Ciência e Fé Módulo II – Filosofia Grega e Cosmologia Grega Outubro de 2011 a Fevereiro de 2012 Ciência e Fé Estrutura do Curso I - Introdução II - Filosofia grega e cosmologia grega III - Filosofia medieval e ciência medieval IV - Inquisição e Ciência V e VI - O caso Galileu VII - A revolução científica VIII - Darwin e a Igreja Católica IX - Os Argumentos Cosmológico e Teleológico X - Filosofia da Mente e Inteligência Artificial XI - Milagres e Ciência XII - Desafios ao diálogo entre Ciência e Fé Índice 1. Introdução 2. Os filósofos pré-socráticos 3. Sócrates 4. Platão 5. Aristóteles 6. Cosmologia grega 2 A Ciência é a única fonte de conhecimento verdadeiro? O debate Craig vs. Atkins William Lane Craig (1949-) Peter Atkins (1940-) Norte-americano Britânico Cristão evangélico Ateu Professor de Filosofia (Talbot/Biola, Califórnia) Professor de Química (Oxford, Reino Unido) Explica que H1 é uma falácia genética Demonstra que a Ciência não é omnipotente, logo que H2 é falsa H1: A religião surgiu porque as pessoas precisam “desesperadamente” de acreditar em Deus H2: Ciência é omnipotente e não precisa de Deus C: Logo, Deus não existe A Ciência é a única fonte de conhecimento verdadeiro? O debate Craig vs. Atkins Exemplos dados por William Lane Craig Verdades da lógica e da matemática Há outras mentes para além da minha O mundo externo a mim é real O passado não foi criado há cinco minutos com a aparência de antiguidade Crenças éticas e afirmações morais Juízos de estética A própria Ciência apoia-se em pressupostos não demonstrados cientificamente A Ciência é a única fonte de conhecimento verdadeiro? Os princípios da Lógica Em lógica clássica, aceitamos sem prova científica estes três princípios: Identidade (P = P) Não contradição (P ≠ ~P) Exclusão do terceiro termo (P V ~P) Há certos princípios que sabemos que têm que ser verdadeiros, mesmo sem prova científica! Podíamos abdicar desta confiança na Lógica… ou sermos mais “flexíveis” acerca da Lógica… Mas o abandono do rigor lógico é o suicídio do intelecto, é a irracionalidade Parece que as verdades da Lógica são inevitáveis! Parece que são objectivas (válidas para tudo e todos) e não meramente subjectivas Se todos os seres inteligentes do Universo desaparecessem, a Lógica desaparecia? O que é que isto nos diz acerca da realidade? A Ciência é a única fonte de conhecimento verdadeiro? Não há conhecimento sem certos “axiomas” indiscutíveis… Existo, ou seja, faço parte da realidade existente Sou distinto do que me rodeia A minha memória é minimamente fiável (mas não infalível) Há uma realidade objectiva que existiria mesmo sem mim Os meus sentidos reflectem, de certo modo, a realidade Sei distinguir, quase sempre, entre sonhar e estar acordado O meu intelecto é capaz de compreender certos aspectos da realidade Há certos princípios que aceitamos como verdadeiros, mesmo sem provas empíricas (físicas, científicas)! A Ciência é a única fonte de conhecimento verdadeiro? O método filosófico de “retorsão” (Aristóteles) “Há proposições” Se tento refutar (“não há proposições”) faço uma proposição “Há proposições verdadeiras” Se tento refutar (“não há proposições verdadeiras”) dou um tiro no pé Acabámos de refutar o cepticismo! “De duas proposições, das quais uma é a negação da outra, uma delas é necessariamente falsa” Se tento refutar, reforço o que queria negar “De duas proposições, das quais uma é a negação da outra, uma delas é necessariamente verdadeira” “Posso enganar-me” Se tento refutar, dizendo “nunca me engano” então eu estava enganado em primeiro lugar Se tento fugir, dizendo “engano-me sempre”, estou em contradição Há muitas verdades não comprovadas cientificamente! A Ciência é a única fonte de conhecimento verdadeiro? Vamos supor que sim... P: A Ciência é a única fonte de conhecimento verdadeiro! A proposição P é de que tipo? Científica? Filosófica? Outro tipo? Claramente não é uma proposição científica, ou seja, provada pela Ciência! Logo, se P for