Nassif, Luís. “A independência do Tesouro.” São Paulo: Folha de São Paulo, 05 de janeiro de 2000. LUÍS NASSIF A independência do Tesouro Um dos marcos fundamentais do subdesenvolvimento intelectual brasileiro, especialmente nas ciências humanas e, em particular, nas ciências econômicas, é o apego cego e acrítico a conceitos provindos dos países centrais. Aplicam-se aqui princípios consagrados internacionalmente. Os resultados são catastróficos. O que fariam os verdadeiros intelectuais? Analisariam os fatos, fariam a crítica e reavaliação dos princípios importados, e não só contribuiriam para o pensamento econômico mundial, como livrariam o seu país dos desastres que acabam cometendo, em nome dessa falta de coragem ou de interesse em desenvolver um pensamento independente. O trabalho "Relacionamento entre Tesouro Nacional e Banco Central: aspectos da coordenação entre as políticas fiscal e monetária no Brasil", de Selene Peres Peres Nunes (sic) e Ricardo da Costa Nunes, segundo lugar no 4º Prêmio de Monografia do Tesouro Nacional, é um inventário precioso sobre a evolução das idéias em torno da independência do BC, as críticas a esse processo, e as distorções decorrentes de uma ação do órgão sem visão de conjunto acerca de outras questões da economia. O tema da independência do BC ganhou relevância em função de dois argumentos: o da neutralidade da moeda (a de que a ação sobre juros não interfere nas perspectivas da economia a longo prazo) e a defesa da moeda contra os políticos gastadores. Na primeira parte do trabalho, os autores procuram esmiuçar a discussão teórica sobre a pretensa neutralidade da moeda, para concluir que, como os mecanismos de crédito e financiamento têm efeito sobre a atividade econômica, a tese da neutralidade das políticas de juros têm que ser revistas. Logo, não se entende a independência do BC, já que o controle da inflação é apenas uma das variáveis econômicas, e não a única, nem necessariamente a mais relevante. O processo de deturpação desse conceito de independência dá-se nas seguintes fases: 1) Para fugir às pressões políticas, o BC torna-se independente e passa a definir a política monetária com o fito exclusivo de controlar a inflação. A idéia básica é impedir que o BC se torne financiador de despesas fiscais, por meio da emissão de títulos ou de moeda. 2) Sem restrições à sua atuação, o jogo acaba se invertendo. Em vez de contribuir para o equilíbrio fiscal, a atuação do BC acaba gerando uma série de passivos parafiscais da pior espécie, posto que fora do controle do Orçamento e da sociedade. 3) O excesso de poder do BC, além disso, pode fazer com que seja utilizado como instrumento de poder de grupos burocráticos, utilizando elementos discricionários para aumentar seu poder, influência, ou ganhos financeiros do mercado. 4) Os autores chamam a atenção para o fato de que o déficit relevante do ponto de vista macroeconômico não é necessariamente o que aparece nas estatísticas oficiais, mas o resultado dos subsídios implícitos nas operações de assistência financeira, na execução das políticas monetária e cambial, no crédito à agricultura, dentre outras. E lembram que todas essas atividades do BC não são contabilizadas nem sujeitas a controle. A propósito, meses atrás sugeri aqui na coluna que a Lei de Responsabilidade Fiscal deveria incluir limites à capacidade do BC de criar déficits. O BC pode criar déficits administrando as reservas cambiais (em virtude do diferencial de taxas internas e externas), renegociando dívidas dos Estados (ao bancar a diferença de taxas de juros) ou mesmo adotando políticas de juros temerárias (já que os juros de seus títulos influenciam o nível de juros do Tesouro). A prova é que, nos últimos anos, o país produziu invariavelmente superávits primários, que foram destroçados pelo pagamento de juros -déficit criado especificamente pela política monetária do BC. A conclusão do trabalho é que a tese da independência do BC reduziria ainda mais a transparência das contas públicas. O ideal seria enquadrá-lo em políticas econômicas consistentes, no plano intertemporal, e definir metas quantitativas de agregados monetários, acabando com seu poder de definir a taxa de juros arbitrariamente.