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A Constituição Romana
José Pedro Galvão de Sousa*
Sumário: 1. O legado jurídico de Roma - 2. A idéia de
Constituição - 3. Constituição e Poder constituinte - 4. Roma
não teve uma Constituição escrita - 5. A Constituição romana
não foi uma carta ideológica - 6. O senso do direito natural 7. O senso do direito histórico - 8. A obra dos pretores e a dos
jurisconsultos - 9. O regime político de Roma - 10. Direito
público e Direito privado.
1. O grande legado jurídico de Roma, na história dos povos do Ocidente, é do
seu direito privado, mais precisamente o do direito civil. A expressão romana jus
civile tem um sentido diferente do que modernamente se denomina "direito civil".
Este é uma parte do direito privado - a principal - e dele se destacou o direito
comercial, a princípio com o cunho corporativo do jus mercatorum, e hoje mais
extenso e universalizado, em virtude do desenvolvimento das atividades mercantis.
No direito comercial são aplicados os princípios e normas do direito das obrigações.
O direito civil, como se entende hoje, compreende o direito da família, das coisas,
das obrigações e das sucessões. Para os romanos, o direito civil (jus civile) era o jus
proprium ipsius civitatis, abrangendo a ordem jurídica positiva da Civitas, e assim se
distinguindo do jus naturale e do jus gentium.
Quando dizemos que o principal legado de Roma está no campo do direito
civil, tomamos esta expressão no sentido atual. A teoria geral do direito privado, os
direitos de família, coisas, obrigações e sucessões, eis o que nos vem em linha reta
da ciência jurídica romana e da experiência em que ela teve sempre apoio. Valemnos as lições dos grandes jurisconsultos da época clássica, vale-nos o Corpus Juris
Civilis, sobretudo pelo que nos transmitem na sistemática do direito privado. E não é
possível conhecer bem o direito civil brasileiro sem o conhecimento prévio do Direito
Romano.
Nem por isso, entretanto, deixa de ter interesse para nós o direito público
romano. Numa época de crises políticas em constante seqüência e de modificações
freqüentes na ordem constitucional, torna-se oportuno lembrar o que foi a
Constituição da Roma antiga. Lições preciosas daí decorrem para o legislador
contituinte da atualidade.
2. Antes de mais nada, ressalte-se devidamente o significado de constituição.
Numa significação ampla, essa palavra designa o conjunto dos elementos
essenciais que formam um todo, cuja natureza resulta desses elementos tais como
são compostos e relacionados entre si. Assim é que se fala na constituição de um
corpo ou de um organismo, e na constituição do universo. Aplica-se o termo em se
tratando das sociedades, porque toda sociedade tem a sua constituição, sua
maneira própria de ser. Cada Estado é constituído de um modo que o caracteriza,
donde os diversos regimes políticos e as formas de governo.
2
Os organismos vivos constituem-se conforme as leis naturais biológicas, que
lhes regulam o aparelho circulatório, o respiratório, o digestivo, o sistema nervoso,
etc. As sociedades políticas têm a sua constituição ou maneira de ser determinada
não por tais leis, no plano do determinismo da natureza, mas pela história, ou seja,
pelos costumes e fatos que assinalam suas transformações, sendo de levar-se
sempre em conta a ação do homem com a sua liberdade.
Quanto a esta atuação, há exemplos freqüentemente lembrados. Assim,
Moisés fixou as bases da constituição do povo hebreu, o mesmo fazendo Licurgo
em Esparta, Solon e Dracon em Atenas, Numa Pompílio e Sérvio Túlio em Roma.
Cumpre notar que a boa constituição de uma sociedade não resulta do
encadeamento necessário dos fatos sociais - como sugerem as teses do
evolucionismo ou do organicismo sociológico -, nem de atos humanos por
interferências arbitrárias na vida das coletividades. Estas se formam e desenvolvem
num plano em que se conjugam a natureza e a liberdade, a ordem natural e o direito
histórico, o que o exemplo de Roma nos mostra sobejamente. Há constantes
universais da natureza humana e constantes históricas na vida de cada povo, dando
origem à estruturação da sociedade, a qual, por sua vez, implica certa concepção
geral da vida, ou seja, pressupostos filosóficos e religiosos. Isto leva Olivier Martin a
dizer, na sua Histoire du Droit Français, que cada regime assenta sobre um
postulado (1).
