que a própria autora afirma que antes dos fatos narrados na inicial, nunca havia apresentado qualquer sintoma do transtorno bipolar, pelo que se infere que, obviamente, não fez qualquer relato da síndrome ao reclamado, quando da consulta. Destarte, entendo estarem ausentes os pressupostos ensejadores da responsabilidade civil do réu, uma vez que não ficou comprovada a ocorrência do nexo causal, tampouco da alegada imperícia. Tão somente as declarações da autora na inicial não têm o condão de demonstrar satisfatoriamente a responsabilidade do demandado. Sem essa comprovação, não há como atribuir responsabilidade civil ao réu quanto a qualquer dano, seja de ordem moral, seja de caráter patrimonial. Não comprovado o nexo causal entre a conduta do réu e o dano que alega a autora ter sofrido, inexiste o dever de indenizar. Isto posto, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos da autora, pois inexistentes os pressupostos ensejadores da responsabilidade civil. Deixo de condenar a autora nas penas da litigância de má-fé, uma vez que a sua conduta não se enquadra em quaisquer das hipóteses previstas no artigo 17 do CPC. Tenho que a autora estava tão somente a exercer um direito que acreditava possuir, fazendo as alegações pertinentes ao caso. Ainda que estas alegações tenham causado desconforto para o réu, não foram ilícitas, mas sim necessárias à exposição dos fatos por parte da demandante. Condeno a autora ao pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios, estes últimos fixados em 20% sobre o valor atribuído à causa, cobrança esta que fica suspensa diante do disposto no artigo 12 da lei 1.060/50, em razão da gratuidade de justiça deferida a fl. 46. Após certificado o trânsito em julgado, em não havendo requerimento das partes, dê-se baixa e arquivem-se os autos. P.R.I Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2007. Juliane Mósso Beyruth de Freitas Guimarães PROCESSO Nº: 2003.208.009720-3 Página 6 de 7 RESPONSABILIDADE CIVIL ERRO MÉDICO Juíza de Direito PROCESSO Nº: 2003.208.009720-3 Página 7 de 7