Ética Prática

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Aulas 2 e 3
Introdução à Filosofia: Ética
FIL028
http://www.introetica.ecaths.com
Mote
“A Filosofia Moral começa com a questão:
como eu deveria viver? A sabedoria moral
começa com o reconhecimento de que eu
posso ainda não saber a resposta.”
(Shelly Kagan, Ética Normativa, p.303)
• O que é a ética ou moral? Em particular, em
que consiste o estudo da ética do ponto de
vista da filosofia?
2. Ética Normativa e Ética Prática
• Ética Normativa: Discurso de valor moral que se
preocupa com as questões mais gerais (e com a
formulação dos princípios mais gerais) sobre o que é
certo ou errado, bom ou mau. Dependendo do foco
da teoria ética, o objeto de investigação e de
valoração (o “algo” a que se aplicam os conceitos
‘certo’, ‘errado’, ‘bom’ ou ‘mau’) poderá ser atos,
estados de coisas, pessoas ou virtudes, etc. Neste
sentido, a ética normativa é uma investigação de
primeira-ordem sobre a natureza do discurso moral.
Ética Normativa e Ética Prática (Cont.)
• Ética Prática: Discurso de valor moral que se
preocupa com questões mais específicas (ou
particulares) sobre o que é certo ou errado, bom ou
mau. Por exemplo, questões sobre situações práticas
consideradas “difíceis” suscitam uma série de
reflexões particulares acerca do aborto, eutanásia,
direitos de minorias, liberdade de expressão, pena
capital, liberdades sexuais, políticas governamentais
acerca da distribuição de bens, justificação de
guerras, direitos humanos, preservação do meio
ambiente, etc.
3. Ética Normativa e Meta-ética
• Meta-ética: Discurso (teórico) sobre a
natureza e status dos juízos morais. Aqui
incluem-se questões ontológicas, semânticas,
epistemológicas e psicológicas sobre o que
está envolvido no discurso moral. Neste
sentido, a meta-ética é uma investigação de
segunda-ordem sobre a natureza do discurso
moral.
P. Singer, Ética Prática
O que a ética NÃO é:
(1) Uma série de proibições ligadas ao sexo. (pp.9-10)
(2) Um sistema ideal de grande nobreza na teoria, mas
inaproveitável na prática. (pp.10-11)
(3) Algo inteligível somente no contexto da religião.
(pp.11-13)
(4) Relativa ou subjetiva. (pp.12-16)
P. Singer, Ética Prática
Um sistema ideal de grande nobreza na teoria,
mas inaproveitável na prática:
• “Um juízo ético que não é bom na prática
deve ressentir-se também de um defeito
teórico, pois a questão fundamental dos juízos
éticos é orientar a prática.” (Singer, p.10)
P. Singer, Ética Prática
Parece fazer sentido distinguir duas categorias básicas dentre
nossas capacidades intelectuais:
• Por um lado, somos capazes de descobrir verdades sobre o
mundo físico e descrevê-lo. Por outro lado, somos capazes de
descobrir verdades morais e agir de acordo com elas ou
prescrevê-las a outrem.
• Enquanto que verdades do mundo físico não têm diretamente
uma conexão com a ação, verdades morais parecem fazer
sentido apenas quando as entendemos relacionadas a ações
ou à capacidade de influenciar a vontade humana.
P. Singer, Ética Prática
• Uma outra razão apresentada por Singer para a desconfiança
de que a ética, como teoria, tenha genuína aplicabilidade
prática:
Se possuirmos um sistema ético constituído apenas de princípios
muito gerais, é provável que nos deparemos com situações
concretas em que tais princípios sejam insuficientes para lidar
com as complexidades da situação ou simplesmente que entrem
em conflito. Assim, poderia, à primeira vista, parecer que
princípios morais muito gerais são inaplicáveis em várias
circunstâncias, pois, dada a sua generalidade, não possuiríamos
os recursos conceituais necessários para resolver determinados
dilemas morais.
Exemplos:
• É comum encontrarmos no discurso ético os seguintes dois
princípios como fundamentais: deve-se respeitar promessas; devese ajudar um necessitado.
• Mas o que fazer se, a caminho de um jantar com um amigo (a quem
lhe fiz esta promessa), deparo-me com um acidente automobilístico
que (segundo acredito) uma intervenção de minha parte poderia
salvar vítimas do mesmo?