Em sentido estrito, constituição é a lei fundamental do Estado. Durante muito
tempo, usou-se a expressão "leis fundamentais" - como se dava com as monarquias
européias (2) - e depois de promulgada a Constituição dos Estados Unidos da
América, foi que se generalizou o termo "constituição" (3), designando a lei magna.
Então, aos regimes absolutistas, baseados na vontade discricionária do
detentor do poder, se opôs o regime constitucional, que, aliás, na Inglaterra, vinha
de há longos anos, ou melhor, séculos, embora marcadamente consuetudinário e
sem uma lei superior escrita, mas de qualquer forma suscitando o chamado "Estado
de direito" (rule of law).
No sentido amplo de "constituição", tem-se em vista a constituição social, ao
passo que no sentido estrito de "lei fundamental do Estado", é da constituição
política, especificamente, que se trata. Que entre ambas deva haver uma
correspondência, de tal forma que a constituição política seja um reflexo da
constituição social, foi o que fizeram ver, entre tantos outros, um revolucionário
socialista como Ferdinand Lassalle e um contra-revolucionário tradicionalista como
Joseph de Maistre.
Este último, criticando o abstracionismo constitucional da Revolução
Francesa, pergunta o que é uma constituição, e responde que é a solução do
seguinte problema: "Dando-se a população, os costumes, a religião, a situação
geográfica, as relações políticas, as riquezas, as boas e más qualidades de uma
certa nação, procurar as leis que lhe convenham" (4). E faz ver que a constituição
não há de ser um produto concebido aprioristicamente ou fabricado como se fabrica
um relógio, pois ela não é uma coisa feita pela arte mecânica, e sim obra da
3
prudência legislativa. O legislador prudente não legisla para seres de razão, mas
deve ter os pés firmes no terreno que ele pisa (5).
Note-se, finalmente, que a constituição política costuma ser entendida como
lei de garantias, assegurando os direitos dos indivíduos e dos grupos sociais, como
já haviam sido a Magna Carta britânica, os fueros espanhóis e as cartas de foral dos
concelhos ou municípios portugueses; e lei de estruturação dos poderes políticos,
estabelecendo a divisão dos órgãos do Estado, seus limites, suas respectivas
funções.
3. Por sua vez, Taine, em sua obra clássica Les origines de la France
contemporaine, a respeito da idéia de constituição e criticando também o
constitucionalismo apriorístico, teve as reflexões assim expressas: "Se há no mundo
uma obra difícil, é uma constituição, sobretudo uma constituição completa. Substituir
os velhos quadros nos quais vivia uma grande nação por quadros diferentes,
apropriados e duráveis, aplicar um molde de cem mil compartimentos à vida de vinte
e seis milhões de homens, levantar uma construção harmoniosa, adaptá-la bem,
atender às necessidades de todos e fazer com que todos se possam mover sem
choques, por uma ação como que improvisada mas natural como se fosse uma
rotina antiga, eis aí uma empresa prodigiosa e provavelmente não terá muitas forças
e mal se porá ao abrigo de todas as causas de perturbação e erro. Será preciso a
uma Assembléia, sobretudo a uma Constituinte, segurança e independência, no seu
interior e ordem, além de sangue frio, bom senso, espírito prático, disciplina, sob
condutores competentes" (6).
Depois de ter elogiado a constituição inglesa, vendo nela o admirável espírito
público que tudo conduz, conserva tudo e tudo salva, Joseph de Maistre firma as
seguintes proposições:
1. As raízes das constituições políticas existem antes de toda lei escrita.
2. Uma lei constitucional não é e não pode ser senão o desenvolvimento ou a
sanção de uma preexistente e não escrita.
3. O que há de mais essencial e mais intrinsecamente constitucional, e
verdadeiramente fundamental, nunca é escrito.
4. A fraqueza e fragilidade de uma constituição estão precisamente em razão
direta da multiplicidade dos artigos constitucionais escritos (7).
Tais princípios contradizem a famosa teoria de Sieyès sobre o Poder
Constituinte, vendo na constituição uma criação deste poder a partir do marco zero
da ordem jurídica.
