Aula 3: transição Medievo-Modernidade, Idade Moderna A filosofia moderna Contexto de ceticismo: perda do referencial religioso (Reforma Protestante x Contra-Reforma Católica); perda do referencial científico/filosófico (Ciência Nova x Epistéme Antiga); novos referenciais geográficos e culturais (descoberta do Novo Mundo). Nova ideia de “natureza” (consequência do nominalismo): variação de fenômenos, mensurável matematicamente. Necessidade de estabelecer uma base sólida para o conhecimento: o homem, sem Deus (crise religiosa) e sem mundo (crise científica), busca em si mesmo, na mente, o fundamento do conhecimento da realidade: eis o idealismo: frente a confiança “ingênua” na realidade, a necessidade de estabelecer o critério da verdade: a verdade vem antes do ser, a ideia (o conceito lógico e mesmo qualquer vivência psicológica) vem antes da realidade. Idealismo racionalista: busca a verdade nas ideias (inatas) da razão. Idealismo empirista: busca a verdade nas “ideias” da “experiência” (modificações de nossos órgãos sensoriais). Idealismo crítico: síntese de empirismo e racionalismo. Guilherme de Ockham e o nominalismo fideísta Só se pode provar o que é imediatamente evidente (pela percepção) ou o que pode ser deduzido necessariamente do imediatamente evidente. Deus, a imortalidade da alma, os mandamentos são assuntos exclusivos da Fé (fideísmo antimetafísico). Não podemos saber de Ideias Eternas e da Lei Natural. Solução nominalista ao problema dos “universais”: só existe o indivíduo; os conceitos são meros “nomes”, símbolos que reúnem realidades individuais similares. Realiza a separação da teologia e da filosofia (antes de Descartes), inaugurando o fideísmo (antes de Lutero); prepara: 1) a logificação da filosofia primeira (o idealismo); 2) a matematização da filosofia natural/física, isto é, a ciência moderna (antes de Copérnico), 2) a separação do Império e Igreja, ou seja, a política moderna separada da moral apoiada na Revelação e na ética da Lei Natural (antes de Maquiavel), e o nacionalismo; 3) a cultura moderna individualista em geral (base do liberalismo teorizado por Hobbes e Locke). Nicolau de Cusa, a docta ignorantia e a coincidentia oppositorum Fontes do pensamento: devotio moderna (Eckhart), a via moderna (Ockham), humanismo italiano. Todo conhecimento pressupõe uma comparação, que é uma medição (lógica aristotélica categorial). A condição para tal é a homogeneidade. Não posso passar de realidades finitas, condicionadas, rumo ao que está além de toda medição. Não há metodologia racional para vencer tal abismo. O infinito é desconhecido. O Ser divino exige um novo tipo e uma nova forma de conhecimento. O verdadeiro instrumento para conhecê-lo é a visão intelectual, onde as oposições lógicas deixam de existir, pois nos transportamos a sua origem simples, a um ponto anterior a toda divisão, além de todas as diferenças empíricas do ser. Trata-se da matemática: a distância dos vários raios de uma circunferência inexiste no centro do qual eles partem. Divisão (khorismós) e participação (méthexis) só podem ser pensadas respectivamente. O saber empírico se refere a um ser ideal, mas não contém a verdade deste ideal. O empírico é indefinidamente determinável; o ideal é sua plenitude. O condicionado visa ao incondicionado, sem poder alcançá-lo. A teologia é um “nãosaber que sabe” e a experiência é um “saber que não sabe”. Cada enunciado pode ser suplantado por outro mais preciso (é sempre conjectura). Onde a distância é infinita, cessam as diferenças finitas relativas. Cada ser natural está igualmente próximo e distante desta origem. Deus é o centro, e o centro está em toda parte. A multiplicidade e heterogeneidade das religiões não contradiz a unidade e universalidade da religião. “Tu és aquele a quem chamam de diferentes nomes e que, não obstante, permanece desconhecido e inefável [...] todos verão que só existe uma religião em meio à multiplicidade dos ritos” (Nicolau de Cusa, De pace fidei). Nenhuma fé pode se subtrair à alteridade, que é momento básico, especulativamente exigido, da própria doxa. Lutero e a Reforma Protestante: o fideísmo espiritualista e o consequente secularismo “Cada cristão tem duas naturezas, uma