• “A Escolha de Sofia”
P. Singer, Ética Prática
Algo inteligível somente no contexto da religião:
• Alguns autores propuseram que a ética ou moralidade
não poderia existir sem a religião. “Se Deus não existisse,
tudo seria permitido.” (O romance de Dostoiévski, “Os
Irmãos Karamazov”, tem esta ideia como mote e é um
bom exemplo dos seus desdobramentos.)
• Neste sentido, tais autores sugeriram que ‘bom’ significa
‘aquilo que é aprovado por Deus’.
P. Singer, Ética Prática
• Um argumento clássico contra tal proposta pode ser
encontrado em Platão (Eutífron).
• Platão pergunta: algo é bom porque Deus assim
prefere ou Deus prefere este algo porque é bom?
• Platão sugere que Deus aprova algo porque este algo
é realmente bom. Portanto, não é a vontade divina
que torna tal algo bom.
P. Singer, Ética Prática
• Se ‘bom’ significasse apenas ‘aquilo que é a vontade divina’,
uma razão para agir moralmente poderia ser formulada nos
seguintes termos: uma vida ética seria recompensada com
uma vida eterna de bem-aventurança.
• Mas esta razão parece não compreender o genuíno ponto da
moralidade. Devemos obedecer ao código moral por seu
próprio mérito.
• À primeira vista, não precisamos de uma base religiosa ao
nosso discurso moral, tanto para sermos morais quanto para
chegarmos a um código moral.
P. Singer, Ética Prática
É relativa ou subjetiva:
(i) A uma sociedade (comunitarismo)
ou
(ii) A um indivíduo (subjetivismo).
P. Singer, Ética Prática
(i) A uma sociedade:
• Ex. Marxismo (pp.13-14):
O marxismo defende que a moralidade de uma sociedade é relativa
à classe econômica dominante. Quando o marxismo surgiu, a classe
dominante em questão incorporava os valores das sociedades
burguesa e aristocrática. O marxismo se insurge contra tais valores.
Mas qual o sentido dos ataques marxistas a tais valores, se a
medida para todo juízo de valoração depende da classe econômica
dominante? Em outros termos, por que preferir os valores
proletários ou comunistas aos valores burgueses e aristocráticos?
P. Singer, Ética Prática
• Em última instância, a sugestão do marxismo parece
ser que uma sociedade ideal seria uma sociedade
sem disputas de classe. Ao proferir que uma tal
sociedade é ideal, o marxista está proferindo um
juízo moral. Mas, a menos que ele seja capaz de
mostrar—por um processo objetivo de justificação
de sua crença—que a sociedade ideal é aquela em
que não há disputas de classe, e não aquela que é
regida por valores burgueses e aristocráticos, a sua
atitude moral parecerá ser inteiramente arbitrária.
P. Singer, Ética Prática
• “Quem quer que já se tenha debruçado sobre
uma questão ética difícil sabe muito bem que
o fato de nos dizerem o que é que a sociedade
acha que devemos fazer não ajuda ninguém a
se resolver por essa ou aquela solução.
Precisamos tomar a nossa própria decisão.”
(Singer, p.14)
P. Singer, Ética Prática
• “Se a nossa sociedade condena a escravidão,
ao mesmo tempo em que outra sociedade a
aprova, não temos nenhuma base a partir da
qual escolher entre essas convicções
antagônicas. Na verdade, não existe
realmente conflito numa análise relativista
(...). Por que discutir? É óbvio que ambos
poderíamos estar falando a verdade.” (p.14)
P. Singer, Ética Prática
• Problema (para o relativismo): como explicar o
pensamento do não-conformista com a moral de sua
sociedade?
• Em um sistema relativista daquela natureza, alguém
que vive em uma sociedade escravocrata e condena
a escravidão está, em última instância, cometendo
um erro factual sobre o uso da linguagem (moral).
Uma pesquisa de opinião poderia mostrar seu erro.
P. Singer, Ética Prática
• Uma reforma genuinamente moral pareceria impossível, pois o
reformador estaria necessariamente cometendo um erro factual
(linguístico). Portanto, a tentativa de dialogar com os outros membros da
sua sociedade seria em vão, já que eles estariam usando as palavras com
significados distintos.
• O reformador moral teria que ser, na verdade, um reformador linguístico.
