Ciência e Fé Módulo II – Filosofia Grega e Cosmologia Grega Outubro de 2011 a Fevereiro de 2012 Ciência e Fé Estrutura do Curso I - Introdução II - Filosofia grega e cosmologia grega III - Filosofia medieval e ciência medieval IV - Inquisição e Ciência V e VI - O caso Galileu VII - A revolução científica VIII - Darwin e a Igreja Católica IX - Os Argumentos Cosmológico e Teleológico X - Filosofia da Mente e Inteligência Artificial XI - Milagres e Ciência XII - Desafios ao diálogo entre Ciência e Fé Índice 1. Introdução 2. Os filósofos pré-socráticos 3. Sócrates 4. Platão 5. Aristóteles 6. Cosmologia grega 2 Cosmologia grega Física aristotélica O Cosmos é eterno Toda a coisa que se move (que muda) é movida (mudada) por outra Todo o movimento é contínuo e não há vazio (contra Demócrito e os “indivisíveis” dos atomistas) Os corpos celestes são radicalmente distintos dos terrestres (sublunares) O movimento celestial é circular (esferas de cristal no éter), uniforme e incorruptível (eterno) O movimento terrestre ideal é rectilíneo, vertical e de velocidade constante Quer a esfera das estrelas fixas, quer as esferas dos planetas, são movidas pelo seu “motor imóvel” No topo está o “primeiro motor imóvel”, origem de todo o movimento, regendo todos os motores imóveis O movimento terrestre não ideal deve-se a colisões e à geração e corrupção Os fenómenos de aparente irregularidade nos céus (cometas, supernovas) são meteorológicos Aristóteles (c. 384-322 a.C.) 3 Cosmologia grega Física aristotélica Os quatro elementos que compõem as coisas terrestres: 1. Terra (fria, seca): uma potencialidade para “esfriar” e para “secar” 2. Água (fria, húmida): uma potencialidade para “esfriar” e para “humidificar” 3. Ar (quente, húmido): uma potencialidade para “aquecer” e para “humidificar” 4. Fogo (quente, seco): uma potencialidade para “aquecer” e para “secar” Estes elementos não existem como substâncias mas como “potências” das substâncias Cada elemento pode transformar-se num elemento “vizinho” com quem partilhe uma potencialidade FOGO QUENTE SECO AR TERRA HÚMIDO FRIO ÁGUA 4 Cosmologia grega Física aristotélica Movimento natural: cada corpo em movimento tende para o seu lugar natural O lugar natural de um corpo depende da proporção dos elementos que o compõem 1. Terra em preponderância: tende para o centro do Cosmos (onde está o planeta Terra) 2. Água em preponderância: idem, mas acima da Terra 3. Ar em preponderância: tende para longe da Terra, mas abaixo do Fogo 4. Fogo em preponderância: idem, mas acima do Ar e abaixo da esfera lunar Em diagramas antigos, os elementos surgem idealizados em esferas sublunares concêntricas 5 Cosmologia grega Eudoxo de Cnido, Εὔδοξος (c. 410-408 a.C. – c. 355-347 a.C.) Astrónomo, matemático e filósofo; foi aluno de Platão Apresenta o primeiro sistema astronómico conhecido, tentando de explicar os movimentos planetários Aristóteles adopta e comenta o sistema de Eudoxo (na Metafísica, e na obra “Do Céu”) 1. A Terra está no centro do Universo 2. Todo o movimento celestial é circular (ideia que perdurará até Kepler) 3. Todo o movimento celestial é regular 4. O centro do caminho percorrido por qualquer movimento celestial é idêntico ao centro do movimento 5. O centro de todo o movimento celestial é o centro do Universo 6 Cosmologia grega “Salvar os fenómenos” (“sozein ta phainomena”) A Terra roda diariamente sobre o seu eixo de Oeste para Este (o Sol pôe-se sempre a Oeste) O Sol e todos os planetas (excepto Vénus) possuem essa rotação axial Oeste-Este No contexto da física aristotélica, a Terra está imóvel no centro do Universo Logo, o movimento (aparente) diário dos céus era explicado, pelos gregos, com sendo Este-Oeste Os planetas exteriores também exibem um movimento anual lento Oeste-Este contra o fundo estelar Quando a Terra “ultrapassa” um planeta exterior, esse planeta parece retrogredir de Este para Oeste: Marte retrogride durante 72 dias a cada 25,6 meses Júpiter, durante 121 dias a cada 13,1 meses Saturno, durante 138 dias a cada 12,4 meses Urano, durante 151 dias a cada 12,15 meses Neptuno, durante 158 dias a cada 12,07 meses Este fenómeno explica-se pela maior velocidade angular dos planetas mais próximos do Sol Eudoxo criou um modelo para explicar este fenómeno Eudoxo não atribuía realismo a este modelo, era apenas instrumental, concebido para “salvar os fenómenos” 7 Cosmologia grega “Salvar os fenómenos” (“sozein ta phainomena”) Todos os planetas apresentam um troço de movimento retrógrado no seu percurso Oeste-Este: πλανήτης αστήρ planētēs astēr «astro errante» Como descrevê-lo com base em movimentos circulares uniformes? Eudoxo supôs duas esferas concêntricas rodando em sentidos opostos O eixo de rotação da esfera interior (O-M) está oblíquo ao da exterior (O-N) Juntando mais uma esfera para explicar o nascer e o pôr de um planeta, e outra para o seu