Falar de uma constituição da Roma antiga importa, antes de mais nada,
afastar essa teoria, que passou a servir de base às constituições modernas, uma
vez prevalecente a ideologia que a inspirou. Mas à constituição romana se aplica
perfeitamente o que disseram Taine e Joseph de Maistre a respeito da formação
natural e espontânea das constituições com seu lastro histórico.
4
Acrescente-se ainda que a idéia moderna de constituição faz desta a lei
magna, da qual todas as outras dependem. A constituição traça as balizas de toda a
ordem jurídica positiva. Esta, na perspectiva de Hans Kelsen, forma uma pirâmide,
em cujo ápice está a constituição.
Não se deve procurar no Direito Romano estas precisões de uma técnica
jurídica própria de nossos dias e de pressupostos ideológicos então totalmente
inexistentes.
Cumpre, pois, considerar a constituição romana sem lhe aplicar categorias de
épocas posteriores, e focalizando o tema não só nas perspectivas históricas da
Roma republicana e da Roma imperial, mas sobretudo dentro do que Ihering, em
obra famosa, qualificou de "espírito do Direito Romano".
4. Nesses termos, e atendendo às ponderações que acabam de ser feitas,
compreende-se desde logo que Roma não tenha tido uma constituição escrita.
Aliás, deve-se ter presente que o direito romano se caracteriza precisamente
pelo sentido objetivo do direito, como objeto da justiça. O jus não se confunde com a
lex. Ulpiano, Paulo, Celso, os grandes jurisconsultos romanos, enfim, estiveram
sempre capacitados de que a lei pode expressar o direito, manifestá-lo, reconhecêlo, protegê-lo, sem por isso constituir o direito.
Este é algo de objetivo, independentemente das determinações do legislador,
é o objeto da justiça, que manda dar a cada qual aquilo que é seu (8).
Seguindo a Arnold, Ihering e Seckel, o insigne romanista Fritz Schulz afirma:
"O ‘povo do direito’ não é o povo da lei". E observa que foram sempre os romanos
avessos à codificação, manifestando mesmo reservas quanto à legislação particular
(9).
Por sua vez, o eminente Álvaro D'Ors: "A virtude exemplar do Direito
Romano, pela qual deve continuar sendo estudado na atualidade, consiste em ter
sido fundamentalmente um direito científico, quer dizer, jurisprudencial, e não uma
ordem imposta pelo legislador" (10).
Entretanto, pode-se e deve-se usar a expressão "constituição romana",
mesmo porque não tem sentido querer reduzir a noção de constituição política
simplesmente à modalidade moderna e ideológica, que entrou a predominar depois
da Revolução Francesa. Assim, Oliveira Martins denomina A Constituição o capítulo
II do Livro I de sua História da República Romana. As reformas de Sérvio Túlio são
habitualmente designadas como elementos da "constituição serviana". E na própria
Lei das XII Tábuas se tem querido ver uma espécie de constituição, que, aliás, seria
uma constituição escrita (11).
Considerando a constituição como conjunto de normas referentes à
organização dos poderes públicos e aos direitos dos homens e dos agrupamentos
sociais básicos, tal expressão não cabe à lei decenviral, mas de forma nenhuma se
pode negar à Roma antiga a sua constituição, conforme o conceito vindo já de
5
Aristóteles e que, afinal, equivale aos princípios fundamentais do regime político,
quer se trate da Realeza primitiva, quer da República, quer do Império.
5. Se não foi a constituição romana uma constituição escrita, muito menos foi
uma carta ideológica, tal como passou a suceder depois da Revolução Francesa.
A ideologia é um fenômeno político característico dos tempos modernos. Foi
no século XVIII — na época do Iluminismo — que começaram a se difundir as
concepções da mente levando a planejamentos sociais e políticos oriundos de
concepções muitas vezes meramente fantasiosas, como ocorreu com o Contrato
Social, o estado de natureza e a bondade natural do homem, que das páginas
românticas de Rousseau passaram para os artigos das constituições liberais. Essa
difusão operou-se mediante a propaganda, feita pelas "sociedades de pensamento"
e pela imprensa, antecipando-se à propaganda maciça dos meios de comunicação,
fortalecidos imensamente com os processos da nova tecnologia.