Ele teria que convencer os outros membros da sociedade a usar termos
morais com um significado distinto—alterando o critério de aplicabilidade
dos termos em questão. Para tal, ele aparentemente não precisaria de um
argumento moral que convencesse, por vias argumentativas e racionais,
que os seus concidadãos estão cometendo um erro moral. Bastaria a ele
que conseguisse persuadir (linguisticamente) seus concidadãos a usar
termos morais com um outro significado. Assim, um ditador que
promovesse uma reforma linguística em uma sociedade talvez pudesse ser
bem sucedido naquela tarefa.
P. Singer, Ética Prática
(ii) a um indivíduo:
• Em um sentido, todas as críticas anteriores ao
relativismo cultural se aplicam ao relativismo
subjetivo.
• Afinal, o que antes se configurava como um embate
entre duas sociedades agora se confira como um
embate entre dois indivíduos.
P. Singer, Ética Prática
Mas há uma dificuldade adicional com o relativismo
subjetivo:
• Seria possível, em princípio, que houvesse tantos
sistemas morais quanto há indivíduos.
• A possível convergência entre sistemas morais seria
inteiramente contingente ou casual, e não resultado
de uma concordância acerca de uma argumentação
propriamente moral.
P. Singer, Ética Prática
• Mas isto parece descaracterizar totalmente o que
entendemos por ética ou moral.
• O relativista cultural tem a vantagem de ainda ser capaz de
apelar para algo mais consistente, que envolve um sentido
coletivo ou comunitário (característico da ética) de decisões
práticas—que são expressas, pelo relativista cultural, pelos
hábitos e comportamentos uma determinada formação
cultural. Mas o relativista subjetivista não parece precisar
raciocinar comunitária ou coletivamente para descobrir aquilo
que tem valor moral, pois basta que ele faça uma consulta a
seus estados mentais, por um procedimento introspectivo.
P. Singer, Ética Prática
O que a Ética é:
• Quando falamos de ética, falamos sobre como agir
levando em consideração os outros. À primeira vista,
isto requer mais do que simplesmente voltar nossa
atenção para nossos estados mentais, para nossos
interesses pessoais, para os interesses de nossa
comunidade. Ao proferir juízos éticos, estamos
aparentemente falando de uma perspectiva neutra:
que incorpora as categorias de universalidade,
imparcialidade e objetividade.
P. Singer, Ética Prática
• A justificação de Macbeth para o assassinato de Duncan:
“ambições grandiosas”. “Para que eu possa ser rei em seu
lugar.”
• “Para serem eticamente defensáveis, é preciso demonstrar
que os atos com base no interesse pessoal são compatíveis
com princípios éticos de bases amplas, pois a noção de ética
traz consigo a ideia de alguma coisa maior do que o
individual. Se vou defender a minha conduta em bases éticas,
não posso mostrar apenas os benefícios que ela me traz.”
(Singer, p.18)
P. Singer, Ética Prática
• “(...) a justificação de um princípio ético não se pode
dar em termos de qualquer grupo parcial ou local. A
ética se fundamenta num ponto de vista universal
(...). [A]o emitirmos juízos éticos extrapolamos as
nossas preferências e aversões. De um ponto de vista
ético, é irrelevante o fato de que eu sou o
beneficiário de, digamos, uma distribuição mais
equitativa da renda, e você o que perde com ela.”
(pp.19-20)
Noções Centrais da Ética Normativa
(Filosófica)
•
•
•
•
Generalidade teórica
Imparcialidade
Universalidade
Objetividade na aplicabilidade dos conceitos
centrais da ética: Bem (Bom) e Certo—e suas
negações exatas, Mal (Mau) e Errado.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Generalidade teórica:
As questões centrais com as quais a ética normativa
lida são gerais e abstratas. O que se almeja com a ética
normativa é a formulação geral de certos princípios
éticos básicos (a partir dos quais outros princípios
possam ser derivados) e a teoria aplicada na prática.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Imparcialidade:
Em condições normais, nenhum indivíduo (passível de
valor moral) tem um status privilegiado com relação a
outro indivíduo. Em outros termos, em juízos morais,
devemos ir além de nossos interesses pessoais e
atribuir aos outros o mesmo peso que atribuímos a
nós.
Noções Centrais da Ética Normativa
Imparcialidade:
Exs.:
“Cada um conta como um e não mais que um.”
“Faça ao outro aquilo que você gostaria que ele fizesse
a você.” “Não façais aos outros aquilo que não quereis
que vos façam.” “Tudo aquilo que quereis que os
homens vos façam, fazei-o vós a eles.”
“Ame o próximo assim como você ama a si mesmo.”