movimento anual Oeste-Este, este sistema gera este padrão: 8 Cosmologia grega Cláudio Ptolomeu (90-168 d.C) Astrónomo, matemático, geógrafo e astrólogo, egípcio helenizado, cidadão romano Autor do mais antigo tratado astronómico a chegar aos nossos dias, o Almagesto (c. 150 d.C) Ptolomeu baseou-se amplamente nas observações dos caldeus (Babilónia) «O Almagesto partilhou o destino de muitas outras grandes obras na história da ciência. Foi falado por muitos, mas estudado a sério apenas por poucos. No entanto, foi tão importante para a ciência antiga como foram os Principia de Newton para o século XVII, e não há dúvida de que foi um feito científico maior do que o De revolutionibus [de Copérnico] que obliterou a sua fama, do mesmo modo que Copérnico ofuscou Ptolomeu como um génio astronómico.» - Olaf Pedersen (1920-1997) Cláudio Ptolomeu (90-168 d.C.) Κλαύδιος Πτολεμαῖος 9 Cosmologia grega O Almagesto Requer vários conhecimentos prévios: geometria euclideana, matemática, observação astronómica A obra contém um modelo geométrico que se adapta muito bem a um grande número de observações A grande qualidade da obra é mérito de Ptolomeu, mas também do acervo da Biblioteca de Alexandria O método de Ptolomeu não é indutivo, partindo dos dados para chegar ao modelo, mas vice-versa Seguindo a tradição grega, o método de Ptolomeu é geométrico e não algébrico (como o dos caldeus) O Almagesto só chega à Europa (em traduções do grego ou do árabe) no século XII O modelo ptolemaico ajusta-se aos dados astronómicos pelo uso de epiciclos, deferentes e equantes Epiciclo O planeta gira numa órbita (epiciclo) Deferente O centro do epiciclo gira noutra órbita (deferente) Equante O centro do epiciclo mantém velocidade angular constante em relação ao ponto equante 10 Cosmologia grega Epiciclos, deferentes e equantes 1. Princípio do movimento excêntrico: A Terra não é postulada no centro das órbitas planetárias mas num ponto excêntrico a essas órbitas Função: explicar a variação anual do brilho dos planetas e a (aparente) variação na velocidade 2. Princípio do epiciclo: Cada planeta revolve em torno de um círculo (epiciclo) cujo centro por sua vez revolve em torno de outro círculo (deferente); mais epiciclos podem ser acrescentados se necessário Função: explicar os troços estacionários e retrógrados nas órbitas planetárias 3. Princípio do equante: Cada planeta revolve em velocidade angular constante face a um ponto (o equante) distinto do centro do deferente Função: explicar as variações anuais na velocidade angular dos planetas O equante agravou ainda mais o “divórcio” entre a física aristotélica e a astronomia ptolemaica “Divórcio” Física aristotélica • Pretendia explicar a estrutura da Natureza e a causa dos movimentos na Natureza • “Reinou” durante 19 séculos Astronomia ptolemaica • Pretendia apenas “salvar os fenómenos”, ou seja, calcular os movimentos celestiais • “Reinou” durante 14 séculos Cosmologia grega Modelos heliocêntricos antigos O pitagórico Filolau (470-385 a.C.) defendia que a Terra e uma anti-Terra orbitavam um “fogo central” Heráclides do Ponto (c. 390-310 a.C.) explica a aparente rotação das estrelas num período de 24 horas pela rotação diurna Oeste-Este da Terra Aristarco de Samos (310-230 a.C.) troca o “fogo central” de Filolau pelo Sol Com base em estimações do tamanho do Sol e da Lua e das suas distâncias à Terra, Aristarco intuiu que o Sol seria muito maior que a Terra Por essa razão, Aristarco supôs que a Terra orbitaria o Sol O heliocentrismo grego não teve sucesso porque contrariava o senso comum, porque era incompatível com o aristotelismo e pela falta da paralaxe Aristarco de Samos (310-230 a.C.) Ἀρίσταρχος Só com Copérnico é que o heliocentrismo é recuperado Página (parcial) de uma colecção de astronomia grega compilada no séc. X, contendo a obra de Aristarco, “Sobre os tamanhos e distâncias [do Sol e da Lua]” (Περὶ μεγεθῶν καὶ ἀποστημάτων [ἡλίου καὶ σελήνης]) → Conclusão «É verdade que na história da astronomia, Ptolomeu foi principalmente o Ptolomeu do Almagesto, e por razões bastante óbvias. Foi de longe o seu maior tratado astronómico, no qual todas as teorias planetárias foram construídas através de modelos geométricos cujos parâmetros foram derivados de observações reais. Adicionalmente, o Almagesto foi composto num contexto de rigor disciplinado, definindo um padrão muito elevado para a literatura astronómica séria. Ninguém pode escapar à sensação de profundo respeito e admiração para com uma obra de tal clássica beleza e força. Não admira que o Almagesto tenha conseguido marcar o desenvolvimento da astronomia durante séculos. De facto, o principal trabalho de Ptolomeu deve ser considerado como a fonte derradeira de toda a astronomia no mundo Ocidental até que foi finalmente substituído, através dos esforços de Kepler e Newton.» - Olaf Pedersen (1920-1997) 13