Mesclam-se ideologia e utopia nas concepções modernas, em contraste com
o gênio organizador eminentemente prático dos romanos. O sentido realista,
conjugado com eqüidade, inspiradora tanto dos jurisconsultos como principalmente
dos pretores, deu ao direito em Roma uma profunda vinculação com os interesses
dos homens concretos e da sociedade histórica, de que tantas vezes se afastam as
ideologias e o abstracionismo do direito constitucional moderno.
Por tal motivo, como foi dito de início, o Direito Romano, de importância
capital para bem se compreender o direito privado dos povos modernos, não deixa
de ter igualmente ampla significação no concernente às instituições do direito
público em nossos tempos.
É o que nos faz ver o autor de um vigoroso ensaio de interpretação sobre o
desenvolvimento constitucional da República, Gabrio Lombardi, tecendo as
seguintes considerações preliminares:
"No campo do direito privado, os romanos foram grandes porque fugiram a
construções dogmáticas. Não é a norma jurídica romana que atravessou os séculos,
na sua formulação de um dado momento. É o sentido jurídico romano que subsiste
ainda hoje no mundo, informando o viver civil.
"Igualmente no que diz respeito ao direito público é manifesta a adequação
contínua às novas necessidades. Quando um instituto não corresponde mais aos
escopos pelos quais surgiu, quando uma situação política impede a solução de
certos problemas, o instituto continua a viver mas se estiola, a situação política se
transforma, dando lugar quase imperceptivelmente a uma organização nova. Os
velhos órgãos perdem a vitalidade ou adquirem outra fisionomia, novas instituições
surgem. Ultimado o processo, a constituição se modifica profundamente, torna-se
outra. Mas dificilmente podereis dizer quando se deu a transformação, quais os fatos
específicos que o determinaram" (12).
Ou seja: o realismo e o senso histórico impediram os romanos de se perder
nos sonhos dos devaneios ideológicos.
6
6. Não se há de procurar, na constituição romana, o "postulado" ideológico, o
que não quer dizer, porém, que sejam as normas jurídicas decorrentes
simplesmente do arbítrio das autoridades. Exatamente por terem fundo sentido do
direito como objeto da justiça, estavam os romanos compenetrados de que a ordem
jurídica tem um fundamento que transcende a vontade dos homens, isto é, do titular
do poder que legisla, do povo nos seus comícios, do magistrado em suas
sentenças.
Nada mais significativo, nesse sentido, do que este trecho de Cícero: "Se a
vontade dos povos, os decretos dos chefes, as sentenças dos juízes constituissem o
direito, então, para criar o direito ao latrocínio, ao adultério, à falsificação dos
testamentos, seria bastante que tais modos de agir tivessem o sufrágio e a
aprovação da multidão. Se o poder e as opiniões dos insensatos se revestem de tal
força, que lhes seja dado modificar a natureza das coisas, por que motivo não
poderão os mesmos decidir que o que é mau e pernicioso seja tido por bom e
salutar? Ou por que a lei, transformando a injúria em direito, não poderá converter o
bem no mal? É que para distinguir as leis boas das más outra norma não temos
senão a da natureza" (13).
Nessa e em numerosas outras mensagens, Cícero proclama o direito natural
como fundamento do direito positivo. Tem-se assinalado a influência da filosofia
grega — particularmente do estoicismo — no pensamento do Orador romano.
Filósofo e jurista, magistrado e advogado, político e homem de letras, sua voz não
foi uma voz isolada.
Os jurisconsultos admitem, sem discrepância, além do jus civile — expressão
que designa, em Roma, não apenas o direito privado, como o direito civil em nossos
dias, mas todo o direito da Civitas, isto é, a ordem jurídica positiva —, o direito
natural (jus naturale) e o direito das gentes (jus gentium). O direito, para eles, não é
simplesmente o que está determinado pelos legisladores e pelos magistrados
(direito positivo, jus civile), pois decorre de uma fonte superior, dos princípios
alcançados pela razão humana ante a ordem do universo e das sociedades. Alguns
admitem a divisão tricotômica (direito natural, civil e das gentes), outros preconizam
apenas a dicotomia direito civil-direito das gentes, mas entendendo este último — o
jus gentium —, consoante o faz Gaio, como o direito estabelecido pela razão natural
entre todos os povos (14). Este conceito significa o reconhecimento do direito
natural, de que o direito das gentes é expressão.