verdadeira, P terá que ser falsa! Se a Ciência for a única fonte de conhecimento verdadeiro, e essa afirmação não for científica, então essa afirmação não pode ser verdadeira... A frase auto-refuta-se! Terminologia Ciência, Epistemologia, Filosofia da Mente, Metafísica Ciência Construção de hipóteses ou modelos acerca da realidade natural Concepção e execução de testes para comprovar ou refutar essas hipóteses ou modelos Recolha de dados empíricos (mensuráveis directa ou indirectamente por via sensorial) Confronto entre os resultados dos testes (dados empíricos) e as hipóteses ou modelos Epistemologia (ramo da Filosofia) Estudo do conhecimento em si mesmo (“episteme”) e da sua fundamentação racional Demarca o âmbito do conhecimento e fundamenta o seu método Filosofia da Mente O problema da dualidade “corpo – mente” e da natureza do intelecto O problema do livre arbítrio: tomamos decisões livres? O problema da percepções subjectivas na consciência (“qualia”, p.ex., “vermelhidão”) Metafísica (ramo da Filosofia) Primeiros princípios (p. ex.: lógica, silogismos), estudo do “ser” (Ontologia) O problema do estatuto ontológico das matemáticas e dos conceitos abstractos A Metafísica não é Teologia - há filósofos ateus neste ramo do conhecimento! O ressurgimento da filosofia cristã Catálogo da Oxford University Press (2000-2001, total de 273 obras) * 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Filosofia da Religião (teístas) 94 Filosofia da Religião (teístas e ateístas) Filosofia da Linguagem 61 51 Epistemologia Metafísica 28 23 Filosofia da Mente 14 2 Filosofia da Ciência Áreas da Filosofia * Fonte: Quentin Smith O ressurgimento da filosofia cristã Albert Einstein (“Physics and Reality”, 1936) «Tem sido dito várias vezes, e certamente com justificação, que o homem de ciência é um fraco filósofo» Hawking/Mlodinow (“The Grand Design”, 2010) «Tradicionalmente, estas são questões para a filosofia, mas a filosofia está morta. A filosofia não acompanhou os modernos desenvolvimentos em ciência, em partícular [em] física. Os cientistas tornaram-se os portadores da tocha da descoberta na nossa busca de conhecimento.» Quentin Smith (Revista “Philo”, “The Metaphilosophy of Naturalism”, Vol. 4, N.º 2) «Os naturalistas observaram passivamente enquanto versões realistas do teísmo, muito influenciadas pelas obras de Plantinga, começaram a varrer a comunidade filosófica, até que hoje talvez um quarto a um terço dos professores de filosofia são teístas, sendo a maioria deles Cristãos ortodoxos (…) Deus não está “morto” no mundo académico; ele voltou à vida no final da década de 1960 e está agora vivo e de boa saúde no seu último baluarte, os departamentos de filosofia.» «(…) a vasta maioria dos filósofos naturalistas mantém (desde o final da década de 1960) uma crença injustificada no naturalismo.» O ressurgimento da filosofia cristã Alvin Plantinga (1932-), filósofo cristão norte-americano “Where the conflict really lies: science, religion and naturalism” (2011) Alegado conflito entre Ciência e Religião: Cristianismo e evolução Milagres e Ciência Conflito superficial entre Ciência e Religião: Psicologia evolutiva Criticismo histórico da Bíblia Concordância entre Ciência e Religião: Afinação (“fine-tuning”) do Universo Finalidade (“design”) em Biologia O teísmo cristão e as raízes profundas da Ciência Profunda discordância entre Ciência e Naturalismo: Se o evolucionismo naturalista está certo, então as nossas faculdades cognitivas, resultado de um processo não guiado, não são fiáveis Se não são fiáveis, não podemos defender nenhuma tese Logo, o evolucionismo materialista não é defensável (auto-refuta-se) 12 Índice 1. Introdução 2. Os filósofos pré-socráticos 3. Sócrates 4. Platão 5. Aristóteles 6. Cosmologia grega 13 Os filósofos pré-socráticos Tales de Mileto (c. 620-546 a.C.) e Pitágoras de Samos (c. 570-495 a.C) Tales é tido como o fundador da filosofia natural, das explicações filosóficas da realidade natural Tales