freud e a "invenção" da paralisia cerebral

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FREUD E A "INVENÇÃO" DA PARALISIA CEREBRAL **
Jorge Márcio Pereira de Andrade *
"Em minha juventude, não conheci outro desejo que o do saber filosófico,
anelo que estou a ponto de realizar agora, quando me disponho a passar
da medicina à psicologia.Cheguei a ser terapeuta contra a minha
vontade..." ( Viena, 02/04/1896, carta ao seu amigo Fliess)
A 'confissão' acima revela um homem que trouxe, nesses anos
vitorianos, uma luz no fim do século XIX. Uma luz que ainda não se
apagou. Uma centelha que iluminou as ciências médicas e, que por seu
conteúdo paradigmático, abalou muitas 'verdades científicas', ainda
abala e, ainda incomodará a quem “acreditar que a ciência consiste
apenas em proposições definitivamente provadas".
A conversão de um conceito médico em verdade científica deveria
passar pelo mesmo método de descoberta de novos campos do
conhecimento da mente. Assim o fez Sigmund Freud no entardecer do
século XIX. Nesse período histórico de 1877, desde sua pesquisa sobre
enguias e seu órgão reprodutor, até o ano de 1897, com seu último texto
considerado do período "pré-analítico", ocorre o que chamo do período
'biomédico' de Freud.
A sua virada e ruptura de paradigmas com a Medicina estavam em
ebulição. A revolução do inconsciente freudiano fervilhava dentro do
próprio jovem judeu austríaco. Uma mutação de conceitos que, o
neurologista e aspirante a uma visão não fisicalista da Vida e do
corpo/mente humanos, vivenciou. Revolução que foi inicialmente
marginalizada nos meios acadêmicos vienenses.
Este último escrito biomédico do pai da Psicanálise intitula-se: "Paralisia
Cerebral Infantil". Foi publicado em Viena e nele, Freud esclarece que o
nome "paralisia cerebral infantil" é um "nomen propium" que designa a
paralisia infantil de origem cerebral. Esta distinção é porque ele já havia
escrito sobre outras 'paralisias', inclusive sobre as que geraram a fonte
inesgotável de sua descoberta/invenção da Psicanálise: as paralisias
histéricas.
Muitas das mensagens que recebi e recebo sobre paralisia cerebral me
fazem pensar o quanto não temos compreensão sobre seu histórico e
história. E mais ainda que o termo não expressa terminologicamente o
que realmente é vivido, sentido e experimentado pelos sujeitos que a
vivenciam. Ainda cercada pelo seu nome próprio freudiano, a PC é
herdeira de um preconceito e visão puramente biomédica, que restringiu
sua heteregeneidade e multiplicidade de formas e modos de ser como
uma deficiência.
A invenção do termo é de 1897. Isso mesmo, a "invenção", pois foi um
termo criado por Sigmund Freud para diferenciar as "diplegias cerebrais
da infância" (em relação à 'Doença de Little'), seu trabalho publicado
anteriormente em 1883, nos Beiträge Zur Kinderheilkunde de Kassowitz.
Freud, nesse trabalho faz um histórico da diplegia cerebral, e a distingue
das formas surgidas em adultos, não encontrando equivalentes na
neuropatologia da maturidade.
Os escritos chamados de "pré-analíticos" de Freud podem nos conduzir
à uma relação surpreendente, pois há aí a passagem do neurocientista
para o psicanalista. Há em um artigo de 1891 as primeiras marcas que
indicam a superação paradigmática do modelo médico de pensar e criar
freudiano. Ele faz distinções sobre as formas de Paralisia, já com a
distinção entre paralisias histéricas, cujas manifestações são, para ele,
nessa época, interrupções de funções corporais, quando o 'aparelho da
linguagem' (Sprachaparat) for atingido.
Segundo as pesquisas que venho realizando há muitos anos sobre a
conceituação das paralisias cerebrais, no plural, é preciso um esforço
enorme para a mudança desse nome/pre-conceito que foi colado há
mais de 01 século nas pessoas ditas 'paralíticas cerebrais'. Quando a
denominou, Freud estava construindo mais uma diferenciação,
caminhando já longe de um olhar puramente neurológico, como o de
Meynert ou outros conservadores de um olhar puramente 'médico' para
uma palavra artificial (kunstwort) usada como etiqueta, rótulo, para
agrupar um número incerto do que se considerava, à época, uma
doença.
Para Freud os nomes das doenças utilizados naquela época seriam
equívocos. Em um brilhante filme de John Huston: Freud Além da Alma,
podemos ver um momento (mesmo que cinematograficamente ficcional)
das divergências de um jovem médico, Freud, com o olhar
estigmatizante de um velho professor médico para com uma mulher
considerada uma histérica. A cena é reveladora do que iria provocar
naquele jovem médico, o desejo de ir além dos preceitos e dos preconceitos médicos que o cercavam e cerceavam.
O texto de 1897 de Freud pode e deve ser 'relido' assim como
propuseram uma releitura de seus princípios fundadores da Psicanálise.