Há uma ordem natural no universo ou no cosmos — idéia vinda da filosofia
estóica — e também nas sociedades e na própria natureza humana. Por isso, o
furto é condenável, o adultério é sempre contra o direito, a falsificação dos
testamentos é um ato criminoso. É o que afirma Cícero no texto acima reproduzido.
É a inserção do direito na ordem moral. É o postulado de uma constituição natural
das sociedades, cuja alteração pelas leis as tornam iníquas. Numa palavra, é a
distinção entre jus e lex. E aqui alcança toda a sua significação a lição de Schulz: os
romanos foram os homens do direito, e não das leis.
7. A compreensão do direito dentro de uma ordem natural leva a se
considerar na família a primeira das sociedades, a mais natural, e no casamento
7
não somente uma conjunção de corpos, como se dá com o animais, mas um
"consórcio" que, entre seres destinados a uma finalidade transcendente, estabelece
uma união perene que não está à mercê das paixões e da vontade dos cônjuges.
A ordem natural procede de uma ordenação de Deus, autor da natureza, e
por isso mesmo o casamento é uma instituição divina. É o que está bem manifesto
na definição de casamento dada por Modestino: "união do varão e da mulher, num
destino comum por toda a vida, e numa comunicação do direito divino e do direito
humano" (15).
A constituição da família precede a do Estado (Civitas). Seu sentido religioso
e sua origem natural foram objeto do clássico livro de Fustel de Coulanges sobre as
instituições sociais e políticas da antiga Roma (La Cité antique).
Dá-se a formação histórica da sociedade romana perfeitamente dentro
daquela ordem natural ressaltada posteriormente pelos jurisconsultos. O homem é
visto primeiramente na família e depois como cidadão ou membro da Civitas. Está
integrado nos grupos sociais que constituem a sociedade orgânica. Trata-se de uma
constituição natural, não de uma constituição baseada no homem como ser isolado,
o homem abstrato de Rousseau, o homem no estado da natureza, os indivíduos
soltos como grãos de areia no todo social.
Faz ver D'Ors que os romanos tiveram sempre diante de si o homem
concreto na vida em sociedade, inseridos na família e noutros agrupamentos, desde
a gens dos primeiros tempos até às associações voluntárias que foram surgindo
com o desenvolvimento da Civitas. O ilustre professor de Direito Romano na
Universidade de Navarra nos diz que o romano clássico "não considera sujeitos de
direito os indivíduos isolados, mas leva em conta a situação jurídica (status) de cada
um dentro da própria família para o reconhecimento de sua relativa personalidade e
correspondente capacidade" (16).
O status da pessoa coloca-nos ante o "homem situado" — para usar a
expressão do constitucionalista francês Georges Burdeau — e nos afasta das
concepções que tomam por ponto de partida o homem abstrato, como ocorre
freqüentemente no pensamento jurídico moderno desde Rousseau, Sieyès e outros
teóricos da democracia individualista.
8. Não se deve pensar que o direito natural tenha sido, entre os romanos,
simplesmente resultado da especulação dos filósofos, assim se pretendendo
explicá-lo, em Cícero, por influência da filosofia grega. Pelo contrário, tiveram os
jurisconsultos de Roma um sentido eminentemente prático do direito natural, o que
bem pode verificar-se na atuação dos pretores.
O pretor foi o magistrado que deu vida ao direito em Roma. Cabendo-lhe
formular, nos seus editos anuais, as normas segundo as quais deveriam resolver-se
os litígios entre os cidadãos romanos (pretor urbano) e entre os romanos e os
estrangeiros ou os estrangeiros entre si (pretor peregrino), foram eles que
adaptaram o direito aos fatos e às circunstâncias, servindo-se para isso da
eqüidade, com que amenizavam o rigor do direito antigo, excessivamente formalista
e rígido. Dessa forma humanizaram o direito; a eqüidade era um abrandamento do
8
direito escrito tendo em vista a realização da plena justiça, muitas vezes
comprometida pelo rigor da lei (summum jus, summa injuria).