sugere que o primeiro princípio (“archê”) da realidade natural é a água Anaximandro (c. 610-546 a.C.), seu aluno, sugere que o “archê” é infinito e indeterminado (“apeiron”) Anaxímenes (c. 585-528 a.C.), aluno de Anaximandro, sugere que o “archê” é o ar Pitágoras, possível aluno de Tales e Anaximandro, sugere que o “archê” é o número (a Matemática) Tales de Mileto (c. 620-546 a.C.) Pitágoras de Samos (c. 570-495 a.C.) Θαλῆς ὁ Μιλήσιος Ὁ Πυθαγόρας ὁ Σάμιος 14 Os filósofos pré-socráticos Tales de Mileto (c. 620-546 a.C.) e Pitágoras de Samos (c. 570-495 a.C) Tales representa um extremo ontológico: a realidade última é material (água) Pitágoras representa o outro extremo ontológico: a realidade última é imaterial (números, matemática) Para Tales, o fundamento da realidade é sensorial, enquanto que para Pitágoras é intelectual Ambos rompem com o passado A realidade natural tem regras próprias, não está sujeita aos caprichos dos deuses do panteão grego Tales de Mileto (c. 620-546 a.C.) Pitágoras de Samos (c. 570-495 a.C.) Θαλῆς ὁ Μιλήσιος Ὁ Πυθαγόρας ὁ Σάμιος 15 Os filósofos pré-socráticos Heráclito de Éfeso (c. 535-475 a.C.) e Parménides de Eleia (c. 515-450 a.C) Heráclito afirma que a essência da realidade é a mudança e a inconstância: “todas as coisas se movem e nada permanece quieto”, “não se entra duas vezes no mesmo rio” Parménides afirma que a mudança é impossível, e que a essência da realidade é a imutabilidade e a constância, e que a aparência de mudança provém dos sentidos, que não são fiáveis Heráclito de Éfeso (c. 535-475 a.C.) Parménides de Eleia (c. 500 a.C.) Ἡράκλειτος ὁ Ἐφέσιος Παρμενίδης ὁ Ἐλεάτης 16 Os filósofos pré-socráticos Leucipo e Demócrito de Abdera (c. 460-370 a.C) Os primeiros atomistas queriam resolver o problema de Parménides, ou seja, explicar a mudança Introduzem o “átomo” (entidade indivisível), partícula base de toda a realidade, juntamente com o vazio A mudança resultaria da deriva e agregação de átomos que se movem no vazio A indivisibilidade é introduzida de forma a resolver os paradoxos de Zenão (discípulo de Parménides) O vazio é um conceito extremamente problemático para a filosofia grega devido à relação causa-efeito Demócrito de Abdera (c. 460-370 a.C.) Δημόκριτος 17 Índice 1. Introdução 2. Os filósofos pré-socráticos 3. Sócrates 4. Platão 5. Aristóteles 6. Cosmologia grega 18 Sócrates Sócrates (c. 469-399 a.C), ateniense Criticou duramente os sofistas, quer do ponto de vista filosófico quer do ponto de vista moral Não cuidava da sua aparência, vivia apaixonado pela reflexão e pelos debates filosóficos Tinha uma abordagem radical ao ensino: diálogo com os alunos em vez de aula formal Foi condenado à morte, acusado de não venerar os deuses da cidade e de corromper a juventude Platão, seu discípulo, tinha 25 anos quando Sócrates foi condenado à morte Sócrates (c. 469-399 a.C.) Σωκράτης 19 A filosofia grega até Sócrates Pontos-chave Tales de Mileto Inaugura a interpretação objectiva da Natureza, que é despersonalizada (os deuses não são vistos como agentes da Natureza), baseada num primeiro princípio material, a água Pitágoras Sugere que a matemática, e os objectos matemáticos, constituem o fundamento da realidade Heráclito e Parménides Como explicar a mudança e a permanência? Para Heráclito, tudo é mudança, e para Parménides, a realidade última é a permanência; a mudança é uma ilusão dos sentidos Demócrito Para Demócrito, a realidade última é composta por átomos e vazio: a deriva e agregação dos átomos no vazio explica, quer a mudança, quer a (temporária e aparente) permanência Sócrates Ao fazer a crítica dos sofistas, defende uma visão objectiva e racional do Mundo, acreditando nas faculdades do intelecto e na concordância entre verdades filosóficas e morais Platão… … é fortemente marcado por Sócrates e herda a sua motivação filosófica; Platão concebe o primeiro sistema filosófico dotado de uma metafísica e de uma ontologia abrangentes 20 Índice 1. Introdução 2. Os