Ao analisar casos de hemiplegia e diplegia, Freud reconheceu, a
diferença de Little, nome mais associado à Paralisia Cerebral, que a
lesão cerebral que a gerou ocorre em um cérebro que ainda não
concretizou todo seu desenvolvimento.
Eis aí mais uma das interelações desse pensar proto-freudiano sobre a
neuroplasticidade cerebral. Um século antes das afirmações de
neurocientistas, ele afirma que na clínica dos casos estudados não há
nunca a expressão direta de uma lesão anatômica. Esta passa por um
distúrbio de função, sabidamente pela questão da hipóxia ou anóxia do
Sistema Nervoso Central, e serão os neurônios que deverão ser levados
em consideração.
Por isso estou fazendo este resgate freudiando do nome próprio que foi
inventado por Freud para descrever o que Karel Bobath nos confirmou, e
uma das muitas conceituações, ao dizer: "Paralisia cerebral é o resultado
de uma lesão ou mau desenvolvimento do cérebro, de caráter não
progressivo, existindo desde a infância. A deficiência motora se expressa
em padrões anormais de postura e movimentos, associados com o tônus
postural anormal. A lesão que atinge o cérebro quando ainda é imaturo
interfere com o desenvolvimento motor normal da criança."
Aí se construiu uma conceituação que vem sendo modificada e novos
nomes próprios sendo inventados. Lamento que ainda milhares de
professores, doutores, especialistas, jornalistas, operadores dos direitos
e, inclusive, familiares e pais/mães, continuem nomeando estes sujeitos
com ultrapassados/caducos/reducionistas nomes: 'encefalopatia crônica
da infância' (eles nunca irão amadurecer e crescer, além de serem
'doentes', com o cérebro lesado, coitados....), ou " portadores de DCO dismotria cerebral ontogenética" ('sofrem' de uma 'doença neurológica'
que afeta seus movimentos e lhes limita cronicamente para a vida
'normal', e ainda levanta a possibilidade de heredológicamene ser
transmitida, no caso de uma leitura apressada do termo 'ontogenética'
por quem não domina estas terminologias).
Procuremos no Google e teremos uma infinidade de nomes para uma
única condição humana, de ampla heteronegeidade, e polissêmica na
sua origem histórica. Não há uma paralisia cerebral, mas milhares de '
paralisias cerebrais'. Daí nasceu o DefNet e o uso no plural desse termo.
Só no dia de hoje encontrei 450.000 referências para a pesquisa sobre:
conceito de paralisia cerebral. Experimentem pesquisar, pois há muitas
'pérolas' de definição, indo das clássicas às estigmatizantes.
Este texto é uma homenagem a algumas pessoas que são tratadas
como 'paralisadas': Luana, Ronaldo, Suely, Edgar, Priscila, Sacha, Cida,
Carolina, Guilherme e todos os 'pés esquerdos' que não precisam e nem
devem ser tratados como 'exceção'.
E se assim forem vistos, dissociadamente de sua humanidade e
diferenças, são e serão apenas Vidas Nuas, portanto inúteis, matáveis.
E, para além de nosso olhar de repugnância ou preconceito, reforçados
pelos estereótipos, para com seus ''espasmos, alterações neuromotoras,
fala e contorções'', serão sempre ''paralisados''... imobilizados por nossa
concepção pré-analítica, ou seja, nomeados dentro do modelo biomédico
ou reabilitador.
Já dizia, András Petö, criador da Educação Condutiva, lá em Budapeste,
nos anos 40, sobre sua principal descoberta, aliada aos seus
conhecimentos de Piaget e Luria, que: "tanto a criança como o adulto
são capazes de APRENDER e QUEREM APRENDER apesar de seu
sistema nervoso poder estar severamente lesado, no sentido anatômico,
como no caso das Paralisias Cerebrais", assim como todos e todas
queremos aprender. E nós queremos aprender a aprender um novo
modo de desconstruir a concepção paralisada no tempo sobre estes
distúrbios da eficiência física?
Nomear é, em uma visão puramente clínica, e não klínica, um rémedio
médico para que saibamos quem é o paciente, onde está a doença,
como dar um nome confortável à este indecifrável e doloroso Outro, essa
diferença que insiste em nos incomodar...
"Não desejo suscitar convicções, o que desejo é estimular o pensamento
e derrubar preconceitos." Sigmund Freud
Sigmund Freud – Biografia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sigmund_Freud
Referências Bibliográficas Freud e o Iídiche - O pré-analítico - Max Kohn - Editora Imago, Rio de
Janeiro, RJ, 1994.
Freud: a trama dos conceitos - Renato Mezan - Editora Perspectiva, São
Paulo, SP, 1982.
Deficiência Motora em pacientes com Paralisia Cerebral - Karel Bobath,
Editora Manole ltda, São Paulo, SP, 1989.
Freud Além da Alma - filme de Jonh Huston, roteiro trabalhado por
Sartre, produzido em 1962, com varias indicações de prêmios.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Freud_(filme)
Copyright jorgemarciopereiradeandrade 2010-2011
* Formado em Medicina, com especialização em Psiquiatria, exercendo
atividades no campo da Saúde Mental, em Psicanálise e Psicoterapia.
** Fonte: InfoAtivo.DefNet: http://infoativodefnet.blogspot.com
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