Os pretores, com seus editos, e os jurisconsultos, com suas respostas ou
pareceres (responsa prudentium) foram, por excelência, os construtores do Direito
Romano. Partindo do costume, chegou este ao seu maior esplendor nos séculos
que correspondem ao final da República e à primeira fase do Império. É o período
clássico, em que a lei não chega a ocupar o lugar de maior destaque, que lhe
caberá no Baixo Império, e o poder criador dos pretores entra em declínio, após o
Edito Perpétuo de Sálvio Juliano.
É então que a lei escrita, como fonte de direito, começa a predominar. Antes,
as fontes principais eram as respostas dos prudentes (donde a jurisprudência), os
editos dos pretores, o costume, não obstante a Lei das XII Tábuas e outras leis
esparsas que iam emanando dos comícios, sem falar nas decisões do Senado
(senatus consulta). As constituições imperiais, leis dadas pelo príncipe (o imperador)
— constitutiones principum — vão crescendo em importância com o decurso do
tempo, até se chegar à grande codificação de Justiniano no século VI (o Corpus
Juris Civilis, que abrange as leis reunidas no Codex e as novas leis dadas por
aquele Imperador, ou Novellae, mas cuja parte principal, que imortalizou o Direito
Romano, está nas sentenças e nas definições dos jurisconsultos, que foram o
Digesto ou Pandectas).
Nesse monumental conjunto doutrinário e legislativo delineiam-se os traços
da constituição romana, cujos princípios informam o regime político de Roma, ou
melhor, os regimes que ali se sucederam desde a Realeza primitiva até o Império,
passando pela República.
9. Qual foi esse regime?
O rei, uma vez destituído, pela revolta do patriciado romano contra Tarquínio,
o Soberbo, foi substituído por dois cônsules, anualmente eleitos, cuja autoridade era
temperada pela dos demais magistrados. Quando Otávio, vencedor de Marco
Antônio, se firmou no poder, começou a absorver as funções dos demais
magistrados. Surgiu, assim, o Império. O imperador era, a bem dizer, um ditador
vitalício. A ditadura havia sido uma forma extraordinária de magistratura, legalmente
instituída pelo prazo de seis meses, nas ocasiões de grave comoção interna ou
agressão externa, a requererem uma autoridade dotada de poderes excepcionais.
Otávio, com o nome de Augusto, vinha modificar substancialmente o regime.
A divisão das formas de governo feita por Aristóteles foi de conhecimento dos
pensadores e juristas romanos, que se preocuparam com a caracterização do
regime sob que viviam e de sua constituição. Naquela divisão, a monarquia, a
aristocracia e a democracia (politeía, conforme a expressão aristotélica) eram
apontadas como formas paradigmáticas, não só pelo número de pessoas exercendo
o poder soberano (um só na monarquia, os mais capazes na aristocracia, o povo na
democracia), isto é, por um critério quantitativo, mas também por valorização
qualitativa.
9
Sob este último aspecto, a monarquia representa o ideal da unidade e
continuidade do poder; a aristocracia, a formação de uma elite dirigente mais
credenciada para as funções do governo; e a democracia, a participação de todo o
povo, permitindo melhor satisfazer às aspirações dos diversos grupos e classes. O
melhor regime seria, então, o que reunisse as vantagens dessas três formas. E foi o
que os mais otimistas pretenderam ter encontrado em Roma.
Assim, Políbio vê, nas prerrogativas de que fruiam os cônsules, o Senado e o
povo, a realização do regime misto ideal, havendo algo da monarquia no consulado,
da aristocracia no Senado e do governo popular ou democrático nos comícios ou
assembléias do povo, que tinham seus representantes no tribuno. Por sua vez,
Cícero, no livro I do De Republica, escreve: "Não há nenhuma outra forma de
governo que, pela sua constituição, sua organização, suas regras, possa ser
comparada ao que nossos pais nos transmitiram e nossos antepassados
estabeleceram".
Examinando-se atentamente o que foram as instituições políticas romanas
nas três fases da sua história, verifica-se, porém, que a realidade não corresponde
ao otimismo de Políbio e Cícero.