filósofos pré-socráticos 3. Sócrates 4. Platão 5. Aristóteles 6. Cosmologia grega 21 Platão Platão (c. 429-347 a.C.), ateniense Discípulo de Sócrates, fundador da Academia de Atenas (*) Pela sua obra filosófica abrangente, Platão é considerado justamente como o pai da filosofia ocidental As suas obras apresentam os temas e debates filosóficos sob a forma de diálogo Nas suas obras, Sócrates surge quase sempre em primeiro plano, como que o paradigma do filósofo Platão (c. 429-347 a.C.) Πλάτων 22 Platão A Teoria das Formas Também é conhecida como a “Teoria das Ideias”, mas o termo mais preciso e correcto é “Formas” A Forma é o que captura a essência imutável de uma coisa, é o seu arquétipo Para Platão, a Forma não é: Um objecto físico ou detectado pelos sentidos (empírico) Uma entidade subjectiva, existente apenas nas nossas mentes Um conceito convencional, derivado do uso frequente em contexto social Para Platão, a Forma é: Abstracta, em vez de concreta Imaterial, em vez de material Universal, em vez de particular Objectiva, em vez de subjectiva (não depende sujeitos ou de mentes subjectivas) Apreensível pelo intelecto, em vez de o ser pelos sentidos Descoberta, em vez de inventada 23 Platão Um exemplo: a forma de “triangularidade”… “Triangularidade” Instâncias: entidades concretas e particulares que “materializam” a forma abstracta de “triangularidade” 24 Platão Instâncias de uma forma… São exemplificações concretas e particulares de uma forma abstracta e universal São apreendidas pelos sentidos Possuem outras propriedades estranhas à forma (no exemplo atrás: a cor, o traçado, o material, etc.) Nunca reflectem a perfeição da forma: são imperfeitas Nunca esgotam o número de possíveis instâncias de uma dada forma Podem aparecer ou desaparecer, sem que isso afecte a forma, que permanece imutável e existente Mesmo que todas as instâncias de uma forma não existissem, a forma permaneceria existente Mesmo que não existisse ninguém para a inteligir, a forma permaneceria existente Logo, a forma possui um maior grau de realidade do que as suas instâncias Se uma forma não existisse, as suas instâncias nunca existiriam A existência de uma ou várias instâncias de uma forma depende da existência desta 25 Platão A Teoria das Formas – uma estrutura hierárquica da realidade A Forma do Bem Formas Pensamentos/raciocínios que dependem dos sentidos Objectos materiais Sombras, imagens, ilusões, etc. 26 Platão A Forma do Bem A teoria platónica das formas introduz um critério objectivo (e não subjectivo) de “bem” Uma coisa é tão melhor quanto mais perfeitamente instanciar a sua forma Um triângulo desenhado num computador pode ser mais perfeito do que um desenhado à mão Se o “bem” corresponde à medida de perfeição de uma coisa, então há uma forma para esse “bem” Essa forma é a Forma do Bem (“τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέαν”) Para Platão, a Forma do Bem é superior a todas as formas e é o fundamento último da realidade Não é certo se Platão identificou a Forma do Bem com Deus, mas muitos neoplatonistas fizeram-no A Alegoria da Caverna Sombras na parede: imagens (dados sensoriais) Estatuetas: objectos físicos concretos Fogueira: o Sol Sombras e reflexos no exterior: os conceitos Objectos no exterior: as formas Sol no exterior: a Forma do Bem Platão O “Timeu” Um dos últimos diálogos de Platão (c. 360 a.C.), trata da formação do Universo Timeu defende a estrutura matemática do Universo Os quatro elementos teriam, cada um, a sua partícula específica sob determinada forma poliédrica A Terra baseada em cubos: 6 faces quadradas A Água baseada em icosaedros: 20 faces triangulares O Ar baseado em octaedros: 8 faces triangulares O Fogo baseado em tetraedros: 4 faces triangulares Cada face de cada poliedro seria composta por triângulos rectângulos isósceles ou escalenos O “Timeu” foi o único diálogo platónico acessível durante a Idade Média (trad. Calcídio, séc. IV d.C.) TERRA ÁGUA AR FOGO Platão O “Timeu” O uso