corporal e uma espiritual. Por sua alma ele merece ser chamado homem novo, espiritual, interior; pela carne e pelo sangue, merece ser chamado homem corporal, velho homem e homem exterior” (Lutero, A liberdade do cristão). Se a inteligência da fé não tem a ver com a realidade corporal, ela se encerra no âmbito privado da consciência e, paulatinamente, vai perdendo terreno na filosofia, na ciência, na moral e na política. O mundo vai sendo (re)construído independentemente da religião. Descartes e a imanência de Deus? O problema do “método”: só é verdadeiro o que é conhecido com evidência, isto é, a “ideia clara e distinta” (1ª e fundamental regra do método; as outras são a “análise” [divisão do problema em suas partes], a “síntese” [ir do mais simples ao mais complexo] e a “verificação” [revisão]). “Claro” é o que é presente e manifesto a um espírito atento. “Distinto” é o que é totalmente claro e que pode ser distinguido de qualquer outra coisa. O argumento do cogito: a “dúvida” (o engano dos sentidos, das imagens oníricas, o Deus enganador ou Gênio Maligno). “Não há dúvida, então, de que eu sou, se ele [enganador] me engana; e que me engane o quanto quiser, jamais poderá fazer com que eu não seja nada, enquanto eu pensar ser alguma coisa. [...] esta proposição, Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito” (Descartes, Meditações Metafísicas). A ideia “inata” de Deus: há três tipos de ideias, as “adventícias”, as “fictícias” e as “inatas”. A ideia de Deus é inata; não posso tê-la formada a partir de outras ideias, logo foi posta em mim por Deus, que assim existe. Descartes gnóstico? Ver a ideia é ver a coisa. As ideias do que não sou brotam de mim, estão em mim eminentemente. Ideias mais perfeitas não saem de ideias menos perfeitas. Se eu conhecesse Deus por abstração [o que Descartes nega], conheceria primeiramente que “há Deus” e não “quem é Deus” [o que, na filosofia clássica, é o trabalho da “teologia negativa”, que conhece por analogia]. Ora, eu não posso abstrair a Deus, mas posso ver imediatamente sua ideia [que em Descartes é o mesmo que ver o ser]! A intuição [direta, como pretende Descartes] da essência de Deus só é possível se Deus se vê em mim, ou, em outras palavras, se eu sou [uma centelha de] Deus [pela qual Ele Se conhece]. Spinoza e o “Deus Natureza” A substância única: Definição III: “Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado” (Spinoza, Ética: Demonstrada à maneira dos geômetras; grifos meus). Segundo esta definição, só pode existir uma Realidade = Deus. Isto não é uma conclusão lógica, mas uma decisão arbitrária. Aceitando esta definição “tirada da cartola” (na realidade, de Descartes), não há como sair do imanentismo. Consequência ética: não há causa final transcendente, logo o bem não é determinante para a vontade, mas determinado pela mesma (pelo desejo). Assim, não há verdadeira liberdade (que é mero conhecimento das causas determinantes), mas um determinismo necessitarista. A filosofia spinoziana é a mostra mais clara de que a filosofia moderna é uma ficção, uma criação fantástica da mente humana. Empirismo e “morte do sujeito” Locke: além do sujeito, só as qualidades “primárias” (número, figura, extensão, movimento, solidez...) são reais. Berkeley: “ser é ser percebido”: só o sujeito espiritual é real. Hume: não existe a substância, só impressões subjetivas (não vejo “a” maçã, só a cor vermelha, a redondez, o sabor doce...), nem o sujeito, só coleções de tais impressões. Sem a relação com a realidade (distinta), o “eu” não pode se conhecer como tal, já que ele não é uma Realidade Absoluta. Desaparecendo a realidade, desaparece a pessoa (que é relativa). Sem a realidade, ou a Razão humana é Deus (Descartes) ou é nada (Hume). A filosofia humeniana é a raiz remota do niilismo contemporâneo, é o anúncio da “morte do sujeito”. Efetivamente, nós não percebemos a “causalidade” ou a “essência”, mas percebemos a “realidade” em sua “funcionalidade” (umas coisas em função de outras), que nos lança à busca racional (além da percepção) do “porquê” causal, e como algo “essenciável” (como algo possivelmente determinado por uma estrutura própria que não se dá, mas que é inquirível). Kant