Com efeito, esboçou-se a monarquia na realeza primitiva, mas o poder era
controlado pela aristocracia dos patrícios, cuja força se fez sentir na deposição do
último rei. As reformas de Sérvio Túlio descontentaram os patrícios, devendo nisto
ver-se a causa da expulsão de Tarquínio, o Soberbo. Proclamada a República, essa
força continuou a atuar, o prestígio do Senado era incontrastável e a duras penas foi
a plebe arrancando dos patrícios o reconhecimento dos seus direitos. Ademais, o
poder dos dois cônsules, renovado anualmente, muito longe estava de assegurar a
unidade e continuidade, vantagens próprias da monarquia.
Vem o Império. Não se deve confundir o Império Romano com a monarquia,
no sentido próprio desta expressão. A monarquia se realiza plenamente pela
vitaliciedade e hereditariedade do poder. É verdade que na época áurea de Roma
— a dos Antoninos — se tentou estabelecer a transmissão hereditária do poder,
mas foi uma experiência passageira. Daí por diante o poder supremo ficaria nas
mãos dos grupos dominantes, especialmente dos militares (a guarda pretoriana
fazia e desfazia imperadores). Quanto ao povo, não tinha representação efetiva,
nem força para se opor às oligarquias que se iam, assim, constituindo.
Note-se, entretanto, que os romanos, conduzidos por grande bom senso,
souberam adaptar essas formas às circunstâncias de cada época e às mais
urgentes necessidades do povo. Assim foi que a passagem da Realeza para a
República não suscitou grandes comoções sociais, e a transformação das
instituições republicanas se fez com a habilidade com que Otávio Augusto soube
concentrar em suas mãos as atribuições de diversas magistraturas, sem uma
derrubada violenta do regime existente. Eis por que, em certas épocas, Roma dá a
impressão de estar realizando aquele regime misto idealizado nas páginas do
Políbio e Cícero. Na verdade, prevaleceram as oligarquias, e no Império, em vez da
monarquia no sentido preciso da palavra, o que houve foi, para usar a expressão
proposta por Max Weber, a monocracia baseada na força militar.
10
10. A constituição política é hoje objeto precípuo do direito constitucional,
ramo do direito público no qual se encontram as diretrizes ordenadoras dessa parte
da ciência jurídica e mesmo do direito privado. Sendo este anterior àquele, se
consideradas suas instituições cronologicamente, e partindo da constituição da
família, por aí já se vê que o direito privado tem também algo de constitucional. Não
se deve, pois, fazer do direito público e do direito privado dois compartimentos
estanques. Mesmo porque há no direito privado instituições que obedecem ao
interesse público, como é o caso típico do casamento, e freqüentemente se aplicam,
no direito público, categorias de direito privado, como se dá com os princípios
relativos às sociedades e aos contratos transpostos do direito civil para o direito
administrativo.
Justamente por conter relevantes normas de direito público e de direito
privado, foi a Lei das XII Tábuas qualificada de lei constitucional, pelos estudiosos
do Direito Romano.
Note-se, porém, que os romanos souberam muito bem distinguir entre o
âmbito desses dois grandes ramos da ciência jurídica, definidos com clareza por
Ulpiano, à base da distinção entre o interesse público e o interesse privado (17).
Sendo a centralização estatal um característico das sociedades antigas, que
não conheceram o pluralismo jurídico florescente da Idade Média, nem por isso o
Direito Romano significou a absorção do direito privado pelo direito público, tal como
ocorreu em alguns povos do Oriente. Isto se deve ao caráter orgânico da sociedade
romana e, da parte dos juristas, ao seu senso do direito natural e das realidade
históricas. O direito constitucional romano teve por ponto de partida a constituição
da família, e é no direito civil dos povos modernos que se perpetua o gênio jurídico
de Roma (18).
(1) Obra citada, E. Montchrestien, Paris, 1951, p. 334.
(2) Ver, neste sentido, Bernard Basse, La Constitution de l'ancienne France, DMM,
Paris, 1986. O autor estuda os princípios e leis fundamentais da realeza na França,
de Clovis a Luiz XVI.