de sólidos platónicos (poliedros regulares) ainda surge na obra de Kepler (1596) Platão Realismo, conceptualismo, nominalismo Três tipos de coisas que “parecem” ser imateriais: universais, números e proposições Qual é o estatuto ontológico destas coisas? Realismo Defende que estas coisas existem na realidade, e são objectivas, ou seja, distintas dos sujeitos que pensam nelas Toda a humanidade poderia desaparecer, e estas coisas continuariam a existir Conceptualismo Defende que estas coisas existem na realidade, mas apenas na mente de quem pensa nelas Assim, os universais, os números e as proposições necessitam de uma mente para existirem Nominalismo Defende que estas coisas não existem na realidade Os universais, os números e as proposições corresponderiam a meros “padrões” de actividade neuronal, reflectindo hábitos e convenções sociais e culturais Índice 1. Introdução 2. Os filósofos pré-socráticos 3. Sócrates 4. Platão 5. Aristóteles 6. Cosmologia grega 31 Aristóteles Aristóteles de Estagira (c. 384-322 a.C.) Aos 17 anos é enviado para Atenas, para estudar na Academia com Platão até à morte deste (347 a.C.) Após três anos a viver em casa de Hermeias, governador de Assos (Ásia Menor), muda-se para Lesbos Passa dois anos na ilha, onde se casa com Pítias (sobrinha de Hermeias), de quem tem a filha Pítias Em 343, a pedido do Rei Filipe II da Macedónia, Aristóteles muda-se para Pela, a capital da Macedónia, para ser o tutor do seu filho Alexandre, então com 13 anos Em 335 está de volta a Atenas, onde funda o Liceu (*) Em 323, após a morte de Alexandre na Babilónia, crescem os sentimentos antimacedónios em Atenas Aristóteles abandona Atenas e muda-se para Cálcis, na ilha grega de Eubeia, onde morre em 322 a.C. Aristóteles (c. 384-322 a.C.) Ἀριστοτέλης 32 Aristóteles Primeiros princípios ontológicos Há multiplicidade na realidade Existem múltiplas coisas, distintas e individuais Há unidade na realidade, e a unidade tem dois aspectos: 1. Todas as coisas são unas, quando consideradas individualmente (em si mesmas) 2. Certas coisas distintas têm características (propriedades) comuns que as unem Em última análise, todas as coisas existentes têm a característica de existir O fenómeno da multiplicidade é explicado pelo princípio da individuação Sem um princípio que individua as coisas, não existe real multiplicidade Se nada na realidade fosse individuável, tudo o que existe seria uma e uma só coisa O fenómeno da unidade (sob o segundo aspecto, ponto 2 acima) é explicado pelo princípio da essência Este princípio é constitutivo, e não meramente descritivo ou explicativo Sem um princípio que dá identidade às coisas, não existe real unidade de coisas idênticas Se as coisas não têm essências, não existem coisas distintas com características comuns Se as coisas não têm essências, tudo é distinto de tudo (nada é idêntico a nada) Todas as coisas têm essências reais que lhes são constitutivas 33 Aristóteles Primeiros princípios ontológicos As essências das coisas são meras convenções humanas ou são reais? Parece que as essências das coisas são meras convenções humanas (convencionalismo)... No entanto, o convencionalismo é auto-refutatório, o que se prova deste modo: Suponhamos que todas as essências das coisas são convenções humanas (princípio geral) Logo, a essência do ser humano seria convenção humana (aplicação particular do princípio geral) Logo, o que é um ser humano seria algo determinado por convenção humana Logo, a convenção do que é um ser humano seria logicamente anterior ao ser propriamente dito Mas os seres humanos são a fonte das convenções humanas Logo, os seres humanos são logicamente anteriores às convenções humanas, e não o inverso Logo, antes de formadas as convenções humanas, existe uma essência do que é o ser humano A única forma de escapar a esta refutação seria a de estipular uma excepção para o ser humano Assim, diríamos que todas as essências das coisas são convenções, excepto a essência do ser humano Mas porquê postular esta excepção “ad hoc”? O convencionalismo acerca das essências é uma forma de nominalismo e padece dos seus problemas As essências das coisas não são meras convenções humanas! 