e a filosofia crítica A Crítica da razão [especulativa] pura (teoria do conhecimento que é a física newtoniana segundo Kant). A inacessibilidade da “coisa em si”: o entendimento não pode ultrapassar os fenômenos (dados sensíveis informados pelo “espaço” e “tempo”). “Deus” é o “Ideal” da Razão. Mas: se o “caos de sensações” é organizado pelas “formas da sensibilidade”, que são o espaço e o tempo, então é porque, por mais “caóticos” que sejam, os conteúdos sensíveis são “espacializáveis” e “temporalizáveis”. As explicações de Kant são insuficientes e até arbitrárias (“só conheço as coisas no espaço, logo elas a pressupõem”; “posso pensar o espaço à parte das coisas, logo ele existe antes delas”). A Crítica da razão prática [pura] e o “postulado” do Sumo Bem como fundamento da ação moral, enquanto acordo entre o que se é e o que se deve ser (Idealismo Alemão). A Crítica da faculdade do juízo: sentimento do “sublime”(uma tempestade, uma montanha, por exemplo), acompanhado da impressão do Infinito (Romantismo). Schleiermacher e o sentimento do Infinito “Ela [a religião] não pretende, como a metafísica, explicar e determinar o Universo de acordo com sua natureza; ela não pretende aperfeiçoá-lo e consumá-lo, como a moral, a partir da força da liberdade e do arbítrio divino do homem. Sua essência não é pensamento nem ação, senão intuição e sentimento. Ela quer intuir o Universo, quer observá-lo piedosamente em suas próprias manifestações e ações, quer himpressionada e plenificada, na passividade infantil, por seus influxos imediatos” (Schleiermacher, Sobre a religião). Hegel e o Espírito Absoluto Ponto de partida do Idealismo Alemão é o ponto de chegada da Crítica da Razão Prática: a existência do Incondicionado, do Absoluto. Este é de índole espiritual e se manifesta no tempo e no espaço. O problema não é “existe Deus?”, mas “qual a relação do mundo com Deus?.” A resposta: manifestação de Deus. Deus precisa do mundo para Se conhecer, já que Ele, no princípio, é Pura Indeterminação. Do ponto de vista metafísico: “Ser, puro ser – [...] Ele é a pura indeterminidade e o vazio. – Não há nada a intuir nele, caso seja aqui possível falar de intuir; ou ele é apenas este intuir puro, vazio mesmo. Tampouco é possível pensar algo nele ou ele é igualmente apenas esse pensar vazio. O ser, o imediato indeterminado é de fato o nada e nem mais nem menos do que nada” (Hegel, Ciência da Lógica; grifos da tradução portuguesa). Do ponto de vista gnosiológico: “[...] essa certeza [sensível] se faz passar a si mesma pela verdade mais abstrata e mais pobre. Do que ela sabe, só exprime isto: ele é. Sua verdade apenas contém o ser da Coisa..” (Hegel, Fenomenologia do Espírito; grifos da tradução portuguesa). “O que distinguia a posição de Hegel do panteísmo, em sua própria opinião, era a necessidade racional, que, é certo, não poderia existir sem o mundo enquanto conjunto de coisas finitas, mas que era superior ao mundo no sentido de ter determinado sua estrutura de acordo com suas próprias exigências” (Charles Taylor, Hegel). Excurso: a inteligência e a realidade Inteligência perceptiva: apreende um “conteúdo sensível real (que se auto-pertence no interior da percepção)” [é, na realidade, o fundo de toda outra intelecção, mais do que uma primeira intelecção cronológica]. Inteligência abstrativa 1: separa o conteúdo essencial do conteúdo acidental ou particular (perceba-se que o conteúdo essencial, aqui, é de algo material, ou seja, o “conceito” está transido de materialidade). Inteligência abstrativa 2: separa a pura materialidade dos conteúdos essenciais específicos (aqui se atinge o “espaço” enquanto âmbito da realidade matemática). Inteligência abstrativa 3: separa-se o puro existir (ato de ser) da materialidade. Inteligência judicativa: une e separa os conteúdos abstraídos ou construídos, nas afirmações e negações. Inteligência pensante ou razão: desde o sistema de referência de nossos conceitos e juízos, constrói teorias para encontrar experiencialmente a estrutura profunda (além da apreensão mental) da realidade, de um ponto de vista material ou empírico (conhecimento científico) ou de um ponto de vista transcendental (filosofia ou metafísica).