(3) A Constituição norte-americana de 1787 foi a primeira constituição escrita, a
menos que se considere como tal o Instrument of Government de Cromwell (1653),
aliás instituindo um regime ditatorial. Com a Revolução Francesa de 1789 teve início
o constitucionalismo difundido nos países do Velho e do Novo Mundo. Desde a
Declaração dos Direitos daquela Revolução se patenteiam os "postulados"
ideológicos, para usar a expressão de Olivier Martin: o dogma da vontade do povo, o
pressuposto da separação de poderes e a declaração dos direitos.
(4) Considérations sur la France, VI.
(5) Do mesmo autor, além da obra citada na nota anterior: Essai sur le principe
générateur des constitutions politiques e Étude sur la souveraineté. Cf. José Pedro
Galvão de Souza, Réfléctions sur l'idée de constitution et la signification sociologique
du droit constitutionnel (publicado no Jahrbuch des Oeffentlichen Rechts, dirigido
pelo prof. Gerhard Leibholz).
(6) H. Taine, Les origines... Hachette, Paris, 1904 vol. III, pp. 169-170.
(7) Joseph de Maistre, Principe générateur... VII e IX.
11
(8) Ulpiano, D. 1,1,10: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique
tribuendi. Para Paulo, o jus é quod semper aequum ac bonum est (D. 1,1,11). E
Celso, acolhido por Ulpiano (D 1,1,1) considera o direito ars boni et aequi.
(9)F. Schulz, I principii del Diritto Romano, trad. Vicenzo Arangio Ruiz, Sansoni,
Florença, p.6.
(10) Álvaro D'Ors, Derecho Privado Romano, 5ª ed. revista, Ediciones Universidad
de Navarra, S.A., 1983, p.27.
(11) Cf. Silvio A. B. Meira, A Lei das XII Tábuas, fonte do direito público e privado,
Forense, Rio de Janeiro.
(12) Gabrio Lombardi, Lo sviluppo constituzionale dalle origini alla fine della Repubblica, Casa Editrice Carlo Colombo, Roma, p.5.
(13) De legibus, I, 16.
(14) D. 1,1,9: Quod naturalis ratio inter omnes gentes constituit.
(15) D. 23,2,1: Nuptiae sunt conjunctio maris et feminae et consortium omnis vitae,
divini et humani juris communicatio.
(16) Álvaro D'Ors, op. cit. p.269.
(17) D. 1,1,3: Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod
ad singulorum utilitatem.
(18) A presente síntese é o resultado da pesquisa planejada pelo autor, em torno da
organização política de Roma, a prosseguir em estudo mais alentado sobre o direito
público e o direito privado, incluindo um confronto com a sistemática moderna.
José Pedro Galvão de Sousa foi Professor Titular de Teoria do Estado da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tendo falecido em março de 1992. Na
Faculdade de História, Direito e Serviço Social da UNESP - Campus de Franca (SP),
no período de março de 1979 a dezembro de 1986, lecionou Política Social para o
Curso de Serviço Social e depois Direito Romano, para o Curso de Direito.Escreveu
dezenas de obras, dentre as quais se destacam: Direito Natural, Direito Positivo e
Estado de Direito (1977); O Estado tecnocrático (1973); O totalitarismo nas origens
da moderna Teoria do Estado (1972); Da Representação Política (1971); A
historicidade do Direito e a elaboração legislativa (1970); Iniciação à Teoria do
Estado (1967); Capitalismo, Socialismo e Comunismo (1965); Raízes Históricas da
Crise Política Brasileira (1965); Socialismo e Corporativismo em face da Encíclica
“Mater et Magistra” (1963); Introdução à História do Direito Político Brasileiro (1962);
Política e Teoria do Estado (1957); Conceito e natureza da Sociedade Política
(1949.
O presente texto do prof. José Pedro Galvão de Sousa expressa o último
trabalho que produziu nesta Faculdade, como resultado de Projeto Trienal de
Pesquisa, e foi recolhido em seu processo de contratação, arquivado nesta
Faculdade. Trata-se, assim, além de homenagear um dos mais ilustres professores
e filósofos do Direito de São Paulo, também resgatar sua memória, para que as
novas gerações de estudantes e professores, do Serviço Social e do Direito,
conheçam um pouco de seu pensamento e sua cultura.
Prof. Carlos Aurélio Mota de Souza, professor adjunto de
Introdução à Ciência do Direito da FHDSS de Franca.
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