34 Aristóteles Acto e Potência As coisas naturais são finitas (limitadas): não há infinitos na Natureza As coisas naturais são limitadas: Pelo seu âmbito espacial e temporal (não são omnipresentes nem eternas) Pelas suas características (e pelas características que não têm) Pelas características que não têm (presentemente) mas são capazes de ter (potenciais) Parece que há coisas que mudam e também coisas que permanecem… Parménides: nada de novo pode surgir do que já existe, senão já existiria; nada de novo pode surgir do nada, porque o “nada” é precisamente a não existência Heráclito: no fluxo constante, nada permanece… Proposta de Aristóteles: todas as coisas naturais são parte “acto”, parte “potência”: “Acto”: o que uma coisa é, num dado momento “Potência”: o que uma coisa não é, num dado momento, mas que poderia vir a ser Não existem coisas de pura potência: tudo o que existe, por esse mesmo facto, é-o em acto O potencial é subordinado ao actual: uma coisa ser potencialmente outra é poder vir a sê-la em acto Uma potência não se actualiza por si mesma, sem algo que seja actual e que a actualize: uma causa Toda a realidade está dividida entre actualidade e potencialidade 35 Aristóteles Substância e acidente As coisas naturais podem ser analisadas no que lhes é substancial e no que lhes é acidental “Substancial” é tudo o que uma coisa não pode deixar de ser, sem deixar de ser o que é “Acidental” é tudo o que uma coisa pode ser, ou não ser, sem deixar de ser o que é Nenhuma substância pode ser predicado de outra, ou seja, ser um acidente de outra Nenhum acidente é substancial, ou seja, nenhum acidente pertence à substância de uma coisa Os acidentes não existem por si mesmos, mas sempre como predicados de uma substância (por exemplo, não existe “a cor amarela” em si mesma, mas apenas como predicado de um dado objecto) Dois tipos de mudança: Mudança acidental: uma parede que é pintada de outra cor (não deixa de ser parede) Mudança substancial: uma parede que é destruída ou desmontada (deixa de ser parede) Predicação Instanciação Substância Particular Acidente Particular Sócrates Sabedoria de Sócrates Substância Universal Acidente Universal Homem Sabedoria Predicação Instanciação 36 Aristóteles A mudança é real? Toda a mudança real (substancial ou acidental) implica: Corrupção (substancial ou acidental): o fim da existência de uma substância ou acidente Geração (substancial ou acidental): o início da existência de uma substância ou acidente Duas teorias principais acerca do tempo (McTaggart, 1908) Teoria A (tensed): o passar do tempo é real; cada evento pertence ao passado, ou ao presente ou ao futuro; um evento do passado já não existe, e um evento do futuro ainda não existe; só os eventos presentes é que existem Teoria B (tenseless): o passar do tempo é uma ilusão: passado, presente e futuro são reais; a dimensão temporal é considerada inteiramente existente e realizada, tal como as espaciais Se a mudança é real, então a teoria correcta é a Teoria A (ainda por cima, é validada pelos sentidos) Problemas da Teoria B: É incompatível com o livre arbítrio: se o futuro já existe, não existem decisões livres Se passado e futuro são reais, em teoria seria possível “aceder” a eventos passados ou futuros, o que iria gerar paradoxos: poderíamos alterar o passado ou o futuro, e criar contradições A mudança seria uma ilusão, nada mudaria: Parménides teria razão! A mudança (substancial ou acidental) é real! 37 Aristóteles Acto e Potência Se todas as coisas fossem actuais, nada de novo poderia surgir: não haveria geração de coisas novas As coisas actuais também não podem vir do nada, porque do nada, nada vem A única forma de explicar a realidade da mudança passa por introduzir o conceito de potência A potência é