Noções Centrais da Ética Normativa
• Universalidade:
Casos similares (ou idênticos) em suas propriedades
universais relevantes devem ser julgados da mesma
maneira—isto é, similarmente ou identicamente.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Universalidade:
Se uma situação apresenta as características universais
A, B e C e você a julga algo correto em função destas
características, ao se deparar com outra situação em
que as mesmas características universais A, B e C
ocorrem (ou são instanciadas), você deve julgar esta
nova situação igualmente como algo correto—sob o
risco de estar contradizendo-se.
Noções Centrais da Ética Normativa
Universalidade X Particularidade
Generalidade X Especificidade
• Vários princípios morais são universais e gerais. Por exemplo, “Não
minta”, “Cumpra suas promessas”, “Não mate”, “Não roube”.
• Mas um princípio moral pode ser universal e altamente específico.
Por exemplo, ‘cumpra suas promessas exceto em situações em que
A, B e C não ocorram e D, E e F ocorram’ pode ser um princípio
universal e específico.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Universalidade não está em contraposição a
especificidade, mas apenas a particularidade.
• Particularidade é a categoria segundo a qual, no
contexto da moralidade, não haveria como
sistematizar em termos universais os princípios
morais. Cada situação concreta e particular do
mundo extinguir-se-ia em si mesma e resistiria à
aplicabilidade de princípios morais universais.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Poderia ser o caso que um princípio universal
fosse formulado de maneira tão específica que
ele valesse apenas para as circunstâncias que,
por exemplo, acometem a mim
(individualmente) ou que acometem um único
local, como BH.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Ainda assim, a despeito de sua grande especificidade (e complexidade), o
princípio moral poderia ser universal se aquilo que é relevante para a
formulação do princípio são certas propriedades universais da
circunstância em questão, e não suas propriedades particulares ou
individuais. Assim, o fato de eu ser um indivíduo e BH ser uma cidade
individual não seriam propriamente as características relevantes para a
formulação de tal princípio. Seria relevante apenas uma descrição minha e
de BH em termos universais. Portanto, ainda que possa ser o caso que
apenas as nossas situações instanciem tais propriedades universalmente
relevantes, o fato de ser eu ou BH (como indivíduos) não seria relevante.
Se alguma outra pessoa ou cidade se encontrasse na mesma situação em
que eu e BH nos encontramos, o mesmo juízo (moral) teria que ser
proferido acerca deles.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Podemos ir mais além e dizer que, se fôssemos capazes de fazer uma
distinção entre níveis de pensamento moral, poderíamos até mesmo
incorporar “parcialidades” em nosso sistema moral.
• Por exemplo, talvez seja mais adequado, do ponto de vista neutro
(universal e imparcial) da moralidade, que cada um cuide
(individualmente) de sua família e seu jardim, e tenha assim deveres mais
“fortes” com relação a estes do que outros seres humanos que não estão
naquela relação de pertencimento.
• A despeito disto, ainda que, em um nível, nosso pensamento moral fosse
parcial, tal parcialidade talvez pudesse ser justificada apenas a partir de
um outro nível, que incorporaria um ponto de vista universal e imparcial.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Objetividade:
Bem (Bom) e Certo—e suas negações exatas,
Mal (Mau) e Errado—como noções objetivas.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Objetividade:
Dizer que tais noções podem ser aplicadas
objetivamente significa dizer que elas são
passíveis de verdade ou falsidade. Assim, seria
possível, a princípio, ter disponível um
argumento para justificar uma determinada
aplicação de uma daquelas noções.
Noções Centrais da Ética Normativa
Há dois sentidos de ‘objetividade’:
• Em um sentido, até mesmo o relativista, por
exemplo, tem um critério objetivo (que
implica verdade ou falsidade) para avaliar
juízos morais. Se o relativismo em jogo for
cultural, então o critério será aquilo que uma
determinada cultura profere como tendo valor
moral.
Noções Centrais da Ética Normativa
• Mas ‘objetividade’ pode ser entendida em um
sentido mais robusto:
• Nesse sentido, não bastaria apenas que juízos morais
fossem passíveis de verdade ou falsidade, mas que
fossem passíveis de verdade ou falsidade a partir de
uma perspectiva universal e imparcial—similar à
nossa capacidade de formular juízos universais
empíricos, sobre o mundo físico.
Noções Centrais da Ética Normativa
Leitura para a próxima aula:
• Rachels, James, “O Desafio do Relativismo
Cultural”, in Elementos de Filosofia Moral.
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