o conceito que explica a mudança de uma coisa actual P para uma coisa actual Q: Potência Dois tipos de potência: Coisa actual P Coisa actual Q Mudança: • Corrupção da coisa P (deixa de ser actual) • Geração da coisa Q (passa a ser actual) • Temporalidade: requer teoria A do tempo • Causalidade: a causa é o agente da mudança Activa: baseada em capacidades ou propriedades actuais (exemplo: a água tem a potência para quebrar o elo Sódio-Cloro - dissolver o sal comum - devido à polaridade das moléculas de água) Passiva: totalmente indiferente à forma como é activada, é uma potencialidade não actuante A potência de que fala Aristóteles é uma potência puramente passiva O potencial não é temporalmente anterior ao actual, mas pode ser visto como logicamente anterior Uma potência não se actualiza por si mesma, sem algo que seja actual e que a actualize: uma causa 38 Aristóteles Hilemorfismo As coisas naturais são compostas de algo potencial (matéria, “hyle”) e algo actual (forma, “morphos”) Exemplo: Matéria: tijolos, “pladur”, blocos de calcário, vidro, ferro, etc. Forma: “barreira física sólida erigida na vertical” O hilemorfismo é hierárquico, e pode-se repetir a análise macro ou microscopicamente; num tijolo: Matéria: betão, argila, terracota, etc. Forma: “paralelepípedo sólido” Matéria-prima: pura potencialidade, capaz de receber qualquer forma, que não existe por si mesma A forma de uma coisa é o que ela é, em acto, incluindo a substância da coisa e os seus acidentes A forma substancial de uma coisa é a forma da substância da coisa, sem os seus acidentes Exemplo: A forma de Ghandi, no fim da vida, era a de um homem magro, calvo e que usava óculos, etc. A forma substancial de Ghandi era a de um homem Uma coisa muda acidentalmente quando acidentes potenciais são actualizados na mesma substância Uma coisa muda substancialmente quando a potência da sua matéria é actualizada noutra substância39 Aristóteles Os quatro tipos de causas das coisas naturais Causa final P: Para que é que foi feita a coisa? R: Para retratar a a beleza feminina / divina Causa formal P: O que é a coisa? R: Uma estátua de mármore da Vénus de Milo Causa eficiente P: Como foi feita a coisa? R: A técnica do escultor no manusear do martelo e escopo Causa material P: De que é feita a coisa? R: De mármore Por vezes, as causas coincidem na mesma coisa: p.ex.: a alma, que para Aristóteles é a forma dos seres vivos, pode ser causa final, formal e eficiente. Aristóteles O conceito aristotélico de alma A alma (do latim “anima”) é o nome dado por Aristóteles à forma substancial de um ser vivo Aristóteles discute o tema na sua obra “Da Alma” (Περὶ Ψυχῆς, “Perì Psūchês”) Aristóteles classifica as faculdades da alma de acordo com a seguinte hierarquia: Nutrição, crescimento, reprodução Locomoção, percepção Intelecção Esta hierarquia permite classificar a alma em três categorias: Alma nutritiva (plantas) Alma sensitiva (todos os animais), que inclui as faculdades da alma nutritiva Alma intelectiva (ser humano), que inclui as faculdades das almas nutritiva e sensitiva O ser vivo, como todas as coisas naturais, é uma substância composta (de matéria e forma): Matéria: o corpo Forma: a alma A distinção corpo-alma não permite a sua separação: tal como a distinção matéria-forma, o corpo e a alma são dois aspectos da mesma coisa natural: o ser vivo 41 Aristóteles Vantagens do aristotelismo Baseia-se em muitas e persistentes observações da Natureza Confia nos sentidos, mas sujeita o conhecimento sensorial ao intelecto É confirmado pelo senso comum e é muito intuitivo É um sistema amplo e abrangente de conhecimento: Biologia, Filosofia, Psicologia, Política, Ética, Meteorologia, Matemática, Física, Metafísica,… Possui um método próprio de catalogação do conhecimento humano Apresenta uma grande amplitude e poder explicativo para os mais variados aspectos da Natureza O aristotelismo “reinou” durante 19 séculos, e a sua metafísica ainda hoje é estudada como válida