ENSAIOS DE HISTÓRIA Universidade Estadual Paulista São Paulo State University Reitor Prof. Dr. Herman Jacobus Cornelis Voorwald Vice-Reitor Prof. Dr. Julio Cezar Durigan FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL Diretor Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel Vice-Diretor Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Coordenador Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi Vice-coordenadora Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino UNESP - Universidade Estadual Paulista UNESP – São Paulo State University ENSAIOS DE HISTÓRIA Revista do Curso de Graduação em História ISSN 1414-8854 Ensaios de História Franca v. 14, n. 1/2 p. 188 2009 ENSAIOS DE HISTÓRIA Comissão Editorial Presidente Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi Corpo Editorial Aluana Mayra Borges Rodrigues Amanda Cristina Stefan Ana Paula Svirbul de Oliveira Arthur Jorge Dias de Morais Coelho Bárbara Mariani Polez Carolina Defensor Ribeiro Danilo Medeiros Gazotti Francisco de Assis Sabadini Joyce Aparecida Ferraz Vidal Kátia Lima de Oliveira Marcos Felipe Godoy Nívea Lins Santos Olinda Cristina Pacheco Scalabrin Paula Fernandes Henrique Tatiana Rodrigues Milanello Thiago Fidélis Publicação Semestral/Semestral Publication Solicita-se permuta/Exchanged desired Endereço/Adress Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Contato: Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, Jardim Dr. Antonio Petráglia, CEP 14409-160, Franca/SP, Brasil [email protected] Ensaios de História (Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP) Franca, SP, Brasil, 1996-2009, 1-14 ISSN 1414-8854. Capa: Soldado Romano com a Cabeça de um inimigo Daco. Desenho e arte final: http://planeta.terra.com.br/arte/mundoantigo/roma/ APRESENTAÇÃO Desde o ano de 1996, o curso de graduação (bacharelado e licenciatura) em História da Universidade Estadual Paulista campus Franca possui a revista Ensaios de História, fundada pelos graduandos em História e cujo espaço de publicação volta-se exclusivamente a graduandos de diversas instituições de Ensino Superior. É notável o prestígio alcançado pela revista, que ao longo desses mais de dez anos tem seus exemplares disponíveis em cento e cinco instituições cadastradas, dentre as quais cinco do exterior; além disso, é uma das poucas publicações no meio acadêmico que tem como foco a publicação de graduandos. A revista Ensaios de História é vinculada ao Conselho de Curso e o chefe deste é também o presidente da Comissão Editorial, que tem como membros discentes alunos da graduação do curso de História. Tendo em conta a importância dessa atividade como um espaço incentivador da pesquisa científica, seja ela de caráter individual ou coletivo, o grupo PET História participa nessa como Comissão Editorial, mais ainda cabe lembrar que alunos da graduação não pertencentes ao grupo PET têm total autonomia e liberdade para ingressarem neste corpo editorial, uma vez que a revista é de responsabilidade do Conselho de Curso, e não somente do PET História. O envio de artigos é aberto a todas as áreas de pesquisa em História, sem restrição de assuntos ou temas, abordando inclusive os estudos sobre prática educacional, uma vez que nosso currículo acadêmico é também composto por disciplinas dessa natureza. O critério para a aceitação dos artigos é que os mesmos recebam o endossamento pelos respectivos professores orientadores, demonstrando assim comprometimento em relação ao trabalho produzido. O trabalho de editoração é subdivido entre uma comissão que é responsável pela correção gramatical e ortográfica e um segundo grupo que se responsabiliza pela normatização e diagramação do texto, de maneira a enviá-lo à gráfica nos moldes para a impressão, publicação e envio às demais universidades cadastradas. Logo, o presente trabalho tem grande relevância uma vez que atua de maneira a instigar os graduandos à atividade de pesquisa e a produção escrita dessas, sendo um dos pilares da formação dos futuros historiadores. SUMÁRIO ALIANÇA POPULAR: JACOBINOS E SANS CULOTTES NA REVOLUÇÃO FRANCESA Amanda Cristina STEFAN ....................................... 09 ENTRE OS EMBATES DA LEI DA ANISTIA Ana Paula Lage de OLIVEIRA Tiago Santos SALGADO Victor Augusto Ramos MISSIATO ............................ 17 A EXPORTAÇÃO DA DEMOCRACIA COMO POLÍTICA EXTERNA DOS ESTADOS UNIDOS Ariel Andrade de PAULA ......................................... 27 A CONSTRUÇÃO DO NACIONALISMO Bárbara Mariani POLEZ........................................... 39 AS TRANSFORMAÇÕES CIENTÍFICAS, E O IMPERIALISMO DO SÉCULO XIX Carolina de Oliveira BELTRAMINI ........................... 47 A HISTÓRIA CÍCLICA ENTRE O MITO E ESCLARECIMENTO Carolina Defensor RIBEIRO .................................... 55 POLÍTICAS NAPOLEÔNICAS PARA UMA FRANÇA EM CRISE Danilo Medeiros GAZOTTI ...................................... 63 A ESTRADA DE GOYAS E AS CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DO MUNICÍPIO DE IGARAPAVA Diego Lopes de CAMPOS ....................................... 71 O RADICALISMO DA REFORMA NO SÉCULO XVI: OS ANABATISTAS Filipe Faulin VALENTIM........................................... 79 A MARSELHA: DE CANÇÃO REVOLUCIONÁRIA À HINO OFICIAL DA REPÚBLICA DA LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE Henrique Franco da ROCHA ................................... 87 ERASMO, OS DEBATES TEOLÓGICOS E A REFORMA Jéssica Abud de SOUZA ......................................... 95 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 7 ENTRE O LIBERALISMO E O SOCIALISMO: DISCUSSÃO SISTÊMICA DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO POR PERRY ANDERSON Thiago FIDELIS Kátia Lima de OLIVEIRA ......................................... 103 INTELECTUALIDADE E IMPERIALISMO. O DARWINISMO SOCIAL PRESENTE NA WELTANSCHAUUNG EUROPÉIA ENTRE 1870-1914 Leonardo Fernandes HENRIQUE ............................ 113 ARTE, CIÊNCIA E IMAGEM SOBRE O EGITO NA FRANÇA DE NAPOLEÃO Luiz Fernando Pina SAMPAIO ................................ 123 O TRAÇADO DAS CIDADES DO BRASIL COLONIAL SOB A LUZ DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Marcos Felipe GODOY ............................................ 133 RESGATANDO MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: VIDA, OBRA E CONTRIBUIÇÕES PARA FILOSOFIA E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Olinda Cristina Pacheco SCALABRIN ..................... 141 BIPARTITE: A PRESERVAÇÃO DO RELACIONAMENTO ENTRE A IGREJA E O ESTADO BRASILEIRO NA DITADURA MILITAR Ricardo Augusto Aidar ABIB .................................... 151 ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL DURANTE O PERÍODO DOS HÀN POSTEIORES Rud Eric PAIXÃO..................................................... 161 A VISÃO DE TOMÉ APÓSTOLO PELOS GNÓSTICOS E SUA INFLUÊNCIA SOBRE OS MANIQUEUS Samuel Cardoso SANTANA .................................... 171 O INDIVIDUAL E O COLETIVO NAS INTERPRETAÇÕES DO PASSADO: UMA PERSPECTIVA INTEGRADA ATRAVÉS DE TALCOTT PARSONS Francisco de Assis SABADINI Tatiana Rodrigues MILANELLO .............................. 181 8 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 ALIANÇA POPULAR: JACOBINOS E SANS CULOTTES NA REVOLUÇÃO FRANCESA. Amanda Cristina STEFAN* RESUMO: A Revolução Francesa foi um dos acontecimentos mais marcantes do século XVIII, tanto por sua influência em outras revoluções, quanto pela grande participação popular. Dentro daquilo que consideramos participação popular, destaca-se a aliança formada entre jacobinos e sans culottes, aliança esta que possibilitou a extensão da Revolução num momento em que setores revolucionários de classe média haviam decidido que chegara a hora do conservadorismo. Assim sendo, este artigo tem por objetivo analisar esta relação que se deu entre jacobinos e sans culottes e a sua posterior ruptura por divergências de posições políticas. PALAVRAS - CHAVE: Jacobinos – Sans Culottes – Revolução Francesa Em 1794, Robespierre, considerado líder da Revolução Francesa no período jacobino, presencia a queda de sua popularidade que se encerraria no dia 9 do Termidor. A derrocada do líder revolucionário e do seu apoio popular pode ser explicada pela divergência política com os sans culottes ao longo do processo revolucionário. Para compreendermos esta crise, é necessário entender esta contradição entre os ideais jacobinos e dos sans culottes, e para isso traçaremos um paralelo entre o nascimento do jacobinismo e a aliança com o movimento secionário sans culotte. O Clube dos Jacobinos (que recebeu este nome pois transferiu-se para a biblioteca dos monges dessa ordem: jacobinos) ou Sociedade dos Amigos da Constituição, inicialmente Clube Bretão, Congregava todos os partidários da nova ordem revolucionária, desde Mirabeau e La Fayette, até Robespierre e Marat. A maior parte das questões discutidas na Assembleia Constituinte eram primeiramente examinadas no Clube dos Jacobinos. Sociedades filiadas foram abertas nas províncias, e o Clube dos Jacobinos não cessou em crescer em importância 1 Dessa forma, o objetivo da sociedade era, então, * 1 Aluna do 4º ano de graduação em História, FCHS/UNESP – Franca/SP, sob orientação da Prof. Pedro Geraldo Tosi. Bolsista PET/MEC/SESu. MANFRED, A. A Grande Revolução Francesa. Editora Ícone, 1986. p. 87. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 9 discutir as questões que deveriam ser debatidas na Assembleia Nacional; trabalhar para o estabelecimento e a Consolidação da Constituição; corresponder-se com outras sociedades do mesmo tipo que viessem a se formar no reino2 O Clube começou a crescer e agrupar cada vez mais adeptos, o que significava uma diversidade de opções políticas. Com o aumento do número de membros, as tendências do clube começavam a se delinear em direita, esquerda e de centro. À direita, ficavam os nobres liberais, à esquerda, constavam alguns patriotas declarados (como Robespierre) e o grupo de centro, defensor de uma monarquia liberal, mas não democrática, que manteve uma certa influência dominante dentro do Clube. Somente os patriotas declarados lutavam contra o sufrágio censitário. No entanto, em meados de 1791, o partido patriota (leia-se jacobinos), formado à época da Convenção dos Estados Gerais, viu-se pela primeira vez diante de uma ruptura definitiva. Face à recusa do rei a um compromisso com a burguesia constituinte, que se manifestara tanto com sua fuga em junho de 1791 quanto pela fuzilaria do Campo de Marte no mês seguinte, quando se levantaram as primeiras vozes seguindo a instalação da República, ocorreu uma ruptura que dividiu os jacobinos entre Feuillantes – defensores da continuidade da monarquia, apesar de tudo – e os que permaneceram no Clube Jacobino 3 Dentro do Clube estavam então, os “jacobinos mistos” – expressão utilizada por Michelet, para demonstrar a diversidade política que se encontrava o Clube, que passa a ter duas principais lideranças, a de Brissot, futuros girondinos, que apoiavam a guerra e Robespierre, contrário à guerra. Posteriormente, o clube sofreria uma ruptura ocasionada justamente pela discordância entre o apoio ou não da guerra contra as monarquias européias. Por seu posicionamento político, os brissotistas passam a ter maior influência dentro do Clube, sendo, inclusive, convocados pelo rei Luís XVI ao ministério em Março de 1792. 2 3 VOVELLE, Michel. Jacobinos e Jacobinismo. Editora Edusc. 2000. p. 37. OLIVEIRA, Josemar Machado de. Robespierre e a “oposição de esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. Dimensões: Revista de história da UFES. Vitória. N. 13, p. 28-29, jul/dez, 2001. 10 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Porém, a política de guerra dos brissotistas logo lhes trouxe impopularidade e a radicalização da Revolução, coisa que não desejavam, no momento em que a França passava por um verdadeiro caos provocado pela derrota militar e pela invasão estrangeira4 Então, neste contexto de insegurança, os jacobinos não temem em formar uma aliança com o povo parisiense, os sans culottes,e acabam por romper com a ala mais moderada dos jacobinos, liderados por Brissot. A última alternativa para o radicalismo burguês eram os sans culottes, um movimento disforme, sobretudo urbano, de trabalhadores pobres, pequenos artesãos, lojistas, artífices, pequenos empresários, etc. Os sans culottes eram organizados principalmente nas “seções” de Paris e nos clubes políticos, e forneciam a principal força de choque da Revolução – eram eles os verdadeiros manifestantes, agitadores, construtores de barricadas 5 Esta aliança desembocou na derrubada da monarquia e na vitória da chamada Segunda Revolução Francesa, a da Comuna Insurrecional do 10 de Agosto de 1792, que estabeleceu a República daquele ano. A partir de então, o jacobinismo foi dominado por Robespierre 6 Ainda assim, os brissotistas mantinham postos de extrema importância dentro da Convenção, principalmente por seu grande número de representantes. A partir de então, os girondinos passam a lutar abertamente contra os jacobinos pelo controle das instituições políticas. É importante ressaltar que neste período, início de 1793, a situação da França se agrava em conseqüência da derrota na guerra. Neste momento, uma transformação na ordem política estava prestes a ocorrer. Diante desses fatos, a luta entre girondinos e jacobinos começou a tornar-se favorável a estes últimos. Os girondinos demonstravam clara incompetência para resolver a crise, quando não se bandeavam para o lado inimigo (caso do general 4 5 6 Idem. HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 28. OLIVEIRA, Josemar M. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 11 Dumouriez). Sentindo-se feridos em seus sentimentos patriotas, os sans culottes depositaram todo seu apoio em Robespierre e em seus companheiros. Outro ponto importante para esse apoio foi a desconfiança que tinham face à hesitação dos girondinos em colocar em prática suas principais reivindicações sociais 7 Os sans culottes saudaram um governo revolucionário de guerra, e não apenas porque defendiam com razão que só assim a contra-revolução e a intervenção estrangeira podiam ser derrotadas, mas também porque seus métodos mobilizavam o povo e tornavam mais próxima a justiça social.8 O confronto entre jacobinos e girondinos teve como resultado a expulsão desses últimos da Convenção e a instalação de um Governo Jacobino. Tal acontecimento não seria possível sem o apoio popular. Organizados no movimento sans culottes, possuíam clara influência rousseaniana. Isto quer dizer que sua concepção revolucionária se confundia com a defesa intransigente dos princípios da soberania popular, das quais as seções parisienses pretendiam ser a encarnação prática. Esses elementos da ideologia sans culottes, derivados do pensamento rousseauista que exerceu influência generalizada nas idéias políticas da Revolução, podem ser identificadas nas práticas secionarias, como por exemplo, a idéia de que as assembléias das seções deviam ser permanentes e que dentro delas o voto seria em voz alta (escrutínio aberto) 9 Os secionários (sans culottes), também eram claramente contra a idéia de representação. Revogabilidade, sanção popular das leis e mandato imperativo são palavras de ordem presentes no vocabulário secionista. Portanto, com a instalação da Convenção Montanhesa (Jacobina),em 1793, a Revolução chega ao seu auge do radicalismo. Com a instalação da Convenção, acreditava-se que, finalmente, os interesses populares seriam efetivados, concretizando o ideal de soberania que reside no povo, afinal, jacobinos e sans culottes possuíam praticamente o mesmo discurso, embasados na Teoria de Rousseau. O processo da Revolução, agora nas mãos dos jacobinos, parecia que desencadearia nesse caminho, algumas reivindicações populares foram 7 8 9 12 OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. p.30. HOBSBAWN, Eric. A Revolução Francesa.p. 37. Op. Cit. p. 31. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 admitidas, sobretudo com relação à questão da máxima geral de preços, ou seja, o tabelamento dos gêneros de primeira necessidade. Uma questão chave vem à tona nesse momento da Revolução. Além das reivindicações que estavam ligadas ao abastecimento, a poussé sans culotte (impulso popular) de setembro de 1793 tinha como uma de suas reivindicações a constituição do governo revolucionário. Dessa forma, a aliança jacobino/sans culottes garantiu a formação de um governo revolucionário que se fundamentava num programa baseado na defesa da soberania popular e no apoio às reivindicações sociais do movimento democrático secionário, pelo menos em parte. Sem este programa, teria sido impossível a derrubada dos girondinos e a ascensão dos montanheses ao poder.10 Porém, o estabelecimento do governo revolucionário da ditadura do comitê de salvação pública rompeu com esse programa, já que ele era o resultado de um processo de concentração de poder que se iniciou a partir do início do verão de 1793 e teve sua conclusão em dezembro do mesmo ano, quando o Comitê de Salvação Pública passou a ser o verdadeiro chefe do Executivo, o que significou a concentração de poderes entre as mãos dos mandatários do povo, como a única expressão possível do indispensável despotismo da vontade geral11 Isso significa que, com ascensão dos poderes dos jacobinos, estes mudaram seu discurso ideológico. Da defesa de que a vontade geral deveria ser expressa pela soberania popular, e que esta deveria ser inalienável, passaram a defender a posição de que a decisão política deveria ser transferida para a Convenção, particularmente para o Comitê de Salvação Pública, o que significava uma concentração de poderes nas mãos dos mandatários do povo como única forma de expressão possível. Essa mudança de discurso reside, principalmente, no fato de que o desenrolar da Revolução esteve sempre submetido a uma conjuntura de crise permanente e da necessidade da tomada de medidas urgentes, portanto, de como adequar a teoria política, largamente influenciada pela teoria de Rousseau, à prática. 12 OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. p.32. 11 OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. p.32-33. 12 Idem. 10 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 13 Assim, as tarefas inadiáveis - o combate à contra revolução e à guerra nas fronteiras – ocasionaram nesta mudança de discurso por parte dos principais nomes do jacobinismo. Essa mudança se fez necessária, pois a crise atingia o cotidiano revolucionário, e difíceis escolhas deveriam ser feitas. O governo necessitava ser estruturado, e para isso eram utilizadas medidas que nem sempre eram aquelas que interessavam à população e que não correspondiam aos princípios do governo direto. Dessa forma, defendia-se medidas que eram frutos de um estado de exceção. Nesse processo de adequação da teoria democrática rousseauista à prática, os conteúdos e as práticas do movimento secionário eram logicamente incompatíveis com os procedimentos de exceção defendidos por Robespirre e seus companheiros. Estes procedimentos foram encarados como um óbice ao poder do governo revolucionário. Os robespierristas não hesitaram em fazer com que os elementos que compunham a prática da democracia direta secionaria fossem eliminados um a um13 Com estas medidas, os sans sulottes vão mostrar-se cada vez mais descontentes. O formato democrático que caracterizava as seções, vai sendo aos poucos eliminado pela própria Convenção. As assembléias gerais vão sendo substituídas por apenas duas assembléias por semana, depois duas por décade (cada década correspondia a dez dias no calendário revolucionário), além do fato de os comitês revolucionários ficarem submetidos aos poderes do Comitê de Convenção, que passam a escolher seus membros, antes responsabilidade das assembléias de seção. Assim, através do governo revolucionário, Robespierre e os jacobinos, iniciam uma política do terror, objetivando levar o governo a uma maior centralização do poder nas mãos do Comitê de Salvação Pública. Nesse momento, o movimento secionário vai sendo aos poucos eliminado. Para Robespierre, o governo revolucionário era o único capaz de representar o povo soberano uma vez que correspondia à vontade geral, salientando o caráter ditatorial que assumira o Comitê. Muito diferentes eram as idéias dos hebertistas (principais porta-vozes dos sans culottes), cujos ideais ainda mantinham coerência com a teoria de Rousseau, no sentido de que acreditavam na importância da soberania popular, fato que já não ocorria integralmente com a instauração da ditadura do Comitê de Salvação Pública. 13 OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. p.34. 14 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Na mesma conjuntura política, os jacobinos e porta-vozes do movimento secionário explicitaram claras diferenças em relação à democracia revolucionária. Estas divergências acabaram por levar a uma luta “fratricida” que culminou com o ostracismo destes porta-vozes ou mesmo sua eliminação física, como acabou acontecendo com os hebertistas em março de 1794. 14 As massas, portanto, recolheram-se ao descontentamento ou a uma passividade confusa e ressentida, especialmente depois do julgamento e execução dos hebertistas, os mais ardentes portavozes dos sans culottes15 Por sua vez, o movimento secionário sans culotte, entravado em sua organização de base e agora também sem sua liderança, desarticulou-se a partir desta data. Os robespierristas, olvidando sua dependência em relação à base popular sans culotte, acabaram por ficar à mercê dos inimigos da Revolução Popular. Daí para o 9 do termidor foi um pulo. 16 Assim, o movimento sans culottes, sem seus principais porta-vozes, desarticula-se. Da mesma forma, os jacobinos caem, por não mais possuírem o apoio popular. STEFAN, Amanda Cristina. Popular aliance: jacobina and Sans culottes in the French Revolution. ABSTRACT: The French Revolution was one of the most remarkable events of the eighteenth century, both for its influence in others revolutions, as the great popular participation, a fact sometimes considered unprecedented in History. Within what we consider popular participation, there is the alliance formed between Jacobins and sans culottes, this alliance that made possible the extension of the revolution at a time when revolutionary sectors of the middle class had decided that it was time for conservatism. Therefore, this article aims to analyze the relationship between the Jacobins and sans culottes and their subsequent disruption by differences in political positions. KEYWORDS: Jacobins, Sans Culottes, French Revolution OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. p. 36. 15 HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. p. 45. 16 OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. p.36. 14 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 15 BIBLIOGRAFIA: HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. MANFRED, A. A Grande Revolução Francesa. Editora Ícone, 1986. MARAT, Jean. Robespierre, o Incorruptível. Editora Nova Fronteira, 1971. OLIVEIRA, Josemar Machado. Artigo: Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da democracia revolucionária. SOBOUL, Albert. Camponeses, Sans-Culottes e Jacobinos, Albert Soboul. Editora Seara Nova, 1974 VOVELLE, Michel. Jacobinos e Jacobinismo. Editora Edusc. 2000. 16 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 ENTRE OS EMBATES DA LEI DA ANISTIA Ana Paula Lage DE OLIVEIRA; Tiago Santos SALGADO; Victor Augusto Ramos MISSIATO. RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o processo histórico que acarretou a aprovação da Lei de Anistia (1979) em pleno regime militar e os motivos que levaram tal lei a ter seus princípios ainda discutidos no cenário político brasileiro, revelando uma “disputa” entre membros do governo, que estiveram engajados na luta pelo fim da ditadura, e membros da cúpula das forças armadas pela validade ou não da Lei aprovada em 1979. PALAVRAS CHAVE: Anistia, regime militar, forças armadas. LEI DA ANISTIA (1979) Sancionada no dia 28 de agosto de 1979, pelo presidente general Figueiredo, a Lei de Anistia teve como um dos principais objetivos garantir uma transição tranqüila do regime militar para a democracia. A Lei de Anistia apresentava como intenção paralisar as penas dos acusados de “subversão”, trazer de volta presos exilados, retirar das prisões indivíduos que foram detidos como “inimigos do Estado”, liberar os militares de possíveis crimes cometidos, além de restaurar direitos políticos e sociais; e, assim, fazer uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. Passados quase 20 anos de sua adoção, a Lei de Anistia continua gerando discussões acerca de seu entendimento, visto que alguns de seus artigos geram polêmica devido à suscetibilidade a diferentes interpretações. Durante os últimos meses de 2008, a questão da Anistia foi amplamente debatida no cenário político nacional, gerando desentendimentos entre integrantes do governo, que divergem quanto à amplitude da Lei em relação aos militares, acusados de cometerem torturas contra presos políticos durante o regime militar brasileiro (1964 a 1985), e as Forças Armadas, que alegam que a lei não deve ser alterada. A discussão foi intensificada majoritariamente pelo lançamento do livrorelatório, em agosto de 2007, “Direito à Memória e à Verdade”, que acusa o regime militar de torturas e mortes, além de detalhar os processos de aproximadamente 400 desaparecimentos durante o governo militar. O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, declarou que o livro é um documento oficial, afirmação que gerou o primeiro mal estar entre a cúpula Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 17 do governo e as Forças Armadas, implicando em uma reunião, ocorrida no dia 31/08/2007, com a presença do alto comando do Exército para se discutir a obra. A repercussão causada pelo livro, de acordo com os militares, poderia ter sido evitada, fazendo assim, com que a discussão acerca da Anistia não tomasse uma dimensão tão grande. A discussão ganhou ainda mais divulgação com a chamada “questão Lamarca”. Carlos Lamarca foi um ex-militar, que desertou, e se juntou ao grupo denominado Vanguarda Militar Revolucionária1, se tornando um guerrilheiro. O ministro da Justiça Tarso Genro concedeu anistia post-mortem a Lamarca, decisão que desagradou o alto escalão das Forças Armadas, que entraram com uma representação contrária a concessão da Anistia ao exmilitar, para o Exército, somente poderia ser promovido post-mortem o oficial que ao falecer, satisfizesse as condições de acesso e integrava a faixa dos oficiais, o que não era a situação de Lamarca. Sendo assim, fica clara a posição dos militares quanto à “questão Lamarca”. Os mesmos se colocam de forma contrária aos benefícios concedidos à família de Lamarca, os quais foram suspensos no dia 05/10/07, através de uma liminar concedida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, devido a uma ação movida pelo clube militar, evidenciando uma discordância nítida entre as Forças Armadas, juntamente com o Ministro da Defesa Nelson Jobim, e o Ministro da Justiça Tarso Genro. A questão da Anistia entra definitivamente no campo de discussões entre membros das Forças Armadas e do governo, quando em abril de 2008 os coronéis reformados, Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, que comandaram o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi)2 do segundo Exército em São Paulo durante os anos de 1970 e 1976, são acusados, pelo Ministério Público Federal (MPF) pela morte e desaparecimento de 64 pessoas. Foi a primeira vez que militares foram acusados, pelo MPF, por atos ocorridos na ditadura. Em coluna do jornal Folha de S. Paulo do dia 16 de junho de 2008, Aloysio Castelo De Carvalho e Liszt Vieira defenderam que a luta armada na ditadura militar no Brasil (1964-1985) teve impacto na derrocada do regime político ditatorial. Carvalho e Vieira afirmam que a Lei de Anistia preservou as 1A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foi uma organização brasileira de esquerda que lutou contra o regime militar tendo se formado em 1966 a partir da união dos dissidentes da organização Política Operária (POLOP) com militares remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). 2 O Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi o órgão de inteligência e repressão do governo brasileiro durante o regime militar. 18 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Forças Armadas de qualquer punição referente aos ataques exercidos contra a oposição do governo na época. Citando Locke, os autores justificaram que qualquer ação em resposta a uma opressão política deve ser legitimada, já que é o povo que sofre com isso. Finalizando o artigo, os dois autores disseram que caso a luta armada no pós-1968 fosse considerada equívoca pelos representantes da esquerda, atualmente, ela não sofreria com questões que a enfraquecem, do ponto de vista moral, frente ao seu apoio no atual governo 3. As posições contrárias à revisão da Lei defendem que essa questão já deveria estar encerrada. Nelson Jobim, ministro da Defesa, é um dos que compartilham com esta idéia. Ao ser questionado sobre uma possível mudança no documento, Jobim afirmou que cabe ao Judiciário julgar se é necessário ou não tal revisão. No dia 06/08/08, o general da reserva Gilberto Barbosa de Figueiredo, presidente do Clube Militar, em entrevista para o jornal Estado de S. Paulo, salientou que uma mudança na Lei de Anistia traria mais problemas para os ex-guerrilheiros, os quais combateram o regime militar, do que para os militares. Isso se daria, na opinião de Figueiredo, devido aos arquivos registrados, os quais explicitam os delitos cometidos pelos guerrilheiros. Em nota oficial4, representando o Clube Militar, Figueiredo critica alguns representantes do governo por tentarem fazer com que a Lei de Anistia seja revisada. Além disso, não concorda que agentes de estado sejam punidos por terem torturado prisioneiros no regime militar. Defende que essa Lei foi criada com o intuito de estabelecer uma “pacificação nacional”. No documento, o general da reserva cita o professor Ives Gandra Martins, como um dos juristas que corroboram com a posição do Clube Militar. Para Martins, a anistia firmada na Constituição de 1988, abarcou todos os delitos cometidos por ambos os lados. No final do texto, Figueiredo tenta entender o porquê dessa revisão: Não faz sentido, mesmo, fazer vista grossa para problemas tão graves que afligem a sociedade brasileira hoje, para dar prioridade a fatos de um passado de três décadas, em que a eficácia do que pretendem é juridicamente controversa, pelo menos. A explicação pode estar em um revanchismo doentio ou em preparativos, visando às eleições de 2010. Muito provavelmente em ambos. 3 4 Informe Brasil Nº 297, 5. http://www.clubemilitar.com.br/site/pres/anistia.pdf - visitado em 08/12/2008 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 19 O almirante José Julio Pedrosa, presidente do Clube Naval, caracterizou essa discussão como um ato político. No mês de agosto de 2008, ocorreu no Clube Militar, um seminário com o tema “A Lei de Anistia – Alcance e Conseqüências” 5. Tanto oficiais da ativa como os da reserva estiveram presentes. Essa reunião ganhou um caráter público, com o objetivo de evitar que agentes de Estado da época sejam julgados por violação aos direitos humanos. Esse evento contou com a participação de três seminaristas. O general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho, o doutor Antônio José Ribas Paiva e o ex-ministro do Superior Tribunal da Justiça, Waldemar Zveiter. Coutinho considerou que esse movimento para revisar a Lei de Anistia poderia ser considerado “revanchismo”, por parte de marxistas-leninistas. Esses revolucionários, na opinião do general, desejariam com isso, levar a cabo um projeto socialista e enfraquecer a influência das Forças Armadas na sociedade brasileira: Tudo isso, senhores, para neutralizar as Forças Armadas como trincheiras da burguesia, entre aspas, porque essa é a expressão de Antônio Gramsci, a grande barreira, como foi chamada pela União dos Comunistas Brasileiros que fizeram a sua autocrítica no Chile e em Portugal em 1979. Ribas Paiva trabalhou com a alegação de que a Lei de Anistia foi uma iniciativa da nação brasileira, e não apenas de um ou dois representantes do governo na época. Esse documento serviu de “instrumento para a pacificação nacional”. Continuou sua explanação refletindo sobre o objetivo dessa tentativa de revisão. Para o doutor, a meta a ser alcançada com isso seria fazer com que a sociedade volte a se repartir. Questionou também se essa divisão teria como finalidade manter a população em uma pobreza artificial e continuar usufruindo seus recursos naturais. Waldemar Zveiter alegou que a Lei da Anistia preenche todos os requisitos. Analisa que a tipificação do crime de tortura só se deu em 1997. A Anistia foi ampla, geral e irrestrita. Não tem que se inventar agora que houve tortura e que a tortura não foi anistiada. A tortura não foi anistiada, é preciso que o senhor ministro da Justiça saiba disso, se ele não souber, porque simplesmente não existia como fato típico criminógeno, só por isso. 6 A LEI DA ANISTIA: ALCANCES E CONSEQÜÊNCIAS. Seminário promovido pelo Clube Militar em 07/08/2008. Disponível em: www.undbrasil.org. 6 Idem 5 20 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Pela perspectiva de Adalgisa Bozi Soares, é relevante para a presente discussão, a condenação pela justiça brasileira do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra por um crime cometido no período do regime militar, foi um marco para a sociedade brasileira e também para a retomada das polêmicas sobre a Lei da Anistia. O coronel foi qualificado como torturador apenas, não recebendo nenhum tipo de punição, já que a ação movida foi apenas declaratória, mas Adalgiza considera um avanço significativo. A autora publicou um artigo intitulado “Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade” 7, no qual adiciona a questão das obrigações internacionais do Estado à discussão da lei em questão, incrementando os debates. Adalgisa afirma que a anistia ampla, geral e irrestrita foi uma reivindicação dos Comitês Brasileiros de Anistia à época do presidente Figueiredo e que visava popularizá-la e também exigir a investigação dos agentes de estado envolvidos em crimes contra a humanidade (que não ocorreu). Conforme a autora, em nome da reconciliação, entendeu-se que a lei de anistia era aplicável aos agentes do estado e àqueles que foram perseguidos pelo regime (auto-anistia), conseqüentemente, houve um esquecimento dos crimes cometidos pelos agentes de estado e a falta de identificação desses agentes, ou seja: o estado é impedido de cumprir suas responsabilidades internacionais e os agentes que cometeram os crimes, por falta de identificação, continuam exercendo funções públicas. Conforme colocado pela autora do artigo, “as responsabilidades internacionais do estado são o conjunto de obrigações que nascem para o estado a partir da violação de uma norma internacional. Desta forma, o descumprimento de uma norma internacional, seja ela do direito costumeiro internacional ou codificada em um tratado, exige que o estado cumpra certas obrigações, com o objetivo de compensar as vítimas e impedir que a norma seja descumprida no futuro. No caso específico da tortura, entende-se que o país descumpriu sua obrigação primária de não torturar seus cidadãos.”8 Portanto, com a violação desta norma do direito costumeiro internacional, surgem obrigações secundárias para o estado: descontinuar a violação da norma; comprometer-se em não repetir a violação; deve reparar as vítimas; instaurar um processo contra o indivíduo que cometeu o crime. A questão colocada é: se a anistia foi recíproca, por que o coronel Ustra foi declarado torturador? Porém, o crime de tortura foi interpretado até agora como crime político ou conexo a este, cobertos pela Lei da Anistia, mas, seria 7 8 SOARES, Adalgisa Bozi. Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade. IN: Brasil, Temas da nossa agenda, 2008. Idem. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 21 a tortura um crime político ou um crime contra a humanidade? Essa é a segunda questão a ser refletida, pois, segundo a constituição de 1988, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis a tortura é reconhecida como crime contra a humanidade, sendo assim, imprescritível e não sujeito à graça ou anistia. Retornando ao texto da lei de anistia, não há concessão de anistia a crimes contra a humanidade, apenas a crimes políticos. Segundo Adalgisa, “o entendimento da Lei de Anistia como aplicável aos agentes do estado está em franco desacordo com as regras internacionais. Desta forma, não só o estado brasileiro não protegeu seus cidadãos durante o regime, como recusa a dar-lhes, anos depois, o direito à verdade e à justiça, por meio da punição de seus agentes que cometeram crimes internacionais.” E ela enfatiza: É verdade que muitos setores na sociedade brasileira se posicionam contra a reinterpretação da lei de Anistia, em conjunto com o Ministério da Defesa e outras alas do governo, sob a justificativa de que não se constrói o futuro do país olhando para o passado e alimentando revanchismos. O que estes setores não vêem é que a demanda pela persecução penal dos criminosos vai muito além do revanchismo, sendo justificada primordialmente pelo direito à verdade e cumprimento das responsabilidades internacionais do estado. 9 Mesmo que o aspecto das responsabilidades internacionais do estado seja abstraído, analisando cruamente o fato de um indivíduo (agente do estado ou não) ser hoje considerado um torturador, por crimes cometidos no regime militar, do ponto de vista civil: o indivíduo deveria ser condenado por crime duplamente qualificado (crime político ou conexo e crime contra a humanidade); por um ele seria anistiado, de acordo com o previsto pela Lei da Anistia, mas pelo segundo ele seria culpado e deveria receber punição, já que a pena de um crime contra a humanidade tem efeito retroativo, sendo imprescritível e não anistiável. Os defensores dos direitos humanos no Brasil têm exigido o reconhecimento às vítimas, reafirmando o compromisso do estado com o cumprimento das normas internacionais e comunicando aos agentes do estado do presente que a prática de tortura é inadmissível. Julgando os agentes do estado daquele período, o Brasil poderá assumir com legitimidade o lugar que tem buscado na comunidade internacional, 9 22 Idem Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 distanciando-se da imagem negativa que ostenta no campo da proteção dos direitos humanos de seus cidadãos. Hoje, o Brasil é um dos únicos países, ao lado da Guiana, que ainda não julgou os agentes do estado no período do regime militar e segundo pesquisa feita pelas pesquisadoras norteamericanas Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling (citadas no artigo de Adalgisa Soares), o país registra um aumento no índice de desrespeito aos direitos humanos por agentes do aparato estatal. No entanto, diante de tantas polêmicas, pode-se entender que estamos no meio de uma avalanche de discussões que não levam em conta o interesse e o bem-estar da Nação e da sociedade de forma geral. Estamos presenciando um embate entre dois grupos que insistem em retomar questões ultrapassadas em favor de seus próprios egos. De um lado uma antiga esquerda que (ainda) estaria tentando romancear o movimento comunista do qual fizeram parte, e de outro, os militares que tentam resguardar suas “honras” enquanto estiveram no poder. Se a briga é por poder e/ou por visibilidade e reconhecimento, as autoridades, civis e militares, mas ambas brasileiras, deveriam seguir o conselho de Hannah Arendt quando ela afirma: “quanto mais visível é uma agência governamental, menos poder detém; e, quanto menos se sabe da existência de uma instituição, mais poderosa ela é” (Arendt, 1979:153). Guardadas as devidas proporções, já que a filósofa fala sobre o Estado totalitário de Hitler, a afirmação ainda hoje faz sentido e deveria ser seguida com atenção, valendo como conselho útil a todas as instituições estatais. É evidentemente complicada qualquer discussão acerca da Lei de Anistia, uma vez que, os envolvidos na questão também estiveram envolvidos na elaboração da Lei e nos incidentes que ocorreram durante o regime militar. Fica claro ao setor militar que a Anistia não foi uma “vontade” de um grupo em particular, mas sim, uma reivindicação da sociedade brasileira, que desejava um Estado democrático. Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo Eliane Cantenhêde10 se mostra contrária a esta polêmica, levando em consideração uma série de erros cometidos por membros do governo e por militares, que tem início com as declarações de Tarso Genro e culminam com o seminário no Clube Militar. Em outro artigo publicado, desta vez no jornal O Estado de S.Paulo, por Dora Kramer11 a jornalista atenta para o fato de que apenas ataques verbais não solucionarão a questão e que esta discussão é um espelho dos acontecimentos no último governo ditatorial, portanto, não seria interessante a retomada deste assunto. 10 11 CATANHÊDE, Eliane. Jornal Folha de S.Paulo, caderno Opinião, 07/08/08. KRAMER, Doria. Jornal O Estado de S. Paulo, caderno Opinião, 04/11/08. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 23 Em relação aos militares, os mesmos que desejam proteger a nação e o Estado democrático, parecem se perder em meio a novas interpretações da Lei e da Anistia que apenas enfraquece as Forças Armadas enquanto instituição, esta que tem lidado com militares que apelam, inclusive, a foros com palestras de oficiais de altas patentes, que sugestionam o estabelecimento de um novo tipo de repressão ou um “novo-velho” modo de governar, dando a impressão de que desejam novamente gerir a vida política do país, como nos anos do regime. Quanto à Lei em si, é bem verdade que o crime de tortura só foi tipificado em 1997, conforme bem colocou o ex-ministro Waldemar Zveiter no seminário do Clube Militar: “a lei dos crimes de tortura é a lei 9.455 de 1997 e que foi aprovada em 7 de abril de 1997, por isso a Lei da Anistia não cuidou como não poderia cuidar da tortura.” Porém, em 1988, o Brasil editou uma nova Constituição. E no artigo 5º inciso 3° afirma-se: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Segundo Zveiter, isso demonstra que “Brasil abomina de tal maneira a tortura que inseriu matéria própria de legislação ordinária no texto da Constituição, a criminalização da tortura.” Por um lado, existe um “antes da Constituição de 88” (a.C.) e um “depois da Constituição de 88” (d.C.), e a garantia que o país oferece aos cidadãos de que não serão torturados ocorre d.C. Por outro lado, se a Constituição considera a tortura um crime contra o ser humano, e se há evidências documentais e físicas de que agentes estatais realizaram esse tipo de atividade, e também considerando a tortura um crime imprescritível, o país deveria reconhecer as vítimas, identificar e julgar os criminosos, cumprindo com sua obrigação perante a sociedade e perante a comunidade internacional. Sem luta de egos. Mas isso tem parecido muito complicado. Militares e membros da alta cúpula do governo, uma vez que, estão ocupando cargos onde a principal responsabilidade é resguardar os interesses de toda população, têm o dever de lutar pelos interesses da sociedade, deixando de lado antigas rixas e desavenças. No final das contas, é preciso compreender que o regime militar acabou, e que estamos diante de um país democrático, regime este, que foi conquistado após muitas lutas e vitórias políticas, não apenas de e por um grupo, mas sim, uma vitória do e pelo povo brasileiro. Sendo assim, uma solução razoável seria deixar nas mãos da sociedade a solução, já que a democracia é um valor prezado pelos pólos que discordam nessa discussão. Autoridades do governo e militares e defensores dos direitos humanos e as vítimas... Enfim, toda a sociedade, por meio de um referendo, assim como foi realizado em 2007 com a questão das 24 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 armas, poderia decidir a questão da anistia e isso sim reconciliaria o país e traria o bem-estar à Nação, organizando e integrando a sociedade brasileira, conforme pretendia o regime militar e também com o que os governos atuais também deveriam desejar. Ana Paula Lage DE OLIVEIRA; Tiago Santos SALGADO; Victor MISSIATO. Clashes between the Amnesty Law ABSTRACT: This article aims to analyze the historical process that led to the adoption of the Amnesty Act (1979) on the military regime and the reasons why such a law to take its principles also discussed the political scene, revealing a "dispute" between members government, who were engaged in the struggle to end dictatorship, and members of the dome of the armed forces for the validity or otherwise of the act passed in 1979. KEYWORDS: Amnesty, military regime, army REFERÊNCIAS: A LEI DA ANISTIA: ALCANCES E CONSEQÜÊNCIAS. Seminário promovido pelo Clube Militar em 07/08/2008. Disponível em: <http://www.undbrasil.org/>. CARVALHO, Aloysio. Geisel, Figueiredo e a liberalização do regime autoritário (1974-1985). Dados [online]. 2005, v. 48, n. 1, pp. 115-147. ISSN 0011-5258. OBSERVATÓRIO CONE SUL DE DEFESA E FORÇAS ARMADAS. Informe Brasil. Nº 290 a Nº 315. GEDES, 2008. OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor. Forças Armadas, transição e democracia. Campinas, S.P. Ed: Papirus, 1994. SCHELP, Diego. Questão fora de lugar. Revista Veja, Editora Abril. São Paulo, número 2086, 2008. Pág 64-65. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 25 A EXPORTAÇÃO DA DEMOCRACIA COMO POLÍTICA EXTERNA DOS ESTADOS UNIDOS Ariel Andrade de PAULA* RESUMO: Este artigo objetiva explanar acerca da correlação entre o conceito de espírito do capitalismo, de Weber, e a política exterior dos Estados Unidos, e como os dois fundiram-se em uma lógica que levou à expansão da democracia como norteadora das relações externas desse país. PALAVRAS-CHAVE: Estados Unidos, Política Externa, Democracia É possível traçar-se uma relação entre o conceito weberiano de espírito do capitalismo e a política americana? É a isso que o presente trabalho se propõe; mas não se faz possível traçar essa relação sem antes tomar-se por pressuposto algo inerente não apenas àquele país, mas à todos, que é o de que uma dada atitude no plano de relações com outras nações não está desvinculada da política interna, pelo contrário, é esta que guia-a. Weber defende que o capitalismo, na sua expressão ocidental plena, é gerido por um ethos, “uma atitude mental da qual deriva o espírito capitalista especificamente moderno como um fenômeno de massa” 1; mais à frente ele prossegue, dizendo: O oponente mais importante contra o qual o “espírito” do capitalismo – no sentido de um estilo de vida normativo baseado e revestido de uma ética – teve de lutar, foi esse tipo de atitudes e reação às novas situações, que podemos designar como tradicionalismo.2 Em sua obra O Império do Medo, Benjamim Barber critica o moralismo americano na política, sobretudo sua crença em seu próprio excepcionalismo perante os demais povos, o que tem guiado desde os fundamentos dos Estados Unidos sua política externa; à isso corrobora várias declarações de estadistas americanos, como uma relativamente recente, do então presidente George W. Bush de que “[...] os Estados Unidos são na face da Terra a * 1 2 Orientado pelo prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2001. p. 45. Idem p. 46. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 27 nação mais importante, povoada pelo maior número de gente decente”3. O processo demográfico de colonização que o território que futuramente seriam os Estados Unidos sofreu foi marcadamente uma ocupação de sectários de doutrinas religiosas puritanas, o que marcou profundamente a cultura desse país4; tais doutrinas, transplantadas para as atividades seculares, exerciam forte controle sobre todos os aspectos do cotidiano e da própria política e administração pública, exigindo o respeito aos valores cristãos por elas propalados, muitos dos quais em nada diferiam do tradicionalismo observado pelos católicos. Desta feita, como explicar a concomitante expansão do capitalismo ali, já que este, para mais poder se expandir e fortalecer, precisa desconsiderar muitas das verdades defendidas pela religião? O próprio Weber ressalta que Em geral, não há apenas uma ausência de qualquer relação entre as crenças religiosas e a conduta, mas também, onde existe alguma, [...] tende a ser do tipo negativo. Tais pessoas [capitalistas], dominadas pelo espírito do capitalismo tendem a ser hoje indiferentes, se não hostis para com o Igreja. 5 Acontece que nos Estados Unidos houve a fusão de duas noções diferentes, como o ressalta William Fulbright 6, o que redundou na fusão de duas novas outras noções, que embora não excludentes reciprocamente, não são equivalentes. A primeira dessas fusões foi a entre democracia e liberdade, e a segunda entre liberdade e livre-mercado, o que resultou na tentativa de – ignorando aqui quaisquer outros interesses – exportar o capitalismo e a democracia, para o bem de todos, como se fossem termos correlatos. Desde as primeiras aventuras no México antes da Guerra Civil [...] até a guerra no Vietnã, os Estados Unidos sempre conseguiram encontrar motivos idealistas para justificar intervenções que não podiam ser explicadas pela necessidade de autodefesa [...]. Isso foi o que aconteceu no caso de Cuba e na campanha para “libertar” as Filipinas da Espanha (1898), assim como nos casos 3 4 5 6 Pronunciamento de 28 de novembro de 2002. Citado em: BARBER, Benjamim. O Império do Medo. Guerra, terrorismo e democracia. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.78. Cf. KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2008; e RÉMOND, René. História dos Estados Unidos. São Paulo: Difel, 1961. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. p. 55. Cf. FULBRIGHT, J. William. Velhos mitos e novas realidades. Rio de Janeiro: Record, 1965. 28 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 do México (1914), Haiti (1915), República Dominicana (1916 e, de novo, 1965) e Granada (1983). As razões alegadas resultavam das virtudes excepcionalistas da América do Norte – sua vontade de ampliar o âmbito da liberdade, introduzir a prática do livre mercado aos seus parceiros comerciais, levar a democracia ao mundo inteiro. 7 Com o tratado de 1783, as 13 Colônias obtiveram formalmente a independência da Grã-Bretanha, contudo, muitos dos demais países da Europa esperavam que a experiência republicana além-Atlântico seria falha, já que não desejavam que seus princípios contagiassem outras possessões européias. Assim, houve um longo período até o reconhecimento dos Estados Unidos como um Estado legítimo – Portugal só o reconheceu em 1791, a Rússia o fez em 1809, por exemplo – o que acarretou certos agravos, como a proibição de navios americanos de atracarem em muitos dos portos europeus. Mesmo uma década após o tratado de 1783, ainda haviam tropas inglesas em território americano, assim como eram também frequentes incursões de franceses e espanhóis. Mais tarde, com as guerras resultantes da Revolução Francesa, os Estados Unidos viram-se envolvidos nos antagonismos entre os países europeus por mais de duas décadas, acarretando em uma segunda guerra contra os ingleses, de 1812 a 1814, e conflitos, embora não sendo guerras declaradas, permeados de combates marítimos e terrestres, contra França e Espanha. Visando proteger os Estados Unidos dos embates entre os europeus, George Washington, o primeiro presidente americano, adotou a política de neutralidade, o que em geral afastou inimigos em potencial, mas também afastou possíveis aliados ou parceiros. A chamada “Mensagem de Despedida”, de Washington, de 1796, continha uma norma de conduta que norteou o país por todo o século XIX – podendo ser extendida sua influência, inclusive, aos século XX e XXI – que tinha por objetivo livrar os Estados Unidos do que mais tarde alcunharia Thomas Jefferson de “enredo das alianças”, isto é, livrá-lo das alianças permanentes8. Washington diz: A principal norma de conduta para nós, no que se refere a países estrangeiros, é ampliar nossas relações comerciais com eles e, ao mesmo tempo, ter tão poucas ligações políticas quanto possível. Cumpramos com inteira boa fé os compromissos até agora assumidos, mas paremos neles. Os 7 8 BARBER, Benjamin. O Império do medo. Rio de Janeiro: Record, 2005.p. 75-76. Cf. BERDING, Andrew. A formulação da política exterior dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1966. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 29 interesses essenciais que guiam a Europa pouco ou mesmo nada têm que ver conosco. Por causa deles, ela se vê frequentemente a braços com querelas cujas causas são basicamente estranhas a nossas preocupações [...]. Nossa verdadeira política é evitar alianças permanentes com qualquer país do mundo [...]. 9 A ideia de uma Europa submersa em problemas e querelas, em contraste com a América dinâmica e inovadora, levou ao isolamento dos Estados Unidos10; num plano mais pragmático o posicionamento foi delineado pela concepção, vinda de George Washington, de que alianças temporárias seriam o bastante para defender o país de qualquer imprevisto. A guerra de 1812-1814 contra os ingleses foi um caso extraordinário, dado que estes haviam desrespeitado a autoridade americana prendendo marinheiros estadunidenses e submetendo-os a trabalhos forçados em navios de guerra; à isso somou-se a possibilidade de expansão territorial, com a anexação do Canadá e a conquista da Flórida, que, embora não fossem regiões tomadas, sofreram com o rompimento das relações entre os ingleses e os indígenas, no Território Noroeste; independentemente das razões, “a Guerra de 1812 [...] confirmou a independência da América, e contribuiu para o patriotismo e orgulho nacionais.”11 Depois da segunda guerra contra os ingleses, os Estados Unidos dedicaram-se novamente ao isolamento para com o exterior, enquanto no plano “interno” iniciaram mais efetivamente a expansão territorial: em 1803 há a compra da Lousiana, o que dobra a extensão total do território americano; em 1819 a Espanha cede aos Estados Unidos todas as suas terras a leste do Mississípi; em 1848, com o tratado de Guadalupe Hidalgo, extendem suas fronteiras ao sudoeste, abrangendo o que é hoje a Califórnia, Nevada, Utah e partes do Arizona, Colorado, Novo México e Wyoming; em 1853 há a compra da região do vale de Gila River; em 1867 há a compra do Idem. p. 19. Donald Brandon, em A política externa americana, nota que, apesar do “sentimento de superioridade e desdém para com as desavenças e forças políticas européias e a crença de que o Novo Mundo não poderia ser preservado de influências européias corruptoras se a América se tornasse enredada em assuntos do Velho Mundo, [...] a distanciada posição física dos Estados Unidos em relação aos centros de conflito internacional foi, entretanto, a causa principal do isolacionismo”, cf. BRANDON, Donald. A política externa americana. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1967, p.26. Não cabe aqui fazer o balanço de qual dos fatores foi o mais preponderante, nem considerar outros fatores quaisquer, se atenhará apenas a influência da cultura americana na política externa dos Estados Unidos. 11 BRANDON, Donald. A política externa americana. p. 30. 9 10 30 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Alasca. Essas aquisições só foram possíveis pelo sucesso dos americanos em explorar os conflitos de interesses entre os europeus, através de empreendimentos em parte diplomáticos e em parte comerciais, e em parte também militares, só que contra os indígenas. Além disso, a expansão, a “Marcha para Oeste”, evitava a formação de países autônomos nessa região, bem como evitava o perigo do surgimento de novas colônias européias na América do Norte. Além disso, o incentivo que os futuros ganhos econômicos propiciavam foram significativos: segundo Andrew Berding, as estradas de ferro passaram de 23 milhas em 1830 para 30.626 milhas em 1860, assim como a marinha mercante observou um aumento, no mesmo período, de 1 milhão para 5 milhões de toneladas brutas comercializadas, o incremento financeiro daí decorrente foi o crescimento, entre os anos de 1821 e 1860, de 35 milões para 217 milhões de dólares em importações da Europa, e de 25 milhões para 249 milhões em exportações.12 Um senso de singularidade e superioridade moral com relação ao Velho Mundo levou os americanos do século dezenove a distinguirem entre expansão continental dos Estados Unidos e o colonialismo ultramarino das potências européias. O movimento da América rumo ao oeste foi visto como uma inevitável e justificada extensão de democracia e civilização, enquanto o imperialismo europeu era observado como o produto de dinástica voracidade econômica e cobiça por prestígio e poder. Foi pela natureza das coisas que a jovem República pôde tirar vantagem do perigo europeu e da fraqueza do índio nativo para ocupar o vácuo de poder no continente norte-americano.13 Foi defendendo a idéia da democracia – liberdade, em outros termos – que o entusiasmo popular se elevou, e muitos queriam o envio de uma força expedicionária americana para auxiliar os gregos no seu movimento separatista contra o Império Otomano, ou para auxiliar os húngaros em ação correlata para com a Áustria dos Habsburgo. A pressão exercida pelo povo e a necessidade de manter a independência dos Estados Unidos, levou à formulação da Doutrina Monroe, em 1823, que em um ultimato enviado às nações européias assegurava que os Estados Unidos não tolerariam qualquer ação de caráter colonizador no continente americano, apesar de garantir a não-interferência em nas colônias já existentes. Essa doutrina culminou na intervenção dos Estados Unidos no México, após Napoleão III instalar Maximiliano como imperador desse país. Infere-se que a prática do isolacionismo e da Doutrina Monroe garantiam aos Estados Unidos evitarem os problemas do resto do mundo, ao mesmo tempo que garantiam Cf. BERDING, Andrew. A formulação da política exterior dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1966, p.22-23. 13 BRANDON, Donald. A política externa americana. p. 31. 12 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 31 imunidade, ao menos ideológica, contra possíveis ataques, e legitimidade para realizar suas próprias investidas, como foi no caso da abertura comercial forçada do Japão, em 1854, e a declaração do presidente Tyler, em 1842, de que os Estados Unidos não tolerariam a perda de independência do Havaí, apesar de em 1898 esse arquipélago acabar sendo anexado pelos americanos, assim como o foram as Filipinas, Porto Rico e ilhas no Caribe e no Pacífico.14 O período da Guerra Civil não teve grandes abalos na política exterior, os governos europeus assistiam ao conflito esperançosos de que acarretaria em um equilíbrio de poder, semelhante ao que ocorria na Europa, só que no caso dos Estados Unidos seria um equilíbrio restrito ao Norte-Sul; o principal motivo da não participação de outro país no conflito foi o sentimento antiescravagista no mundo que evitou a ajuda européia a Confederação. A mudança da atitude isolacionista americana só se alteraria verdadeiramente com o fim da II Guerra Mundial; mesmo no período pré e pós-I Guerra, e durante a própria, os Estados Unidos mantiveram sua política de isolamento e defesa da liberdade. A entrada do país na guerra foi em prol da democracia – à revelia do fato da Rússia czarista ser um dos Aliados – a justificativa do presidente Woodrow Wilson em declarar guerra à Alemanha deu-se nos seguintes termos: Devemos lutar pelas coisas que sempre tivemos mais chegadas aos nossos corações: pela democracia, pelo direito daqueles que se submetem à autoridade para ter uma voz em seus próprios governos, pelos direitos e liberdades de pequenas nações e por uma soberania universal de direito, em forma de um concerto de povos livres, que traga paz e segurança a todas as nações e faça o próprio mundo livre, afinal.15 Os ideais democráticos alardeados não podem tampouco obnubilar os proveitos auferidos economicamente, como, segundo Donald Brandon, os US$1.900.000.000 em empréstimos aos Aliados16 , antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, e os grandes lucros auferidos por empresas americanas no trabalho de reconstrução de uma Europa da qual o potencial agrícola e industrial foram reduzidos em 30% e 40%, respectivamente.17 Cf. BRANDON, Donald. A política externa americana. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1967, p.34-35. 15 BRANDON, Donald. A política externa americana. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1967, p.55. 16 Idem. p.51. 17 Cf. MILZA, Pierre. De Versailles a Berlin (1919-1945). Paris: Masson, 1968, p.13. 14 32 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Mesmo em face das transformações causadas por essa guerra, os Estados Unidos mantiveram seu isolamento; à partir de 1930 ocorreram uma série de ameaças à paz mundial, como a invasão da China pelo Japão, da Etiópia pela Itália, o crescente poderio da Alemanha reconstruída e o culto hitlerista da força e da violência, assim como a Guerra Civil Espanhola; ainda assim, o governo americano e a sociedade americana eram favoráveis ao não-envolvimento do país, o que redundou nas Leis de Neutralidade, que impediam a prática de qualquer ato que pudesse trazer a guerra aos Estados Unidos. Com o início de um novo conflito mundial, as Leis de Neutralidade apenas retardaram, mas não puderam impedir, a participação americana nos combates, a partir de 1941. Após a vitória sobre o Eixo, os Estados Unidos empenharam-se em expandir a democracia; seu papel de grande potência garantiu o apoio de diversos países ocidentais, que tanto necessitavam de ajuda para se reerguerem quanto temiam o avanço do comunismo, ou até mesmo uma invasão soviética. O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, de 1947, foi um primeiro esforço americano nesse sentido, seguido da criação da OTAN, para, sobretudo, garantir a liberdade da Europa, assim como vieram tratados menores, regionais, como ANZUS18 (1951), OTASE19 (1954) e CENTO20 (1959); a preeminência inicial dos Estados Unidos na ONU foi assegurada, tendo em vista que o principal órgão dessa instituição, o Conselho de Segurança, tinha um número de membros permanente favorável à sua política – as excessões eram China e União Soviética, que sozinhas não conseguiam fazer frente à coalizão Estados Unidos, Reino Unido e França – só mais tarde enfrentariam problemas com a divisão entre seus parceiros e o surgimento de interesses entre eles, conflitantes aos seus. Diferentemente do que havia acontecido ao fim da I Guerra Mundial, nesse novo contexto os Estados Unidos viam-se ameaçados por uma outra potência, cuja ideologia era assimetricamente contrária à sua. Apesar da inicial vantagem americana pela posse exclusiva da bomba atômica, já em 1949 os soviéticos realizaram a primeira detonação desse artefato, o que levou ao “equilíbrio de terror” que marcaria a Guerra Fria. A origem da oposição americanos-soviéticos – ou capitalismo-socialismo – tem origem anterior: durante o desenrolar da II Guerra Mundial, Roosevelt e Churchil uniram-se não-oficialmente para um possível embate contra a União Soviética, a qual, eles acreditavam, não resistiria à atração oferecida pelos espólios da guerra, sobretudo o que concerne à aquisição de novos 18 19 20 Aliança para Ajuda Recíproca entre Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos. Organização do Tratado do Sudeste Asiático. Organização do Tratado do Centro Asiático. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 33 territórios, pelo vácuo deixado pela derrota do Império Hitlerista. Em 5 de maio de 1946, em uma viagem pelos Estados Unidos, Churchil, ao lado do recém-empossado presidente Truman, declarou que Uma sombra desceu sobre o cenário até há pouco iluminado pelas vitórias aliadas. Ninguém sabe o que a Rússia Soviética e sua organização internacional comunista pretende fazer no futuro imediato, ou quais são os limites, se é que os há, para as suas tendências expansionistas e proselitistas. [...] De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente. Atrás daquela linha todas as capitais de antigos Estados do Centro e do Leste europeu, Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia [...] vivem no que se poderia chamar de esfera soviética e todas estão sujeitas, de uma forma ou de outra, não apenas à influência soviética, mas em crescente medida ao controle de Moscou. [...] Quaisquer conclusões que possam ser tiradas destes fatos – e fatos eles são – esta não é certamente a Europa libertada que lutamos para construir. Também não é uma que contenha os ingredientes de uma paz permanente. (BARROS, p.19-20)21 A chamada Doutrina Truman foi consequência desse raciocínio expresso por Churchil, ao qual uniu-se a idéia americana de que com a implementação de mercados livres desenvolvidos, que garantiriam a liberdade de escolha e a liberdade nas relações, seria possível manter a democracia, pois [...] as sementes do totalitarismo nutrem-se na miséria e na necessidade. Elas se espalham e crescem no solo mau da pobreza e das lutas, atingindo seu completo desenvolvimento quando a esperança do povo em uma vida melhor desapareceu.22 À necessidade – do ponto de vista americano – de defesa da democracia unia-se a necessidade de propagação do capitalismo, como se ambos formassem um todo articulado, ou até mesmo a mesma coisa. A Doutrina Truman preconizou, dessa meneira, dois modos de ação: ajuda financeira e intervenção militar. O primeiro caso é marcado sobretudo pelo Plano Marshall, iniciado em 1947, que oferecia recursos financeiros aos países destruídos pela 21 22 BARROS, Edgard Luiz de. A Guerra Fria. Campinas: Atual, 1988.p. 19-20. Discurso de Truman ao Congresso, no dia 12 de março de 1947. Citado em BARROS, Edgard Luiz de. A Guerra Fria. Campinas: Atual, 1988, p.25. 34 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 guerra23; a reconstrução do Japão, após sete anos de ocupação americana, seguiu o mesmo plano, tendo em vista a formação de um baluarte democrático no Extremo Oriente, para se antepor ao comunismo. O segundo caso é o das guerras periféricas nas quais os Estados Unidos se envolveram ou então financiaram, como é o caso do apoio, frustrado, ao Kuomitang, o governo conservador chinês presidido por Chiang Kai-Shek contra o Exército Popular comunista liderado por Mao Tsé-Tung; a participação na Guerra da Coréia, na qual os Estados Unidos tiveram que se contentar, após a perda das vidas de 142.000 cidadãos americanos, com o simples armistício de Panmunjom, de 1953, e que consolidou o poder de Kim Il Sung, o ditador comunista local; e a igualmente frustrada campanha no Vietnã, de 1964 a 1974. Os Estados Unidos, seguindo essa programática militar, também apoiaram, com o envio de armas, ajuda logística e de treinamento, reforço diplomático e envio de dinheiro, outros tantos conflitos, no Laos, Tailândia, Panamá, Guatemala, entre outros, sendo que essas intervenções indiretas foram ainda mais acentuadas na América do Sul, com o financiamento de ditaduras de direita para reprimir revoluções em andamento ou em potencial. No plano interno, os Estados Unidos por um longo tempo adotaram a doutrina do senador McCarthy de perseguição à todos que exercessem “atividades anti-americanas”, o que levou à grandes expurgos que acabaram em prisões e no interrompimento de muitas carreiras, isso foi marcadamente mais forte entre artistas e intelectuais acusados de subversão. Para convencer a opinião interna da justeza da luta contra os soviéticos, e a opinião externa das excelências do capitalismo-democracia, o governo americano, através da mídia, propagou a noção de american way of life, isto é, a superioridade moral americana alcançada pelo sucesso material, o modo de ser americano. Pressionada pelos Estados Unidos, com suas campanhas econômicas, militares e ideológicas, a União Soviética adotou medidas que, para muitos dos que vivenciaram o evento, quase levaram ao início de uma guerra entre as duas potências, que foi a instalação de mísseis nucleares em Cuba, em 1962, à 150 quilômetros do território americano. A obstinação do governo americano em não aceitar essa situação forçou os soviéticos a retirarem os mísseis, evitando um conflito. 23 Vale ressaltar que Stálin rejeitou essa ajuda, embora dela necessitasse, e isso “não apenas porque teria sido obrigado a revelar a assustadora exaustão da URSS e a terrível lacuna em sua mã-de-obra, mas principalmente porque temia a penetração norte-americana na Europa Oriental (e até mesmo em seu próprio país), que poderia impulsionar todas as forças anticomunistas locais e fomentar a contra-revolução” (BARROS, p.28-29). Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 35 Mesmo antes do episódio da crise dos mísseis em Cuba via-se a necessidade da adoção de políticas menos agressivas, a União Soviética iniciou assim uma campanha de conscientização da sua própria população da grande ameaça que era a possível guerra nuclear; o premier Nikita Kruschev chegou a afirmar no XX Congresso do PCUS, em fevereiro de 1956, que [...] o princípio da coexistência pacífica está ganhando cada vez mais aceitação internacional. E isso é lógico, pois não há outra saída para a situação atual. Na realidade, só existem duas soluções: a coexistência pacífica, ou, então, a mais devastadora guerra da História. 24 Contudo, nos Estados Unidos, tanto entre o Congresso, como entre o Pentágono e a mídia, havia a tendência em considerar essa atitude dos soviéticos como sendo uma armadilha, preparada para fazer com que os americanos reduzissem seus armamentos, e desse modo ficassem expostos à violência de um ataque por parte deles, soviéticos; mesmo ações como a retirada do Exército Vermelho da Áustria, em 1955, e a aproximação diplomática soviética para com a República Federal da Alemanha não bastaram para dirimir as suspeitas. O apelo americano em pintar a União Soviética como o “Império do Mal”, eternamente à conspirar contra a liberdade e todos os demais valores ocidentais sofreu sério abalo quando, a 5 de maio de 1960, Kruschev anunciou a queda de um avião U-2 americano sobrevoando o espaço aéreo soviético, em missão de espionagem, o que destruiu a oportunidade de um entendimento entre os dois países na conferência que seria realizada em Paris naquele mês. As desconfianças recíprocas permaneceram até o fim, com a derrota econômica soviética, décadas depois, no que foi considerado nos Estados Unidos como o segundo triunfo dos americanos sobre o totalitarismo. O quadro posterior da política externa americana, durante a década de 90, foi a preeminência inconteste em todos os setores, fosse econômico, militar, político, cultural e científico, após o colapso da sua antiga rival, em 1991, e a abertura político-econômica da Rússia e de todos os demais países que formavam a União Soviética. A preponderância americana, sua situação de única super-potência do mundo, levou os Estados Unidos, adotando políticas unilaterais, à desprezarem durante essa década muitas iniciativas de outros países para a defesa do meio-ambiente, tema que ascendeu consideravelmente na última década; como também à desprezarem as tentativas de equilíbrio econômico mundial e propostas de reformulação da 24 36 BARROS, Edgard Luiz de. A Guerra Fria. p. 69-70. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 ONU, e também as próprias deliberações dessa entidade, que no passado só foi possível a criação pela participação americana. Na década seguinte, já século XXI, os Estados Unidos revigoraram o mito de excepcionalismo americano depois do atentado de 11 de setembro que resultou na corrida pela caça a terroristas. O atentado terrorista em Nova York mostrou aos Estados Unidos, e ao mundo, o poder do medo sobre a população, e também mostrou as limitações que o poderio militar tradicional representam em contraposição aos novos métodos destrutivos implementados como tática de guerra.25 Não apenas isso, mas mostrou, sobretudo, a ineficiência em se ater à modelos de fronteiras nacionais para realizar atos políticos de grande vulto. A resposta dos Estados Unidos foi o uso da guerra preventiva, justificada pelo fato de que as nações vulneráveis a agressões terroristas são isentas da obrigação para com as normas morais e legais que regem as guerras tradicionais; assim, os Estados Unidos se autoeximiram da responsabilidade por desrespeitar a soberania do Afeganistão e do Iraque, quando das suas invasões, respectivamente em 2001 e 2003, alegando que esses países abrigavam e financiavam grupos terroristas. O governo americano, invertendo os valores defendidos pela comunidade internacional, não apenas justificaram seus atos, mas afirmaram a missão cruzadística de liderar o mundo contra o Mal, seguindo sua política rotineira de intervenções iniciada com a guerra contra o México, passando pela intervenção na Alemanha durante a I Guerra Mundial, no Vietnã, no Chile e, mais recentemente, na Somália. Apesar de mudanças na atual administração Obama, é difícil dizer até que ponto essa tendência de expansionismo bemintencionado foi tolhida, espera-se que – não fazendo aqui qualquer apreciação valorativa – os Estados Unidos superem suas deficiências nas relações com as outras nações, ainda que seja pouco provável que características tão entranhadas na cultura possam ser tão facilmente abandonadas. Os recentes acontecimentos no Magreb e no Oriente Médio expuseram a fragilidade diplomática na qual os Estados Unidos se encontram: em virtude dos malfadados projetos pelo Iraq Freedom e pela destruição efetiva do Talibã, o governo americano vê-se agora tolhido para fazer qualquer ação de vulto na Líbia ou no Iêmen, por exemplo, para defender sua tão querida democracia, já que qualquer intervenção direta poderia soar como um oportunismo visando a dominação desses países, como no caso do Iraque e do Afeganistão. 25 Independente de serem atos terroristas, as práticas de implementação de bombas, uso de aviões como mísseis, e o suicídio objetivando não só a própria morte, mas também o homicído, não deixam de ser técnicas de combate, isto é, formas de se sobrepor, pela violência, a um dado inimigo, seja destruindo-o ou dominando-o. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 37 Em resposta a uma possível ligação entre o espírito do capitalismo weberiano e a condução da política externa dos Estados Unidos pode-se dizer que sim, os dois estão intimamente interligados. Para Weber, “ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é [...] o resultado e a expressão de virtude e de eficiência em uma vocação”26 , para os americanos ganhar dinheiro, isto é, produzir dentro do sistema capitalista, e consumir o que é produzido, requer também expandir o capitalismo, assim também que para se ser um verdadeiro democrata não basta viver a democracia, é preciso exportála; contudo, isso é ocioso de se dizer pois, aparentemente, os Estados Unidos são permeados pelo princípio de que ser capitalista é ser livre. PAULA, Ariel Andrade de. Democracy as United States’ foreign politic. ABSTACT: This article objective to explain about the correlation between the concepts to capitalism’s spirit and United States’ foreign politic and as it’s fused in an expansion of democracy’s logic as guide of foreign relations of this country. KEYWORDS: United States of America, Foreign Politic, Democracy REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARBER, Benjamin. O Império do medo. Rio de Janeiro: Record, 2005. BARROS, Edgard Luiz de. A Guerra Fria. Campinas: Atual, 1988. BERDING, Andrew. A formulação da política exterior dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1966. BRANDON, Donald. A política externa americana. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1967. FULBRIGHT, J. William. Velhos mitos e novas realidades. Rio de Janeiro: Record, 1965. ______. A arrogância do poder. São Paulo: IBRASA, 1969. KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2008. MILZA, Pierre. De Versailles a Berlin (1919-1945). Paris: Masson, 1968. RÉMOND, René. História dos Estados Unidos. São Paulo: Difel, 1961. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2001. 26 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. p. 42. 38 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 A CONSTRUÇÃO DO NACIONALISMO: A NAÇÃO REVOLUCIONÁRIA Bárbara Mariani POLEZ* RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar o surgimento e a constituição do conceito de nação e nacionalismo, perpassando o século XVIII e o XIX. Com essa finalidade leva-se em conta a Revolução Francesa; um marco da história universal que inaugurou o sentido moderno do termo nacionalismo. PALAVRAS-CHAVE: nação – nacionalismo - revolução O final do século XVIII foi marcado pela crise do Antigo Regime europeu e seus sistemas econômicos, suas últimas décadas se depararam com intensa agitação política. A quantidade de agitações políticas é tão grande que alguns historiadores mais recentes falaram de uma ‘era da revolução democrática’, na qual a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora o mais dramático e de maior alcance e repercussão. (HOBSBAWM, 1996, p. 10) A Revolução Francesa foi uma das mais importantes (se não a mais importante) revoluções que já ocorreram. Por não ter sido um fenômeno isolado, ela foi muito mais fundamental que outros fenômenos contemporâneos e, portanto, suas conseqüências foram mais profundas. Ela, diferentemente das outras revoluções que a precederam ou a seguiram, foi uma revolução social de massa, foi a única ecumênica: a Revolução Americana foi crucial para a história americana mas foi pouco relevante em outras partes do mundo, enquanto que a Revolução Francesa foi um marco em todos os países. Suas repercussões ocasionaram os levantes que levaram à libertação da América Latina em 18081. Sua influência se estendeu até Bengala, onde inspirou o primeiro movimento de reforma hindu, predecessor do nacionalismo indiano moderno. “A Revolução Francesa é, assim, a revolução do seu tempo, e não apenas uma revolução [...]” (HOBSBAWM, 1996, p. 13) Sendo assim, a economia no século XIX foi fortemente influenciada pela Revolução Industrial inglesa, enquanto que a ideologia e a política foram Aluna do 3º ano de graduação em História, FCHS/UNESP – Franca/SP, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi. Colaboradora PET/MEC/SESu. 1 HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. * Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 39 constituídas pela Revolução Francesa. A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo. Foi ela que inaugurou (em seu sentido prático) o conceito e o vocabulário do nacionalismo. El nacionalismo, tal como lo entendemos nosotros, no es anterior a los últimos cincuenta años del siglo XVIII. La Revolucíon Francesa fué su primera gran manisfestacíon, dando al nuevo movimeinto una fuerza dinâmica creciente. (KOHN, 1949, p. 17) Pode-se dizer que o sentido moderno do termo nacionalismo apareceu durante o século XVIII. Muitas vezes e por muito tempo foram usados critérios simples como língua, etnia, território comum, história comum, traços culturais comuns, dentro outros para explicar porque certos grupos se tornaram “nações”, sendo esta uma abordagem objetiva. Contudo, essa tentativa falhou, uma vez que esses critérios são em si mesmos ambíguos e mutáveis. Hobsbawm (1990) ainda afirma que não é possível reduzir a “nacionalidade” a uma dimensão única, seja política, cultural, etc. Há pessoas que podem identificar-se como judeus mesmo que não partilhem da religião, língua, cultura, tradições, herança histórica, padrões grupais de parentesco ou de uma atitude em relação ao Estado judeu. (HOBSNAWM, 1990, p. 17 e 18) Assim, para se estudar a “questão nacional” é mais proficiente abordar primeiramente o conceito de “nação”. Dentre os aspectos abordados por Hobsbawm em relação à nação se encontra: o nacionalismo (na definição de Gellner2) que fundamentalmente é um princípio que sustenta que a unidade política e nacional deve ser coerente, trata-se de um imperativo de legitimidade política; as fronteiras étnicas não se devem sobrepor às fronteiras políticas, nem devem separar os detentores do poder de um determinado estado das restantes populações, isto é, as populações aspiram estar reunidas sob a autoridade de governantes que pensam ser-lhes semelhantes. 2 Foi um filósofo e antropólogo social judeu-checo nascido a França e mais tarde naturalizado britânico. Foi um importante teórico da sociedade moderna e das diferenças que a distinguem das sociedades precursoras. Sua esfera de influência é pouco comum e abrange os campos da Filosofia, Sociologia, Ciência Política, História e Antropologia Social. 40 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 A ‘nação’ pertence exclusivamente a um período particular e historicamente recente. Ela é uma entidade social apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o ‘Estado-nação’; e não faz sentido discutir nação e nacionalidade fora desta relação”. (HOBSBAWM, 1990, p. 19) Segundo Walter Bagehot3, a história do século XIX é marcada pela “construção das nações”. Sendo que, o interesse pelo estudo do nacionalismo surge após a Primeira Guerra Mundial, quando o mapa da Europa estava sendo, pela primeira e única vez, redesenhado de acordo com o princípio da nacionalidade. A partir do século XIX, dicionários e enciclopédias passaram a definir “nação” como comunidade de cidadãos de um Estado, vivendo sob o mesmo regime ou governo, tendo comunhão de interesses; a coletividade de habitantes de um território com tradições. Portanto, o conceito de governo não foi ligado ao conceito de nação até o século XIX. O primeiro significado da palavra “nação” indicava origem e descendência. Pátria, durante o século XVIII, era entendida como lugar, a terra onde se nascia, adquirindo, assim, uma conotação diferente de nação. Isso porque até o final do século XIX, a terra não era vinculada a um Estado. Dessa forma, um dicionário da língua holandesa designava que a palavra “nação” se referia a pessoas que pertenciam a um mesmo Estado sem, porém, falarem a mesma língua. Assim, evidencia-se que o significado do termo “nação”, em seu sentido moderno, é historicamente muito recente. As raízes do nacionalismo se encontram no passado, como em todo movimento histórico. Las condiciones que hicieron posible su aparición habian madurado durante siglos antes de converger en su formación. Estas evoluciones – política, econômica e intelectual – necesitaron mucho tiempo para crecer, avanzando em cada país con paso diferente. (KOHN, 1949 P. 17) Historicamente, vamos encontrar suas origens na Europa Medieval, mais especificamente na Restauração Inglesa de 1690. Contudo, observa-se que a forte afirmação desse modelo de Estado deu-se (como já foi mencionado anteriormente) com a Revolução Americana de 1776 e com a Revolução Francesa de 1789, ou seja, com o conjunto de revoluções que formam o que se usualmente são denominadas de as grandes "revoluções 3 Britânico ensaísta e jornalista que escreveu extensivamente sobre literatura, política e economia. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 41 burguesas". Assim, a idéia de Nação, já presente nos pensadores do século XVIII e em Hegel, passou a caracterizar toda a política moderna e contemporânea. O Estado-Nação passa a ser a realidade política por excelência, em torno da qual gravitam os atos históricos, persistindo ainda hoje, embora com o acréscimo de diversidades e novidades. No momento de emergência do Estado-Nação foram derrubadas todas as barreiras que fragmentavam a atividade econômica e política e eliminadas as velhas lealdades feudais que tanto dificultavam a realização da unidade nacional. Quanto à significação da Revolução na América do Norte, tem-se, dentre outros aspectos importantes, que a rebelião das treze colônias de origem britânica foi modelo de luta contra uma sujeição ilegítima, realizando a secessão a partir de embasamentos políticos retirados da própria metrópole, como a igualdade natural, a liberdade de empresa, o direito de usufruir da propriedade e dos frutos do trabalho, o direito de escolher as instituições e os magistrados mais convenientes e o direito de representação na Assembléia que decidia sobre seus problemas. O processo revolucionário levou à fundação, por agregação, da República dos Estados Unidos da América do Norte. Na França, a Revolução caracterizou-se como a luta da Nação (Terceiro Estado, composto pela burguesia, pelos artesãos e camponeses) contra o Rei Luís XVI, representante da sociedade aristocrática baseada na desigualdade e na hierarquia. Diferentemente do ocorrido nos Estados Unidos da América, o coletivo francês tinha uma forte imagem de Nação, sendo que a agitação revolucionária deflagrada em 1789 foi uma revolta ao agravamento da carga tributária incidente sobre o Terceiro Estado, decorrente da grande despesa do Estado com o sustento de uma nobreza parasitária. Foi justamente por ocasião da convocação dos Estados Gerais (que desde 1614 não se reuniam) visando aprovar novos impostos sem o princípio da votação individual, que daria maioria ao Terceiro Estado, que este, por proposta do abade Emmanuel Joseph Sieyês, declarou-se, separadamente, Assembléia Nacional, em uma ação irreversível contra as duas ordens privilegiadas: o clero e a nobreza. Durante e após a revolução, esperava-se que o novo regime instaurado não expressasse somente os interesses de classe, mas também a vontade geral do “povo” que, por sua vez, era “a nação francesa”. Assim, à maneira da Revolução Francesa, a nação igualava e punha no mesmo plano o “povo” e o Estado. Uma vez que, Hobsbawm considera a nação como escolha da cidadania com base na idéia do povo soberano, em ligação com o exercício 42 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 do poder em seu nome, assim, prende-se o conceito de nação ao conceito de Estado. ... a nação era o corpo de cidadãos cuja soberania coletiva os constituía como um Estado concebido como sua expressão política. Pois fosse o que fosse uma nação, ela sempre incluiria o elemento da cidadania e da escolha ou participação de massa. (HOBSBAWM, 1990, p. 31) ‘O povo’ identificado como ‘a nação’ era um conceito revolucionário; mais revolucionário do que o programa liberalburguês que pretendia expressá-lo. (HOBSNAWM, 1996, p. 21) Sendo assim, nação, Estado e povo se constituem como um mesmo elemento e, mais tarde, como não podia deixar de ser, o território foi vinculado à idéia de nação. Entretanto, a Revolução Francesa foi estranha ao princípio de nacionalidade, porque não havia ligação entre o corpo de cidadãos de um Estado territorial e a identificação de uma “nação” em bases lingüísticas, étnicas ou em qualquer outra característica que permita o reconhecimento coletivo do pertencimento do grupo. A língua, em princípio, não tinha nada a ver com ser “inglês” ou “francês”. Os especialistas franceses lutaram tenazmente contra as tentativas de fazer a língua falada um critério de nacionalidade4. Do ponto de vista revolucionário, o que a “nação” possuía em comum não era a língua e a etnicidade, mas, sim, o fato do “povo-nação” ter em comum a característica de ser contra os interesses particulares e a favor do bem comum contra o privilégio. Portanto, a “nação revolucionária” é diferente do Estado-nação. Contudo, sob uma perspectiva mais prática, se insistia na idéia de que uma tradição cultural compartilhada, representada especialmente pelo idioma francês, definia a nação francesa. Assim, o critério etnolinguístico de nacionalidade era freqüentemente aceito, pois “não há dúvida de que, para a maioria dos jacobinos um francês que não falasse francês era suspeito”. (HOBSBAWM, 1990, p. 33) Com isso, durante a Revolução, os franceses insistiam na uniformidade lingüística, o que para a época era bastante excepcional. Em certo sentido, adotar o francês era uma das condições da plena cidadania francesa (e, assim, da nacionalidade). Os indivíduos que não fossem franceses poderiam se integrar à nação francesa desde que aceitassem as condições da mesma, o que incluía falar francês. 4 HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 43 Já em relação ao conceito de nacionalismo, ele não deve ser isolado dos conceitos de Estado e de nação. No seu mais amplo significado, a palavra “nacionalismo” designa a atitude mental que confere à entidade nação um altíssimo posto na hierarquia de valores. De acordo com Kohn (1949), não é concebível falar-se de nacionalismo, sem relacionar este fenômeno com a idéia de soberania popular, sem um estudo da posição do governante e dos governados, das classes. Há indícios de que os nacionalismos emergem e se tornam violentos em situação de crise econômica. Têm sucesso quando todos os estratos sociais passam a considerar a revolução indispensável para o prosseguimento de seus fins. Os novos estados respondem à necessidade de auto-estima e de reconhecimento internacional, e tendem a exercer sobre as minorias nacionais o mesmo tipo de opressão de que se emanciparam. Tuvo que quebrantarse el tradicionalismo de la vida econômica com la aparición del ‘tercer estado’, que iba a desviar la atención de la corte e de su civilización hacía de la vida, el idioma y las artes del pueblo. Esta nueva clase estaba menos ligada a la tradición que la nobleza o clero; representaba una nueva fuerza en lucha por cosas nuevas; estaba dispuesta a romper con el pasado, hollando la tradición con opiniones más de lo que lo hacía en la realidad. No sólo pretendia representar a una nueva clase y sus intereses, sino todo el pueblo. (KOHN, 1949 p. 17) Tudo se encaminha para a aceitação de que o nacionalismo descobriu a sua força nas transformações políticas e econômicas registradas na França (século XVIII), EUA (século XVIII) e Inglaterra (século XVI), precisamente quando o Terceiro Estado, a terceira ordem, conseguiu ter preponderância e conseguiu aperceber-se do seu efetivo poder. O crescimento do nacionalismo se dá com o processo de integração das massas populares em uma forma política comum. Por lo tanto, el nacionalismo presupone la existencia, de hecho o como ideal, de una forma centralizada de gobierno, en un teritorio grande y definido. Los monarcas absolutos, que abrieron el paso al nacionalismo, crearon esa forma; la Revolución Francesa heredó y continuó las tendências centralistas de los reyes, pero, al mismo tiempo, llenó la organización central con un espíritu nuevo, dándole uma fuerza de cohesión desconocida antes. (KOHN, 1949 p. 18) 44 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Por outro lado, pode-se ainda salientar que, em regiões onde a expressão do Terceiro Estado era fraca ou nula ou se encontrava em formação, no início do século XIX, assistimos ao fato do movimento nacionalista ter se enraizado no campo cultural, como se verificou na Alemanha, Itália e nos Países Eslavos. Isso ocorre porque, como afirma Kohn, o espírito do povo – Volksgeist – com as respectivas manifestações literárias e folclóricas se tornou alvo das atenções do nacionalismo, como movimento libertador. Assim, privilegiando o conceito de nação, em desfavor do conceito de Estado, os revolucionários franceses de 1789 souberam aproveitar os anseios justificados do Terceiro Estado, e a força e prestígio acumulado pelas ordens privilegiadas durante séculos anteriores, terminando com a hegemonia imposta pelo poder absoluto. Vale ressaltar que o nacionalismo é uma identidade formal suficientemente poderosa para poder unir lealdades pré-existentes: mito de origem comum, raça, língua, religião e território. Todavia, se a raça, a língua, a religião e o território podem fortalecer a consciência de nacionalidade, o mito de origem comum é indispensável: nenhum grupo lingüístico ou cívico pode desenvolver o fenômeno de nacionalismo. Assim, o sentimento nacional é um estado de espírito, resultante do meio social e da educação/cultura. Embora o sentimento nacional seja freqüentemente associado à Revolução Francesa, o mesmo constitui um dos mais antigos sentimentos da Humanidade. Assume influência decisiva na política conjunta, sobrepondo-se a quase todos os outros sentimentos e motivos coletivos. POLEZ, Bárbara Mariani. The construction of nationalism: the revolutionary nation. ABSTRACT: This article aims to analyze the emergence and formation of the concept of nation and nationalism, spanning the eighteenth and nineteenth centuries. For this purpose it takes account of the French Revolution, a milestone in world history that launched the modern sense of the term nationalism. KEYWORDS: nation – nationalism – revolution REFERÊNCIAS: GEARY, Patrick J. O Mito das Nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005. HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 45 HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. KOHN, Hans. Historia del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1949. 46 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 AS TRANSFORMAÇÕES CIENTIFÍCAS, E O IMPERIALISMO NO SÉCULO XIX Carolina de Oliveira BELTRAMINI * RESUMO: O século XIX foi permeado pelo desenvolvimento científico e filosófico em diversas áreas do conhecimento: biológicas, exatas e sociais. Com o tempo essas teorias científicas foram aplicadas a sociedade, como justificativa do Imperialismo para levar evolução e progresso de civilizações ditas “avançadas” para civilizações ditas “atrasadas”. A questão racial também foi uma constante no século XIX, justificando a inferioridade de um povo pelas características biológicas. PALAVRAS-CHAVE: Ciência, religião, darwinismo social, “raça”, Imperialismo. Os anos pós Revolução Francesa e Industrial ficaram marcados pelo desenvolvimento científico, seguido de crise intelectual e perda dos valores tradicionais da Igreja Católica. Houve uma tentativa de construção de métodos para oficializar as ciências. Os dois métodos filosóficos que mais obtiveram repercussão foram: “(…) o Positivismo francês, associado à escola do curioso Auguste Comte, e o Empirismo inglês, associado a John Stuart Mill(…)”. (HOBSBAWM, 2007, p. 350). Talvez a química e a biologia tenham sido as ciências que mais se desenvolveram, ao longo do século XIX. A primeira, bastante dependente do empirismo, da descoberta de novos compostos, para utilização na indústria. Enquanto a biologia, através da Teoria da Evolução, proposta por Charles Darwin e apoiada no Positivismo ganhará um caráter teórico inovador que com o passar dos anos não será aplicado apenas às ciências naturais, mas também a sociedade. Auguste Comte, através do Positivismo, propõe que se estabeleça uma ordem social a partir das leis da ciência experimental. É a sociedade pautada na ordem, com o intuito de atingir o progresso que Comte visa no século XIX. A reafirmação da ciência gera um enfraquecimento religioso. A igreja, vista como uma oposição à razão, ao longo do século será uma das responsáveis pela crise intelectual. Esse novo cientificismo desenvolvido pelos homens do XIX tornar-se-á uma importante justificativa do Imperialismo e da dominação de outros povos tidos como inferiores. No século XIX a Igreja perde espaço por não caber no discurso imperialista justificado pela ciência. * Graduanda do quarto ano do curso de História da Universidade Estadual Paulista “Julío de Mesquita Filho” UNESP – Franca. Orientanda da Profª. Drª. Ana Raquel Marques da Cunha Martins Portugal. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 47 Partindo de uma perspectiva sócio-cultural, este artigo, pretende analisar como o desenvolvimento da ciência pode acarretar no recuo da tradição religiosa, o espiritismo, por além de ter resultado em novas experiências espirituais. Também pretendemos ver de qual forma a ciência levou ao Imperialismo, como ela foi capaz de criar uma justificativa plausível a dominação de povos e territórios. Para isso a análise das obras de Eric Hobsbawm é de fundamental importância, assim como a tese de Eliane Moura Silva1 No século XIX, com uma tendência a normatização, propõe-se uma fixação das unidades e o agrupamento destas em famílias. Em 1860 desenvolvem-se técnicas de mensuração. (HOBSBAWM, 2007). Nota-se, com esses exemplos, a vontade deliberada de tornar as ciências, disciplinas técnicas e padronizadas. Tratam-se de propostas apoiadas no método Positivista de Comte. A busca pela racionalização das coisas é ponto fundamental no desenvolvimento da segunda metade do século XIX. Esses valores também se transpõem aos padrões sociais, propondo regras de evolução, baseadas na “Seleção Natural” de Charles Darwin. A teoria da “Seleção Natural” queria de inicio explicar as variedades das espécies presentes no mundo, mas com o Darwinismo social ela ganhou outra conotação, e passou a justificar a divisão dos homens em inferiores e superiores, assim como, mais e menos evoluídos respectivamente. Esta era a “desculpa” que o Liberalismo necessitava para poder justificar o neocolonialismo e a necessidade de um Imperador. Com o passar dos anos, cada vez mais, as teorias da evolução, propostas pela biologia são aplicadas a política. Em 1883 cria-se o termo “eugenia”, uma tentativa de vinculação de ideologia com genética, logo implantada por muitos governos propõe realizar uma “limpeza”, proporcionar uma melhoria genética a sociedade mundana, pautada na eliminação dos indesejáveis. (HOBSBAWM, 2008, p.352) O racismo também era uma teoria social que passou a desempenhar um papel considerável na sociedade do XIX. Pautado em duas ciências básicas a “antropologia física” e a “etnografia”. O conceito de “raça” passou a ser utilizado com freqüência e somado a ideia de evolução. O racismo defendeu e justificou teorias que tratavam da inferioridade e superioridade dos povos, pautadas em diferenças biológicas. Para Hobsbawm a biologia era de fundamental importância quando se pretendia justificar o discurso 1 48 Eliane Moura Silva é professora doutora pelo Departamento de História da UNICAMP (IFCH). Concluiu seu doutorado pela mesma instituição em 1993, sua área principal de atuação é em História das Religiões. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 igualitário da burguesia, assim as desigualdades estavam pautadas no nascimento. (…) raças eram “inferiores” porque representavam um estagio anterior da evolução biológica ou da evolução sócio-cultural, ou então de ambas. E essa inferioridade era comprovada porque, de fato, a “raça superior” era superior pelos critérios de sua própria sociedade: tecnologicamente mais avançada, militarmente mais poderosa, mais rica e mais “bem-sucedida. (HOBSBAWM, 2007 p.370) Apoiando-se nas idéias da historiadora Eliane Moura Silva (1999) podese dizer que no século XIX houve uma Revolução Cientifica, na qual a tendência racional é bastante forte. O mundo das sensibilidades é sistematizado pelo conhecimento da psicologia, da psicanálise e da medicina. As emoções, o sobrenatural perdem espaço quando não podem ser inseridos no contexto racional. Entretanto, como todo período de transição é marcado por continuidades e rupturas, a ciência passa por uma crise do conhecimento, uma crise pela estruturação do saber técnico. Muitas teorias já não podiam mais nem ser compreendias por grandes parcelas da população. Há uma forte dependência cientifica a partir da metade do século XIX. Para Hobsbawm, no século XIX, o método científico passou a ser aplicado em diversas áreas, a principio nas ciências naturais, porém, com o tempo, ganhou também o cenário das ciências sociais, consolidando assim uma busca insaciável pela verdade. Há diversas contradições no mundo cientifico que não podiam ser resolvidas, mas isto não impediu que a ciência ganhasse cada vez mais forças. Pois, um dos princípios científicos é gerar contradições. Há uma evolução no trabalho cientifico pela melhoria das condições técnicas. Com o desenvolvimento da matemática, as outras ciências, como a física e a química também evoluem. Surgem os grandes laboratórios, as faculdades e universidades, com financiamento do governo, afirma-se assim uma ciência política. Mas, no final do século, ocorre certa frustração das expectativas, muito do conhecimento técnico produzido nos laboratórios e Universidades não são aplicáveis no cotidiano, a sociedade passa a não entender muitas das teorias recém escritas. Para Nietzsche, a decadência da vanguarda, o pessimismo e o niilismo dos anos de 1880 eram mais que uma moda. Eram “resultado final lógico de nossos grandes valores e ideais”. As ciências naturais, dizia ele, produziram sua própria Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 49 desintegração interna, seus próprios inimigos, uma anticiência. As conseqüências das modalidades de pensamento aceitas pela política e pela economia do século XIX eram niilistas. A cultura da época estava ameaçada por seus próprios produtos culturais.” (HOBSBAWM, 2008 p. 359) Hobsbawm acredita que a crise intelectual apesar de existir estava presente apenas em uma parcela pequena da população, a crise estava com as pessoas que não conseguiam compreender esta nova forma de ver os problemas do mundo. Se a crise fosse tão geral, não teria aumentado significativamente o número de estudantes universitários de química, física e ciências sociais, como ocorreu em vários países da Europa. Eliane Moura afirma que a crise também podia ser percebida através de algumas reações de grupos que lidavam, com magia, misticismo, características da religião oriental. Havia alguns grupos que eram completamente contra a ciência. A parapsicologia e o espiritualismo forma importantes formas de reação. O que deixa claro o desenvolvimento da ciência e da razão é um recuso significativo da religião tradicional. O pensamento racional pregava uma livre interpretação do mundo, o que vai contra os valores e princípios de diversas religiões cristãs. A instituição religiosa não se adéqua e nem aceita as teorias evolucionistas, muito pelo contrário ela se opõe. O espaço religioso é cada vez mais tomado pela figura feminina, já que esta apresentava para aquela sociedade uma inferioridade na capacidade de pensamento e um maior apego à fé. Começa na metade do século, por parte do racionalismo, uma política de combate a religião. Em 1850 anticlericalismo torna-se ponto fundamental da luta da esquerda francesa. Para E. Hobsbawm (2008) o anticlericalismo era possível, pois a Igreja Católica se opunha totalmente a razão e ao progresso, e porque a luta contra a superstição criava uma identidade unindo classe trabalhadora e com a burguesia liberal. Ocorreu desta forma um grande processo de descristianização. Contudo, no centro dos países burgueses, embora talvez não nos EUA, a religião tradicional estava recuando com rapidez sem precedentes, tanto em sua força intelectual como entre as massas. Tratava-se, até certo ponto, de uma conseqüência quase automática da urbanização, pois é praticamente certo que, outros fatores permanecendo iguais, a cidade tem mais probabilidades de desencorajar a devoção que o campo, e a grande cidade mais que a pequena. (…)(HOBSBAWM, 2008 p. 367) 50 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Serge Berstein e Pierre Milza (1997) no livro “História do século XIX” afirmam ter ocorrido algo diferenciado na França os franceses tentam uma reaproximação entre catolicismo e liberalismo com o intuito de se restabelecer da crise religiosa. Defendeu-se assim, a liberdade de imprensa e uma firmação do discurso divino, acredita-se que o discurso divino pode ser plausível a uma sociedade liberta. O processo, segundo estes autores, obtém sucesso e há uma retomada da fé na França do final do século XIX. A religião para que possa sobreviver deve aproximar-se das doutrinas cientificas, muitas pessoas acreditavam que a ciência salvaria o mundo. A colisão entre religião e ciência é imensa no século XIX. Propunha-se novas formas de pensar, introduzir no pensamento verdades religiosas, para Eliane Moura Silva é o que podemos chamar de “fé racional”. (SILVA, 1999 p.19) É também no século XIX que o agnosticismo e o ateísmo ganham mais força, são as máximas da ciência presentes na religião. À ciência positiva cabe também a religião a partir deste século, analisam-se então os fenômenos religiosos, busca-se o que pode ter de científico na fé religiosa. O estudo da religião passa a ser pela necessidade da aquisição de conhecimento vinculado a religião. A fé “ganha” métodos científicos. Segundo Eliane Moura Silva (1999) é no século XIX que surgem os primeiros trabalhos acadêmicos sobre religião. A partir dai que essa autora inicia sua análise. Com a perda de espaço do catolicismo e ascensão das ciências desenvolvem-se outros tipos de espiritualismo, o espiritismo é uma das religiões que mais cresce no século XIX. Os estudos do século XIX sobre religião tentam, em sua maioria, separar em: racional o que era visível e irracional que só depende da fé. A ciência passa a fazer parte da religião, como podemos ver no trecho abaixo: O darwinismo implicava na ideia de que o homem não sofrera uma “queda” espiritual por perder a “graça divina”, mas simplesmente, evoluirá a partir de formas inferiores de vida, assim como todos os seres vivos. Intelectualmente, a Bíblia estava sendo analisada como uma peça literária, uma parte da imensa cultura religiosa da época. O conhecimento intelectual e cientifico elevava os homens à imagem e semelhança de Deus. A religião, se quisesse sobreviver, deveria adotar os métodos da ciência para “provar” suas doutrinas. (SILVA, 1999 p. 74) O darwinismo social é a forma justificada de ataque dos Impérios, é através dele que se pode dominar e ser dominado. No mundo do Império, “avançados” dominam “atrasados”, levam o progresso tão debatido pela filosofia de Auguste Comte. O século XIX é denominado, a Era dos Impérios Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 51 por Hobsbawm, segundo este autor nunca houve antes um período que tantos governantes denominavam-se imperadores.(HOBSBAWM, 2001) O Imperialismo foi feito a partir de uma junção de idéias que iam desde a ordem psicológica, passando pela cultural e ideológica, atingindo a política. O imperialismo talvez possa ser visto como a vitória da ciência. Todavia, fica bastante claro, o quanto a questão da superioridade foi fundamental para dominação de alguns povos. A “raça” torna-se questão de dominação, o negro é visto como “inferior”, incapaz de pensar por si próprio. A Europa reconquista com o intuito, ou subterfúgio de levar a “evolução”, o progresso e até mesmo a civilização a regiões como a da Ásia e África, por exemplo. O crescente capitalismo para Hobsbawm (2008) é o primeiro fator do Imperialismo do século XIX a busca pela matéria-prima e a compra de produtos manufaturados, além da mão-deobra barata que os países colonizados fornecem. Contudo a Era dos Impérios não foi apenas um fenômeno econômico e político, mas também cultural: a conquista do globo pelas imagens, idéias e aspirações transformadas de sua minoria “desenvolvida”, tanto pela força e pelas instituições como por meio do exemplo e da transformação social. (…) (HOBSBAWM, 2008, p.114) Os valores que mais tarde vão compor o Imperialismo conforme vimos iniciam-se no início do século XIX, a ciência e a religião tem papel fundamental na construção do imaginário que mais tarde vai possibilitar o Imperialismo. A questão racial tão forte no século XIX gera o discurso que justifica o Imperialismo, que o mostra para o mundo de uma forma mais sutil, menos agressiva. Para adentrar em um território é necessário que se tenha uma justificativa e o Imperialismo do século XIX, diz pretender humanizar, civilizar e levar o progresso as civilizações menos “evoluídas”. Vale lembrar, que no século XIX o termo evolução está vinculado à noção de progresso, pautado pelo Positivismo, assim como praticamente todas as questões cientificas da época. Pode-se dizer que a filosofia de Comte gera as bases científicas e sociais do século XIX. É a partir da Ordem e do Progresso que se justificarão as medidas tomadas no XIX. BELTRAMINI, Carol de Oliveira. The scientific change, and imperialism in the nineteenth Century. ABSTRACT: The nineteenth century was permeated by the scientific and philosophical knowledge in several areas: biological, social and exact. Over time, these scientific theories were applied to society as a justification of imperialism to bring development and 52 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 progress from so-called "advanced" civilizations to so-called "backward" civilizations. The race was also a constant in the nineteenth century, justifying the inferiority of a people by biological characteristics. KEYWORDS: Science, religion, social Darwinism, "race," Imperialism. REFERÊNCIAS: AZEVEDO, Célia M. M. “A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a noção de raça”, IN: Rago, Margareth & Gimenes, Renato, Narrar o passado, repensar a História, Campinas, IFCH, 2000. BERSTEIN, S. e MILZA, P. História do Século XIX. Sintra: Publicações Europa América, 1997 HOBSBAWM, E. J. A Era do Capital 1848-1875. 13ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. ______. A Era dos Impérios 1875-1914. 12ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. SAID, E. W. Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. SILVA, E. M. O Espiritualismo No Século XIX: Reflexões Teóricas e Históricas SOBRE Correntes Culturais e Religiosidade. 1. ed. CAMPINAS: UNICAMP, 1997.V. 27. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 53 A HISTÓRIA CÍCLICA ENTRE MITO E ESCLARECIMENTO Carolina Defensor RIBEIRO* RESUMO: A partir da obra “Dialética do Esclarecimento“ de Adorno e Horkehimer, este artigo demonstrará a construção de um ciclo conceitual, e não temporal, composto pela mitologia e pela ciência. Baseado na epopéia Homérica, Odisséia, o artigo buscará estabelecer correlações entre os conceitos que se formulam para conferir suporte à razão do homem esclarecido e a dimensão vinculada à mitologia que neles persistem. A tensão entre os dois conceitos (mito e esclarecimento) surgirá com a tentativa do homem racional de anular a “irracionalidade” mitológica presente nos ideais do homem civilizado. Tal atitude irá levar os seus próprios fundamentos ao encontro dos fundamentos do mito. PALAVRAS CHAVES: mitologia, esclarecimento, razão, natureza, ciclo, Ulisses. “A maldição do progresso irrefreável é o irrefreável regresso.” (Theodor W. Adorno e Max Horkheimer) INTRODUÇÃO Afirmado como um livro gerador de alguns ideais da Escola de Frankfurt, “Dialética do Esclarecimento” intensificou pesquisas sobre a relação entre mitologia e o esclarecimento. O livro, que foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial, examina os ideais do homem ocidental esclarecido representado em Ulisses, na Odisséia. Serão apresentadas, a partir da análise dos autores alemães, características em Odisseu1 que podem ser atribuídas ao homem contemporâneo, já que esse se supõe detentor de mentalidade capaz de diminuir seus medos a partir de um rebaixamento intelectual daquilo que é temido, pretendendo seu progresso. Com uma postura contrária ao positivismo, a obra decompõe os posicionamentos do esclarecimento que visava atingir uma postura distanciada da mitologia e, conseqüentemente, da natureza. Tal análise do esclarecimento, na tentativa de romper com o mitológico, constatou a formação de um ciclo, pelo fato de mito e esclarecimento possuírem semelhanças em diversos pontos de seus conceitos, ocorrendo encontros entre seus fundamentos. * 1 Graduanda em História na UNESP- Campus de Franca sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi. Bolsista PET/MEC/SESu Herói da epopéia histórica de Homero. Também pode ser nomeado como Ulisses. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 55 Adorno e Horkheimer, fundamentais para a compreensão da influência da Escola de Frankfurt na historiografia, cumpriam exílio da Alemanha em função da II Guerra e, nesse período, produziram a obra. Logo, essa faz uma análise crítica aos aspectos sociais fundados na racionalidade instrumental vincada pela Ilustração, que levará a algumas reflexões quanto à conduta do homem, que apesar de se considerar civilizado e esclarecido, ainda se submetia a conflitos por causas supostamente primárias. Os autores trabalham com a oposição dialética entre mitologia e esclarecimento. Tal movimento da compreensão do problema disserta sobre ruptura promovida pelo esclarecimento em relação ao mito, e, a um só tempo aponta a indelével ligação entre ambos. ESCLARECIMENTO E MITO É necessário, antes de tudo, definir o conceito de esclarecimento a ser utilizado. Segundo Guido Antônio de Almeida2 Em Adorno e Horkheimer, o termo é usado para designar o processo de “desencantamento do mundo”, pelo qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida, à qual atribuem poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela. Por isso mesmo o esclarecimento que falam não é, como o iluminismo, ou a ilustração, um movimento filosófico ou uma época histórica determinados, mas o processo pelo qual, ao longo da história, os homens se libertaram das potências míticas da natureza (...) (ADORNO e HORKHEIMER.1985, p.7-8). Esta definição é fundamental para o entendimento do ciclo, que explicará as tentativas falhas do homem esclarecido em negar ligações com a mitologia. O mito seria o primeiro vínculo humano com respostas a fim de esclarecer constantes dúvidas. Trata-se de uma elucidação que inicialmente proporcionaria conformidade à consciência e explicaria todos os conteúdos imagináveis. Pelos mesmos motivos surgiu o esclarecimento, entretanto esse conceito possui elementos fundados na teoria positivista. Dentro dessa perspectiva, a ideologia esclarecida, ao tentar construir formas de anulação dos princípios mitológicos - que muitas vezes são também os seus -, acaba anulando inclusive suas próprias bases. O ciclo também aparece quando o homem impõe sua suposta superioridade ao mito, sustentada unicamente no fato de ele deter 2 56 Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e tradutor da obra Dialética do Esclarecimento. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 conhecimento explicativo e capacidade empírica. Isso lança o homem ao fantástico, posicionando-o em um patamar inatingível, o que seria inconcebível aos esclarecidos por serem, novamente, remetidos ao mítico. A improdutiva rejeição ao mito pode ser interpretada em outra obra da História Antiga, além da Odisséia. Sófocles demonstra, em Édipo Rei, o erro na tentativa do homem em fugir do mito Ai de mim! Ai de mim! Tudo é claro agora! Ó luz do dia, vejo-te pela última vez, eu que nasci de quem não devia nascer, e me casei com quem não deveria me casar-me, e matei quem eu não deveria matar! (SÓFOCLES. 1988, p. 81) O trecho demonstra a tristeza de Édipo ao saber que sua sina se cumpriu. A personagem, pretendendo fugir do destino em que mataria seu pai, tornar-se-ia Rei ao casar-se com sua mãe, e teria filhos com ela, acabaria, assim, por cumprir exatamente a sorte que tanto temia. Sófocles traz um possível rompimento com mito (sina de Édipo), que não teve alterações mesmo com a racionalidade e esperteza - ou seja, esclarecimento - do futuro Rei, situação que também está presente na obra Odisséia. Podemos figurar o ciclo, entre mito e esclarecimento, tomando como base os fatos que levaram Édipo a completar seu destino. Mesmo afastando-se de suas raízes (ação dos esclarecidos em relação ao mito), agia de forma que o ligava à profecia mítica, cumprindo sua sina infeliz em todos os detalhes. MITO E NATUREZA A natureza, que é uma aliada da mitologia para a construção de respostas, será analisada pelos esclarecidos visando apontar a irracionalidade de ambas. A natureza será examinada como um alicerce dos conceitos mitológicos, e por isso torna mais fácil ao esclarecimento rebaixálos. Para Adorno e Horkheimer, a natureza é vista como um medo do homem. Uma vez que esse observa o potencial de força da natureza e sua irregularidade, cria-se um receio do homem em relação aos fenômenos naturais. Neste momento, surgem as diversas formas de mito com a finalidade de esclarecer e tornar o meio natural mais tolerável às sociedades, o mito não é verdadeiro no seu conteúdo manifesto, literal, expresso, dado. No entanto, possui um valor e, mais que isto, uma eficácia na vida social. (EVERARDO.1985, p. 11). Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 57 A história da mitologia deixa evidente sua função esclarecedora para a sociedade, mesmo dentro de campos imagináveis e não concretos. E para isso usa da natureza para construir um condutor de respostas- exemplos disso, a oscilação das colheitas eram atribuídas ao temperamento de Deméter, deusa dos grãos e da fertilidade da terra na mitologia grega. Mesmo com o amparo mitológico, o homem produziu outra imagem da natureza a fim de anular, totalmente, seus temores. A constituição do medo da natureza na História do homem foi argumento para formular métodos capazes de inferiorizá-la. Há, em Dialética do Esclarecimento, uma proposta de voltar à Antiguidade e à sua literatura para demonstrar os primeiros feitos do homem, que foram capazes de desafiar a natureza. O trecho analisado estudará a viagem do herói grego, Ulisses, em retorno à sua ilha após a guerra de Tróia. Na obra, os desafios lançados por um “deus-natureza” são sempre superados pelo racionalismo humano. A proposta dos autores de Frankfurt é analisar todo o trajeto do navegante e os pontos fundamentais que visavam à demonstração da superioridade da razão em detrimento da natureza. É nesse contexto que o Homem travará sua primeira ruptura com os deuses, buscando o início de liberdade racional. ULISSES E ESCLARECIMENTO Adorno e Horkheimer acreditam que a epopéia homérica seja a obra mais rica para figurar a intenção de exclusão do mito da realidade do homem esclarecido. O primeiro excurso da obra alemã, “Ulisses ou mito e Esclarecimento”, analisa como a própria forma de narração conduzida por Homero irá desconstruir o mito. O autor da Odisséia exaltará Ulisses durante o retorno à ilha de Ítaca após sua vitória em Tróia. Sob o castigo de Poseidon3, o herói grego enfrenta e supera diferentes desafios da natureza tendo em vista sua racionalidade. A astúcia será aliada de Ulisses ao traçar diferentes soluções para enganar a natureza, já que o navegante reconhece sua inferioridade perante as forças dela. O poder racional será essencial para subjugar a natureza e submetê-la ao homem. Há, neste excerto, a possibilidade de identificar atitudes da civilização ocidental no comportamento de Ulisses, o viajante será uma personagem alegórica da sociedade contemporânea, segundo Adorno e Horkheimer. Primeiro traço de identificação com a realidade civilizada é a percepção de Ulisses quanto ao tempo, atitude inconcebível à mitologia e à natureza. 3 Deus da mitologia grega que domina os mares. Na Odisséia, o Deus aplica um castigo a Ulisses ao ser ofendido pelo guerreiro, deixando-o navegar por dez anos antes de voltar para Ítaca. 58 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 As passagens tentaram demonstrar o homem como um ser superior. Passagens como a das sereias, Canto XII, mostra a astúcia de Ulisses e seu desvinculo com o instinto e o sentimentalismo, a fim de dar credibilidade à razão e ao pensamento esclarecido. O Canto narra o encontro com as sereias que entoam uma canção capaz de seduzir e matar quem a ouve. Hipnotizados, desprovidos de razão, os marinheiros jogavam-se ao mar com o objetivo de alcançar as sereias, morriam afogados em decorrência da ânsia de seus instintos. Ulisses elabora um plano capaz de enfrentar a natureza sem competição de forças, apenas com a racionalidade. Amarra-se a um mastro e ordena que seus companheiros remem com os ouvidos tampados com cera, Assim diziam [as sereias], entoando um belo cantar. Meu coração desejava escutá-las; eu pedia aos companheiros que me soltassem, acenando-lhes com os sobrolhos; eles, porém, acurvando-se, remavam. Súbito, Perímedes e Euríloco levantaram-se e prenderam-me com laços mais numerosos e apertados. Quando, afinal, eles tinham passado além das Sereias e já não ouvíamos a sua voz e o seu canto, sem demora meus leais companheiros retiraram a cera com que eu lhes vedara os ouvidos e soltaram-me os laços. (HOMERO.A Odisséia, p.143). A passagem demonstra a derrota dos desejos, manifestações irracionais, pela razão do homem - estratégia de Ulisses para vencer os cantos das sereias. A crítica dos autores alemães está na forma pela qual Ulisses superou as sereias. A partir de egocentrismo, o herói escuta o canto sem se prejudicar, já seus companheiros não têm oportunidade de desfrutar da música, apenas de obedecer às ordens de Ulisses para livrá-los da morte. Outra crítica dos autores à “astúcia” do homem esclarecido sustentou-se no fato de Ulisses ser conhecedor das tentações que enfrentaria com as sereias. Depois de receber orientações da deusa Circe4, o herói evidenciou a necessidade de recorrer à mitologia (deusa) para superar os elementos míticos. Éolo, deus dos ventos, em outro momento da epopéia, também ajudou o navegante a superar os desafios lançados por Poseidon. Configurando, assim, um paradoxo em que deuses aliados ao homem oferecem recursos capazes de combater outras divindades. O herói utilizará a linguagem como uma exclusividade humana, que foi utilizada como artifício para diminuir a natureza. O jogo de palavras com o 4 Deusa da mitologia grega que possui o poder de transformar homens em animais. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 59 ciclope5 presente na epopéia foi capaz de dar à racionalidade mais uma suposta vitória. O nome “Ninguém”, adotado por Ulisses para enganar o filho de Poseidon, foi método para derrotar o gigante, comprovando a ignorância de um indivíduo que vive na natureza e é sustentado somente por ela. A passagem que inclui o ciclope critica diretamente o homem que não vive em sociedade, o indivíduo que não possui leis e doutrinas e por isso é considerado irracional e passível de armadilhas. O ciclo será fechado, mais uma vez, ao analisar a necessidade de autonegação de Ulisses. Ele se transfere para um estado de morto, remetendoo à afirmação de que também é natureza. A morte é a única certeza de todos os seres, sendo eles racionais ou não. Logo, o gigante se assemelha a Odisseu de alguma forma, mesmo sendo irracional e isolado da civilização. Outras passagens que não serão analisadas aqui, mas não se tornam menos importantes, podem demonstrar as tentativas de Ulisses superar a natureza. Passagens como a da deusa Circe e a da flor de Lótus afirmam a retração dos sentimentos para a sobrevivência do viajante, reforçando a necessidade do homem esclarecido em renunciar a natureza biológica. Ao proclamar “não sou Ninguém, meu nome é Ulisses” como se fosse apenas um sucedâneo capaz de vencer o mito não só suscita a ira de Poseidon, mas o condena ao exílio, à privação dos objetivos racionalmente concebidos: seus retornos à própria casa e sua suposta vitória ficam severamente comprometidos. O CICLO O ciclo definido nesse artigo não tem a intenção de intitular um período histórico específico. Ao contrário disso, as análises aqui expostas devem se estender a outros períodos da história do homem para que tenham sentido. Adorno e Horkheimer encontram na narrativa Antiga a melhor forma de estabelecer a homologia entre razão e (dês)razão, já que a analogia de um ciclo entre mito e esclarecimento na modernidade se instala frente ao imponderável da afirmação da autoria ou da preponderância da razão atribuída a alguém. A racionalidade sempre atribuída a Ulisses tem suas origens mitológicas, da mesma forma que o mito surge para esclarecer questões inexplicáveis ao homem, assim “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (ADORNO e HORKHEIMER. 1997, p.15). É ineficaz a tentativa do esclarecimento em anular as formas de mitologia. A insistência da ciência no empirismo literal como único caminho 5 Gigante de um só olho, na testa. Filho do deus Poseidon. 60 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 para tornar claros questionamentos sempre evidenciará falhas, o que remeterá o Homem às respostas mitológicas. Assim, o ciclo esclarecimentomito é reafirmado. Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que da, na mitologia. (ADORNO e HORKHEIMER. 1985, p.23). RIBEIRO, Carolina Defensor. The cyclic history of myth and Enlightenment. ABSTRACT: From the book "Dialectic of Enlightenment, this paper will demonstrate the construction of a cycle conceptual, not temporal, composed of mythology and science. Based on the Homeric epic, the Odyssey, the article will examine the similarities between the concepts that formulate enlightened man of reason and nature linked to mythology. The cycle between the two concepts (myth and enlightenment) will come up with man's attempt to cancel the "irrationality" of the mythical ideal of civilized man. Such an attitude will bring their own foundations to meet the foundations of myth. KEYWORDS: mythology, enlightenment, reason, nature, cycle, Ulysses. REFERÊNCIAS: ADORNO, Theodor W. ; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. FRAGA, Paulo Denisar. Mito e ciência: a confluência turva do esclarecimento. Revista espaço acadêmico, 2007. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/072/72fraga.htm GAFFO, Leandro. De Ulisses a Frankenstein ou do Confronto com a Natureza Exterior à Dominação da Natureza Interior. Revista de Estudos da Religião, 2006. Disponível em: http://www.pucsp.br/rever/rv3_2006/p_gaffo.pdf MATOS, Ogária C. F. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. ROCHA, Everardo P. G.. O que é mito? São Paulo: Brasiliense, 1985. SÓFOCLES. Édipo Rei. Chile: Sociedade Comercial y Editorial Santiago LDA, 1988. VASCONCELOS, João Perboyre de. A volta ao mito: à margem da obra de Marcuse. Rio de Janeiro: Laudes, 1970. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 61 POLÍTICAS NAPOLEÔNICAS PARA UMA FRANÇA EM CRISE* Danilo Medeiros GAZZOTTI * RESUMO: O presente artigo pretende demonstrar como as reformas napoleônicas no período do consulado deram estabilidade e prosperidade a França, a ponto da população o proclamar o “salvador” e a burguesia lhe dar o apoio necessário para ele tornar-se imperador. PALAVRAS-CHAVE: Napoleão, Reformas, Consulado. INTRODUÇÃO Muito se fala na historiografia de Napoleão Bonaparte, principalmente de suas conquistas militares na Europa do séc XIX. Mas além de ser um grande militar, Napoleão também foi um estadista e através de suas políticas econômicas conseguiu conter o “caos” político e social que tinha se estendido na França devido ao desastroso governo do Diretório. Além do mais conseguiu vencer as ameaças externas a França, que na época figurava na segunda coalizão, formada pela Áustria, Prússia e Rússia, que pretendiam invadir o país, acabar com a República e restaurar a dinastia dos Borbons. Através dessas realizações como estadista, Napoleão conseguiu uma extrema popularidade sendo chamado pela população de o “salvador da França” e também ganhou o aval da burguesia para continuar no poder. Com apoio das massas e da elite Napoleão tem a força necessária para se proclamar imperador, acabando assim com a fase republicana da Revolução Francesa e dando início ao Império. No presente artigo pretendo explorar a chegada de Napoleão ao poder e suas reformas como primeiro Cônsul, mostrando como elas conseguiram trazer paz à França, tanto internamente com externamente, abrindo o caminho do trono para o seu interlocutor. CHEGADA AO PODER A França passava por um momento de grande tensão, internamente encontrava-se com uma crise política e social e externamente enfrentava o perigo de uma invasão provocada pela segunda coalizão. Artigo produzido como avaliação da matéria História Contemporânea I, ministrada pela Prof.ª. Dra. Márcia Pereira da Silva ** Graduando do curso de História da UNESP - Campus de Franca. Bolsista PET/MEC/SESu Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 63 Ela precisava de alguém de prestígio que tomasse suas rédeas, amenizasse seus problemas internos e que ainda tivesse poder para enfrentar o exército que a ameaçava. O diretório depois de numerosos desastres já não era capaz disso, por isso apoiou-se na única instituição da França que ainda tinha prestígio, o exército, que nos últimos tempos amparados na figura de um de seus generais, Napoleão Bonaparte, só tinha trazido glórias a França. Durante sua campanha no Egito, Napoleão recebeu as notícias dos desastres ocorridos na França revolucionária e concluiu que para salvá-la ele teria que voltar e tomar o poder. È o que nos diz Octave Aubry, (AUBRY, 1958, p.73)“Vida Íntima de Napoleão”: Da Europa, nenhuma notícia. Devorado pela inquietação, Bonaparte envia ao almirante Sydney Smith um parlamentar. Sob o pretexto de tratar da troca de prisioneiros, deve conseguir algumas informações. Ironicamente, Smith presenteia o comissário com um maço de jornais. Bonaparte fica então ciente dos sucessivos desastres que se abateram sobre a França nestes últimos meses: A Áustria e a Rússia estão novamente ao lado da Inglaterra; Morreu fora batido em Cassano; Jourdan, em Stokach; a Itália abandonada; o inimigo transpondo as fronteiras como nos mais tristes dias da Revolução. [...] Não pode demorar-se mais tempo no Egito. Kleber ficará encarregado de manter a conquista. Para salvar a Revolução, a França e sua maravilhosa conquista a Itália, Napoleão deve regressar e tomar o poder. Atualmente, quem poderá impedi-lo? [...] A própria distancia ainda faz com que tenha mais brilho. Logo que surja, a França se entregará a ele. Depois disso Napoleão voltou para França praticamente incógnito em um navio e aportou nela sendo recebido com um herói. Désiré Lacroix cita na obra “História de Napoleão” esse momento: Tudo de degradava. Sentia-se que a França estava em perigo. Era preciso que uma autoridade se impusesse em lugar daquele governo desprezível e nulo. Quando se soube da volta de Bonaparte pensou-se nele, eis porque sua chegada causou uma alegria geral.(LACROIX,1904, p. 261.) A burguesia que controlava o poder, sabendo do poder e prestígio de Bonaparte e vendo nele a última esperança de salvar a França, não teve dúvidas em dar um golpe em si mesma e entregar o poder a ele. Como diz Hobsbawm: “O poder foi em parte atirado sobre seus ombros e em parte agarrado por ele 64 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 quando as invasões estrangeiras de 1799 revelaram a fraqueza do Diretório e sua própria indispensabilidade.” ( HOBSBAWN, 1997, p. 51-52.) Estava dado o golpe 18 de Brumário, iniciando o período do Consulado na França, com Napoleão no cargo de 1ºConsul. AS MEDIDAS INTERNAS EM NOME DA PAZ Ao assumir o poder Napoleão tomou uma série de medidas que visavam estabilizar econômica, jurídica e administrativamente a França, dentre as quais podemos destacar: A Criação do Banco da França em 1800: Essa medida foi a maior mostra da estabilidade burguesa. O banco controlou a emissão de moedas, reduzindo a inflação e impôs tarifas protecionistas. O resultado disso foi o fortalecimento do comércio e da indústria e um estímulo a produção e ao consumo interno. Segundo Désire Lacroix em “História de Napoleão”: A gloria militar de Bonaparte fora tão refulgente, que todo o mundo se acostumara a considerá-lo somente como o homem dos campos de batalha. Foi com admiração e quase com espanto que se o viu dirigir os movimentos da indústria [...] com a data de 4 de março de 1801, instituiu a exposição periódica dos produtos manufatureiros e industriais da França. (LACROIX,1904, p. 308.) Concordata com a Igreja em 1801: Ao assinar esse acordo com o Papa Pio VII, Napoleão reconhecia a Papa como chefe soberano da Igreja, e a igreja como religião da maioria dos franceses e comprometia-se a remunerar o clero. Em troca a Igreja se comprometia a assegurar a paz, a coesão social e o respeito às leis e renunciava a reclamar das terras confiscadas durante a revolução. Com esse acordo Napoleão conseguiu utilizar a religião como instrumento político. Lacroix em “História de Napoleão” diz: A 15 de julho ele concluiu uma Concordata com a Corte de Roma pela qual foi restabelecida a Igreja na França, que conservando todas as suas liberdades, reconheceu por chefe o Soberano Pontifício. A Concordata foi para a França uma verdadeira restauração: recebida com as mais vivas demonstrações de alegria por tudo o que havia de honesto, de religioso, ela implicava a condenação dos excessos revolucionários, dava à política exterior arras de confiança e de estabilidade, agrupava em torno do Primeiro Cônsul um grande número de famílias nobres que, apesar das suas vitórias, teriam continuado a renegar a Revolução. . (LACROIX,1904, p. 311-312.) Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 65 Criação do Código Civil em 1804: O Objetivo dessa medida foi colocar um fim a anarquia social em que a França se encontrava. Através de suas leis, que representavam em grande parte interesses burgueses, foi instituído o respeito a propriedade privada, o casamento civil, o direito a liberdade individual e a igualdade jurídica. Lacroix nos esclarece novamente em “História de Napoleão: Enfim, aspirando por nobre ambição a todas as espécies de glória, ele lançava os fundamentos do Código Civil, monumento imperecível que foi pedir á justiça, o qual unificava a legislação, ligando às tradições do passado as conquistas do presente. (LACROIX,1904, p. 308.) Hobsbawm comenta as reformas internas do primeiro cônsul: E com sua chegada, como que por milagre, os problemas insolúveis do Diretório tornaram-se solúveis. Em poucos anos. A França tinha um Código Civil, uma concordata com a Igreja e até mesmo o mais significativo símbolo da estabilidade burguesa – um Banco Nacional. E o mundo tinha o seu primeiro mito secular. (HOBSBAWM,1997, p. 52.) Através destas medidas Napoleão conseguiu resolver grande parte dos problemas por qual a França passava, e atingindo uma imensa popularidade com a burguesia e a população em geral. AS MEDIDAS EXTERNAS EM NOME DA PAZ Um dos principais motivos que proporcionou a chegada de Napoleão ao poder foi a ameaça externa provocada pela segunda coalizão. Rússia, Áustria, Baviera e Inglaterra, uniram suas forças com o propósito de encerrar a revolução na França e restaurar a dinastia do Borbons. Napoleão foi visto pela burguesia como o único capaz de enfrentá - la e salvar a França. Amparado no ideal de que a paz seria a mais desejável vitória, Napoleão através de um grande ato de generosidade, estritamente calculado, consegue desligar da coalizão um de seus maiores auxiliares, a Rússia: Felizmente que, por um ato de generosidade bem calculado, ele acabava de desligar da coalizão um dos mais formidáveis auxiliares com que ela contava, o imperador da Rússia. Nove mil prisioneiros russos estavam espalhados por diversos pontos da Rússia. O Primeiro Cônsul reuniu-os, ordenou que se lhes desse 66 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 roupa nova, devendo cada um vestir o uniforme do seu regimento, e mandou-os para a Rússia, pagando todas as despesas de viagem, e sem propor permuta alguma. Paulo I ficou tão vivamente comovido com este procedimento cavalheiresco que se encheu de entusiasmo pelo Primeiro Cônsul, chamou todas as suas tropas que estavam na Alemanha, expeliu os ingleses de sua capital, e tornou-se, se não um zeloso defensor, pelo menos um admirador ardente do governo francês. Ao mesmo tempo, a Suécia e a Dinamarca, cedendo às exortações e ao exemplo da Rússia, consentiram em observar uma neutralidade estrita.” (LACROIX, 1904, p. 279.) Mesmo depois da Paz com a Rússia restavam na coalizão Inglaterra, Áustria e Baviera. Com seu exército partiu para a Itália que estava totalmente nas mãos dos austríacos. Após vários combates a Áustria foi derrotada definitivamente na Batalha de Marengo, sendo expulsa da Itália. Na Alemanha, a Áustria também não teve muito sucesso e após o combate de Neubourg via o exército francês ocupando o centro da Baviera. O Imperador austríaco pediu um armistício, para recompor suas tropas. Napoleão o concede, mas após não chegar a um acordo com ele, recomeça a guerra, infligindo várias outras derrotas a Áustria. Após esta série de derrotas e vendo a união entre França e Rússia, a Áustria não tem outra saída, que não seja a paz. A Áustria via alarmada a união entre intima do imperador da Rússia com a República Francesa: vencida e humilhada na Alemanha, e na Itália, ela não tinha outro remédio senão fazer a paz” A Inglaterra, sem poder defendê-la, era obrigada a deixá-la agir só.[...] A notícia da assinatura da paz de Luneville chegou em Paris a 12. Toda a população transportou-se ás Tulherias, aos gritos de Viva Bonaparte!(LACROIX, 1904, p. 304-305.) Depois disso só restava a Inglaterra na coalizão. Napoleão sabia que ela só se renderia depois de um grande desembarque em sua costa. Por isso mandou tudo o que dispunha de sua marinha neste plano. Ao ver o Porto de Bolonha cheio de armamentos e com mais de cem mil homens, a Inglaterra tentou fazer duas grandes tentativas para destruir esses armamentos, mas foram em vão. Alarmada com esses insucessos, resolveu finalmente assinar um tratado de paz e reconhecer Napoleão com Primeiro Cônsul. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 67 Esses insucessos não deixaram de influenciar no tratado de paz que foi assinado em Amiens a 25 de março de 1802 entre a República francesa, a República Batava e a Inglaterra. A Inglaterra reconhecia Bonaparte na qualidade de Primeiro Cônsul e restituía á República e aos seus aliados o que conquistara nos dois hemisférios. (LACROIX, 1904, p. 304-305.) Com a vitória sobre a segunda coalizão, Napoleão via cada vez mais o crescimento de seu prestígio e popularidade, vendo o caminho do trono, cada vez mais próximo. CHEGADA AO TRONO Após o sucesso de suas reformas internas e a vitória sobre a segunda coalizão, o Conselho de Estado decidiu que seria aberta uma votação que pediria um governo napoleônico vitalício. O resultado foi uma vitória esmagadora a favor de Napoleão, que em 2 de agosto de 1802 era proclamado Primeiro Cônsul Vitalício. Mas para Napoleão isso pareceu não ser o suficiente, ele queria além da vitaliciedade a hereditariedade. Apoiando-se na ideia de estabilidade do governo e na previsão de guerras novamente em breve, Napoleão se fez sentir cada vez mais necessário. A população tinha a ideia de que se ele fosse morto, a França voltaria a caos em que estava, então ela cada vez dá mais apoio a essa ideia da hereditariedade. Baseando-se nessa ideia da necessidade o tribunato propôs uma moção que elevava Bonaparte a dignidade imperial. Essa proposta foi aprovada por unanimidade no Senado. Em 18 de maio de 1804, Napoleão era proclamado imperador da França, decisão que foi ratificada com aclamação popular. De acordo com Lacroix Era manifesto aos olhos de todos que a morte de Bonaparte, lançando a França de novo no caos da anarquia, seria o sinal para as dissensões civis e para a guerra estrangeira, e como a maior parte dos franceses estava satisfeita com os sentimentos de liberdade e de tolerância que constituíam a regra da administração, ela não inspirava senão á continuidade do governo fundado por Bonaparte. Com a ideia de estabilidade e de continuidade não se estava longe de chegar á da hereditariedade. O Consulado vitalício já não parecia uma garantia suficiente de estabilidade. Bonaparte viu sem duvida com prazer a marcha dos acontecimentos que lhe iam dar a coroa. A moção em que se propunha elevar Napoleão Bonaparte à dignidade imperial, e se declarava o Império francês hereditário 68 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 em sua família, partiu do Tribunato. A proposta do Tribunato, subscrita pelo Corpo Legislativo, foi comunicada ao Senado, que a adotou unanimemente. A 18 de Maio o Senado, incorporado, foi a Saint- Cloud e apresentou a Bonaparte o ato institucional que lhe conferia o título de imperador. O Senado, incorporado, foi a Saint-Cloud e apresentou a Bonaparte o ato institucional que lhe conferia o título de imperador. O senátus-consulto havia consagrado o voto dos três grandes poderes da nação, que foi ratificado pela aclamação popular”.(LACROIX ,1904, p. 320-321) Napoleão finalmente conseguiu atingir um de seus maiores objetivos, e subiu no trono francês, acabando com o período republicano da Revolução Francesa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Devido as suas grandes realizações Napoleão atingiu uma popularidade tão grande, que foi considerado um mito ainda em vida. Com isso pode-se dizer que ele tinha um poder simbólico na França, como explica Pierre Bourdieu (2003, p. 14-15): O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. [...] O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou a de subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras. Hobsbawm enfatiza seu prestígio: Napoleão deu à ambição um nome pessoal no momento em que dupla revolução tinha aberto o mundo aos homens de vontade. Ele foi ainda mais. Foi um homem civilizado do século XVIII, racionalista, curioso, iluminado, mas também discípulo de Rousseau o suficiente para ser ainda o homem romântico do século XIX. Foi o homem da Revolução, e o homem que trouxe estabilidade. Em Síntese, foi a figura com que todo homem que rompesse os laços com a tradição podia-se identificar em seus sonhos.[...] Para os franceses ele foi, também, algo bem mais Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 69 simples: o mais bem sucedido governante de sua longa história. Triunfou gloriosamente no exterior, mas, em termos nacionais, também estabeleceu ou restabeleceu o mecanismo das instituições francesas com existem até hoje. (HOBSBAWN,1997, p. 54.) As suas vitórias militares, aliadas ao sucesso de suas políticas governamentais, trouxeram um período de grande prosperidade a França, trazendo sucesso ao nome Bonaparte. Sucesso que não foi abalado nem com sua derrota e exílio. Precisando-se ter um novo Napoleão, anos mais tarde, para a população entender que este sistema de governo só foi viável naquela época, não devendo mais retornar. GAZZOTTI, Danilo Medeiros. Napoleonic policies for France in crisis. ABSTRACT: This article seeks to demonstrate how the reforms during the Napoleonic consulate gave stability and prosperity to France, to the point of the population to proclaim him the "savior" and the bourgeoisie give him the necessary support to become emperor. KEYWORDS: Napoleon, Reforms, Consulate. REFERÊNCIAS: AUBRY, Octave. A Vida Íntima de Napoleão. 3ª ed. Rio de Janeiro; Casa Editora VECCHI Ltda, 1958. LACROIX, Désiré. História de Napoleão. 1ª ed. Rio de Janeiro; H, Garnier, Livreiro-Editor, 1904. HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 1ª ed. São Paulo; Paz e Terra, 1997. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 6ª Ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2003. 70 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 A ESTRADA DE GOYAS E AS CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DO MUNICIPIO DE IGARAPAVA, EM MEADOS DO SÉCULO XIX. Diego Lopes de CAMPOS* RESUMO: O trabalho intenciona lançar luz a alguns pontos relativos à fundação do município de Igarapava, oferecendo subsídios para posteriores estudos. Uma vez que é raro este tipo de empreendimento sobre tal município, este trabalho pode ajudar posteriores reflexões acerca da realidade história da cidade. PALAVRAS-CHAVE: História Regional, Igarapava, ocupação territorial. O Nordeste paulista, em meados do século XIX, possui uma rede fundiária relativamente recente, pois a abertura do Caminho de Goiás, ainda em princípios do século XVIII, não implicara no desbravamento dos vastos territórios a sua margem1 A história da cidade de Igarapava poderia ser confundida com a história de muitas outras do interior paulista situadas ao longo do Caminho de Goiás. As terras, antes ocupadas pelos índios caiapós, passaram a ser percorridas pelos bandeirantes, que, seguindo as nascentes dos rios, chegaram até Vila Boa de Goiás, onde encontraram ouro. A trilha do Anhangüera seria, a partir de então, caminho de viajantes em busca de fortunas. O Brasil interiorizavase a partir da Vila de São Paulo de Piratininga em direção a Minas e Goiás onde muitos pousos surgiram na passagem de rios e, destes, arraiais, freguesias, vilas e cidades. Somente no inicio do século XIX, em momento de instauração de uma importante migração de mineiros, é que se principiou a desbravar o Sertão do Caminho de Goiás. Grandes glebas de terras foram abertas e ocupadas com a criação de gado, a produção de queijos e o plantio de milho e feijão. Largas extensões de terras devolutas eram apossadas. O futuro posseiro esticava suas divisas ate onde a sua visão alcançava, normalmente aproveitando as pequenas bacias hidrográficas como norteadoras dos limites de suas posses 2 * 1 2 Graduado no curso de História da UNESP – Campus de Franca. Sob orientação de Pedro Geraldo Tosi. Ex- Bolsista: PET/SESu/DDPG. BACELLAR, C. A. P. e BRIOSHI, L. R. (Orgs). Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo. 1999. p 93. BACELLAR, C. A. P. e BRIOSHI, L. R. (Orgs).Op. cit. 1999. p 93. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 71 O nome da cidade de Igarapava vem da terminologia tupi, Igarava – canoa e Pava – porto, portanto o “porto das canoas” que se encontrava nas barranqueiras do Rio Grande já era um caminho conhecido tanto por indígenas quanto por bandeirantes que transitavam pela “estrada para Goyas” na altura do caudaloso rio rumo aos sertões das Minas Gerais. A fundação da cidade é algo um tanto quanto controverso, no entanto cronistas da cidade datam o périplo pelos idos de 1842, com o vilarejo ainda conhecido por Santa Rita do Paraízo e parte integrante da comarca de Franca, neste intento destaca-se as figuras do Capitão Ferreira Anselmo de Barcelos, Padre Zeferino Batista do Carmo e João Gomes na constituição física do lugarejo. A instigante figura de Anselmo de Barcelos oferece-nos referencias interessantes de apreensão do processo de povoamento de Santa Rita do Paraízo. Natural de Franca, o capitão protagonizou uma sedição contra os poderes do juiz de paz Manuel Rodrigues Pombo. O certo era que o Cap. Barcelos era sobrinho do Cap. Hipólito Antônio Pinheiro, fundador de Franca, e então vereador da cidade e envia um oficio ao juiz de paz da municipalidade (1836) por considerar fraudulentas as eleições que excluíam o seu grupo político das fileiras de poder municipal. Inicia-se, então um malestar, dentro da política local de grupos rivais. O grupo político antigo local, que dentre as suas lideranças figurava o Cap. Ferreira de Barcelos ao perder as eleições para juiz de paz e vereadores em 1836, enceta uma série de ataques políticos aos rivais representados por Antônio Barboza Sandoval, Luis Gonçalves Lima e Manoel Rodrigues Pombo acusando-os além de fraudes para com o certame eleitoral, de culpa em alguns casos de querelas de ordem pessoal.3 A sociedade brasileira vivia o turbulento período regencial e levantes ocorreram em quase todas as Províncias do Império, contra o poder central ou mesmo em disputas locais que tinham como caixa com consonância as disputas políticas em voga no Rio de Janeiro. Com a descentralização do poder central, em época das regências, a política se desenvolvia tendo por núcleo o município, o que colocava na base do poder os grandes proprietários do interior, os chefes de parentelas e de grandes famílias. E o que havia de importante então eram as lutas dos proprietários rurais entre si para terem o poder, ou as lutas dos grandes proprietários contra as influencias da Metrópole ou do Rio de Janeiro4 3 4 72 Casos desta ordem são referencias narradas pelas monografias do professor Carmelino Corrêa que se encontram arquivadas no Museu de Franca. Pereira de Queiroz, Maria Isaura. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo. Alfa Ômega, 1976. p 19. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Mesmo com as divergências entre as várias versões sobre a história das “Anselmadas”, é convergente a ideia sobre a invasão do Capitão Barcellos a Vila de Franca, em 1 de Janeiro de 1838, na companhia de 30 cavaleiros armados, com objetivo de depor o Juiz de Paz em exercício, seu opositor e substituí-lo por José Joaquim do Carmo, seu aliado político. O fato é mais uma prova de brutalidade e mandonismo com que se conduzia a política local. Esta característica não só exclusiva da localidade francana em conduzir os seus interesses políticos vem corroborar com a fama de “lugar violento” como ficou conhecida a Vila Franca do Imperador, e uma “boca do sertão”, ou seja, uma local de refugiados, criminosos como bem ressalta viajantes como Saint Hilaire5 e D’ Alincourt6 A vida cotidiana marcada pelo ritmo monótono foi abalada por este episódio, que a nosso ver demandaria um estudo particular haja vista características e diversas posições e versões adotadas. As ruas da cidade, então cheias de mato, animais soltos, mascates, artífices, vagabundos e marcadas pelo transito de escravos e tropas de cavalos, viram-se invadidas e dominadas pelo temor. É provável de as portas das casas, raramente trancadas numa sociedade onde inexistia o crime contra a propriedade, fosse, a partir daí, alvo de maior atenção e vigilância.7 Não obstante ao julgamento por atentado ao bem público e ordem, o Cap. Ferreira de Barcelos em setembro de 1838, invade outra vez a localidade francana no intento de assassinar o Juiz de Paz Manoel Pombo, no entanto os ânimos são amainados pela interferência do Padre João Teixeira d’ Oliveira Cardoso que contêm os revoltosos.8 No entanto, o Juiz de Paz Manoel Pombo, não obteve a mesma sorte, no dia 6 de Novembro de 1838, em que foi encontrado morto e com as suas orelhas decepadas, nas intermediações da Fazenda Borda da Mata de propriedade da família Ferreira de Barcellos. Com os acontecimentos políticos e repercussões para a Vila de Franca e perda de sua sede para a Freguesia do Bom Jesus da Cana Verde, Atual 5 6 7 8 SAINT-HILARE. Auguste. Viagem à Província de São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976. D’ Alincourt, Luiz. Memórias sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuyaba. Anais do Museu Paulista. Tomo XVI, 1950 BENTIVOGLIO, Júlio C. Trajetória Urbana de Franca. Franca. Editora UNESP. 2000. p 53. SOUZA, Sebastião Ângelo de. Pelos Caminhos da História de Santa Rita do Paraízo. São Paulo. Ed Vitória. 1985. p 82. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 73 Batatais, a situação do Cap. Barcelos mostrou-se insustentável e fez-se necessário sua volta para a fazenda Borda da Mata, referida em alguns relatos da época por muitos outros nomes e que depois ficou conhecida, popularmente, por Vargem Alegre, no que hoje é conhecido pelo município de Igarapava. Inclusive tais talhões de terras datam de uma ordenação metropolitana de 1804 referentes a uma sesmaria oferecida à família Barcelos assim de sua vinda às terras paulista partindo de Minas Gerais.9 De caráter impetuoso e rebelde reconhecido por muitos por mais respeito que temerosidade, como destaca Chiachiri, ou mesmo um “protocoronel” que apenas desrespeitou as leis e as normas do bem-viver jogando com os interesses políticos locais, como analisa Bentivoglio. A figura de Anselmo de Barcellos ora é quisto como um herói local que combate os desmandos dos vereadores combatendo a corrupção e resolvendo litígios, outra vez é relatado como um sedicioso que se rebela contra as autoridade quanto não como um criminoso, como no caso da morte do Juiz Manuel Pombo. O certo é que a sua ação política extrapola os limites paulistas, como no caso de sua invasão a vila do Sertão da Farinha Podre, que atualmente corresponde a Uberaba, Minas Gerais. O Padre Zeferino do Carmo, residente em Uberaba, torna- se um grande amigo de ideias do Capitão Anselmo. Em 1842, por meter-se à política local e em meio a Revolução Liberal que eclode contra o Poder Central é preso, torturado e na enxovia sofrera grandes humilhações por parte de seus inimigos políticos, ligados ao Partido Conservador em Uberaba. Por ocasião da Revolução Liberal, ocorrida no ano de 1842, Anselmo Ferreira de Barcelos invadiu a Vila de Uberaba e libertou da prisão o padre Zeferino Batista do Carmo, vereador liberal e detido por motivos políticos. Este radicou-se na região e, juntamente com Anselmo, fundou o Arraial de Santa Rita do Paraízo, que no ano de 1851 elevado a freguesia e em 1873 a vila, com o nome de Igarapava.10 É justamente, a partir da chegada do Padre Zeferino e atuação de homens como Capitão Anselmo de Barcellos e de João Gomes, paralelamente, com a fundação da capela de Santa Rita do Paraízo, é que se vitaliza um conglomerado populacional, um posto de passagem e muitas vezes de parada entre as Minas Gerais e São Paulo, via Rio Grande. 9 10 74 De acordo com informações colhidas no Arquivo Municipal de Franca BACELLAR, C. A. P. e BRIOSHI, L. R. (Orgs). Op. cit. 1999. p 82. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Há indícios, de acordo com cronistas locais, de que as edificações da Capela Santa Rita do Paraízo e do “pouso” para viajantes na fazenda Vargem Alegre foram concluídos no ano de 1843, meses depois da chegada de Zeferino no sítio da família Ferreira de Barcellos. Os desdobramentos destas edificações foram sentidos, em 1851, com a Lei nº 7, sob as penas do então Presidente da Província de São Paulo Vicente da Motta com a criação de Freguesia de Santa Rita do Paraízo.11 Com a construção da edificação da Igreja Matriz de Santa Rita, em novembro de 1853, e seu termino em 1858 o Padre Zeferino Batista agradecia ao Governo Provincial a remessa de 400$000 (quatrocentos mil réis) para as obras do templo12 O “pouso” às margens do Rio Grande crescia em números de pessoas, o que traduzia o aumento no número de suas edificações. Em 1857, foi instalado na freguesia uma agencia dos Correios; em 1858 o Padre Zeferino comunicava ao Governo Provincial que o Livro de Registros de Terras encontrava-se em seu poder, o que no ano seguinte por Portaria Provincial era nomeado como Inspetor da Instrução Pública do Distrito do Carmo, ao qual pertencia a Freguesia de Santa Rita do Paraízo. Em 23 de Janeiro de 1863, a Câmara Municipal de Franca, solicitou ao Governo da Província, uma doação de 1.000$000 ( um conto de réis) para a construção de uma cadeia pública, em Santa Rita do Paraízo “por aquele arraial distar de desta cidade treze legoas e ser um districto populoso”...O dinheiro demorou; os moradores, subscrevendo a importância de 500$000 (quinhentos contos de réis), deram inicio à obra, que só ficou pronta no inicio de 1865, quando o Governo Provincial remeteu uma verba de 700$000 (setecentos contos de réis) em mais 200$000 (duzentos contos de réis) para reforma de um valo.13 A Freguesia logo assumiu os contornos de Vila, em 14 de Abril de 1873, o que mais tarde fora instalada a Comarca de Santa Rita do Paraízo, desmembrada do município de Franca, pela Lei nº 80, em 25 de agosto de 1892. A religiosidade popular muitas vezes ultrapassava os muros da igreja e denotava os contornos do “agem” público, como no caso de muitos municípios brasileiros receberem o nome de sua padroeira, a Comarca Santa Rita do Paraízo não era exceção a esta regra tão comum e detectável da constituição do processo histórico dos municípios brasileiros. Publicado da Secretária do Estado de São Paulo, em sete de Abril de mil oitocentos e oitenta e um. Registrado no livro 3º de Leis, fls 111, em oito de Abril de mil oitocentos e oitenta e um. 12 SOUZA, Sebastião Ângelo. Ob cit. 1985, p 187. 13 SOUZA, Sebastião Ângelo de. Op. Cit.. 1985. p 187 11 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 75 A escolha do nome Igarapava surge em substituição ao nome da padroeira da cidade, depois que uma discussão acalorada em sessão pública da Câmara Municipal14, da referida localidade. Os defensores da causa argumentavam sobre as várias cidades com o nome de Santa Rita, o que poderia causar confusão entre as pessoas e entrave para as pretensões da cidade. O nome sugerido, pelo grupo de vereadores liderados por Gabriel Vilela, vinha em se justificar pelo porto de travessia pelo Rio Grande que naquela paragem recebia o nome de Porto da Ponte Alta, e que anteriormente, era conhecido pelos indígenas e bandeirantes por Porto das Canoas, o que em língua tupi significa Igara (porto) e Pava (das canoas). A Lei que altera o nome da comarca é a de número 1.097, de quatro de Novembro de 1907. Tabela 8 – Nordeste Paulista: Freguesias e Municípios criados até 1889. Municípios Data da Data do Município de Freguesia Município Origem Franca 1804 1821 Mojimirim Batatais 1815 1839 Franca Cajuru 1846 1865 Casa Branca Ribeirão 1870 1871 São Simão Preto Ituverava 1847 1885 Franca Igarapava 1851 1873 Franca Rifaina 1873 1948 Pedregulho Morro 1872 1934 Orlândia Agudo Jeriquara 1885 1964 Franca Fonte: IGC, 1995. CAMPOS, Diego Lopes de. The Goyas road and considerations about the formation of Igarapava city in the mid-century XIX. ABSTRACT: This article intends to make clear some points relating to the founding of Igarapava city, offering subsidies for further studies, cause this kind of study about this region is rare, which may help further reflections on the historical reality of the city. KEYWORDS: Regional history, Igarapava, land occupation 14 Livro de Atas da Câmara Municipal de Igarapava, do ano de 1907. 76 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 REFERÊNCIAS BACELLAR, C. A. P. e BRIOSHI, L. R. (Orgs). Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo. 1999 BENTIVOGLIO, Júlio C. Trajetória Urbana de Franca. Franca. Editora UNESP. 2000. BIANCONI, Renata. Dinâmica econômica e formas de sociabilidade: aspectos da diversificação das atividades urbanas em Campinas (18701905). Campinas, 2002. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas. CAMARGO, José Francisco de. Crescimento da população no Estado São Paulo e seus aspectos econômicos. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1981. D’ Alincourt, Luiz. Memórias sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuyaba. Anais do Museu Paulista. Tomo XVI, 1950 SAINT-HILARE. Auguste. Viagem à Província de São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976. SOUZA, Sebastião Ângelo de. Pelos Caminhos da História de Santa Rita do Paraízo. São Paulo. Ed Vitória. 1985. Pereira de Queiroz, Maria Isaura. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. 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No que se refere aos estudos realizados sobre a Reforma, a historiografia dá pouca atenção aos movimentos radicais religiosos ocorridos no século XVI, no qual tiveram como “símbolo”, os anabatistas. Por mais que muitos marginalizem esse grupo, dizendo que teriam um papel secundário no contexto da época, é importante ressaltar a contribuição social dos anabatistas, principalmente por pregarem um modo de vida relacionado à valorização da liberdade. Desse modo, pode-se destacar que os anabatistas não estavam somente preocupados com a questão religiosa, mas também contestavam a estruturas políticas existentes no século XVI, pois rejeitavam as leis civis e os deveres militares e opunham-se a qualquer forma de autoridade humana. Um dos motivos para essas concepções é a Confissão de Scleitheim (um dos documentos mais divulgados pelos anabatistas, foi redigida em 1527 pelo mártir Miguel Sattler), esta possui sete artigos: 1. Afirma-se o Batismo só de crentes (os anabatistas não aceitavam o batismo das crianças, pois alegavam que elas não estavam preparadas para recebê-lo, portanto somente os adultos convertidos à seita poderiam ser batizados). 2. A separação dos que caem no erro do pecado, a excomunhão. Aqui simplesmente seguem Mateus 18. 3. Defendem uma comunhão fechada, ou seja, só podem participar os membros comprometidos da comunidade e que vivem em santidade. * Graduando do curso de História da UNESP – Franca, sob orientação do Profº Dr. Lélio Luiz de Oliveira Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 79 4. É exigida absoluta rejeição de toda “servidão da carne”, deve-se afastar de todo o tipo de pecado, maldade, idolatria e abominação. Inclusive frequentar bares e cultos tais como o culto das igrejas romanas, luteranas e zuíngliana. É proibido o uso de armas até em defesa própria. 5. Cada congregação escolhe seus próprios pastores e estes devem gozar de boa reputação dentro e fora da comunidade e, por meio deles, administrar sua disciplina. 6. Quanto ao governo civil, diziam ser necessário nesse mundo imperfeito, mas o cristão nele não deve participar, nem tomar armas ou lançar mão de coerção. 7. O cristão sempre deve dizer a verdade e não fazer qualquer tipo de juramento. Além disso, é importante realçar outras características desse grupo: possuía uma crença geral no livre arbítrio, oposto à ortodoxia protestante da predestinação, poucos aceitavam a poligamia, não defendiam sistematicamente uma sociedade onde todos viveriam em comum (embora em algumas áreas, como a Moravia, os anabatistas aplicavam-na) e acreditavam na volta do Messias. ... o anabatismo não era uma crença que procurava abrir caminho, um movimento confuso e desordeiro, mas sim uma conspiração internacional destinada a abater a frágil estrutura social da Europa. Observado desse ponto de vista, não se admira que fosse objeto de certa perseguição, pois não tinha caráter estritamente religioso. (DICKENS, 1971, p.144). Esse trecho mostra o anabatismo sendo alvo de perseguição por ser considerado não só relacionados a assunto religiosos, desse modo entendese que essa crença era formada por um grupo de revolucionários, no entanto não se pode generalizar, pois existiam anabatistas que se dedicavam a uma vida piedosa, retirada do mundo, preparando-se para a “nova vinda de Cristo”. A expansão das ideias da Reforma feita por Lutero abriu caminho para um novo modo de pensar sobre a Instituição religiosa e os seus princípios; uma das mudanças propostas pelos protestantes era livre interpretação da Bíblia, consequentemente isso favoreceu para inúmeras divisões do protestantismo. Foi nesse contexto que surgiu na Suíça o zuínglianismo, esse movimento, ao contrário de Lutero, colocava o papel do homem de Estado ao de reformador religioso, além disso, Zuínglio também fez uma 80 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 racionalização da doutrina eucarística, simplificou as fórmulas culturais e discutiu o valor do batismo das crianças. Entre 1523 e 1526 o pensamento anabatista teve sua maior força em Zurique, pois surgiam nesse local os primeiros grupos liderados por Conrado Grebel, Baltasar Hübmaier e Félix Mantz, todos estes eram discípulos de Zuínglio, e sempre discutiram a questão do batismo das crianças, no entanto pretendiam a levar ideia mais ao extremo. Em 1525 começaram a batizar várias pessoas que aceitavam os preceitos anabatistas, desde então o grupo rompeu com zuínglianismo e começou a praticar a suas ações declarando-se uma seita autônoma. Em pouco tempo o movimento espalha-se por toda Suíça, tendo maior sucesso nas pequenas aldeias, onde houve uma grande aceitação entre os camponeses, pois os chefes anabatistas despertavam uma legítima emoção popular. Além disso, a rejeição ao protestantismo conservador pode ter sido reforçada posteriormente, devido à condenação da revolta dos camponeses por Lutero (DICKENS, 1971). Outra contribuição a esse repúdio foi que as autoridades de Zurique realizaram a prisão de Grebel, Mantz, Blaurock (sacerdote convertido para seita e também foi um líder influente no anabatismo) e submeteram Hübmaier a tortura. Desse modo foram feitas várias perseguições aos grupos anabatistas, obrigando a seita a se instalar em lugares mais isolados e assim as suas principais ações ocorrem fora da Suíça. É importante destacar a influência da corrente anabatista na Guerra dos Camponeses, um conflito que ocorreu entre 1524-25 devido à situação que se encontrava o meio rural na Alemanha em decorrência da crise do sistema feudal, dessa maneira os camponeses liderados por Thomas Müntzer reivindicavam a livre escolha dos líderes espirituais, a abolição da servidão, a diminuição dos impostos sobre a terra e a liberdade para caçar nas florestas pertencentes à nobreza. Dickens explica como Müntzer adquiriu a idéias anabatistas e tentou aplica-las nessa revolta: O anabatismo tinha relações com a heresia e o profetismo da Idade Média. Os movimentos organizados não provinham unicamente de Zurique. Podem encontrar-se elementos a eles relativos na caótica Vitemberga de 1521, quando o batismo das crianças se discutia e quando os profetas de Zwickau tentavam organizar uma igreja separada. Foi deste meio que emergiu Müntzer, o qual tentava desviar a revolta dos camponeses ao extremismo religioso. (DICKENS, 1971, p. 131). Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 81 Em fevereiro de 1525, a revolta havia se espalhado por todo o sul da Alemanha e começava a se alastrar para o norte e leste. Porém ela chega ao fim nesse mesmo ano, afinal os camponeses não tiveram chance contra um exercito de soldados experientes e bem equipados, foram cercados e milhares dizimados, já Müntzer foi preso, torturado e depois decapitado. Mas o anabatismo consegue espalhar-se consideravelmente entre os camponeses e habitantes pobres das diversas cidades regiões da Europa como a Áustria e principalmente a Moravia, essa expansão foi teve grande ajuda de Hans Huth (foi um dos discípulos de Thomas Müntzer) que conseguiu conquistar muitos adeptos por onde passava, mas foi em lugares mais distantes como Nikolsburg, na Moravia, onde suas profecias apocalípticas obtiveram maior sucesso. Posteriormente, após a morte de Huth, os anabatistas desse local receberam um ilustre líder Jacob Hutter, este novo organizador baseava-se nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, de que a comunidade de bens era a prática dos verdadeiros cristãos (DICKENS, 1971), dessa maneira por volta de 1529 os moradores da Moravia começaram a ser organizar em sociedades que colocavam os bens em comum, Hutter conseguiu fundar cerca de oitenta fundações anabatistas nessa região. Alguns anos depois passaram a ser perseguidos, Hutter foi morto em 1536, foram expulsos e receberam auxílios de outras comunidades anabatistas da Europa, ficaram conhecidos como hutteristas. Um episódio extremamente marcante na história do movimento anabatista foi a ocupação da cidade episcopal, localizada na Vestefália, chamada Münster. Mas, antes de entrar diretamente nesse caso, é relevante analisar os fatos que levaram a ação desse acontecimento. Primeiramente, destaca-se a figura de Melchior Hoffmann, este foi um missionário que não aceitava as ideias de Lutero e Zuínglio e juntou-se ao anabatismo na cidade de Estrasburgo (grande centro de concentração de anabatistas e outros radicais), logo depois consegue lançar um novo movimento imbuído de radicalismo na Holanda, tendo um importantíssimo papel religioso durante 1530 e 1533, até ser preso por autoridades de Estrasburgo. No entanto, um grupo de seus discípulos liderado por João Matthys de Harlém, foi o responsável na propagação dessas novas ideias para as outras cidades holandesas. Desse modo, em 1533, Matthys e um grande grupo de anabatistas ficam cientes que na cidade de Münster um antigo pregador luterano Bernardo Rothmann estava denunciando o batismo das crianças e sustentava a comunidade de bens, assim desafiava o príncipe/bispo católico e desejavam a expulsão dos luteranos, em consequência disso tomou a cidade em Janeiro 1534, com ajuda das classes populares e do rico 82 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Knipperdolling. Diante a essa situação, João Matthys e os seus seguidores se juntaram aos anabatistas de Münster, onde em seguida assumiu o comando da cidade e teve de lidar com os problemas encontrados devido ao cerco instalado em Fevereiro pelo príncipe/bispo. Porém em Abril é morto pelas tropas inimigas, então a liderança foi transferida para o antigo alfaiate João de Leida, onde este acabou com o conselho da cidade e instaurou uma teocracia; no seu governo todos os pecados (como por exemplo: blasfêmia, adultério, desobediência aos pais ou ao um patrão e a falsa denúncia) eram punidos com a morte. Já a poligamia era admitida em Münster, mas segundo Dickens isso pode ser explicado: É justo, no entanto, esclarecer que se tratava de um código de natureza militar. O mesmo podemos pensar da instituição da poligamia, pois na cidade havia 1700 homens para quatro vezes mais mulheres e muitos milhares de crianças a proteger. É inútil acrescentar que a poligamia era defendida mediante o apoio de numerosos textos bíblicos pelo antigo sacerdote Rothamann, que empregava também argumentos empíricos. Desde que o objetivo do casamento era a fecundidade, um marido não deveria ser impedido, pela esterilidade ou indisposição, de uma esposa.(DICKENS, 1971, P.140). Em Junho de 1535 termina o cerco em Münster, tendo como resultado uma chacina de grande parte dos defensores da cidade, já outros, como João de Leida e Knipperdolling, foram torturados até a morte. Depois desse episódio intensificaram as perseguições aos anabatistas, sendo que milhares foram capturados e mortos nos decênios seguintes do século XVI. Após a catastrófica experiência ocorrida em Münster, o anabatismo encontra uma salvação, isso se deve a Meno Simonis, este era um padre alemão que foi admitido na seita em 1536 e assim passou a fazer varias peregrinações na Alemanha e na Holanda no intuito de ajudar e acolher os grupos que tentavam fugir das perseguições. Dessa forma consegue um grande numero de seguidores, posteriormente ficam conhecidos como menonistas. Em decorrência desse sucesso entre os anabatistas, Meno Simonis impõe ideias próprias no movimento; mesmo influenciado pelos conceitos de Hoffmann, renuncia qualquer prática violenta e divulga os princípios do pacifismo e da não resistência. Porém muitos não aceitavam as ideias de Simonis e desse modo vão para outros locais, como Inglaterra, Polônia e a Itália, e organizam novos grupos anabatistas. Estes opositores a corrente menonista criaram um movimento mais ligado ao pensamento teológico, onde negavam a Santíssima Trindade e Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 83 diziam que somente Deus deveria ser glorificado, assim não consideravam Jesus Cristo uma figura divina; os seguidores dessa nova concepção ficaram conhecidos como unitaristas. A partir disso diversos desses novos anabatistas fundaram a Igreja Menor Reformada da Polônia, onde esta espalhou por todo o território polonês, tendo maior destaque a propriedade de João Sieninski, chamada Rakow. Foi esse lugar que Fausto Sozzini, um grande dirigente italiano unitarista, deu a corrente unitarista uma consciência de doutrina e um método de pensamento mais coerente, dessa forma após a sua morte, em 1605, os discípulos publicam um documento muito influente no unitarismo: a Confissão rakoviana. Já na Inglaterra, o movimento surge antes por volta de 1530, aonde chegam vários panfletos radicais vindo da Antuérpia e logo depois começa uma grande emigração de anabatistas dos Países Baixos, criando grupos numerosos no território inglês. Em 1535 começa as perseguições, quatorze anabatistas são queimados nesse ano e mais vítimas acontecem até o fim do reinado de Henrique VIII, pois este queria sufocar os radicais para que o anglicanismo tivesse um triunfo por completo na Inglaterra. No governo de Eduardo VI, os anabatistas ingleses adquirem certa liberdade e assim recrutam mais adeptos e imprimem panfletos incentivando a tolerância religiosa, em resposta a isso o bispo anglicano Hooper, o deão de Gales Guilherme Turner e outros membros eclesiásticos ingleses, publicam vários livros contra o anabatismo (DICKENS, 1971). Desse modo, depois dessa data a seita não faz grande progresso, tendo ainda que conviver com inúmeras perseguições. Em consequência desse contexto conturbador que os anabatistas ingleses viviam, muitos optaram em ter uma nova vida nos Estados Unidos, mais precisamente na região da Nova Inglaterra. Na Nova Inglaterra, o movimento radical tomou uma outra forma. O país estava semeado de uma mistura de estabelecimentos colonizadores, encorajados por investigadores londrinos, e de refugiados da política religiosa do governo inglês, quer presbiterianos, independentes, batistas* ou católicos romanos. A Carta da Companhia de Virgínia (1606) estipulava que a verdadeira Palavra de Deus devia ser pregada aos colonos e aos selvagens, e a partir de 1609 os batistas foram excluídos. A colônia tencionava reproduzir a Igreja de Inglaterra do outro lado do Atlântico. (CHADWICK, 1964, p.204). * 84 O termo anabatista passou a ser usado na Inglaterra no século XVII para designarem as pessoas que faziam parte da seita do anabatismo. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Como foi possível observar, por mais que existissem situações controvérsias, onde envolvia demasiadas perseguições, os anabatistas resistiram ao longo do século XVI e conseguiram levar o seu legado até o inicio da colonização da América. A partir dessas informações, é possível concluir que o anabatismo teve uma enorme influência social durante o século XVI, pois esse grupo desejava, através de suas ideias radicais, ir além das propostas de Lutero e Zuínglio, ou seja, os anabatistas queriam mais que uma reforma religiosa, eles idealizavam criar um modelo de sociedade livre das instituições politicas e religiosas, diferente de qualquer outra organização social dessa época. VALENTIM, Filipe Faulin. The Radical Reformation in the sixteenth century: the Anabaptists ABSTRACT: The Anabaptists were the main representatives of the radicalism of the Reformation in the sixteenth century. After breaking up with the ideas of Luther and Zwingli, start a movement that not only has religious ideas, but social, thereby expanding their sect for various regions of Europe, mainly in the Netherlands. Thus Anabaptism shall be condemned and persecuted its members in several European areas, yet this group manages to leave his legacy in history. KEYWORDS: Anabaptists, Reform, Radicalism, Münster. REFERÊNCIAS: CHADWICK, Owen. A Reforma. Lisboa, Editora Ulisseia Ltda, 1964. CHAUNU, Pierre. O tempo das Reformas (1250-1550) II. A Reforma Protestante. Lisboa, Editora Almedina, 1993. DICKENS, A. G.. A Reforma e a Europa do século XVI. Lisboa, Editorial Verbo, 1971. MATOS, Henrique C. J.. Introdução à História da Igreja, v.2. Belo Horizonte, Editora O Lutador, 1997. NASCIMENTO, Luis Felipe Mendes. A Reforma vista por um olhar marginal. Revista Theos – Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas, Campinas, 5ª edição, v-4, nº 1, Junho de 2008. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 85 A MARSELHESA: DE CANÇÃO REVOLUCIONÁRIA À HINO OFICIAL DA REPÚBLICA DA LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE1 Henrique Franco da ROCHA RESUMO: O ano de 1792 foi cheio de perturbações dentro da França, a maior delas, pode-se dizer, foi a declaração de guerra da França contra a Áustria. Em meio aos conflitos o oficial do exército Rouget de Lisle compôs, a pedido do prefeito de Estrasburgo, a canção que chamou de Canto de Guerra para o Exército do Reno, conhecida como A Marselhesa. O objetivo desse artigo é analisar o processo pelo qual passou A Marselhesa que de simples canção revolucionária voltada apenas ao incentivo de um exército passou a figurar no imaginário de um povo como a mais perfeita representação dos ideais do mesmo. PALAVRAS-CHAVE: revolucionário; A Marselhesa; Revolução Francesa; Imaginário; Hino Allons enfants de la Patrie, Le jour de gloire est arrivé! Contre nous de la tyrannie, L'étendard sanglant est levé, Entendez-vous dans les campagnes Mugir ces féroces soldats ? Ils viennent jusque dans vos bras Egorger vos fils, vos compagnes! Aux armes, citoyens, Formez vos bataillons, Marchons, marchons ! Qu'un sang impur Abreuve nos sillons !2 O fragmento acima consiste na primeira estrofe e no refrão da música composta em 1792 pelo oficial do exército francês, Rouget de Lisle. Com letra de grande impacto e fervor patriótico repleta de ideais revolucionários, a canção serviria para animar o exército com intuito de criar um sentimento 1 2 Este artigo é fruto do Trabalho de Conclusão da disciplina intitulada História Contemporânea I e foi orientado pela Profª. Drª. Márcia Pereira da Silva. Avante, filhos da Pátria/O dia da Glória chegou/Contra nós, da tirania/O estandarte ensangüentado se ergueu/Ouvis nos campos/Rugirem esses ferozes soldados?/Vêm eles até aos nossos braços/Degolar nossos filhos, nossas mulheres/Às armas cidadãos!/Formai vossos batalhões!/Marchemos, marchemos!/Que um sangue impuro/Ágüe o nosso arado Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 87 nacionalista revolucionário ainda maior que levaria a França à vitória contra os “inimigos da liberdade”, e que seria difundida por todo o território francês. Ao ser usada pelo exército de Marselha a música ficou conhecida como A Marselhesa. A Revolução Francesa produziu não somente uma nova ordem políticosocial na França, como também contribuiu para as mudanças que se deram no imaginário do povo e na formação de seus principais símbolos dentro do novo Estado. Os novos valores, que iam contra o Antigo Regime, em que o rei absoluto mandava e o povo obedecia, acompanharam o processo revolucionário permitindo uma nova dimensão de se pensar o povo, que não seria mais abarcado como passivo nas representações do Estado. Após o ano de 1789 a França passou por significativas mudanças no âmbito político e social. O rei até então absoluto, foi obrigado por pressões internas a se curvar diante de uma constituição, o povo não mais assistia calado ao governo e vontades do rei. Idéias vindas dos iluministas, principalmente de Rousseau, como o caso da Liberdade, igualdade e fraternidade passaram a figurar dentro das discussões do povo sobre o Estado e sobre seus direitos enquanto cidadãos. Principal afirmação dessas idéias se deu na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento composto principalmente pela burguesia em 1789, que defendia o direito a propriedade privada e o fato de os homens nascerem livres e iguais perante a lei, incluindo o próprio rei, que deveria governar sem, no entanto, se sobrepor à lei. Segundo o historiador Eric J. Hobsbawm, “a propriedade privada era um direito natural, sagrado e inviolável. Os homens eram iguais perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas ao talento” (HOBSBAWM, 1977, p.77). A Assembléia Nacional, que continuava vendo na figura do rei um governante, derivada da reunião dos Estados Gerais em finais de 1788 e início de 1789, compôs no cenário francês uma força contrária às prerrogativas da aristocracia. Os anos seguintes foram cheios de conturbações; em 1790 foi votada a Constituição Civil do Clero, que deixou o clero nas mãos do Estado. As conturbações chamam a atenção de outros governantes europeus, que embora alarmados com os acontecimentos da França, ao menos por hora, não se manifestaram de fato. Parte da corte emigrou, principalmente após a abolição de fato do direito feudal; os emigrados tentaram levar outras cortes a tomarem medidas contra os revolucionários franceses. O rei francês secretamente “suplicava aos reis que interviessem” (SOBOUL, 1964, p.189); em junho de 1791 tentou fugir para tentar recuperar, com o auxílio dos exércitos austríacos, sob comando de 88 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Bouillé, seu antigo lugar dentro do reino da França, no entanto foi descoberto e acabou preso. A proclamação redigida por Luís XVI antes de sua fuga, e dirigida aos franceses, não deixava qualquer dúvida a respeito de suas intenções. Ele pretendia insuflar as tropas de Bouillé, o exército austríaco dos Países-Baixos, depois retornar a Paris, dissolver a Assembléia e os clubes e restabelecer o poder a absoluto. Toda a política secreta de Luís XVI tendia provocar uma intervenção da Espanha e da Áustria, em seu favor. (SOBOUL, 1964, p.193) A fuga e a prisão do rei causaram conseqüências externas, o imperador Leopoldo II e o rei Guilherme II da Prússia se uniram no intuito de salvar a família real e, em agosto de 1791, assinaram a declaração de Pillnitz, que foi tomada pelos revolucionários como uma ameaça, uma interferência estrangeira, “a Revolução sentiu-se ameaçada (...) o sentimento nacional superexcitou-se” (SOBOUL, 1964, p.196). A declaração dividiu os revolucionários entre os que queriam a guerra e os que não queriam. Dentro da França ocorreram grandes debates sobre essa decisão; em abril de 1792 a França declarou guerra ao rei da Hungria e da Boêmia, o que significava uma declaração de guerra à Áustria e não ao império todo. Com a guerra cresceu novamente o sentimento nacional, os revolucionários defenderam que a “liberdade” devia ser levada às outras nações e o sentimento que insuflava o exército era o patriotismo, a defesa da pátria e da nação livre, contra os tiranos: A guerra foi declarada em abril de 1792. A derrota, que o povo (bem plausivelmente) atribuiu à sabotagem e à traição real, trouxe a radicalização. Em agosto-setembro, a monarquia foi derrubada, a República(...) (HOBSBAWM,1977, p.84) Após a declaração de guerra de 1792 a França percebeu que a crise nacional pela qual passava atingiu também o exército. O exército estava decomposto, seus oficiais não possuíam mais tanta autoridade, a no início das batalhas as tropas foram massacradas, os homens estavam indisciplinados, e os conflitos nacionais de âmbito político chegavam ao exército “opondo a tropa patriótica ao comando aristocrático” (SOBOUL, 1964, p. 196). Nas palavras de Hobsbawm, “o que sobrou do velho exército francês (...) era incapaz e inseguro” (HOBSBAWN, 1977, p.85). Uma das soluções encontradas ainda segundo o autor foi a “virtual abolição, em casa, e no Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 89 exterior, da distinção entre soldados e civis” (HOBSBAWM, 1977, p.85); civis agora compunham o exército, o povo lutava. A MARSELHESA ABSORVIDA PELO POVO Durante os conflitos, as tropas precisavam ser animadas e o ideal da Revolução precisava ser mantido. O povo, que agora compunha boa parte do exército, deveria ser movido por tais sentimentos; o canto de guerra era uma boa arma para manter o ânimo e os ideais, pois mantinha aceso o fervor revolucionário e as causas defendidas pela França ao se lançar em guerra contra nações vizinhas: A 26 de abril, em Estrasburgo, Rouget de Lisle lançara seu Canto de Guerra para o Exército do Reno, cujo ardor, ao mesmo tempo nacional e revolucionário, não deixava dúvida. No espírito do autor, como no espírito dos que cantavam, Revolução e nação não se distinguiam. Os tiranos e os vis déspotas, que cogitavam de entregar a França à antiga escravatura, são ali denunciados, mas também a aristocracia, os emigrados, essa horda de escravos, de traidores, esses parricidas, esses cúmplices de Bouillé. A pátria, cujo amor sagrado é exaltado, a cuja defesa se faz apelo (“Percebei, nos campos, berrar os ferozes soldados...”) é a pátria que, depois de 1789, foi levantada contra a aristocracia e o feudalismo. Não se pode separar o que logo se tornou o Hino dos Marselheses de seu contexto histórico: a crise da primavera de 1792. Impulso nacional e assomo revolucionário foram inseparáveis; um conflito de classes lastreava e exacerbava o patriotismo. Os aristocratas opunham o rei à nação que desprezavam, os do interior esperavam o invasor com impaciência, os emigrados combatiam nas fileiras inimigas. Para os patriotas de 1792 tratava-se de defender e de promover a herança de 89. (SOBOUL, 1964, p. 209) A música composta por Rouget de Lisle, a pedido do prefeito de Estrasburgo, deveria ser um estimulo e um encorajamento ao exército que combatia nas fronteiras próximas ao rio Reno. Idéias de extrema importância ao contexto da época foram expressas na letra, em meio à guerra a música incitava os cidadãos franceses à pegarem em armas, formarem batalhões e lutarem em favor da pátria O sentimento expresso na letra da música era exatamente o que deveria ser mantido pelos que lutavam. A tirania deveria ser combatida, a pátria defendida, deveria se evitar a qualquer custo a retomada do país pela 90 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 monarquia. A canção ganhou grande popularidade, principalmente nas tropas de Marselha. Quando da derrubada do rei, na insurreição das Tulherias, as tropas de Marselha entram em Paris entoando a música de Rouget de Lisle que ficou assim conhecida como A Marselhesa. A Marselhesa foi, em pouco tempo, absorvida pelo povo como hino revolucionário, pois sua letra representava a nova posição do povo, que passa a figurar em lugar de destaque na nascente república. A idéia de liberdade, herança de Rousseau, permeava de forma clara o sentimento nacional, e como tal, também era expressa em versos da canção, exaltandoa, bem como as novas bandeiras sob as quais a nova pátria estava se edificando: “a França aparece como portadora de um novo evangelho. Em todos os cantos liberdade é o valor maior que os franceses podem oferecer aos povos”. (SQUEFF, 1989, p.76). A República colocou fim a séculos de monarquia, o Estado não mais era o rei e sim o povo. Na República o francês, mais que nunca, era um cidadão que deveria lutar pela liberdade e defender a pátria a qualquer custo. A Marselhesa acabou sendo incorporada ao imaginário do cidadão ideal e de certa maneira apropriada por ele, tornando-se mais um símbolo da nova ordem. Parte do antigo Terceiro Estado tomou o poder e criou uma nova ordem dentro da França. A burguesia assumiu o controle definitivo dos órgãos administrativos do país, no entanto, o forte sentimento revolucionário acabou dividindo em facções o Terceiro Estado. A França passou então por vários conflitos internos e por várias fases que, uma a uma, acabaram em virtude de tal divisão. O novo Estado francês não adquiriu estabilidade e, de certa forma, não consolidou o controle burguês conforme planeja inicialmente, mergulhando o país em relativa desordem que só foi superada na tomada de poder, pelo golpe de 18 de Brumário (9 de novembro) de 1799, por Napoleão Bonaparte. Sob a égide de Napoleão a França entrou num período em que mais uma vez se tentou a centralização do poder, tanto no Consulado quanto no Império. Napoleão ficou no poder, primeiro como Primeiro Cônsul e em seguida como Imperador, de 1799 a 1814. Sua política foi uma das mais belicosas que o país já teve, anexando durante esse tempo muitos territórios europeus à França. A Marselhesa, nessa época, foi praticamente banida, pois Napoleão achava que ela incitava demais à violência. Le Chant Du Départ, de autoria de Méhul, um dos maiores compositores franceses do período, composto em 1794 com letra de M. J. Chénier “se constituiu no mais acabado exemplo de Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 91 uma música a serviço da causa. Napoleão o preferia a todos os hinos compostos até ali” (SQUEFF, 1989, p.120). La République nous appelle Sachons vaincre ou sachons périr Un Français doit vivre pour elle Pour elle un Français doit mouri.3 Este também era um canto revolucionário, sua letra exaltava a república francesa e o francês como povo guerreiro, no entanto, nada dizia de pegar em armas e formar batalhões, o que era perigoso para Napoleão que impunha à França sua autoridade. “Napoleão Bonaparte não gostava da Marselhesa. Consta que só permitiu que seus soldados a cantassem na grande vitória de Austerlitz; depois disso, nunca mais.” (SQUEFF, 1989, p.131). No entanto o hino não foi esquecido pelo povo, mesmo que Le Chant Du Départ cante também as glorias da República, A Marselhesa foi tão fortemente incorporada pelo povo que não desapareceu totalmente, continuando a ser a melhor representação do “francês revolucionário”. Em abril de 1814, Napoleão foi vencido e foi restaurada a monarquia na França. Em 1815, Napoleão retornou ficando no poder por mais cem dias, sendo depois mais uma vez restaurada a monarquia que permaneceu até 1848. Sob o governo de Carlos X ,em 1830, a França passou por mais uma perturbação, que se deu contra o rei que tentara reviver o direito divino e o absolutismo. Hector Berlioz, compositor contemporâneo à revolta, num dos capítulos de suas Memórias fala sobre a Revolução de 1830: “o povo está nas ruas, os estudantes discutem sobre barricadas e então, um dia, em plena Paris revoltosa, Berlioz encontra um grupo de jovens formando um coro com cantos revolucionários” (SQUEFF, 1989, p.88). A multidão que aos poucos foi se acumulando ao redor do coro improvisado tem ainda bem frescos na memória os combates do dia anterior. Então o pequeno coro entoa a Marselhesa. Conta Berlioz: ‘Aos primeiros compassos a multidão ruidosa que se agitava a nossos pés se imobilizou calada. (...) Contudo, depois do primeiro estribilho, o povo cala: passado o terceiro, o mesmo. Não era esse meu desejo. (...) Então, na quarta estrofe, sem poder mais agüentar, gritei: ‘Ei, vamos lá, vocês aí, cantem’. O povo então lançou seu Aux armes, citoyens, com a unidade e a energia de um coro ensaiado. Recordando que a galeria que 3 92 A República chama-nos/Vamos conquistar ou vamos perecer/A França deve viver por ela/Por ela, o francês deve morrer. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 desembocava na rua Neuve des Petits Champs estava cheia, que a rotunda do meio estava lotada, que essas quatro ou cinco mil vozes estavam amontoadas num lugar fechado (...), recordando, ademais, que a maior parte dos cantores, homens, mulheres e crianças, por outro lado, palpitavam de emoção pelo combate da véspera, imagine-se qual foi o efeito deste fulminante estribilho’. (SQUEFF, 1989, p.89). O que Hector Berlioz nos revela é que mesmo sem ter ainda caráter oficial o hino continuava a figurar o imaginário do povo quando, na passagem acima citada, o povo ao ouvir o velho canto revolucionário acaba por explodir em um imenso canto, ou seja, os ideais expressos pela letra de Rouget de Lisle ainda eram reconhecidos pelo povo como o do povo francês. Após a Revolução de 1830 a França continuou monárquica até 1848 quando foi proclamada a segunda República e eleito presidente Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, que após três anos de governo deflagrou um novo golpe e se proclamou imperador dos franceses com o título de Napoleão terceiro. Começou o segundo império que duraria até 1870 quando a França proclamou sua terceira república, ocasião em que A Marselhesa foi adotada como hino oficial. Em 1847 uma versão “oficial” é adotada pelo ministério da guerra após passar por uma comissão de revisão, composta por músicos profissionais que apresentaram a versão oficial após revisão do texto e da harmonia melódica, sendo essa a versão tocada até hoje nas cerimônias oficiais. O caráter de hino nacional para A Marselhesa foi novamente afirmado nas Constituições de 1946 e de 1958 (artigo 2º)4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Rouget de Lisle compôs em 1792 apenas uma canção que serviria para incitar tropas combatentes a se manterem firmes diante do inimigo, no entanto esse canto de guerra, mais tarde chamado de hino, foi incorporado pelo povo como um dos principais valores da nova França. Mesmo passando por diversos tipos de governos e por uma série bastante relevante de perturbações, o povo manteve o hino vivo dentro do seu imaginário se reconhecendo em sua letra, pois ainda hoje é um dos símbolos mais fortes da República francesa. 4http://www.elysee.fr/elysee/francais/les_symboles_de_la_republique/la_marseillaise/la_ marseillaise.21106.html. Acessado em 03/05/2010 – 00h38 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 93 ROCHA, Henrique Franco da; La marseillaise (the song of marseille): From revolutionary song to national anthem of the liberty, equality and fraternity republic. ABSTRACT: 1792 was a year full of disturbance in France. The biggest of them was the declaration of war against Austria. Amongst the conflicts the army officer Rouget de Lisle composed, at the request of the Strasbourg mayor, the song he called War Song for the Army of the Rhine, known as La Marsellaise. This articles goal is analyse the process through which La Marsellaise turned from a simple revolutionary song meant to encourage an army to being in the conscience of a people as the most perfect representation of their ideals. KEY WORDS: La Marseillaise; The French Revolution; Imaginary; revolutionary anthem. FONTES: http://www.elysee.fr/elysee/francais/les_symboles_de_la_republique/la_mars eillaise/la_marseillaise.21106.html Acessado em 03/05/2010 – 00h38 REFERÊNCIAS: SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1964. HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. SQUEFF, Enio. A Música na Revolução Francesa. Porto Alegre: L&PM, 1989 94 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 ERASMO, OS DEBATES TEOLÓGICOS E A REFORMA Jéssica Abud de SOUZA. RESUMO: O presente artigo trabalha com parte da obra Elogio da Loucura de Erasmo. Ela se insere no contexto das reformas religiosas do século XVI. Erasmo é um teólogo católico que propôs mudanças em algumas concepções católicas e nos hábitos dos fiéis. Porém, seu direcionamento foi pela manutenção da Igreja Católica e não por sua cisão. Buscamos analisar a maneira como os debates teológicos se desenvolveram, e diferenciar as concepções católicas das protestantes a respeito de questões sobre a salvação. PALAVRAS-CHAVE: Reforma, Igreja Católica, Erasmo, salvação, teólogos, clérigos, burguesia. Em duas palavras, na prática da história religiosa, o método do é verdade que não conduzirá a um beco? Mas o do é possível que não conduzirá, pelo contrário, ao fim último de toda a história: não já saber, apesar das etimologias, mas compreender? (FEBVRE, 1970, p. 29) Buscamos neste artigo analisar parte da obra Elogio da Loucura de Erasmo (2010), em um contexto de efervescência dos debates teológicos que envolveram o século XVI. Através dessa obra é possível compreender alguns aspectos do momento em que se insere a Reforma. É importante destacarmos o caráter inovador da escrita, o atrevimento ao criticar o proceder das autoridades religiosas, e como dessa maneira Erasmo se encaixa como um homem de seu tempo. O debate teológico a respeito do cristianismo não se encerrou com o século XVI. Os questionamentos entre os cristãos do Ocidente continuam presentes no cotidiano das pessoas, inclusive no dos estudiosos. Por isso, ao fazer o estudo desse tema é importante que o historiador concentre especial atenção aos perigos do anacronismo. O foco desse artigo não é a religião reformada, mas a escrita de um homem que propôs e argumentou em favor de um catolicismo humanista. Erasmo propunha uma religião mais bem adaptada às necessidades do homem do século XVI, porém bem diferente da proposta luterana. O intento de Erasmo não era o cisma da Igreja católica, mas o de uma reforma espiritual dessa Igreja. Para ele, isso deveria trazer a união entre os crentes com a superação das diferenças, e a identificação entre eles com elementos e modos de vida da igreja primitiva, acima dos rituais e Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 95 superstições católicas. Assim, poderiam seguir os ensinamentos de Deus e manifestar os dons do Espírito Santo. Isso tudo sem o peso que o catolicismo do seiscentos gerava aos fiéis. (FEBVRE, 1970) Sua pregação se difere muito daquela tradicionalmente empreendida pela Igreja católica. Para Erasmo, a consciência do cristão e o seu dever moral necessitariam estar em primeiro lugar, pois todas as suas práticas, religiosas e seculares, deveriam estar submetidas a ela. Assim, os sacramentos tiveram a sua importância diminuída, os santos e a Virgem perderam o seu lugar de destaque. Em sua obra Elogio da Loucura, Erasmo construiu um discurso irônico e crítico, em que a Loucura é personificada e defende a si mesma. Na composição do texto, o autor utilizou um recurso recorrente entre pensadores e artistas do Renascimento, que foi o uso da personificação de conceitos e sentimentos humanos, como por exemplo a própria Loucura, a Embriaguez, a Volúpia, o Amor-próprio, a Adulação, a Preguiça, o Esquecimento e a Ignorância. Erasmo, por meio da fala da Loucura, legitima o seu argumento recorrendo a fatos e acontecimentos históricos que, segundo as suas interpretações, comprovariam que a Loucura impulsionou o homem a obter a conquista de grandes feitos e vitórias, enquanto a Sabedoria despertou a timidez e o medo que fez com que o homem recuasse em meio às adversidades e momentos decisivos. Em seu discurso, a Loucura confronta a Sabedoria. Ela demonstra que o homem não pode se desvencilhar de sua natureza humana, pois segundo o já mencionado neste artigo, ela tenderia sempre para o bem. Com sua entonação irônica, argumentou a favor do humano: A verdadeira prudência consiste, já que somos humanos, em não querer ser mais sábios do que nossa natureza o permite. É preciso ou suportar com boa vontade as loucuras da multidão, ou deixar-se levar com ela pela torrente dos erros. “Mas, direis, é loucura conduzir-se assim.” Concordo contanto que concordeis também que isso é realmente o que se chama representar a comédia da vida. (ERASMO, 2010, p.43). Erasmo também criticou os religiosos que seguiam correntes de pensamento filosófico que defendiam a razão acima de todas as coisas. Uma das possíveis conclusões a respeito dessa crítica pode ser o fato de que esses teóricos, religiosos e intelectuais que defendiam a razão e a sabedoria, e os cristãos que participavam de rituais e se declaravam adoradores de algum santo, eram os mais facilmente guiados pela Loucura. Através da 96 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 ironia, realiza a crítica a hipocrisia do modo de vida dos católicos, que para ele, estavam resumindo o catolicismo às práticas ritualísticas, tornando superficial a ideal de vida cristão. Isso pode ser exemplificado pelo seguinte trecho: Uma quantidade de gente acredita, por exemplo, honrar muito a Virgem queimando, em pleno meio-dia, uma pequena vela diante de uma de suas imagens. Como são poucos, ao contrário, os que procuram imitar a sua castidade, sua modéstia e seu valor pelas coisas espirituais e divinas! Seria esse, no entanto, o verdadeiro culto, aquele que agradaria infinitamente a todos os habitante do Olimpo e o Empíreo. (ERASMO, 2010, p.74). Os clérigos que possuíam uma moral duvidosa, por não se comportarem segundo os preceitos morais cristãos, que não cumpriam com as funções pertinentes aos seus cargos, e usavam de sua posição para garantir benefícios pessoais, também foram duramente criticados. Muitos deles se importavam mais com o reconhecimento que obtinham como autoridade religiosa do que em terem uma conduta que agradaria a Deus. Esses religiosos eram vaidosos e gananciosos, ou seja, o oposto do que deveriam ser. Os bispos deveriam buscar ter uma vida apostólica, porém, esqueceram-se das suas funções e de seus princípios, só se preocupavam com o dinheiro que iriam obter. Os bispos de hoje não são tão bobos; pensam em apascentar-se eles mesmos, deixando a Jesus, aos vigários e aos monges mendicantes o cuidado de apascentar seu rebanho; esquecendo facilmente que a palavra bispo significa trabalho, solicitude, vigilância, mas lembrando-se muito bem disso quando se trata de arrecadar dinheiro. (ERASMO, 2010, p.105). Erasmo condena a classe dos mercadores. Esse julgamento é fruto do pensamento católico que desaprova a prática da usura como forma de gerar lucro. Para ele, esses homens são pessoas desprezíveis, mentirosas, ladras e gananciosas. Com isso, é possível evidenciar o seu caráter reformista, porém discordante da ética protestante que não reprimia práticas como essa, ao contrário, incentivava que o burguês fizesse o uso de ferramentas como a usura, não só para obter lucro, como também para glorificar a Deus com o fruto de seu trabalho. Os clérigos não se preocupavam com o exercício da caridade e da piedade. Com tudo isso, a grande ironia do livro é a de que os sábios, ou a verdadeira sabedoria, são desprezados nesse mundo, e que apenas os que Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 97 são adoradores da Loucura é que obtêm o sucesso. Nesse trecho, o autor procura esclarecer o que o Elogio da Loucura significa: Tudo o que eu disse foi apenas para mostrar claramente que nenhum mortal pode viver agradavelmente na terra a menos que seja iniciado nos meus mistérios e que eu derrame sobre ele meus preciosos favores. (ERASMO, 2010, p.111) É preciso considerar que nesse período toda a vida das pessoas era permeada e centrada em torno da religião. Todos os aspectos de sua vida estavam impregnados pelo cristianismo, sua vida privada, a pública e a profissional. E isso não era uma escolha, era inerente ao seu nascimento. (FEBVRE, 1970) Segundo Febvre, em Erasmo, la contra reforma y el espiritu moderno, todas as cerimônias, rituais, costumes e tradições estavam envolvidos na atmosfera cristã. Nesse período também há um imenso apetite divino, que se inicia de um sentimento de mal estar, de desgosto e de uma aspiração confusa a algo mais. Nessa época havia uma classe em ascensão que conquistava ao mesmo tempo riqueza e honra. Essa era a burguesia. Os homens que faziam parte dessa classe, que eram os comerciantes, os mercadores e os viajantes, necessitavam do saber e da instrução, como algo útil em seu trabalho e na geração de lucro; assim como de religião, pois essa estava no centro de todas as coisas de sua vida. Os homens que faziam parte dessa nova classe possuíam seriedade e necessidade de correção moral. Foi na religião protestante que esses homens encontraram as respostas as suas necessidades e a identificação de seus anseios. (FEBVRE, 1970, p.49) Febvre (1970) afirma que dois foram os fatores que determinaram o sucesso da Reforma protestante: a tradução da Bíblia em língua vulgar e a afirmação da salvação pela fé. A proposta de Lutero foi à de que o acesso ao Eterno acontecesse sem intermediários, pois cada cristão seria o sacerdote de si mesmo. Confrontou a Igreja católica com relação aos ritos pela purificação dos pecados, e as interpretações que o clero dava a bíblia como sendo únicas. A Reforma foi a revolução de costumes e conceitos, ela nasceu das necessidades de uma época, segundo o autor, em plena evolução social e moral. Os homens desse período estavam ávidos de certezas. A novidade da fé como única justificação produziu uma nova e vigorosa satisfação. Essa foi a proposta que interessou e cativou os homens daquele tempo. (FEBVRE, 1970, p.49) 98 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Isso a Igreja Católica não conseguiu fazer. O problema é que o catolicismo não correspondia aos anseios da burguesia em ascensão, pois os homens dessa nova classe desejavam uma fé mais clara, simples e objetiva. Esses homens estavam paralisados por uma sensação de vazio, pois eles participavam e cumpriam com os rituais da Igreja, mas não entendiam o seu significado. Ou seja, não havia identificação real entre eles e as práticas católicas. Os seus ritos formais geravam uma obediência mecânica. O abismo entre os anseios da burguesia e a moral da Igreja católica, que o autor chama de anacrônica, se tornava cada vez maior. (FEBVRE, 1970, p.49) Para Febvre, isso era causado pela falta de senso de realidade e de interesse dos teólogos católicos pelas mudanças sociais e pelos anseios da população. Eles não conseguiam atender ao verdadeiro estado de ânimo dos burgueses da época. Por isso é que o anticlericalismo da Reforma foi popular e desejado. O protestantismo teve significado na vida das pessoas. O que é possível concluir disso é que a Reforma correspondia às aspirações burguesas. Outro ponto que é de essencial importância, principalmente para esse trabalho, é o embate teológico que ocorria nesse período. Esse acontecia não somente entre protestantes e católicos, mas também entre os próprios pensadores reformados. Porém, o ponto em que os protestantes concordam entre si é que: “[...] a Escritura é a única fonte de religião; o homem não se justifica senão pela fé.” (FEBVRE, 1970, p.311). O Protestantismo traz a solução para o problema da salvação de que os católicos eram afligidos. Para a Igreja Católica, a salvação consistia em fazer parte da Igreja, e para isso era necessário ter fé, acreditar na pregação do sacerdote, e realizar a confissão de todos os pecados que tivesse cometido ao clérigo, para que assim pudesse assim obter a absolvição de seus pecados; também tinham o dever de praticar boas obras. Para os fiéis isso significava um problema angustiante, pois declarar todos os pecados cometidos para obter a remissão dos mesmos era uma tarefa impossível. Nesse trecho o autor mostra a causa de inquietação: Pero existe otra causa de tormento, otra cruel perspectiva: quien muera em estado de pecado mortal se condenará e irá al fuego eterno; los demás [...] los demás expiaram em el purgatório, esse lugar mal definido y por ello más temible: durante cierto tiempo, que nadie puede predecir, el alma pecadora conoce allí el sufrimiento redententor. (FEBVRE, 1970, p.67) Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 99 A discussão sobre a existência do Purgatório foi motivo de debates entre católicos e reformadores. Para a Igreja Católica, o Purgatório era uma pena para a alma dos mortos que serviria para a justificação de seus pecados. Os protestantes criticavam e negavam a sua existência. O primeiro motivo foi pela falta de textos válidos ou autorizados que comprovassem a sua real existência. O segundo e mais preponderante motivo foi ilustrado pela crítica feita por Calvino, que possuía o argumento de que a única condição para ser salvo seria ter fé em Jesus Cristo, pois ele foi o responsável por justificar todos os pecados dos homens. Ou seja, para os protestantes, o purgatório era responsável por tirar o mérito da salvação de Cristo e o transferir para si. O que essa pregação despertou nas pessoas foi a fé e a confiança na misericórdia divina, o que produziu a paz em suas almas. Em contrapartida, o que provocou a rejeição das pessoas a doutrina católica foi a idéia elevada sobre a majestade e a soberania de Deus, a qual o homem comum se viu obrigado a se submeter por muito tempo. (FEBVRE, 1970, p.67). Portanto, nesse artigo procurou-se trabalhar o Elogio da Loucura com o intuito de se compreender um pouco mais sobre os embates teóricos travados no século XVI, através, principalmente, das críticas feitas ao clero e as práticas cotidianas da burguesia e, consequentemente, a nova moral burguesa surgida no período. Com esse estudo, foi possível visualizar a dimensão e a importância desses debates para a sociedade renascentista. O debate inclui os intelectuais e teólogos protestantes e católicos que defendiam desde a cisão com a Igreja Católica Romana, até os reformadores das formas de expressão da fé, mas que não viam a necessidade de rompimento com Roma. A obra analisada neste artigo foi produzida por um desses intelectuais que não desejavam a cisão da Igreja. Erasmo se insere no contexto do Renascimento por seu caráter humanista e inovador. A história é viva, e o debate permanece presente no cotidiano das pessoas, despertando paixões e suscitando questionamentos das mais diversas ordens. Por isso, perder a noção romântica e mistificada não é um empreendimento fácil, mas é tarefa e dever fundamental do historiador. Vislumbrar o passado com outros olhares como resultado da busca por compreendê-lo é um exercício diário que necessita dedicação e esforço, que como qualquer tarefa árdua, produz frutos de satisfação e de desejo por novas descobertas. SOUZA, Jéssica Abud de. ERASMO, THE THEOLOGICAL DEBATES AND REFORM. Revista Ensaios de História, Franca. ABSTRACT: This article deals with part of the work of Erasmus Praise of Folly. It is within the context of the religious reforms of the sixteenth century. Erasmus is a Catholic 100 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 theologian who proposed changes in some Catholic views and habits of the faithful. However, its focus was the maintenance of the Catholic Church and not by its division. We analyze how the theological debates have developed, and differentiate between Catholic views of Protestants on issues of salvation. KEYWORDS: Reformation, the Catholic Church, Erasmo, salvation, theologians, clergy, bourgeoisie. FONTES: ERASMO, Desidério. Elogio da Loucura. Porto Alegre, L&PM, 2010. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FEBVRE, Lucien. O problema da descrença no século XVI: A religião de Rabelais. Éditions Albin Michel, Paris, 1970. Traduçao: Rui Nunes, Editorial Início. FEBVRE, Lucien. Erasmo, la contrarreforma y el espíritu moderno. Barcelona, Ediciones Martínez Roca, S. A. 1970. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 101 ENTRE O LIBERALISMO E O SOCIALISMO: DISCUSSÃO SISTÊMICA DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO POR PERRY ANDERSON Thiago FIDELIS*. Kátia Lima de OLIVEIRA**. RESUMO: O objetivo deste artigo é mostrar a crítica de Perry Anderson a Norberto Bobbio contida no livro Afinidades seletivas, a respeito das obras do pensador italiano sobre democracia e liberalismo e, sobre a validade da distinção política entre direita e esquerda. PALAVRAS – CHAVE: liberalismo, socialismo, direita, esquerda A formação do pensador italiano foi permeada, segundo Anderson, por um liberalismo que tinha como foco a manutenção do Estado e da Ordem. A unificação dos territórios sob a égide de um único país com o nome de Itália na segunda metade do século XIX fora feita através de inúmeros conflitos; a instabilidade política sempre fora marca deste território, tendo a ascensão de Mussolini na década de 20 do século XX como o grande trunfo do Estado sobre a nação. Quando a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) acaba e Mussolini é morto, a reorganização do Estado volta a ser a grande discussão no meio político italiano1. A partir desta situação, seria pouco provável pensar em liberalismo e socialismo na Itália, uma vez que a divisão política no entre guerras dividirase entre os apologistas e os opositores do fascismo. Assim, o hibridismo apontado pelo historiador inglês em relação ao filósofo italiano é justificado pela situação neste meio, uma vez que Anderson, dentro de sua orientação marxiana quanto a organização social e política de um país, é taxativo sobre as peculiaridades italianas Revolução liberal, liberalismo socialista, socialismo liberal, comunismo liberal: alguma outra nação dispôs de tal gama de híbridos? Eles eram possíveis na Itália, porque não houvera tempo para a democracia burguesa ou para a democracia social se instalarem depois da Primeira Guerra Mundial, estabelecendo um quadro estável de demarcações para a política sob o capitalismo (...)2. * * 1 2 Aluno da graduação em História da Unesp – Campus de Franca. Artigo sob orientação do Profº Pedro Geraldo Tosi. Bolsista: PET/SESu/DDPG * Aluna da graduação em História da Unesp – Campus de Franca. Artigo sob orientação do Profº Pedro Geraldo Tosi. Bolsista: PET/SESu/DDPG ANDERSON, Afinidades Seletivas, p. 208 a 211. Ibidem, p. 213. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 103 A síntese entre o liberalismo e o socialismo buscada por Bobbio seria uma constante desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com a reorganização da política italiana liderada pelas duas principais forças partidárias do país – o Partido Democrata Cristão e o Partido Comunista Italiano, sendo o filósofo contrário a estes dois. Ao mesmo tempo em que rejeitava o conservadorismo cristão e a ortodoxia comunista, Bobbio tornavase socialista não abandonando, necessariamente, o liberalismo. Se tal ponto parece, a primeiro momento contraditório, Anderson coloca que, pela forma como o liberalismo era entendido na Itália, ele seria um momento de passagem, uma transitoriedade até um Estado onde as injustiças sociais fossem dirimidas, ficando assim uma sociedade mais justa e mais igualitária3. A democracia era, então, a idéia mais cara no pensamento do filósofo italiano4. O ordenamento do Estado deveria ser base para o bem-estar de todos. Ao pensar a organização deste Estado, Bobbio aponta que o recurso legitimador deste órgão sempre será pautado pelo uso da força, assegurando assim seu monopólio (idéia baseada em Max Weber). Logo, a democracia mal empregada pode levar, inexoravelmente, a um mau uso deste poder pelo Estado (vide o fascismo, tão viva na lembrança); de maneira bem geral, Anderson aponta para 4 tópicos centrais o método democrático trabalhado por Bobbio: sufrágio adulto e universal; direitos civis assegurando a liberdade de expressão e de organização; respeito a decisões tomadas pela maioria e, por fim, que os direitos da integridade da minoria fiquem resguardados perante a possíveis abusos da maioria5. O grande desafio, nesta relação Estado/democracia, acaba sendo como colocar em prática estes quatro pontos No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia, como é a que aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimidade). É indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de 3 4 5 Ibidem, p. 214 e 215. Vários dos seus livros tratam diretamente deste ponto, sendo a obra O Futuro da Democracia, lançada em 1983, uma espécie de síntese da visão do pensador acerca do assunto. Anderson, idem, p. 219. 104 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. — os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do estado de direito em sentido forte, isto é, do estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos "invioláveis" do indivíduo6. A democracia não é um fim em si mesma, mas um meio de harmonizar o convívio entre as pessoas. Partindo desse pressuposto, tanto o modelo liberal quanto a abordagem socialista da idéia de Estado não agradaria Bobbio: a democracia liberal, colocando o Estado como mero regulador da economia, não satisfaria a idéia de organização social, permitindo que todos pudessem fazer o que bem entendessem, sem se preocupar necessariamente com o todo; e a supressão do Estado proposta por Marx e Engels demonstraria um grande desprezo pelas vias institucionais, dando origem a uma ditadura do proletariado que suspenderiam os direitos individuais em nome de um prol comum, em nome de um bem maior; as duas formas de organização não atingiam o ponto nevrálgico da questão, pois uma tendência tendia a ignorar o que tinha de melhor na outra (a liberdade e a igualdade, respectivamente). A questão da representatividade seria um problema bastante presente: o grande problema relacionado ao sufrágio universal é que o voto em si mesmo não garantiria a participação de todos no processo de organização e manutenção deste Estado. Assim, os interesses individuais não são mais representados: são necessários as criações de grupo, e cada grupo irá representar um conjunto de interesses comuns a certa classe. Logo, estes grupos disputarão entre si o poder, pois caso um grupo venha a subjugar o outro, ficaria mais fácil para direcionar o Estado conforme seus interesses, não levando em conta o todo. O cidadão, assim, se distanciaria cada vez mais da política, uma vez que sua participação seria atrelada única e exclusivamente ao voto, pois o resto seria responsabilidade dos políticos, os “profissionais” do ramo. Um outro problema surgido, segundo Anderson, é em relação ao filósofo utilizar um método marxista para resolver um problema liberal é a questão da democracia parlamentar. Após o problema da representatividade exposto, haveria outro de cunho mais amplo: a extensão do Estado, uma vez que a democracia seria garantida apenas no espaço da política, não chegando a outras extensões, tais como a família, a igreja, a escola, etc. 6 BOBBIO, O Futuro da Democracia, p. 20. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 105 Para a existência de uma democracia plena, todos deveriam ter direito a se auto organizar a partir de interesses em comum, e decidir como fazer de maneira plena – até mesmo nestes micro-núcleos da sociedade, a responsabilidade de gerir não deveriam ficar a cargo de um governo central ou de poucos técnicos “especializados”, mas sim de uma decisão tomada por todos (um tipo de organização que lembra, mesmo que vagamente, as comunas, os núcleos de gestão própria da França no século XIX)7. No entanto, mesmo apontando todos estes pontos, Anderson enfatiza que Bobbio não cria um modelo alternativo, embora use o discurso de uma terceira via (bastante usado nos anos 70 na Itália). Ao apoiar a social democracia, há o apontamento da manutenção das instituições liberais, mas a manutenção do socialismo é fundamental para diminuir (ou extinguir) os defeitos surgidos na organização do Estado; ou seja, o Estado liberal não seria o ideal, mas seria o mais indicado para a organização social, e o socialismo seria sua espécie de consciência, aquele quem frearia os possíveis abusos (ou as possíveis omissões) liberais (...) Ele não subscreve o tipo de sociedade sobre a qual se tem fundado a democracia social no Ocidente e não exclui a possibilidade de um terceiro – quanto a isto, ele observa, ou um quarto ou quinto – modelo de sociedade, alternativo, distinto de uma Terceira Via que passasse pelos dois modelos antagônicos atualmente existentes. O ponto essencial é que qualquer avanço em direção ao socialismo em países com instituições liberais deve preservá-las e proceder por meio delas. O realismo histórico de Bobbio o previne de negar que tem havido outros caminhos para a superação do capitalismo em outros períodos ou outras regiões. A democracia não é um valor supra-histórico (...)8. Finalizando a crítica central, Anderson acusa o filósofo de ser um conservador liberal por trás de uma carapuça reformista, uma vez que, pela situação política da Europa atual (seria o distanciamento do cidadão com a política, já acusado pelo próprio Bobbio), o melhor que seria a fazer é direcionar os esforços para o desenvolvimento tecnológico e nas melhores condições de vida do ponto de vista econômico, lutando por maior acesso a educação (para a formação profissional) e aumento nos salários, sendo assim uma forma de alargar a democracia já existente nos parlamentos. 7 8 Anderson, op. cit., p. 226-227. Ibidem, p. 229. 106 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Este pessimismo de Bobbio é interpretado como omissão por Anderson, e é também apontado como um certo cinismo, uma vez que o filósofo italiano teria, segundo o historiador inglês, influenciado bastante a política italiana em aspectos positivos, promovendo maior preocupação com o aspecto social e alargando as bases democráticas de uma política tradicionalmente autoritária, dando um aspecto mais includente para a população; e, depois de tudo isto, o que ocorrera? Uma grande desilusão quanto ao mau uso que continuava sendo feito da política, dos órgãos responsáveis pela gestão do país (desilusão esta estendida a todo o continente), e uma grande negação, de certa forma, de todas as conquistas realizadas pelo filósofo até então Este autor pertence a uma geração de pessoas que perderam suas esperanças há mais de trinta anos, logo depois do fim da guerra, e nunca as recuperou a não ser em momentos ocasionais, tão raros quanto rápidos, e que não levaram nada. Estes vinham numa média de um por década: a revogação da Legga Tuffa (1953), a formação do Centro-Esquerda (1964), a grande revivescência do PCI (1975). Como alguém que passou por muitos anos de esperanças frustradas, aprendi a me resignar com minha própria impotência... Mas aceito plenamente que estes argumentos não sejam importantes para os jovens na Itália, que não conheceram o fascismo e conheceram apenas esta democracia nossa, que é menos do que medíocre e, portanto, não estão igualmente dispostos a aceitar o argumento do mal menor9. Em uma carta para Anderson a respeito do artigo em si, em uma das passagens Bobbio também deixa claro que, de fato, valoriza o liberalismo, colocando-se como um liberal no que diz respeito ao direito de liberdade de todos, e considera este, de todos os males, o pior deles Do ponto de vista ideológico, creio que a principal razão de contraste entre nós seja o meu liberalismo inicial e jamais abandonado, entendido, como o entendo, digo de uma vez por todas, como a teoria que afirma serem os direitos de liberdade a condição necessária (mesmo que não suficiente) de qualquer democracia possível, mesmo da que se afirma socialista (se é que será algum dia possível). Pode ser que esta idéia fixa dependa do fato de eu pertencer a uma geração que chegou à política combatendo uma ditadura e que continua a viver numa sociedade na qual nunca faltaram as tentações autoritárias. Você pode retrucar que quem fica firme com a democracia liberal não 9 Bobbio, O Futuro da Democracia, In: Anderson, op. cit., p. 237 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 107 chegará jamais ao socialismo. Eu respondo, como sepre respondi ao longo de todos esses anos aos comunistas, que quem tomou o atalho para o socialismo jamais voltou aos direitos de liberdade.10 Escrito na década de 80, esta análise de Anderson reflete, de certa forma, uma resposta do próprio historiador perante o desmantelamento da URSS, e a onda que já refletia em todo o Ocidente do triunfo do Capitalismo, que agora reinaria livremente sem nenhum tipo de freio. Afinal, ao observar que um pensador feito Bobbio de certa forma se “entregara” a este tipo de visão, a reação de Anderson dificilmente seria outra: afinal, se todos aqueles que propuseram algo de diferente durante todo este tempo simplesmente se conformassem e aceitassem esta situação, o que seria daí para diante? Ao ser interpelado pelo italiano em uma carta, a resposta enfatiza bem este ponto Como vamos avaliar a possibilidade de um progresso que supere os limites da ordem liberal capitalista? É sobre este ponto que imagino que o senhor tenha abandonado com muita pressa pelo menos uma parte de sua crítica original, substituindo por promessas “inviáveis” as promessas “não cumpridas” da democracia e assim sugerindo a criação de uma espécie de fronteira institucional última da liberdade – por mais desesperante que isso possa vir a ser11. A DIADE CONTESTADA E A DISTINÇÃO ENTRE DIREITA E ESQUERDA O ponto de partida de Bobbio em seu livro Direita e Esquerda é a rejeição freqüente no debate político das noções de direita de esquerda, apesar da distinção ainda ser muito usada. Bobbio aponta algumas objeções à díade: A primeira é sugerir o relativismo da díade pela insistência numa ‘terceira incluída’, a saber um centro moderado entre a esquerda e a direita, que ocupa a maior parte do espaço real dos sistemas políticos democráticos. A segunda forma de rejeitar a distinção é insistir na perspectiva de uma ‘terceira inclusiva’, que integra e supera os legados de esquerda e direita em alguma síntese além delas. A última é apontar o crescimento de uma ‘terceira transversa’, que penetra os campos da esquerda e da direita e rouba-lhes a relevância. 12 10 11 12 ANDERSON, op. cit., p. 240. ANDERSON, op. cit., p. 241. ANDERSON, op. cit., p. 243. 108 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Contestando os argumentos contrários à díade, Bobbio aponta que a existência de um centro não impede que haja uma direita e uma esquerda; que a idéia de uma síntese para além destes pólos oculta o intuito de uma neutralizar e absorver a outra; e, por fim, os grupos que se estendem através da esquerda e da direita, têm a tendência de redividir as duas. Considerando que nenhum desses motivos são validos, Bobbio formula uma hipótese para essa rejeição. Para ele a díade só perderia a validade se um dos lados deixasse de existir. Isso nunca ocorreu, mas com o colapso do comunismo, a esquerda sofreu uma profunda derrota e passou a argumentar que a distinção perdeu o significado, buscando esconder sua fragilidade. O cerne de seu argumento é que a distinção perdura pois está baseada em visões diferentes de igualdade. Além disso, “a esquerda acredita que a maior parte das desigualdades são sociais e elimináveis; a direita, que são naturais e inalteráveis. Para a primeira, a igualdade é um ideal; para a segunda, não.” Bobbio não considera, segundo Anderson, que a liberdade seja uma linha divisória entre as duas correntes, mas é o principio que separa extremistas de moderados. “Na posição entre direita e esquerda ele ocupa uma posição de meio e não de fim”. 13 Analisando as distinções que Bobbio faz entre direita e esquerda, Anderson aponta que as proposições reunidas não independentes e contrárias. Entre as que enumera estão as questões da factualidade, alterabilidade, funcionalidade e direcionalidade da desigualdade humana. Para Bobbio, a esquerda vê a desigualdade natural entre os humanos como menor que sua igualdade , a maior parte das formas de desigualdade como sendo socialmente alteráveis, que poucas são positivamente funcionais e que demonstrarão cada vez mais sua efemeridade histórica. A direita, entretanto está comprometida com a visão de uma desigualdade natural entre os seres humanos maior que sua igualdade, com a idéia de que poucas formas de desigualdade são alteráveis, que a maioria delas são socialmente funcionais e que sua evolução não pode ser direcionada. 13 ANDERSON, op. cit., p. 245. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 109 Anderson aponta que não há, necessariamente, uma ligação entre os dois conjuntos de caracterização, pois é possível crer que os humanos são mais iguais que desiguais e afirmar que a maior parte das formas de desigualdade não são elimináveis, assim como é possível considera-los mais desiguais do que iguais e pensar que as desigualdades sociais podem ser eliminadas.14 Estabelecer a validade ou não dessa interpretação, não é o foco de Anderson. Mas apontar aspectos que não foram abordados em seus argumentos. Considera que “basear a distinção entre direita e esquerda em julgamentos ontológicos do equilíbrio entre igualdade e desigualdade humanas é apóia-la numa base muito frágil” . Outro aspecto contestado é a observação de Bobbio quando a inevitabilidade da desigualdade para a direita, mas que não se detem na visão da esquerda sobre este ponto. Anderson diz que este poderia ter sido um meio mais seguro para a diferenciação, mas que, entretanto, se mostra o mais precário. Olhando para o cenário europeu pode ver que a desigualdade cresceu mais em paises governados por partidos de esquerda do que nos de direita. Será mesmo que a esquerda nega a funcionalidade da desigualdade? Bobbio não nega que as políticas econômicas da direita e da esquerda estejam cada vez mais semelhantes, mas descarta as ações da esquerda como exceções irrelevantes para seus ideais. Mais uma proposição analisada por Anderson é a noção da direcionalidade da desigualdade. A explicação de Bobbio desta vez mostra apenas a visão da esquerda, que reflete um movimento em direção á igualdade, sem demonstrar que o pensamento da direita se voltaria para essa perspectiva. Anderson, entretanto, não considera que um pensamento de direcionalidade ampla, como o da esquerda, possa ser compatível com a concepção da direita.15 A defesa da distinção entre direita e esquerda é considerada por Anderson como vulnerável. A razão para isso reside na “dificuldade de construir uma axiologia de valores políticos sem uma referência coerente ao mundo social empírico.”16 A existência de todos esses argumentos contra a díade, e as críticas à Bobbio, não significam que estes conceitos tenham que ser abandonados. Entretanto, sua validade será afetada se não houver atenção para seu constante esvaziamento. 14 15 16 ANDERSON, op. cit., p. 246. ANDERSON, op. cit., p. 249. ANDERSON, op. cit., p. 250. 110 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 FIDELIS, Thiago and OLIVEIRA, Kátia Lima. Between liberalism and socialism: a sistemic discussion of Norberto Bobbio's work by Perry Anderson ABSTRACT: The objective of this article is to show the criticism of PerryAnderson to Norberto Bobbio contained in the book “Selective affinities”, about the works of the Italian thinker on liberalism and democracy and on the validity of the distinction between right and left politics. KEYWORDS: liberalism, socialism, right, left REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Perry. Afinidades seletivas. São Paulo : Boitempo, 2002 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. ______. Direita e Esquerda. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. ______. Qual socialismo?: debate sobre uma alternativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 111 INTELECTUALIDADE E IMPERIALISMO O DARWINISMO SOCIAL PRESENTE NA WELTANSCHAUUNG EUROPÉIA ENTRE 1870 E 1914 Leonardo Fernandes HENRIQUE* RESUMO: A intenção do presente artigo é esclarecer a importância que os intelectuais tiveram na formulação da concepção de mundo (Weltanschauung) das elites governantes européias entre 1870 e 1914, justificando suas ações imperialistas. O impacto do evolucionismo proposto por Charles Darwin será analisado com maior atenção, pois suas idéias de “seleção dos mais aptos” podem esclarecer muito a respeito da política e mentalidade imperialista desse período. PALAVRAS CHAVE: Imperialismo, Intelectualidade, Darwinismo Social Em certo momento na Europa do final do século XIX algo extremamente significativo aconteceu, fazendo com que as pretensões do antigo colonialismo do período das Grandes Navegações fossem retomadas, mas de forma diferente. Pode-se dizer que, após um período de relativo desinteresse no começo do citado século, os projetos de conquista do mundo por parte das grandes nações européias foram retomados, porém sob novos aspectos. Uma das características mais salientes do novo imperialismo foi sua agressividade e crueldade. Os governos imperiais, tipicamente, perseguiram seus interesses coloniais de um modo ruidosamente agressivo. Guerras sangrentas e unilaterais com os aborígenes dos territórios conquistados eram o lugar-comum – ‘guerras esportivas’ disse um vez Bismarck. As próprias potências raramente entravam em confronto militar direto, mas a competição entre elas era viva, e estavam constantemente envolvidas em várias crises diplomáticas. Em contraste com os anos anteriores, de comparativa calma política, o período após a década de 1870 foi de hostilidade e tensão fora do comum (COHEN, 1976, p.34). O século XIX foi marcado por grandes transformações tecnológicas, industriais e intelectuais, como também por permanências do passado. “Ao * Graduando do curso de História UNESP – Campus de Franca. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 113 mesmo tempo, o público moderno do século XIX ainda se lembra do que é viver, materialmente e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro” (BERMAN, 2008, p.26). Essa época, marcada por convulsões sociais e políticas, afeta a vida das pessoas de maneira considerável, pois foi um período em que a individualização foi incentivada. Porém, a era imperialista ultrapassa a virada desse século, sendo presente também nos anos anteriores a Primeira Guerra Mundial (19141918). Entre 1870 e o início desse conflito ocorreram eventos expressivos que, embora incluídos nos efeitos determinantes do imperialismo, devam, primeiramente, ser considerados como fenômenos independentes. Exemplo disso temos a emancipação dos trabalhadores, das mulheres e da juventude; o progresso técnico e industrial; os novos e ampliados horizontes culturais, bem como a crise do cristianismo e a perda da autoridade eclesiástica. A dificuldade de conceitualizar o imperialismo faz-se por que as idéias referentes ao termo são modificadas de acordo com a época histórica. Na Antiguidade, por exemplo, significava o domínio de vários povos por um só. Num contexto mais próximo, na França do reinado de Luís Filipe, o conceito esteve ligado a toda e qualquer ação política poderosa. Ainda no caso francês, Napoleão III utilizou o termo como um slogan de sua campanha política. Todavia, a palavra imperialismo ganhou um significado mais preciso na Inglaterra do último quartel do século XIX, e é pautado nessa visão que o artigo se seguirá. De acordo com a utilização da palavra pela nação imperialista exemplar, a Inglaterra, pioneira desse “novo colonialismo” e mais bem sucedida nos seus propósitos, o termo referia-se ao prolongamento da política nacional ativa no quadro internacional, sendo obrigatoriamente mais sujeito que objeto no panorama político mundial. Esse império fortemente reconhecido pelos demais povos construía-se a partir de aquisições coloniais adquiridas por meio de um Exército e de uma Marinha eficientes e bem organizados, capazes de invadirem a soberania da nação visada. Entretanto, isso também gerou conseqüências econômicas, afinal, a Política desempenha um papel na Economia Internacional. O poder, de fato, desempenha um papel nas relações entre os (países) ricos e pobres. Há dominação, dependência e exploração. Há imperialismo (COHEN, 1976, p.11). Do colonialismo simples, existente entre os séculos XV e XVIII, passouse a formas mais complexas de economia, de subjugação de mercados consumidores, de oportunidades de investimentos e fontes de matérias114 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 primas, decorrentes do advento da Revolução Industrial. O desenvolvimento das exportações e dos empreendimentos em outros países, bem como do protecionismo econômico adotado através de um governo forte, acabou gerando uma política nacional que funcionava como órgão executivo dos grandes grupos financeiros, favorecendo e incentivando homens empreendedores com alianças entre as grandes empresas e a política nacional. Podemos, então, notar outro diferenciador dessa era imperialista, também chamada de “clássica”, onde os indivíduos de cada nação igualmente se envolveram nas relações internacionais, da mesma forma que os grupos, as organizações e as empresas. Era indispensável que os grupos dirigentes se identificassem com o programa imperialista, que as novas convicções houvessem conquistado solidamente a opinião pública e, não se limitando à prática, o imperialismo se impusesse como movimento intelectual (GOLLWITZER, 1969, p.18). Dentre as várias teorias para explicar porque a partir de 1870 o projeto imperialista foi tão envolvente, optamos pela interpretação de Joseph Schumpeter (1883-1950), economista austríaco que apoiava suas teorias na História e, principalmente, na Sociologia. Tal escolha é justificada por considerar ainda latente a força do passado, que permeará a forma conservadora com que os escritos de Darwin serão incorporados por esse movimento intelectual. De acordo com essa interpretação, o capitalismo não foi a principal causa do imperialismo. Toda nação, de acordo com Schumpeter, tem remanescentes de classes guerreiras que perderam sua função social no século XIX, pois logo após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815, a Europa viveu um período de calmaria. Schumpeter considerou o imperialismo atávico1, vestígio hereditário de uma época anterior que corria o risco de extinção, pois os nobres guerreiros buscavam reviver suas glórias militares e sua tradição do passado. Essa expansão atávica seria irracional, instintiva, ilimitada e sem objetivo próprio. Dessa forma, Schumpeter retira do capitalismo, que é por excelência racionalista, o peso de gerador do imperialismo, depositando nas relações de produção do passado, pré-capitalistas, a gênese desse fenônemo europeu ocorrido entre 1870 e 1914. Seguindo a mesma linha, o historiador Arno Mayer (1987) escreve que a Europa que chega à Primeira Guerra Mundial 1 Reaparecimento, nos descendentes, de certos caracteres físicos ou morais não presentes nas gerações imediatamente anteriores. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 115 ainda era como no Antigo Regime (conservadora, antidemocrática, antiliberal e hierárquica), criadora de barreiras às idéias iluministas do século XIX. A síntese burguesa e sua concepção de mundo durante esse século ainda não haviam superado os pressupostos da nobreza, fazendo com que as tradições e os valores europeus fossem de épocas anteriores ao capitalismo. O liberalismo foi impotente para conter essa remobilização da antiga sociedade civil e política, em boa parte porque a burguesia oscilante se dividiu em duas, cabendo a resistência apenas aos seus elementos pré-industriais mais débeis (MAYER, 1987, p.269). As elites tradicionais geralmente reconheciam a ascensão burguesa. Isso não quer dizer que a aceitavam. Deixando cada vez mais a pequena nobreza de fora dos assuntos políticos e econômicos, a alta burguesia não tinha, porém, uma cultura própria, fazendo com que sucumbisse a um processo de “feudalização”, adotando um estilo de vida aristocrático, obtendo grandes propriedades e primando pelo ócio (GOLLWITZER,1969). Essa persistência do Antigo Regime na sociedade européia capitalista e, agora, imperialista, caracterizou-se pela aliança entre a aristocracia e os burgueses contra um inimigo comum: o acesso das massas populares à política e à cultura através da democracia. Todavia, a burguesia era mais frágil que a coesa mentalidade aristocrática, e precisava com mais freqüência do apoio das classes dominantes e governantes, como tarifas alfandegárias favoráveis aos seus negócios, contratos e cargos públicos aos seus filhos, bem como proteção armada a nível interno e externo para as suas iniciativas. Em troca dessa ajuda para obter assistência estatal, os líderes do mundo dos negócios abandonavam suas crenças liberais, abraçavam a concepção de mundo conservadora das elites tradicionais e apoiavam a política do antiliberalismo. Esse realinhamento reduziu os conflitos e debates ideológicos da elite, em favor de um consenso essencialmente voltado para a antiga ordem moral, cultural e política (MAYER, 1987, p.270) Num cenário de progresso tecnológico, com cidades industriais e industrializadas recebendo cada vez mais pessoas, Estados nacionais em construção e movimentos sociais de massa, diferenciamos a classe dos intelectuais, muitos deles considerados como “profetas furiosos da decadência” (MAYER, 1987, p. 270). 116 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 A intelligentsia [...] alinhava-se com a ordem social estabelecida, garantia da cultura de elite. Esse viés conservador inato se confirmou depois da virada do século quando, em vez de escaparem para um esteticismo e dandismo refinados, muitos profetas da decadência se uniram em torno das igrejas estabelecidas ou dos novos cultos de super patriotismo (MAYER, 1987, p.271). As ideias de decadência e degenerescência da cultura superior, aliadas ao medo da virada do século XIX para o XX, infiltraram-se no psicológico da aristocracia, sendo tão fortes que não precisavam, necessariamente, de uma confirmação lógica. Nesse momento conturbado, intelectuais e políticos não se viam como degenerados. Ao contrário, propunham superar e controlar a crise, com a finalidade de restaurar e proteger a antiga sociedade hierárquica, sem reformas ou democratizações. Assim, “como as classes dominantes e governantes, a intelligentsia procurou se isolar, a fim de preservar seus valores em crise diante das plebes urbanas” (MAYER, 1987, p. 272). A angústia causada pela sensação de perigo iminente apavorou a todos, principalmente quando os conceitos de Thomas R. Malthus (17661834) profetizavam que, em pouco tempo, o mundo não teria condições de alimentar toda a população, bem como fornecer os recursos naturais capazes de sustentar a humanidade em sua plenitude (MALTHUS, 1951). Esse período de tensão e rivalidade entre as grandes nações, o medo de ser ultrapassado e esmagado por outrem, o aumento populacional e a complicação do aparelho social e político gerou um espírito de competição acirrada entre os Estados. A guerra não era exatamente pretendida, mas sabia-se que era possível e até mesmo inevitável. Em termos de Weltanschauung e de atitude perante a vida correspondia a reconhecer a guerra e acentuar os aspectos positivos sem, necessariamente, fechar os olhos aos seus horrores. [...] Fazia-se o elogio do serviço militar e da guerra, considerada como base de formação do caráter e preparação para a vida; [...] uma oportunidade de regeneração total (GOLLWITZER, 1969, p.186). Os defensores do imperialismo tinham um alto conceito de moral, considerando-se sempre a favor de uma grande causa, glorificando o “culto ao dever” e idealizando o trabalho. Contavam que também sofriam com suas ações imperialistas, pois a vitória custava caro igualmente aos vencedores. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 117 Entretanto, somente o mais forte e apto conseguiria alcançar a vitória se a causa fosse nobre2. Este exercício do poder podia ser temporário e indispensável à consecução de um fim exaltante ou ser a expressão da lei eterna que quer que o mais forte domine o mais fraco e o mais poderoso o humilde - isto para benefício e bem-estar dos governados (GOLLWITZER, 1969, p.176). A guerra não teria por finalidade destruir, mas sim intensificar a potência do Estado conquistador e do Estado conquistado. Alguns grupos queriam combinar o alargamento territorial com as idéias messiânicas de proteção e expansão da humanidade, da liberdade e da cultura ocidental. A maior parte dos círculos imperialistas contentava-se em observar o poder, o prestígio da sua pátria, contemplar a sua expansão à escala mundial, registrar outros sucessos políticos. Alguns grupos, porém, queriam mais; [...] desejo de abandonar a rotina quotidiana por uma existência nobre, consagrada a uma grande causa (GOLLWITZER, 1969, p. 188-189). A Europa do final do século XIX estava constantemente amedrontada, como vimos anteriormente. Quer seja pela proximidade com a virada do século, quer seja pelas ideias de decadência da raça e da cultura europeia, o fato é que, a nível externo, o Velho Mundo temia o desenvolvimento econômico e político de outras nações: do Japão – medo dos “amarelos” tomarem os empregos dos “brancos”, somado ao seu armamento moderno e superioridade numérica; a África era relacionada com o “perigo negro”, pois se acreditava que os africanos retomariam o poder sobre seu continente em breve; os Estados Unidos também passavam a imagem de novo inimigo, pois já se destacavam no cenário mundial. Até mesmo nos movimentos operários, organizados sob a égide da doutrina marxista e, por isso, anti-imperialistas por natureza, o medo da mãode-obra “de cor” tomar o emprego dos europeus “brancos” gerou problemas, pois o preço pago pelo industrial na contratação dos povos “inferiores” 2 O comportamento de um imperialista típico era permeado de fascínio pelo poder, vontade de prestígio, porte autoritário e consciência da sua autoridade afirmada com energia. Assim sendo, o imperialista estava sempre associado a uma política de dominação e supremacia. Mas isso não significa dizer que ele se vangloriava da sua situação, pois seria sua “missão civilizatória”, o “fardo do homem branco”, que o fazia agir assim, para o bem de seus subordinados. 118 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 (principalmente asiáticos e afro-descendentes) era mais baixo, resultando em protestos e contestações por parte dos trabalhadores europeus “puros”. É nessa sociedade aterrorizada, carente de fé e segurança, que os escritos de Darwin darão o embasamento intelectual para que a vida fosse considerada um verdadeiro palco de guerra. No entanto, já de início é bom que se diga que o darwinismo das ciências biológicas e sua aplicação na base ideológica imperialista não surgiram juntos, como nos alerta o biólogo evolucionista Michael Rose (2000, p.227): Infelizmente, essa origem intelectual criou um problema para o darwinismo: o ‘darwinismo social’. Este não foi obra de Darwin. Na verdade, aliás, foi anterior a ele, embora o uso da expressão tenha surgido após a sua morte. O imperialismo explorou as ciências naturais, que por sua vez procuravam atender às exigências da época. Antes de progredirmos nesta análise, seria bom demonstrarmos o que Darwin propôs, originalmente, na sua teoria da seleção natural (DARWIN, 2002) conforme nos elucida o sociobiologista Edward O. Wilson (1981, p. 79): Os indivíduos de cada população variam em sua composição genética e, por conseguinte, em sua habilidade para sobreviver e reproduzir-se. Os mais bem sucedidos transmitem mais material hereditário à geração seguinte, e, como resultado, a população como um todo progressivamente modifica-se, passando a assemelhar-se aos tipos bem sucedidos. O impacto das idéias de Darwin foi muito vasto, e também interpretado das maneiras mais diversas possíveis. O desprezo que políticos e intelectuais tinham pela igualdade humana agora poderia ser justificado “cientificamente” através da seleção natural. Uma vez convertidas ao darwinismo social, as elites governantes trataram de canalizar seus medos, angústias e apreensões de forma agressiva, levando isso para a política. Outro fato importante foi a consagração da idéia de que a humanidade estaria dividida em raças. A idéia de que existem raças humanas, cada qual com seus próprios ancestrais e com um destino comum, levou muitos biólogos e praticamente todas as outras pessoas à idéia de que a evolução humana estava ligada a uma competição entre raças. [...] Somava-se a isso a idéia de uma competição na qual as raças superiores venceriam – e, possivelmente, eliminariam – as Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 119 demais. E essa visão da história foi adornada com a idéia de que essa era uma situação boa, aliás, providencial, e de que a vitória da(s) raça(s) superior(es) deveria ser vista como um resultado apropriado da história (ROSE, 2000, p.166-167). De acordo com Arno Mayer (1987), a crise geral europeia da segunda metade do século XIX foi uma reação das antigas elites, que temiam a perda de suas posições privilegiadas. O medo da modernização capitalista, de uma revolta popular, da ascensão da burguesia e da suposta fragilidade do aparelho estatal deu vazão a um universo belicoso. A militarização da sociedade, da política (e dos próprios políticos) foi extremamente benéfica para as antigas classes dominantes, que resolveram a ocorrência induzindo, como solução, o conflito armado. A guerra deixou de ser a continuação da diplomacia, para se converter no prolongamento da política. [...] Numa atmosfera intelectual e psicológica carregada de influências socialdarwinistas e nietzschianas3, a guerra era celebrada como um novo remédio que curava tudo. A violência e o sangue da batalha prometiam revigorar o indivíduo, restabelecer a nação, restaurar a raça, revitalizar a sociedade e regenerar a vida moral (MAYER, 1987, p.295-296). O darwinismo social, concepção de mundo preponderante nas classes governantes européias, agradou a casta marcial, inativa desde o início do século XIX. A obra “A Origem das Espécies através da Seleção Natural”, de 1859, veio num momento onde as ciências naturais eram pouco questionadas, pois forneciam a base do progresso tecnológico e médico. Utilizando-se dos métodos racionais e empíricos do estudo evolucionista de Charles Darwin, as antigas classes dominantes deram-no uma interpretação conservadora, mas levemente progressista, da luta pela vida. Embora o termo darwinismo social fosse muito utilizado, não estabelecia regras específicas de ação prática, o que favorecia sua aplicação desde a vida cotidiana até as instituições e projetos coletivos. Entretanto, apesar das diferentes interpretações e métodos, todos os darwinistas sociais eram elitistas - temiam o nivelamento social, cultural e político - pois tinham “em sua concepção, (que) os homens eram desiguais por natureza, e o mesmo ocorria quanto à estrutura da sociedade, para sempre destinada a ser dirigida pela minoria dos mais aptos a governá-la” (MAYER, 1987, p. 276). 3 Referência ao conceito de “vontade de poder”, do filósofo alemão Friederich Nietzsche (1844-1900). Para saber mais, ver em STERN, 1982. 120 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Seus preceitos, com o passar do tempo, foram saindo da esfera econômica e política, servindo para justificar todas as ações, e a luta pela sobrevivência virou uma disputa pela superioridade internacional. As antigas elites estavam preparadas para empregar a supremacia ressurgente da política exterior e imperial para reforçar suas posições internas. Apoiadas pela casta guerreira poderiam, até, se declarar especialmente qualificada para dirigir a guerra de todos contra todos na arena mundial, onde a vitória militar constituiria a suprema prova de aptidão (MAYER, 1987, p 275). Através das ideias explicitadas no presente artigo, podemos concluir que a base científica e filosófica das práticas imperialistas europeias, entre 1870 e 1914, foi a incorporação pelas elites intelectuais, da teoria da evolução pela seleção natural de Charles Darwin, proposta por ele nas ciências naturais mas adaptada à Weltanschauung e aos interesses das antigas classes guerreiras. A essa intelectualidade defensora dos valores “superiores”, da cultura erudita e da concentração do aparelho político nas mãos da aristocracia, reflexo ainda do Antigo Regime que não findara no século XIX, estava aliada a burguesia, tão criticada antes, mas agora parceira no projeto de impedir que a democracia, o marxismo e os movimentos populares atingissem qualquer tipo de êxito. Julgando-se então serem os mais aptos, selecionados através da luta diária pela sobrevivência, os intelectuais e os políticos deste período transferiram para a vida cotidiana a guerra de todos contra todos, tanto em nível interno quanto externo. Assim, desvinculando às idéias de que o imperialismo fora causado apenas pelo capitalismo industrial, e considerando-o primordialmente uma reação atávica dos nobres de tradição guerreira, o darwinismo social caiu feito uma luva nas suas pretensões aristocráticas. HENRIQUE, Leonard Fernandes. The social darwinism presents in the European Weltansch between 1870 and 1914. Revista Ensaios de História, Franca, ABSTRACT: The intention of the present article is to clarify the importance that the intellectuals had had in the formularization of the conception of world (Weltanschauung) of the European governing elites between 1870 and 1914, justifying its imperialistas action. The impact of the evolucionismo considered for Charles Darwin will be analyzed with bigger attention, therefore its ideas of “election of most apt” can very clarify regarding the politics and imperialista mentality of this period. KEYWORDS: Imperialism, Intellectuality , social darwinism. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 121 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. COHEN, Benjamim. A questão do imperialismo: a economia política da dominação e dependência. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. GOLLWITZER, Heinz. O imperialismo europeu: 1870-1914. Lisboa: Verbo, 1969. MALTHUS, Thomas R. Ensayo sobre el principio de la poblacion. México: Fondo de Cultura Económica, 1951. MAYER, Arno. A força da tradição: a persistência do antigo regime (1848 1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1987. ROSE, Michael. O espectro de Darwin: a teoria da evolução e suas implicações no mundo moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. STERN, J.P. As idéias de Nietzsche. São Paulo: Cultrix, 1982 WILSON, Edward. Da natureza humana. São Paulo: T. A. Queiroz: EDUSP, 1981. 122 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 ARTE, CIÊNCIA E IMAGENS SOBRE O EGITO NA FRANÇA DE NAPOLEÃO Luiz Fernando PINA SAMPAIO RESUMO: O artigo que aqui apresentamos tem como objetivo geral estabelecer um breve histórico-analítico acerca das origens da Egiptologia na França Napoleônica, tomando por pilares fundacionais a arte, a ciência e as imagens – todas as três fortemente influenciadas pela “egiptologia” e “egitomania” decorrentes da Campanha de Napoleão no Egito entre 1798 e 1801. PALAVRAS-CHAVE: Egiptologia, França Napoleônica, Arte, Ciência, Imagens. PREFÁCIO Escrever sobre um assunto tão vasto e complexo, como são as origens da Egiptologia nos séculos XVIII e XIX, demanda de nossa parte algumas considerações iniciais. Partimos de uma reflexão que tem como parâmetro de observação o elemento cultura, aqui compreendido não somente como um sistema de normas e modos de agir, costumes e instruções de um povo, mas antes, como que um depositário das artes, da ciência e do imaginário. Isso não quer dizer, de modo algum, que consideremo-la como um fenômeno desassociado ou mais relevante do que a economia, a política e outros aspectos sociais relacionados, até porque se fala muito, nas duas décadas anteriores à nossa, nos conceitos de cultura-política, cultura-econômica. Fizemos a escolha de uma abordagem cultural, pois esta pareceu-nos mais adequada para a discussão que pretendíamos. Em função do reduzido espaço disponível, optamos por não fazer uso de imagens ou ilustrações, mesmo quando discutimos arte. Limitamo-nos a apontá-las, quando julgamos necessário, nas suas respectivas bibliografias. Embora cientes das contribuições da Inglaterra, Alemanha, Itália e Espanha, para o desenvolvimento do pensar egiptológico, centramos a discussão na França imediatamente anterior, durante e posterior a Napoleão. ORIGENS MAIS PRIMIEVAS DO ESTUDO EGIPTOLÓGICO O Antigo Egito conta com uma História cuja cronologia ultrapassa três milênios. E ao fazer esta afirmação referimo-nos unicamente ao período em que o Egito foi um verdadeiro Estado (independente, organizado e unificado), Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 123 ou seja, aquela época que vai de meados de 3100 a.C., quando teria ocorrido a fundação do Estado Egípcio, ao ano 30 a.C., quando a ocupação dos romanos fez-se presente de forma definitiva (BAINES; MÁLEK, 2007, p.8-9). Ao escrever que “(...) os primeiros egiptólogos foram os Egípcios Antigos” (ALDRED, 1966, p.15), o autor francês Cyril Aldred fazia alusão ao fato dos habitantes do Vale do Nilo terem sido especialmente zelosos para com o seu passado trimilenar, a fim de preservar eventos, feitos e memórias de outrora. Quando o faraó Neferhotep I (cerca de 1741-1730 a.C.) resolveu mandar que se construísse uma nova estátua do deus Osíris procurou, nos arquivos de uma biblioteca em Heliópolis, um antigo modelo a partir do qual pudesse esculpir a sua (ALDRED, 1966, p.15) – segundo os rígidos cânones estéticos da arte oficial, que no Egito dos faraós, tinha caráter de “instrumento mágico” (ESPAÑOL, 1992, p.19-23). As listas de reis dos templos de Karnak e Abidos, os relevos de Sakkara, (JOHNSON, 2002, p.38-39) e tantos outros, podem ser sintetizados numa idéia: a necessidade de manutenção da maat (a ordem cósmica egipcíaca), o que garantiria que o Egito não viesse a ser lançado num caos total, levava-os ao cumprimento de práticas e costumes reguladores, ligados aos fazeres da economia, da política e da religião. Contudo, um registro direcionado e preocupado com um estudo do passado egípcio só aconteceria pela primeira vez, até onde sabemos, com Mâneton de Sebennitos, um sacerdote egípcio que viveu no terceiro século antes de Cristo, sob o governo dos dois primeiros faraós ptolomaicos1 (JONHSON, 2002, p.37-38). Sua obra, História do Egito (Aegyptiaca), fala das origens mais remotas à sua época. O texto, que não chegou intacto até nossos dias, muito embora contenha certos exageros cronológicos, é um dos referenciais fundamentais para o conhecimento das dinastias egipcianas. É certo que nomes como Heródoto, Estrabão, Plínio (SAUNERON, 1970, p.7), e outros, também deram seu contributo, ainda que tenham legado certa visão demasiado mistérica e imprecisa de muitas formas acerca da terra dos faraós. Durante a Idade Média, os relatos de viajantes, que passaram pelo Egito e seus lugares cristãos santos – como aqueles associados à jornada de Cristo ainda criança, ou mesmo pelas pirâmides, consideradas os celeiros de 1 Denomina-se ptolomaicos ou ptolemaicos os governantes egípcios que comandaram de cerca de 330 a.C., com o general de Alexandre, o Grande, Ptolomeu, até 30 a.C., com Cleópatra VII Filopator, a conhecida rainha que envolveu-se com Júlio César e Marco Antônio. 124 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 José (BAINES; MÁLEK, 2008, p.22) – davam ao Ocidente uma turva visão do que era o Egito. Ao final do século XVII, e ao longo do XVIII, o número de viajantes, bem como os registros e desenhos que estes fizeram acerca do Egito, aumentaram gradualmente. Contudo, somente em fins do século XVIII descobertas realmente paradigmais e científicas, sobre a terra das pirâmides, tomariam forma. A REVOLUÇÃO FRANCESA E A GÊNESE DE NAPOLEÃO Como escreve-nos o historiador alexandrino Eric. J. Hobsbawm, se a influência da Revolução Industrial sobre a economia do século XIX é marcante, a sua política e ideologia foram fundamentadas na Revolução Francesa (HOBSBAWM, 1996, p.9). Tendo se passado numa nação muito poderosa e populosa, a Revolução na França teve caráter radical, contou com uma participação social em peso e configurou-se num evento ecumênico, já que seus exércitos e idéias influíram em outros movimentos revolucionários no mundo (HOBSBAWM, 1996, p.10-12). Este tríduo faz dela um acontecimento paradigmático. Foi no período do Diretório (1795-99), que um jovem general chamado Napoleão Bonaparte, passaria a ganhar destaque dentro do Exército francês. Nascido em Ajáccio, Córsega, era nobre de nascimento, ao menos para os padrões da ilha italiana. Seu nome, coincidentemente, era o nome de um mártir egípcio que havia morrido em Alexandria sob o governo de Diocleciano, século III d.C. Sua mãe, conforme narram suas biografias, teria pronunciado um breve “oh” ao tomar conhecimento do significado e origem do nome escolhido para o filho (CRONIN, 1973, p.17). A CAMPANHA AO EGITO Ao contrário do que sustentam certos autores, fazendo eco a uma abordagem mais idílica, as razões que levariam o general francês até o Nilo teriam um substrato bem mais político e econômico, a priori, do que culturalcientífico, como revelar-se-ia a posteriori. Vejamos. O Egito fazia parte das pocessões do Império Otomano naquele momento. Nações da Europa, como a Inglaterra, a Áustria, a Rússia, e especialmente a França, vinham apontando as miras de seus canhões e arcabuzes para estes lados do Mediterrâneo já há algum tempo. De um ponto de vista geopolítico, a hora para a intervenção francesa havia chegado. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 125 Após as épicas campanhas na Itália, Napoleão convertera-se no “herói do momento” (SILIOTTI, 2007, Pt. I, p.81) para o opinião pública, e ajudara a fazer da França importante potência militar. Assim, uma vez que o Diretório desejava uma ação beligerante direta contra a Inglaterra, incumbiu Napoleão de fazê-la. Parece que o general, ao refletir sobre os perigos, decidiu-se por levar as tropas para o Mediterrâneo (CRONIN, 1970, p.175). O Diretório esperava, caso a incursão contra a Inglaterra viesse a falhar, que ao menos a imagem do jovem general, considerado por eles um perigo potencial, viesse a ser reduzida. Como observa V. Cronin (1973, p.176-177), os objetivos da expedição eram três: primeiro, Napoleão deveria ocupar o Egito e libertá-lo do domínio dos mamelucos, e aí desenvolver uma colônia francesa. Segundo, pretendiase enfraquecer a Inglaterra mediante o domínio por sobre a Índia, a pocessão inglesa mais rica, o que far-se-ia criando uma aliança com a Turquia e a Pérsia, ou, mais ambiciosamente, construindo um Canal no istmo de Suez para alcançar o Mar Vermelho e daí o Oceano Índico. E terceiro, a França, na visão de Napoleão, iria ao Egito objetivando “ensinar e aprender” – ensinar os meios para o desenvolvimento dos nativos (ciência, medicina e tecnologia) e aprender sobre esta terra quase desconhecida para a Europa (cultura, geografia, história e etc). Então, com uma “expedição de dimensões colossais, formada por 13 navios de guerra, seis fragatas, uma corveta, 35 naves menores e 300 barcos de transporte com 10.000 marinheiros e 35.000 soldados”2 (SILIOTTI, 2007, Pt. I, p.80) e cerca de 200 sábios, cuja missão era explorar, descrever e possivelmente escavar, Napoleão chegou a Alexandria, em julho de 1789. A Comission dês sciences et des arts (Comissão de ciência e artes), composta por nomes como Dolomieu, Geoffroy Saint-Hillaire e Vivant Denon, foi o grupo dos já mencionados sábios, responsáveis por deslindar o mundo pouco conhecido dos egípcios. Isto não se fez sem muitas mortes – sejam em decorrência de doenças ou das batalhas nas quais os franceses viram-se envolvidos. Com a ajuda do Ministro de Assuntos Exteriores do Diretório, Charles Maurice Talleyrand, o Exército do Oriente (como se denominou os militares da campanha) foi organizado e entregue a Napoleão. Vislumbrar as pirâmides de Gizé era exercício mais simples. Duras foram as longas e cansativas viagens deserto adentro, por áreas controladas 2 As consultas às obras de Aldred, Sauneron e Siliotti revelaram valores distintos nos três textos, mas, que no geral, têm margem estatística aproximada. 126 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 pelos árabes, em virtude da escassez de alimentos em certos períodos, em função do clima hostil ou então devido à geografia desconhecida. Todavia, os achados e estudos que daí resultaram, foram únicos. A exempli gratia, o barão Dominique Vivant Denon fez centenas de desenhos e registros: o templo da deusa Háthor, em Dendera, as ruínas de Tebas, que fora capital do Antigo Egito por séculos, Luxor e Karnak, templos dedicados ao deus Amon-Rá, e dezenas de outros túmulos, templos e paragens (SILIOTTI, 2007, Pt. I, p.88-89). Estes desenhos, assim como várias centenas de outros trabalhos, foram compilados e publicados entre 1808 e 1828, em Paris, na colossal “Descríption de l’Égypte ou Recueil des Observations et des Recherches qui ont été faites em Égypte pendant l’expédition de l’armeé française, publié par les ordres de S.M. l’Empereur Napoleón”. Para sua impressão, criou-se um formato especial de papel e uma máquina de impressão especial, projetada pelo engenheiro Nicolas Jacques Conte. Oitocentos e noventa e sete gravuras, muitas das quais eram coloridas, de mais de três mil desenhos de duzentos artistas. Pesquisas de arqueologia, ciências naturais, arquitetura, geografia, mineralogia, e outros campos do conhecimento de então, foram aí publicados (SILIOTTI, 2007, Pt. I, p.100-129)3. Só que os resultados da expedição não foram exclusivamente benéficos. A obtenção de Antiguidades egípcias tornar-se-ia, nos anos do século XIX que já se avizinhavam, como que “capricho, num jogo de rivalidades nacionalísticas que os vários representantes das dez Grandes Potências (européias) travavam uns com os outros (...)” (SAUNERON, 1966, p.21). Nasceram daí os cônsules-antiquários – autoridades que passariam a saquear bens e tesouros do Egito, e a suprir coleções particulares, museus europeus e até americanos. Os egiptologistas de hoje referem-se a isso, com grande pesar, como a “violação do Nilo”. É preciso ressaltar que os próprios egípcios tomaram parte nessa “obscura” empreitada. Desde os tempos dos faraós da IIIª Dinastia (26492575 a.C.), e talvez até mesmo antes, saqueadores de túmulos eram comuns e combatidos. Havia mesmo um verdadeiro “mercado negro” de peças arqueológicas. Gerações de egípcios, ao longo dos séculos, encabeçaramno. Muitos deles persistem ainda hoje. A 23 de agosto de 1799, por questões político-ecnômicas e pessoais, Napoleão retornaria à França. A expedição ainda duraria até meados de 3 A obra “Primeiros Descobridores. A descoberta do Antigo Egito. Pt. I. Barcelona: Folio, 2007”, de S. Siliotti, traz reproduções de dezenas de imagens destas aquarelas e desenhos. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 127 1801, quando as forças inglesas entrariam no Egito pondo um fim ao brevíssimo Protetorado Egípcio (embora a França ocupasse o Egito, eram os árabes-muçulmanos que permaneciam no governo). Alguns dos artefatos obtidos durante a Campanha de Napoleão seriam confiscados pelos ingleses. Dentre eles, estava a Pedra de Roseta, um achado que se deu por acaso pelos franceses, nas imediações de uma fortaleza árabe do século XV d.C., próximo à cidade de Roseta, no norte do Egito (SOLÉ, 2003, p.357). O mencionado achado mudaria o curso da história da egiptologia nascente dentro de alguns anos. JEAN-FRANÇOIS CHAMPOLLION: DECIFRANDO O EGITO Jean-François Champollion, nascido em Figeac, no Quercy, França, em 23 de dezembro de 1790, e que, portanto, tinha cerca de nove anos quando a Campanha do Egito ocorrera – não, ele não estava no Egito com Napoleão em 1798, como muitos pensam ainda hoje – foi um jovem intelectual cujos trabalhos levariam à decifração da escrita hieroglífica contida na Pedra de Roseta. Lia grego, hebraico, síriaco, caldeu, árabe e copta. Em declaração, de janeiro de 1806, afirmou: “Quero fazer dessa antiga nação um estudo aprofundado e contínuo... De todos os povos que mais admiro, nenhum abala minha predileção pelos egípcios” (SOLÉ, 2003, p.80-81). Napoleão mandara fazer cópias da Pedra antes de os ingleses confiscarem-na. As cópias foram enviadas para estudiosos na França. Um deles era Champollion (MARUCCI, 2001, p.147). A pedra, atualmente no Museu Britânico, em Londres, trata-se de uma estela (monólito retangular para inscrições oficiais) de basalto, que traz de cima para baixo, em três línguas (hieróglifo, hierático e grego), um decreto do faraó Ptolomeu V Epifânio, de 196 a.C. Ao estudar a pedra, e baseando-se no trabalho de outros pesquisadores, Champollion decifrou a escrita hieroglífica nela contida. Era 14 de setembro de 1822 quando deu o grito de “eureca!”. Escreveu sua famosa carta, Lettre à M. Dacier..., no dia 22 daquele mesmo mês, narrando sua descoberta. Só em 1824, com a obra Précis du système hieroglyphique..., expôs os conceitos fundamentais da escrita hieroglífica (SILIOTTI, 2007, Pt. II, p.11). Em 1828 ocorreu a Expedição Franco-Toscana, outra importante incursão científica ao Egito, na qual Champollion tomou parte e pôde colocar à prova sua descoberta, decifrando outros textos pelos lugares históricos do 128 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Egito e fazendo com que os antigos egípcios pudessem falar novamente, pela primeira vez, desde o reino de Teodósio, século IV d.C., quando foi feita a última inscrição hieroglífica de que se tem notícia. Este feito garantiu-lhe o epíteto de o “pai da egiptologia”. AS ARTES As influências de todas as descobertas decorrentes da Campanha Napoleônica no Egito far-se-iam bem evidentes nas Artes – especialmente nas artes plásticas (pintura e escultura). Como observa E. J. Hobsbawm (1977, p.275-279), uma das coisas que muito nos surpreendem quando analisamos a época da “revolução dupla” (1789 e 1848) é o desenvolvimento das artes. Temos aí o que ele considera uma espécie de “ressurreição e expansão das artes” que atraíam um público dotado de certa erudição. Isso na música, literatura, pintura, escultura, arquitetura... As artes e os assuntos públicos estreitaram-se ainda mais nos países onde a consciência nacional e os movimentos de unificação e libertação eram fortes. A França certamente era um desses lugares. Se Champollion é nomeado o “o pai da egiptologia”, o título de incentivador máximo da “egitomania” é sem duvidas do l’Empereur Napoleão. Mas ele não estava sozinho. Como registra Robert Solé: A Revolução Francesa revelou-se ainda mais egitomaníaca que a monarquia: a cada festa, erguiam-se nas praças parisienses obeliscos ou pirâmides de papelão. No dia 10 de agosto de 1793, até se instalou na praça da Bastilha uma fonte de gesso revestido de bronze, na qual Ísis, sentada entre dois leões, vestida com um páreo egípcio, espreme ‘dos seios fecundos o licor puro e salutar da regeneração’ (...) (SOLÉ, 2003, p.148). Assim, com Napoleão, a egitomania atingira seu ápice. Monumentos, fontes, móveis, porcelana de Sèvres, papéis de parede, estátuas, pinturas, e outros mais. Isto sem falarmos nas múmias: muitas destas foram trazidas para a Europa nessa época. Tornavam-se parte integrante das coleções pessoais de burgueses e nobres, ou então, ingrediente n’alguma fórmula de panacéia. Cerimônias de “abertura de múmias” eram comuns. Numa sala principal da Vila de Napoleão, do século XIX, pode-se observar pinturas em estilo egípcio, como se vê em Egito: um olhar amoroso, de R. Solé (2003, p.148). Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 129 O desenho do projeto de um obelisco, por Lecoint, para um monumento em substituição à estátua do rei Henrique IV, sobre a Ponte Neuf, na extremidade da Ile de La Cite (Ilha da cidade), de 1809, pode ser visto em Plaisir de France, de D. Adrien (1969, p.24-25). Na mesma revista, apresenta-se a imagem de uma fonte egípcia, na rua de Sèvres, feita por um decreto de 2 de maio de 1806, responsável pela criação de 65 fontes (ADRIEN, 1969, p.28-29). Digna de menção mais detalhada é a porcelana de Sèvres. Era utilizada para o “grande deleite dos ricos do século XVIII (...)” (ADRIEN, 1969, p.18). A produção desta cerâmica ampliou-se com Napoleão, que nela viu uma fonte de atividade remunerável, mas também, um fino objeto para uso pessoal ou como presente: nas alianças diplomáticas, nos casamentos principescos, e mais ocasionalmente, nas visitas oficiais às Manufaturas (ADRIEN, 1969, p.18-19). O SÉCULO DOS EGIPTÓLOGOS Chamamos assim o século XIX. Outras importantes expedições ocorreram no Egito nessa época. Após a Expedição de Napoleão, de Champollion, sem dúvidas a do alemão Richard Lepsius, entre 1842 e 1846, foi uma das mais importantes. Superou inclusive àquela de Napoleão. Lepsius é considerado fundador da egiptologia alemã. Antes dele, o inglês John G. Wilkinson, em 1821, que passou a década seguinte copiando desenhos, pinturas e relevos, e escavando em solo egípcio. Outro nome importante é o francês Emile Prisse d’Avenes, que a partir de 1827 passaria a viver e trabalhar no Egito. Pôde explorar por muitos anos templos e construções antigas, retratando-as em belos desenhos. Outro nome essencial ao se falar desse período é o francês August Marriette (1821-1881). Nascido em Boulogne-sur-Mer, este estudioso e arqueólogo francês foi enviado ao Egito pelo Museu do Louvre, em 1850, a fim de colher peças de cultura material. Contudo, acabaria vendo as necessidades de se criar uma legislação voltada para a proteção e valoração do patrimônio local (EINAUDI, 2009, p.13-14). Graças à sua insistência foi criado o Service des Antiquités (Serviço de Antiguidades), em 1858. Em 1863, conseguiu, enfim, inaugurar um museu no Cairo. Tempos depois de sua morte, a situação desse museu tornou-se crítica devido às inundações contínuas causadas pelas cheias do Nilo. A coleção foi levada para uma das residências do Vice-Rei Khedivé Ismail durante um tempo (1889-1902). Em 1902, a coleção foi finalmente transportada para um novo prédio criado especialmente para ela: o Museu Egípcio do Cairo (EINAUDI, 2009, p.15-16), no qual permanece, com muitas ampliações e melhorias conservacionais, até hoje. 130 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Aos egiptólogos que vieram depois dele – Flinders Petrie, Griffith, Montet, e tantos outros, coube-lhes árduo trabalho, achados grandiosos ou pequenos achados – sendo que são estes últimos aqueles que de fato dão sustentação à pesquisa científica egiptológica. Os exploradores “sábios” de Napoleão contavam com sua curiosidade e audácia, quase que exclusivamente. Hoje, além de nos beneficiarmos com os frutos de seus trabalhos, dispomos de técnicas e métodos bastante avançados. Enfim, uma coisa é certa: o espírito sequioso por conhecimento que movia àqueles ainda paira sobre nós. PINA SAMPAIO, Luiz Fernando. Art, science and images about the Egypt on Napoleon’s France. Revista Ensaios de História. Franca, ABSTRACT: The article presented here by us has as general objective stablish a brief hirtorical-analytic, concerning to the origins of Egyptology on the napoleonic France, taking the art, the science and the images by basis – all the three of them strongly influenced by “egyptomania” and “egyptology” on resulting from the Napoleon Campaign in Egypt between 1789 and 1801. KEY WORDS: Egyptology, Napoleonic France, Art, Science, Images. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ADRIEN, Dansette. Une Mensagére de l’Empereur. Plaisir de France. Fevereiro: 1969. ALDRED, Cyril. Os Egípcios. Lisboa: Editorial Verbo, 1966. BAINES, John; MÁLEK, Jaromír. Deuses, templos e faraós. Atlas Cultural do Antigo Egito. Barcelona: Folio, 2008. CRONIN, Vincent. Napoleon. Suffolk: Penguin Books, 1973. EINAUDI, Silvia. Museu Egípcio, Cairo. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2009. ESPAÑOL, Francesca. Saber ver a arte egípcia. São Paulo: Martins Fontes, 1992. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. ______. A revolução francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. JOHNSON, Paul. História Ilustrada do Egito Antigo. 2 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. MARUCCI, Liege M. de Souza. Egitomania: O Fascinante Mundo do Antigo Egito. Barcelona: Editora Planeta, n. 8, 2001. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 131 SAUNERON, Serge. A Egiptologia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. SILIOTTI, Alberto. Primeiros descobridores. A descoberta do Antigo Egito. Pt. I. Barcelona: Folio, 2007. ______. Viajantes e Exploradores. A descoberta do Antigo Egito. Pt. II. Barcelona: Folio, 2007. SOLÉ, Robert. Egito: um olhar amoroso. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. 132 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 O TRAÇADO DAS CIDADES DO BRASIL COLONIAL SOB A LUZ DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Marcos Felipe GODOY RESUMO: O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise comparativa da bibliografia referente às características da formação das cidades coloniais da América portuguesa e espanhola, mais especificamente no que diz respeito ao traçado das mesmas, destacando as opiniões convergentes e divergentes entre os autores brasileiros de referência no assunto, a fim de obter uma visão mais ampla acerca do fenômeno da urbanização na América colonial, com ênfase no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Urbanização; Brasil colonial; Análise bibliográfica; América espanhola. O processo de urbanização está intimamente relacionado com o desenvolvimento das mais diversas relações sociais, e é justamente por este motivo que se mostra importante o estudo da formação das cidades. Neste artigo, buscaremos analisar as diferentes perspectivas de três dos principais historiadores brasileiros no que diz respeito à formação das cidades no Brasil colonial: o ilustre Sérgio Buarque de Holanda, através do pequeno-grande livro “Raízes do Brasil”, e os “clássicos arquitetos-historiadores de nossas cidades”, como os chamou Fania Fridman: Nestor Goulart Reis Filho e Paulo Santos. Comecemos então pelo primeiro. É notável o fato de a obra “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda ser toda permeada por uma análise psicológica do homem português, a fim de explicar certas especificidades de nossa sociedade contemporânea remetendo a características herdadas de nossos colonizadores, no que diz respeito a desde certos hábitos e costumes, até o nosso modo de ver o mundo e viver em sociedade. Em um primeiro momento, o autor procura fazer uma análise específica da mentalidade ibérica, investigando as peculiaridades deste povo que habita uma “região indecisa entre a Europa e a África” (HOLANDA, 2005, p.32). Justamente pelo fato de a península ibérica ser um território fronteiriço por onde a Europa se comunica com outros povos, não tem arraigado um europeísmo tão marcante, apresentando características diferenciadas do restante do continente. Após a investigação de tais características inerentes ao povo ibérico, o autor passa a apontar as peculiaridades relativas aos portugueses e as relativas aos espanhóis, traçando uma distinção importante para a Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 133 compreensão das diferenças entre a colonização lusitana e castelhana na América. Enquanto os portugueses são fortemente marcados por uma aceitação da vida como ela é, uma “razão cautelosa”, uma preferência pela adaptação à natureza e não pelo desafio à mesma, um certo “desleixo”, os espanhóis apresentam uma “fúria centralizadora”, codificadora, uniformizadora, refletida no gosto por regulamentos meticulosos, que vem de um povo internamente desunido, ao contrário do português, que alcançou sua unidade política no século XIII, com uma apreciável homogeneidade étnica. No caso espanhol, “O amor exasperado à uniformidade e à simetria surge, pois, como um resultado da carência de verdadeira unidade”. (HOLANDA, 2005, p.117). Seguindo essa linha de raciocínio, fica fácil entender porque as nossas cidades coloniais apresentam um traçado tão irregular, com casas desalinhadas e sem a notável uniformidade apresentada nas cidades de colonização espanhola, como Buenos Aires, cuja planta mais parece um grande tabuleiro de xadrez. Seja como for, o traçado geométrico jamais pôde alcançar, entre nós, a importância que veio a ter em terras da Coroa de Castela: não raro o desenvolvimento ulterior dos centros urbanos repeliu aqui esse esquema inicial para obedecer antes às sugestões topográficas. A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até o fim. (HOLANDA, 2005, p.109). Embora o traçado regular possa ser encontrado de maneira parcial em algumas de nossas cidades coloniais, este existe apenas onde não encontra maiores obstáculos naturais, demonstrando o que Sérgio Buarque constatou em relação à mentalidade portuguesa. É nesse momento que se mostra profícuo transcrever um dos trechos mais incisivos de Raízes do Brasil em relação à formação das cidades coloniais brasileiras, no qual o renomado autor afirma que A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” – 134 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 palavra que o escritor Audrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como “saudade” e que, no seu entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que “não vale a pena...”. (HOLANDA, 2005, p.110). Essa visão de Sérgio Buarque se perpetuou durante muito tempo na historiografia brasileira, só vindo a ser efetivamente questionada em fins da década de 1960, quando foram publicados os trabalhos de Nestor Goulart Reis Filho e Paulo Santos. Reis Filho, através de seu livro “Evolução Urbana do Brasil”, publicado em 1968, que tem como base sua tese de livre-docência, mas com alguns aperfeiçoamentos alcançados através de críticas e sugestões dos componentes da banca examinadora (dentre os quais estavam Sérgio Buarque e Paulo Santos), questiona muitos dos pontos levantados por Sérgio Buarque. O autor explicita cidades brasileiras nas quais se pode identificar o traçado regular, certamente não tão marcante quanto nas cidades de origem hispânica, mas o suficiente para enfraquecer a idéia de que a urbanização em terras tupiniquins tenha se dado de maneira aleatória, como se fosse obra de semeadores. O predomínio da traça irregular pode ser observado nas vilas e cidades erigidas pelos donatários e pelos colonos, mas não nas chamadas cidades reais, nas quais cabiam exclusivamente à Coroa as tarefas de urbanização, que eram realizadas através do emprego de arquitetos e engenheiros militares, o que revela o cuidado com o planejamento destas cidades. Nessa categoria se enquadram as cidades de Salvador, Rio de Janeiro, São Luís e Belém, que serviam como cabeças da rede urbana. É possível afirmar, portanto, que até meados do século XVII, Portugal aplica no Brasil uma política urbanizadora que consistia em estimular, indiretamente, a formação de vilas nos territórios pertencentes aos donatários e a expensas desses, reservandose as tarefas correspondentes a fundação de centros de controle regional. Deixando a organização espacial daquelas a critério dos donatários e seus representantes, orientados apenas pelas Ordenações, procurou porém exercer uma influência mais direta e com controle mais eficaz sobre as cidades reais, para cuja função e desenvolvimento procurou fornecer, quase sempre, pessoal e recursos. Dotou-as, desse modo, de um quadro urbano que, sob vários aspectos, podia ser comparado com as experiências de maior importância, da mesma época, nas Índias ou com as obras de urbanização colonial de outras nações. (REIS FILHO, 1968, p.73) Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 135 Mesmo na tentativa de explicar as razões da irregularidade no traçado das cidades cuja edificação foi de responsabilidade dos donatários e não da Coroa portuguesa, o autor não recorre a fatores estritamente culturais, discordando da opinião de que congenitamente a ordem seria ignorada pelos portugueses, e deste modo, determinando as questões de urbanização e planejamento das cidades. Ao invés disso, prefere atribuir tal fenômeno a outros motivos, como por exemplo, à posição de segundo plano do meio urbano em relação ao rural. Como a grande maioria dos rendimentos da colônia era canalizada para a produção agro-exportadora, ou seja, para o meio rural, as atividades econômicas urbanas não apresentaram uma produtividade razoável para adquirirem uma dinâmica própria. Assim, apenas a partir de meados do século XVII, e devido a fatores externos, a intensificação da vida urbana passou a despertar um maior interesse no que tange a organização espacial das cidades. Outro motivo no mínimo razoável, e em oposição às colônias hispânicas na América, consiste na necessidade destas em afirmar sua superioridade técnica e cultural perante povos também bastante civilizados – Incas e Astecas – através da arquitetura e de uma simbólica submissão da natureza às vontades do colonizador. Já no caso da América portuguesa, “os principais agentes do processo de colonização não chegam a ter necessidade de empregar a arquitetura como recurso de expressão do poder pois este era indiscutível”. (REIS FILHO, 1968, p.186) Mais um argumento forte de Reis Filho se origina da comparação entre a urbanização levada a cabo pelos portugueses e pelos holandeses em território brasileiro. É notável o fato de que os holandeses, nos trinta anos de sua colonização no Nordeste, mantiveram a mesma política de colonização que os portugueses. Assim como os lusitanos por meio das cidades reais, os holandeses canalizaram suas atenções em um único núcleo, o Recife, e a partir daí geriram indiretamente as demais povoações. Além do mais, o traçado irregular também pode ser observado na Recife holandesa. Usando as palavras do próprio autor, “Colocados em face das mesmas condições, dois tipos de colonizadores comportavam-se de forma semelhante”. (REIS FILHO, 1968, p.185). Juntamente com o fato de que em muitos pontos a política de colonização francesa no Canadá se assemelha à dos portugueses no Brasil, – inclusive se compararmos a traça da cidade de Quebec com a de Salvador – esse argumento tende a enfraquecer as explicações de cunho cultural para a postura colonizadora dos portugueses, uma vez que mostra semelhanças importantes destes com outros colonizadores da América. 136 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 O terceiro autor, do qual iremos tratar agora, é Paulo Santos. Por meio de seu livro “Formação de Cidades no Brasil Colonial”, ele desenvolve uma interpretação sobre o tema completamente diferente das anteriores, na medida em que desenvolve uma argumentação a fim de valorizar o traçado irregular das cidades do Brasil colonial. Enquanto os dois autores supracitados vêem a traça regular com bons olhos, como um sinônimo de progresso, Paulo Santos vem a questionar essa concepção, mostrando suas limitações e carências. Santos prefere denominar as cidades do Brasil Colonial antes como cidades portuguesas do Brasil do que como cidades brasileiras, uma vez que apesar de suas peculiaridades e aspectos regionais, preservam o “cunho inequívoco da mãe pátria”. (SANTOS, 2001, p.17). Assim, para compreendermos a formação de nossas cidades coloniais, devemos antes investigar as origens das cidades portuguesas. As cidades portuguesas denunciam uma dupla origem: a informal da Idade Média e a formalizada da Renascença. Características marcadamente medievais são perceptíveis nas principais cidades portuguesas, bem como nas cidades do Brasil colonial. O caráter predominantemente militar, com uma cidadela no alto com funções de defesa, e uma continuidade da povoação numa região mais baixa, configurando as famosas denominações de cidade alta e cidade baixa, bem como a forte influência da forma do terreno no traçado urbano, são traços medievais que permitem paralelos entre as cidades do Porto e de Salvador, e também entre Lisboa e Rio de Janeiro, muito semelhantes quanto ao traçado e à organização urbana. Vale destacar também a influência da arquitetura muçulmana devido ao domínio mouro em Portugal até o século XII, que contribuiu bastante para o gosto pela irregularidade no traçado das ruas. Afinal, na cidade mourisca, era o alinhamento – ou desalinhamento – das casas que definia o traçado da rua, e não o contrário. Já a cidade do renascimento era marcada pelo resgate dos ideais greco-romanos, o gosto pela ordem geométrica e o domínio do homem sobre a natureza, sendo caracterizada pelo traçado xadrez ou radiocêntrico. Na Espanha as possibilidades foram maiores para o aparecimento dos traçados regulares, talvez por ter sofrido maior influência política e comercial das cidades italianas, principais difusoras dos ideais renascentistas. Em todo caso, não foi na Europa, mas sim na América que a cidade em xadrez do renascimento encontrou o campo propício para o seu surgimento, e como pudemos ver, mais especificamente na América hispânica. Tal tendência pode ser notada no detalhamento das Leyes de India, verdadeiro código legislativo a que, no campo urbanístico, se deve atribuir a unidade dos traçados. Na América portuguesa, a ereção de cidades era feita Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 137 a partir de recomendações das Cartas régias, que em sua maioria indicava a formação de povoações em sítio saudável, com proximidade de água e lenha, que se erguessem a praça principal, o pelourinho, a igreja, prédios públicos, que as ruas fossem largas e retas e ainda que se preservasse área para futura expansão, mas que mesmo assim, não eram nem de perto tão rígidas e detalhadas quanto a legislação espanhola. Entretanto, como dito anteriormente, na opinião do autor, essa relutância do urbanismo ultramarino português em adotar sistemas geométricos demasiado rigorosos não deve ser interpretado com algo ruim. Muito pelo contrário. Para Paulo Santos, a cidade regular nada mais é do que “produto de uma idéia preconcebida com que o projetista pretende, não raro artificiosamente, ordenar, disciplinar, modelar a vida que nela vai ter lugar” (SANTOS, 2001, p.18). Marcada pela secura e pela monotonia, chega a ser uma “regressão urbanística”, pura abstração de espírito, demasiado subjetiva devido à sua predeterminação, “De menor significação, por conseguinte, para o arquiteto e o urbanista do que muitos dos planos informais”. (SANTOS, 2001, p.76). Estes sim deveriam ser mais valorizados, já que são expressões de um traçado logicamente concebido, expressando as condições da vida contemporânea através de uma coerência orgânica e uma unidade de espírito, que permitem uma vida mais aconchegante e familiar aos moradores. O principal argumento do autor em defesa das cidades informais é o de que justamente as nossas cidades aparentemente mais caóticas, como Ouro Preto, São João Del Rei, Mariana, Tiradentes e tantas outras, foram elevadas à categoria de monumentos nacionais, “expressão da suma de nossa cultura artística, aquilo de que mais nos orgulhamos de ter feito, o sulco maior deixado no tempo pela nossa sensibilidade e nosso espírito”. (SANTOS, 2001, p.18); E mais: É inútil procurar explicar, fora do plano urbanístico, a sedução que Salvador, Olinda, Ouro Preto, Parati, e tantas e tantas outras cidades do Brasil Colonial nos inspiram, só porque elas não se enquadram nos tecnicismos urbanísticos deste século. Tais tecnicismos estão estabilizados na consciência do homem do nosso tempo, e não são válidos para o aferimento do que fizeram os nossos maiores. Se aquelas cidades agradam tanto é porque o nosso instinto e o nosso bom senso, mais que os nossos conhecimentos acadêmicos, nos dizem que as soluções delas são boas. E teremos muito a aprender estudando-as, não para copiá-las, é claro, mas para corrigir as distorções que o exagerado tecnicismo da Idade Industrial tem gerado em nós. (SANTOS, 2001, p.76). 138 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Deste modo, pode-se notar que o que o autor propõe é uma quebra de paradigma – uma nova maneira de pensar e julgar as cidades de plano informal, que deixe de lado os tecnicismos e os preconceitos de nosso pensamento pseudo-racional. A análise e comparação das obras desses três clássicos da história da urbanização no Brasil colonial nos dão uma ampla noção de como se deu esse processo que durou séculos, assim como nos possibilita perceber como um mesmo tema pode ser abordado sob as mais diferentes perspectivas, nos mostrando como a constante renovação da historiografia torna quase impossível o esgotamento de um assunto, que a qualquer momento pode ser retomado sob um novo ângulo e explorado nos seus mais variados desdobramentos. GODOY, Marcos Felipe. The trace of the Colonial Brazil’s citys in the light of brazilian historiograpy. ABSTRACT: This article aims at a comparative analysis of bibliography relating to the characteristics of the build of cities of colonial America Portuguese and Spanish, more specifically as regards it trace, highlighting the convergent views and divergent between Brazilian authors of reference in the matter, in order to obtain a wider vision about the phenomenon of urbanization in America colonial, with emphasis in Brazil. KEY WORDS: Urbanization; Colonial Brazil; Bibliographic analysis; Spanish America. REFERÊNCIAS: FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em Nome do Rei. Uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Editora Garamond, 1999. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Ed Companhia das Letras, 26° edição, 2005. REIS FILHO, Nestor Goulart. Evolução Urbana do Brasil. Editora da Universidade de São Paulo, 1968. SANTOS, Paulo Ferreira. Formação de Cidades no Brasil Colonial. Editora UFRJ, 2001. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 139 RESGATANDO MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: VIDA, OBRA E CONTRIBUIÇÕES PARA FILOSOFIA E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA. Olinda Cristina Pacheco SCALABRIN* RESUMO: Mário Ferreira dos Santos foi um dos maiores filósofos brasileiros e deixou contribuições valiosíssimas para a filosofia e historiografia nacional, mas não foi devidamente reconhecido enquanto vivo e nem após sua morte em 1968. O objetivo desse trabalho é traçar basicamente alguns aspectos fundamentais da biografia desse autor e principalmente demonstrar sua interpretação da História e valorização da historiografia; destacando a importância de haverem maiores estudos sobre suas produções no meio intelectual, uma vez que o autor realiza análises fundamentais e que auxiliariam muito na historiografia, sociologia e filosofia não só nacionais como internacionais. PALAVRAS CHAVE: Mário Ferreira dos Santos, filósofo, Historiografia brasileira; História concreta. INTRODUÇÃO Mário Ferreira dos Santos nasceu em 3 de janeiro de 1907 na cidade de Tiête (São Paulo), ainda criança mudou-se com seus pais para Pelotas (Rio Grande do Sul) onde viveu grande parte de sua vida. Estudou diretamente com jesuítas e destes recebeu influência na construção de seu pensamento, principalmente sobre a filosofia positiva1 que seria o fio condutor de sua própria produção filosófica. Ainda jovem participava de muitas peças de teatro como ator e escritor. Em 1930 bacharelou-se, com louvor, em “Direito e Ciências Sociais” pela Faculdade de Direito de Porto Alegre. Trabalhou como jornalista em alguns jornais e periódicos de Pelotas, com publicações de artigos nos jornais “Diário Popular” (1928), foi diretor do jornal “A Opinião Pública” (1929), teve breve participação no jornal “Clímax” Graduanda em História na Unesp – Campus Franca. Sob a orientação do Profº Drº Pedro Geraldo Tosi. Bolsista PET/MEC/ SESu. 1 “Com os jesuítas, desde o início, recebi a orientação que me aproximou da filosofia positiva e dela fiz a espinha dorsal da estrutura filosófica que hoje tenho: a filosofia positiva e concreta; positiva no sentido de filosofia que parte e permanece na afirmação ao que constrói, que pertence a todos os grandes ciclos culturais da humanidade, mas que encontrou o seu desenvolvimento máximo no pensamento grego, e a sua coroação no pensamento ocidental, sob as linhas, sem dúvida, criadoras e analíticas da Escolástica (SANTOS, auto-retrato em Rumos da Filosofia Atual no Brasil, 1976 pp.407-427). * Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 141 (1939), colaborou no órgão “Movimento” (1940) e, no final de sua carreira como jornalista participou com suas publicações no “Diário de Notícias” e “Correio do Povo”. É importante destacar algumas preocupações e perspectivas de Mário constantemente presentes em seus artigos, em que tratava desde questões políticas (mesmo estando inserido no árduo contexto histórico da Segunda Guerra Mundial, foi capaz de analisá-la com eficácia; o que para muitos é demonstração de que, mesmo em análises históricas mais complexas, mostrava boa capacidade para diagnosticar os problemas e tratar dos conflitos de maneira muito clara, com grande conhecimento histórico, alertando o povo brasileiro sobre os perigos do Nazismo2), econômicas – tanto nacionais quanto mundiais – até questões sociais e culturais, sempre acreditando na superação humana, no seu progresso e na sua capacidade de buscar uma civilização mais avançada, distinta pelo conhecimento e pelo amor à verdade. O AUTOR EM QUESTÃO Mário Ferreira dos Santos produziu uma surpreendente quantidade de publicações que são incomparavelmente enriquecedoras à intelectualidade brasileira. Sendo admirador do filósofo Friedrich Nietzsche, foi contratado pela Livraria do Globo para traduzir inúmeras obras, servindo inclusive de grande referência para os para estudiosos deste filósofo.3 Além de várias outras traduções de obras clássicas, publicou quase uma centena de livros e, mesmo tendo dificuldade no começo devido ao “desinteresse” dos brasileiros pela Filosofia, não desistiu de seu objetivo “em 1953 fundou a Livraria e Editora Logos e iniciava-se, assim, o plano editorial, que contou com obras não só de cultura geral, mas principalmente Filosofia” (SANTOS, 2001, p.14) sem contar as edições que não conseguiu terminar durante sua vida, que foram editadas por outros autores ou ainda não foram publicadas. Criou alguns pseudônimos para disseminar suas idéias internacionalmente – uma “O mundo está ameaçado pelos bárbaros do século XX que são os totalizadores que impõe uma só ideologia, uma só vontade, um só chefe, uma só raça de senhores. Se a guerra de 14 foi uma guerra de imperialistas, está é uma guerra liquidadora de imperialistas.” [...] O nazismo não pode ser vencido apenas materialmente, precisa ser aniquilado, porque não se vence uma fatalidade ao deixá-la prosseguir seu destino. O nazismo não é apenas uma ideologia. Toda a simbologia é fanática. Há em todo nazismo uma preparação para a morte. Impossível para Alemanha pôr-se na defensiva. Hitler disse: ‘Lutaremos até o último homem’. A Alemanha sabe que não pode esperar contemplação dos aliados. Ela tem, porém, esperança numa possível desunião entre os aliados.” (SANTOS, Yolanda Lhullier dos, 2001, pp.9-10) 3 Id, 2001, p.11 2 142 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 vez que a produção intelectual brasileira não era tão valorizada – e redigiu enciclopédias e dicionários de Filosofia baseados em definições clássicas, incrementadas com seu claro e surpreendente domínio na filosofia, sociologia, História e axiomas.4 Na década de 50, mudou-se para São Paulo onde sua vida como intelectual tornou-se ainda mais dinâmica e seus trabalhos se intensificaram cada vez mais. Em 1963, fundou uma editora chamada Matese, que em grego significa “instrução”, nome dado devido a influência que sofreu das idéias de Pitágoras (que seriam explanadas posteriormente em suas obras), as quais foram fundamentais para o desenvolvimento de seu pensamento. Ministrou cursos dos mais variados assuntos tendo muitos alunos, tanto particulares quanto os que acompanhavam suas aulas em grupos e/ou através de suas conferências, como, por exemplo, a partir do “Instituto Cultural Logos”, também de sua fundação em 1967 e que matinha cursos orais e por correspondência: Estes, englobados sob o título de Cultura e Filosofia Geral eram na época uma novidade, pois os poucos que haviam, vinham diretamente dos Estados Unidos ou da Europa. Não iam, evidentemente, ao encontro às necessidades do nosso povo. Isto o levou a preparar, de forma cuidadosa, o texto procurando expor a matéria de forma acessível sem rebaixar o conteúdo.Bastante solicitados, abrangiam uma gama bem ampla, indo de Língua Portuguesa, História do Brasil, História Geral, Geografia Geral e do Brasil, Ciências Físicas e Naturais, Matemática, Cultura, Higiene, desdobrado para Psicologia Teórica, Psicologia Prática, Filosofia Geral, Lógica Geral, Dialética, Visão Geral do Mundo (Cosmovisão) que, em grande parte, foram editados em livros que vieram a constituir a Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais. As apostilas, enviadas para todo o território nacional, eram divulgadas por cada um dos alunos a amigos interessados e em anúncios de jornais e revistas. (SANTOS, Yolanda Lhullier; GALVÃO Nadiejda Santos Nunes. “Monografia sobre Mário Ferreira dos Santos”, 2001, p. 16). Além disso, foi introdutor do sistema de livros vendidos a crédito, já que não aceitava ajuda de nenhum meio publicitário para divulgar suas obras. 4 “Num sentido mais preciso chamam-se axiomas as proposições que constituem uma regra geral do pensamento lógico, em oposição aos postulados, que são concernentes uma matéria especial.” (SANTOS Mário Ferreira,1963, p.202) Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 143 A obra que impulsionou o sucesso de suas publicações foi o livro intitulado “Curso de Oratória e Retórica” 5 com onze edições, compulsivamente procurado por intelectuais, empresários e políticos que buscavam a inspiração tão bem representada por Mário em seus discursos fluentes e argumentativos, magnetizando admiradores e mesmo críticos (por se espantarem com tamanho talento e criatividade do autor). “Há muitas pessoas que admiram que eu sendo um filósofo, que trate de matérias que pertencem a tantas e diversas disciplinas, mas todas essas disciplinas pertencem a Filosofia.” (SANTOS, 2001, p.16) PENSAMENTO E OBRA: PERSPECTIVAS E INFLUÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DE SUAS PRODUÇÕES. As concepções de Mário eram baseadas em princípios libertários, nos quais o homem é um ser livre para escolher e captar as possibilidades formadoras de seu próprio caminho, alcançando assim os fins que lhe são benéficos. Em todas as suas obras, antes de começar a desdobrar seu pensamento e explicar suas conclusões, definia a origem dos termos que usava e quais os conceitos que deveriam ser entendidos pelos leitores. Esse método, essencial para qualquer estudo que se proponha a tratar da compreensão da sociedade, é voltado tanto às ciências humanas e filosóficas quanto às exatas, já que sem essa premissa as argumentações e constatações tornam-se superficiais, sem embasamento lógico e ontológico. Partimos do seguinte: aceitamos a frase de Aristóteles, a única autoridade é a demonstração, quer dizer, enquanto não de demonstra apoditicamente um juízo também exclusivo, nós não alcançamos o fim da nossa pesquisa. Se isso é possível ou não é que se discute, nós dizemos que é possível e provamos. (SANTOS, Yolanda Lhullier; GALVÃO Nadiejda Santos Nunes. “Monografia sobre Mário Ferreira dos Santos”, 2001, p. 19). Mário demonstra sua preocupação com o rumo da intelectualidade e o modo como o pensamento estava se moldando principalmente no século XX. Essa preocupação se reflete em temas constantemente retomados em suas obras. O que temos que fazer hoje é construir. Na realidade, o espírito destrutivo, o demoníaco, vence em quase todos os setores desse período histórico que vivemos, e sobretudo, neste século, 5 Livro publicado em 1959 pela editora Logos. 144 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 que talvez esteja cognominado pelos vindouros “século da técnica e da ignorância”, porque se há nele um aspecto positivo, que é o progresso da técnica, que chega até as raias da destruição, a ignorância aumenta desesperadamente, alcançando limites que a imaginação humana nem de leve poderia prever. Mas o que é mais assombroso é a autosuficiência do ignorante, o pedantismo da falsa cultura, a erudição sem profundidade, a valorização da memória mecânica, do saber de requintes superficiais, a improvisação das soluções já refutadas, a revivescência de velhos erros rebatidos e apresentados com novas roupagens. Tudo isso é de espantar (SANTOS, 1959, prefácio) Em suas obras, o filósofo brasileiro realizava confrontos dialéticos, debatendo com múltiplas correntes de pensamento – inclusive divergindo essencialmente nos pontos fundamentais de outras perspectivas históricas como, por exemplo, o materialismo histórico. Definia os princípios básicos dessas correntes para depois promover um debate que demonstrasse suas contradições e deficiências ou suas representações convergentes com a realidade, e a partir daí articulava quais delas mais se aproximam da realidade e deveriam servir de inspiração para o pensamento e compreensão da sociedade. A base de seu pensamento é uma curiosa síntese de filosofia pitagórica, tomismo-aristotélico6 e, em política, de moderadas tendências anarquistas. Mário publicou três livros que são caros à historiografia brasileira, nos quais define o conceito de História e sua importância, fazendo-o não somente para as ciências humanas como também para outras áreas do saber. HISTÓRIA CONCRETA: PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO HISTORIOGRÁFICO. E Após um de seus cursos realizado em 1950, com o nome de “Filosofia e História da Cultura”, Mário Ferreira resolveu publicar as aulas datilografadas para que servissem de introdução ao estudo da História. O livro, que foi lançado em três volumes, foi um dos grandes responsáveis no Brasil em esclarecer o conceito de História e de Cultura com a finalidade de analisar os fatos e interpretar seus significados; sendo que é a partir dessa perspectiva que se desdobrarão as suas próximas considerações acerca da 6 O pitagorismo dele não é matemático, mas sim uma síntese de vários estudos feitos dos pitagóricos, com uma série de doutrinas epistemológicas. Aristotelismo-tomismo é a corrente de Santo Tomás que usava da filosofia aristotélica em bases cristãs da doutrina católica, principalmente de Santos Agostinho, Boécio e Santo Abelardo. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 145 História e da sua orientação para novos estudos do mesmo gênero. Em linhas gerais, sua pretensão ao escrever o livro era “um estudo sistemático e cuidadoso da História, no intuito de permitir captar-se o significado dos fatos, e não apenas ater-se à descrição dos aconteci-mentos.” (SANTOS, 1950, p.13). Seu objetivo é proporcionar embasamento para uma visão mais nítida, positiva e construtiva do conceito de História. Segundo o autor, para um fato ser considerado histórico, ele precisa ultrapassar o campo do pessoal e ter resultados sobre um grupo ou coletividade - já que não é possível individualizar a análise diante de tamanha complexidade. Dentro dessa análise, Santos compara, por exemplo, a visão de História entre gregos e egípcios para demonstrar que a visão de História varia conforme a visão de tempo de cada sociedade, uma vez que este é o campo dos fenômenos históricos. Nesse caso, os gregos tinham uma visão prática da História, considerando aquilo que estava relacionado às suas próprias experiências e as heranças de seus antepassados através do mito, não sabiam diferenciar com total argúcia o mito da realidade e a influência dos processos históricos na formação de sua sociedade. Dessa maneira, não há como existir uma noção profunda de tempo e, conseqüentemente, não a desenvolveram. Assim, as deficiências gregas notam-se especialmente sobre a História (a qual não era percebida por eles como uma totalidade); diferentemente dos egípcios que entendiam o tempo com mais profundidade - o que refletiu diretamente nos escritos deixados pelos mesmos, possuindo especificidades de datas, dinastias e características de cada um dos seus tempos. Na tentativa de buscar uma resposta e encontrar uma essência para a História, o autor diz: O histórico não se repete, porque a perspectiva histórica é conseqüência da posição que tomamos, de cujo ângulo visualizamos apenas o aspecto irreversível dos fatos. Cada fato que se dá, é novo e único em si mesmo. Mas, cada fato também repete algo novo dos fatos passados, porque, do contrário, todo o existir seria de uma diferença absoluta, e não nos permitiria o conhecimento. Conhecemos porque há aspectos que se repetem, e é sobre o repetível que construímos a ciência, construímos um saber. Mas o fato histórico, como tempo, é irrepetível, porque o minuto que passa, não retorna; é sucedido, é substituído. Sabemos que Napoleão Bonaparte não será repetido, não retorna, mas sabemos, no entanto, que as condições que geram um Bonaparte, o bonapartismo, sob certos aspectos, se repetem. (SANTOS, 1950, p.17) 146 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Portanto, o que se repete é o que permite conhecer o fato que já se deu, é a imagem que se tem deles. O que retorna são as notas, as reproduções que retratam os acontecimentos e permitem investigações e interpretações futuras. Assim, é possível distinguir entre a História e a Sociologia, uma vez que esta permanece mais ligada às imagens, às reproduções e às características que se repetem e aquela aos fatos como ocorreram, seu contexto e suas principais conseqüências. A História é o produzir-se, porque é dinâmica, é tempo. O que produziu, o que ficou, monumentos, arte realizada, obras em geral, são o produto, os quais nos permitem, através deles, captar algo daquele produzir-se. (SANTOS, 1950, p.18) A linguagem que o autor utiliza para tratar do produto e do produzir-se são os conceitos de intensidade e extensidade. O produto seria o resultado de ações de determinado período e que foram projetados de acordo com a memória e/ou o material do homem em seu tempo. Neste caso, tem-se a extensidade, “que traz a marca da histórica, o que pertence ao estudo da História, à historiografia, à descrição dos fatos.” (SANTOS, 1950, p.18) A intensidade seria o fato em si mesmo, aquele que se realizou, que em determinada época aconteceu e, como na própria definição de fato histórico dado por Mário Ferreira, foi significativo a uma coletividade, grupo, sociedade influenciando seu desenvolvimento e sua caracterização e o de épocas procedentes. Já a extensidade, sucintamente, é o que está externado, está "para fora", o que se pode medir, quantificar, o que é produzido dentro de um espaço. Intensidade é o que está interiorizado, está voltado "para dentro", que não é possível medir, mas apenas apresentar em graus, qualitativos e temporais, dentro do que se sucede. Percebe-se aí a semelhança entre o extenso e o espaço (o produto) e o intenso e o tempo (o produzir-se). Quem vê a História apenas extensivamente, como objetivação do produto, tende a ver mecanicamente os fatos históricos, a atualizar a causalidade rígida, a sistematizar o acontecido. Quem vê apenas como produzir-se, aponta-lhe a direção, como se fosse uma vida, como se fosse uma estrutura biológica, atualizando apenas o lado temporal. O estudo da História, para ser um estudo proveitoso, e de frutos benéficos, não pode afastar-se de uma concepção que englobe ambos os aspectos, que permita a formação de uma visão concreta, conexionando os aspectos meramente históricos, como irrepetíveis, com as realizações, as obras feitas, as quais servem para indicar um Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 147 novo caminho capaz de permitir o vislumbrar dos aspectos sociológicos, para uma visão filosófica e histórica da cultura humana em geral, e da História em particular. [...] Entretanto, não se pense que aconselhamos uma posição intermediária. Tal não seria aproveitável, como raramente é aproveitável todo o meio termo teórico. É preciso distinguir os extremos, para pô-los um em face do outro e tornaram-se, assim, produtivos de algo superior, pela constatação das diferenças, ou pela superação dos extremos, por uma concepção superior analogante. (SANTOS, 1950, p.19) Nesse mesmo trecho, percebem-se muitos aspectos refentes aos princípios do autor. Além desses instrumentos – de extensidade e intensidade – alguns outros são fundamentais, através de uma análise concreta, para encontrar nexos na História, interpretando os interesses, pensamentos e pretensões dos homens que moldaram suas atitudes e suas interferências no processo histórico. Dentre outros instrumentos que Mário Ferreira dos Santos utiliza para desvendar os comportamentos humanos, encontram-se especialmente três: Ato e Potência (conceitos complementares emprestados da filosofia tomístico-aristotélica) que serviriam para apreensão da História e das possibilidades humanas de um povo e de uma era, para entender aquilo que foram e aquilo que poderiam ter sido. Em segundo lugar, Variante e Invariante, no que se refere aos princípios básicos que não variam (como, por exemplo, o espaço) e os que variam conforme as características de cada sociedade e, por fim, Juízo de Existência e Juízo de Valor, motor do pensamento e das atitudes dos homens, que ainda devem ser avaliados para entender, por exemplo, porque uma sociedade se desinteressa por um tema, enquanto outra o considera como importantíssimo e fundamental. Esses são apenas alguns exemplos dos vários mecanismos que o autor apresenta para orientar o estudo da História. Por meio destes, Mário faz uma classificação da História no intuito de abarcar suas principais vertentes, para isso esclarece a “Filosofia da História”, ou seja, a base e a essência da História, seus fundamentos teóricos e suas representações. Dessa forma, utiliza os conceitos de “Historiologia” (analogias patentes dos fatos históricos), “Historicismo” (estabelecimento de nexo teórico sobre o desenvolver dos acontecimentos) “História cronológica” (narração dos fatos históricos desenrolados no passado, evitando impor valores e interpretações) entre outros. 7 7 SANTOS, Mário Ferreira dos. “Filosofia e História da Cultura”, p.47 148 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Não há dúvida que a análise e o desdobrar do pensamento de Mário em relação a essas definições está muito além da exposição dessas páginas. Tenciona-se aqui apresentar uma breve introdução às principais perspectivas de sua obra em relação à importância da História, longe de conseguir abranger toda a complexidade, argúcia e multiplicidade dos estudos e conclusões do autor. CONSIDERAÇÕES FINAIS Mário demonstra a importância do estudo da História, sua relação entre presente, passado e futuro e sua totalidade como um saber que engloba todas as outras áreas do conhecimento, apresentando a análise ontológica do histórico e sua fenomenologia para depois concluir em que bases se constrói a historiografia e como sua dinâmica deve ser compreendida e estudada. Assim se pode afirmar que é possível a constituição de uma ciência da História. Não uma ciência do campo meramente repetível, mas na qual o produto e as notas correspondentes [...]nos permitam estabelecer um estudo corrente da História. (SANTOS, 1950, p.52) Com mais de um milhão de obras vendidas, deixou como herança à intelectualidade brasileira. Alguns filósofos e pesquisadores ainda procuram estudar o pensamento e as produções deixadas em obras publicadas, mas essas abordagens ainda estão longe de ser suficientes para a difusão na academia, literatura e sociedade brasileira de tamanho talento, criatividade e inteligência. Mário Ferreira dos Santos morreu em 11 de abril de 1968, “o filósofo pediu que os familiares o erguessem. Morrer deitado, afirmou, era indigno de um homem. Morreu de pé, recitando as palavras do Pai-Nosso8.” SCALABRIN, Olinda Cristina Pacheco. RESCUING MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: life, work and contribution to the Brazilian Histotiography and Philosophy ABSTRACT: Mário Ferreira dos Santos was one of the most brilliant Brazilian philosophers and he left valuable contributions to the national philosophy and historiography, but was not fully recognized during his lifetime and nor after his death in 1968. The aim of this work is basically to draw some fundamental biographical aspects of the author and mainly to demonstrate his interpretation of History and to appreciate his historiography. Highlight the importance of having larger studies of his intellectual productions, considering that the author develops fundamental analysis that can help a lot 8 SANTOS, Mário Ferreira. Prefácio em “Sabedoria das Leis eternas”, 2001, p.16 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 149 the improvement of the historiography, sociology and philosophy not only national and international. KEYWORDS: Mário Ferreira dos Santos; philosophers; Brazilian historiography; concret history. REFERÊNCIAS LADUSANS, Pe Stanislaus. “Rumos da Filosofia Atual no Brasil” São Paulo, Editora Loyola, 1976 SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. São Paulo, Editora Matese, 1963. ______. Filosofia e História da Cultura, I Volume. São Paulo, Livraria e Editora LOGOS , 1950. ______. “Métodos Lógicos e Dialéticos”, São Paulo, Editora LOGOS, 1959. ______. “Sabedoria das Leis eternas”, São Paulo, Editora Realizações, 2001. SANTOS, Yolanda Lhullier dos; GALVÃO Nadiejda Santos Nunes. “Monografia sobre Mário Ferreira dos Santos”. São Paulo, 2001. 150 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 BIPARTITE: A PRESERVAÇÃO DO RELACIONAMENTO ENTRE A IGREJA E O ESTADO BRASILEIRO NA DITADURA MILITAR Ricardo Augusto Aidar ABIB1 RESUMO: A Bipartite foi uma série de encontros secretos realizados entre a Igreja Católica e o Governo Militar brasileiro, entre os anos de 1970 a 1974. A finalidade dessas reuniões era garantir o relacionamento político entre a Igreja e o Estado, sob um contexto de iminente ruptura entre ambas marcado pela divergência ideológica. Este artigo tem como objetivo analisar a Bipartite, principalmente no que se refere à sua formação e aos principais assuntos e resoluções que apareceram durante as reuniões. O estudo da Bipartite ajuda não só a entender um período conturbado, marcado pela repressão da política instituída, mas também contribui para o entendimento da resolução do conflito entre a Igreja e o Estado e para a reinterpretação do processo de redemocratização brasileira. PALAVRAS - CHAVE: Ditadura Militar; Bipartite. O Brasil, desde sua formação até os dias contemporâneos, contou com a participação da Igreja Católica. Seja por meio de uma relação institucionalizada, através do padroado, durante a Colônia e o Império, seja através da concordata moral iniciada com a república. Entendimentos e crises marcaram o relacionamento entre ambas as instituições durante estes séculos. Durante este tempo, o relacionamento de cooperação foi predominante, todavia no período da ditadura militar (1964 – 1985) a situação foi diferente. [...] uma grande quantidade de padres, freiras, bispos e militantes leigos sofreu maus-tratos por parte das forças de segurança. Sete clérigos foram mortos. Foi a pior crise entre a Igreja e o Estado na história do país [...] (SERBIN, 2001, p.48). Esta situação limite entre as duas instituições foi determinada pela diferença de posicionamento que cada uma adquiriu. A nova autocompreensão da Igreja se concretizou com a realização do Concílio Vaticano II (1962-1965). A Santa Sé mudava de posição. Outrora, priorizava as classes dominantes em detrimento dos setores populares "[...] A presença da Igreja entre eles [...] quase que apenas uma obra de filantropia 1 Aluno da graduação em História da Unesp – Campus de Franca sob a orientação do Prof. Dr. Ivan Manoel Aparecido. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 151 [...]" (ALVES, 1979, p.40). Neste período, que se iniciou em 1800 e avançou praticamente por dois séculos, a autocompreensão que a Igreja tinha de si mesma fora denominada ultramontantismo e suas principais características eram a rejeição ao mundo moderno e o desejo de uma aproximação ao modelo da Idade Média. Com a finalidade de recuperar sua influência a Igreja fez algumas adaptações. A revolução da Igreja [...] começou depois da Segunda Guerra Mundial. As rápidas mudanças socioeconômicas, a ameaça do comunismo, o crescimento do protestantismo e das religiões afro-brasileiras e a assimilação de inovações teológicas e filosóficas européias impulsionaram a mudança (SERBIN, 2001, p.98). Se anteriormente preocupava-se sobretudo com o comportamento moral, gradualmente passava a se pronunciar sobre a questão social.Pronunciamentos eram feitos através das encíclicas papais, sobre o mundo do trabalho (LEÃO XIII, 1981), sobre os direitos humanos (JOÃO XXIII, 1963), sobre a justiça entre os relacionamentos de pessoas e países como meio de desenvolvimento econômico (JOÃO XXIII,1961). Com a realização do Vaticano II, esta nova atitude preocupada não só com o espiritual do homem, mas também com suas necessidades materiais, tornouse a nova diretriz da Igreja Católica. Muitas questões relativas ao homem foram abordadas: os direitos humanos foram proclamados como universais e invioláveis, devendo ser acessíveis a todos e respeitados por qualquer regime político vigente; a justiça precisaria ser desenvolvida; o diálogo não deveria excluir ninguém, nem aqueles que se opunham à Igreja e a perseguiam dos mais diversos modos. Questões políticas também apareceram: o capitalismo foi condenado pela busca desenfreada por lucro, pelos trustes, pelos latifúndios improdutivos; a autoridade pública deveria ser voltada para o bem comum, não usada de forma despótica; qualquer governo que impedisse a liberdade religiosa e civil e que multiplicasse o crime político deveria ser criticado. Estas e outras mudanças consolidaram a nova autocompreensão da Santa Sé. A nova posição da Igreja com o Concílio Vaticano II, porém não foi unânime e não teve uma total adesão dos religiosos no Brasil, pois se tratou de um fenômeno de transição de um processo histórico. Contudo uma boa parcela a aderiu e desempenhou destacada atuação. A ação entre leigos e eclesiásticos acontecia no campo da educação de base, nos setores urbanos e rurais, nas universidades, entre outros. Com a instauração da ditadura 152 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 militar, esses religiosos engajados socialmente foram acusados de subversivos e perseguidos pelos militares, no poder. A sindicalização rural foi considerada subversiva e os que e a ela se entregavam passaram a ser perseguidos. O sindicalismo urbano sofreu a intervenção da policia. A educação de base foi esquecida. Os que elaboraram suas técnicas e executaram seus trabalhos passaram a ser fichados pelas delegacias de ordem política e social. Muitos dos cristãos que norteavam sua atividade política pelos ensinamentos papais tiveram seus direitos de cidadania suspensos e seus mandatos cassados. (ALVES, 1968, p.58) O governo, encabeçado pelos militares, agiu desta forma devido ao novo posicionamento que adquiriu. Sob um contexto de guerra fria e dos perigos que a revolução cubana poderia influenciar no Brasil, os militares tinham um posicionamento contrario ao socialismo e consideravam qualquer manifestação social como subversiva e parte da tática comunista internacional. Destarte, a Igreja era a principal atingida devido ao seu posicionamento social. O ano de 1968 representou um aprofundamento das posições ideológicas realizadas tanto pelo Estado quanto pela Igreja. O regime endureceu seu governo com o AI (Ato Institucional) 5. Deste modo o presidente passava a ter o direito de cancelar habeas-corpus, limitar garantias individuais, decretar o recesso do Congresso, assembléias estaduais e câmaras municipais, entre outras pesadas medidas. Posteriormente surgiram a Oban (Operação Bandeirantes) e o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna) objetivando auxiliar o governo na repressão. Com o decreto lei 898 de 29 de setembro de 69 nasceu a ‘lei de segurança nacional’, com o intuito de preservar a segurança nacional e a ordem pública. A Igreja, por sua vez, com o CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano) realizado em Medellín, impulsionou a aceleração das transformações do Concilio Vaticano II na América Latina. Á medida que as leis de segurança tornavam-se mais rígidas, A Igreja adquiria maior importância. Isso se deu porque "No auge da repressão, a principal oposição institucional capaz de atuar com alguma independência e eficácia é a Igreja Católica [...]" (COSTA E COUTO, 1999, p.118). Ela criticava os abusos do regime nas missas, procissões, panfletos e declarações à imprensa. O governo por sua vez, prendia, torturava, exilava, censurava, caluniava e invadia sedes de grupos religiosos. O atrito entre as Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 153 duas instituições aumentava intensificadamente. A Lei de Segurança Nacional do Governo chocava-se com a doutrina social da Igreja, e a crescente atuação que esta passou a ter, principalmente depois do Concílio Vaticano II e do CELAM, em Medellín. Quanto mais os ataques eram feitos à hierarquia católica, mais ela ganhava coesão. A situação atingiu um ponto em que os ataques deferidos pelo governo aos religiosos não incidiam apenas nestes, mas na própria instituição da Igreja Católica. O estopim do conflito aconteceu devido ao incidente no JOCIBRADES (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social). No final de 1970, a sede da JOC( Juventude Operária Católica) no Rio de Janeiro, dirigida por jesuítas e que realizava o treinamento de joscistas e outros militantes de movimentos populares com a finalidade de implementação do movimento da Igreja por justiça social, foi invadida pelo Exército. Vários religiosos, entre eles o padre Pedro Belisário Velloso Rebelo e o padre Ormindo Viveiros de Castro, foram maltratados. O secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Dom Aloísio Lorscheider ficou detido e incomunicável por quatro horas. Este ataque direto à hierarquia católica unificou os protestos e denúncias realizadas pela Igreja Católica. A comissão central da CNBB denunciou o ataque e os cinco cardeais do país protestaram através de uma carta ao presidente Médici. No Brasil, poucas pessoas souberam do incidente devido à censura, mas no exterior os protestos foram maiores e quase provocaram um desastre diplomático para o regime. Até o Vaticano, pela Radio Vaticano, criticou as medidas repressivas utilizadas pelo governo. A relação entre as duas maiores instituições do país estava complicada e cada vez mais ameaçada. Nesta situação de instabilidade, Tarcísio Padilha desempenhou um importante papel de amenização do conflito. Durante o regime militar, participou do governo como membro do conselho federal de educação e presidiu a comissão especial para educação moral e cívica, contudo apresentava uma postura diferente, pois desejava a abertura do regime. Outra característica significativa era sua notoriedade no meio religioso, sendo um dos mais importantes educadores católicos e integrante do relevante centro D. Vital, aonde angariou contatos diversos. Isto fazia com que fosse contrário ao atrito e afastamento entre as duas instituições. O incidente IBRADES – JOC fez com que conhecesse duas respeitáveis figuras: Antônio Carlos da Silva Muricy e Candido Mendes de Almeida, ambos apesar de divergências ideológicas, compartilhavam a preocupação do bem estar da Igreja com o Estado. Um encontro foi marcado entre eles e ainda contou com a presença do diretor do IBRADES e o agente de segurança que liderou o ataque aos religiosos. Foram propostos outros 154 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 encontro. O general Muricy desejava tais, pois respeitava a Igreja. Para conseguir esta aprovação aproveitou-se de sua influencia no governo. Não obstante a resistência de alguns, como Fontoura e Figueiredo, Muricy conseguiu a aprovação do presidente Médici para futuras reuniões entre membros do Governo e da Igreja. Os encontros foram denominados Bipartite. Ambos os grupos tinham um interesse nestes encontros, pois As duas mais importantes instituições brasileiras precisavam uma da outra. Os generais queriam a benção dos bispos ao seu regime, e os prelados queriam a garantia dos privilégios e do espaço doutrinal concedidos à igreja (SERBIN, 2001, p.35). O sigilo era uma marca das reuniões, já que ninguém poderia saber que o presidente Médici havia resolvido dialogar com àqueles que apareciam como uma ameaça à sua política. Por tal motivo, os encontros não tinham local nem data fixa. Outra característica era que o diálogo substituía o clima hostil provocado pela guerra fria e pela ditadura. Ambos os grupos apresentavam suas críticas e tentavam se fazer compreendidos. Havia um respeito mútuo e ambos os lados tentavam definir novas regras para uma coexistência pacifica. Apesar da cordialidade, nenhum grupo hesitou em atacar a posição do outro. As críticas eram permitidas desde que feitas apenas durante as reuniões. O grupo governamental era composto por membros do exército e da marinha, e contava com membros de importantes setores ideológicospolíticos. Alguns nomes importantes, além do general Muricy, foram o general Paula Couto,o coronel Omar Diógenes de Carvalho e Tarcisio Padilha.O grupo religioso estava dividido e era heterogêneo,o que refletia a divisão na Igreja pós-Vaticano II. Contava com bispos ligados a militares, outros mais progressistas moderados, chegou até a contar com a participação do núncio papal. Entre outros, faziam parte deste grupo Candido Mendes, Dom Eugenio Sales, Dom Aloísio Lorscheider e Dom Avelar Brandão. Variados assuntos eram tratados durante as reuniões. Uma notável discussão que marcou os encontros foi quanto ao desenvolvimento econômico. O grupo religioso acreditava que tal desenvolvimento deveria ser pautado em uma justiça social, ou seja, a Igreja desejava que concomitantemente ao desenvolvimento econômico fosse preservado o direito humano e democrático, pois só desta maneira seria possível uma sociedade igualitária. Por sua vez os militares se opunham. Aquilo que representasse perigo ao status quo ou implicasse em criticas ao governo era denunciado como subversão. Referente a este assunto, as declarações do Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 155 CELAM em Medellín, foram debatidas na tentativa de uma explicação ideológica por parte de cada grupo. O documento produzido nesta ocasião não foi apenas religioso, mas político e encorajava a população para uma conscientização política e para a ação, ademais criticava o subdesenvolvimento da América Latina e seu modelo nacional desenvolvimentista, bem como a divida externa e a ação de empresas multinacionais. O grupo militar acusava muitos dos conceitos utilizados neste documento de marxistas, pois fomentavam a luta de classes,induzia ao afastamento dos Estados Unidos e consequentemente à aproximação de Moscou. O grupo militar criticava os jargões comunistas utilizados, como burguesia e opressão. Argumentavam que a Igreja desconhecia o processo revolucionário dos comunistas e seu movimento subversivo. A Bipartite proporcionava a possibilidade de discutir um tema que causava confrontos entre as duas instituições. Outro tema constante na Bipartite era relativo aos direitos humanos. A Igreja desempenhou um papel notável na batalha pelos direitos do homem. Esse engajamento era visto na Bipartite, o grupo religioso mostrava suas preocupações e desejava que casos de violações aos direitos humanos fossem explicados e resolvidos. Por sua vez,o grupo da situação tentava convencer os bispos a diminuir o tom das acusações para que estas não manchassem a imagem brasileira e não incentivassem a oposição generalizada. Muitos casos foram discutidos e resolvidos. Pessoas ‘desaparecidas’ foram encontradas; outras libertadas e salvas da tortura e da morte. Dentre todos os assuntos abordados, o mais importante referia-se aos conflitos existentes entre Igreja e Estado. Algumas questões foram tratadas e resolvidas, outras, potencialmente explosivas, evitadas. Um desses exemplos foi o conflito em torno da comemoração do sesquicentenário da independência em 1972. O governo desejava aproveitar esta data como plataforma política para os generais, porém encontrava dificuldade, já que nas últimas comemorações ocorreram incidentes que prejudicaram a imagem do governo. A CNBB anunciou sua colaboração ao programa oficial, entretanto logo divergências surgiram em relação ao lugar e a data do evento. A parte da Igreja desejava a realização no dia 3 de setembro, pois não ocorreria mistura de religião com ‘tom festivo’, também queria a volta de seus bispos para a celebração desta data em suas respectivas localidades, no entanto o Exército desejava que a celebração ocorresse devidamente no dia comemorativo. A situação se agravou quando o grupo da situação soube de um documento que a Igreja fez para o sesquicentenário e de outras publicações que criticavam os ataques do governo. Outro motivo de apreensão foi o documento de Celebração litúrgica, o folheto produzido para a festividade, que segundo o 156 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Exército, continha textos ambíguos, perigosos e subversivos, nas mais variadas partes da missa. A situação se avolumava em criticas e uma reunião da Bipartite fora pedida por Candido Mendes. No encontro marcado, o governo se mostrava preocupado com o desenrolar da situação e temia um choque ainda maior. Já era tarde para uma mudança nas datas da festividade. Diálogos aconteceram e a intenção de cooperação foi clara. Dom Ivo Lorscheider confirmou que as cópias produzidas haviam chegado e ele solicitara para que elas não fossem entregues. A Igreja depois substituiu o documento por uma mensagem da CNBB. Dom Avelar Brandão controlou as declarações dos bispos. A missa aconteceu no dia 3 de setembro e as leituras não possuíam conotação política. A bipartite atingia seu objetivo de evitar novos conflitos e melhorar a relação de ambos os lados. Outro acontecimento envolveu Dom Fernando Gomes, que possuía um passado progressista em seu trabalho social no Nordeste e que cortou relações com o regime após um incidente envolvendo uma morte em sua catedral. Nos anos 70, apoiou seus colegas em combates contra o Exército. Com a prisão de seu amigo Dom Pedro Casaldáliga redigiu uma carta pastoral, em que criticou a força e a propaganda do regime. Uma outra reunião convocou Dom Fernando e a situação foi esclarecida. Dom Fernando demonstrou sua posição anti-comunista e assinalou uma postura favorável a um regime forte e que auxiliasse desaparecidos e presos políticos.Deste modo as tensões que surgiam, mais uma vez,eram aliviadas. Um dos mais importantes casos resolvidos pela Bipartite envolveu a Barra Mansa, localizada entre Rio de Janeiro e São Paulo, foi palco da ação violenta do 1 BIB(Batalhão de Infantaria Blindada).Esta perseguia comunistas e no ano de 1971 foi encarregada de prender acusados de tráfico de drogas. O batalhão começou a investigar seu próprio quartel, suspeito de uso e trafico de maconha. No final do mesmo ano já prendia e espancava soldados. Quatro soldados acabaram sendo mortos por torturas: Geomar Ribeiro da Silva, Juarez Monção Viorte, Roberto Vicente da Silva e Wanderley de Oliveira. O grupo religioso denunciou este incidente. Dom Waldyr foi importante, pois conseguiu provas contra o 1BIB e praticamente eliminou qualquer possibilidade de que os fatos fossem encobertos, deste modo forçou uma resposta do governo. O coronel Sampaio foi o responsável pelo inquérito. Depois de 108 dias descobriu os corpos de Wanderley e Monção. Prendeu os suspeitos do crime Niebus, Paulo Reynaud Miranda da Silva, Ivan Etel de Oliveira, Rubens Martins de Souza e Sideni Guedes, depois ainda José Augusto Cruz e Celso Gomes de Freitas Filho. Foram julgados e condenados por um conselho especial no dia 22 de janeiro de 1973. Este provavelmente foi o único julgamento e a única condenação de 1964 até o Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 157 período de anistia em 1979. Além disso, pela primeira vez na história do Exército fora feita uma publicação em que a instituição se autocriticava, tal aconteceu no dia 6 de fevereiro de 1972, quando os principais jornais publicaram um comunicado do Centro de Relações Públicas do Exército, admitindo que oficiais, em busca de drogas, causaram a morte de soldados e que esta atitude era repudiada pela instituição. Com a posse do presidente Ernesto Geisel em 1974, gradualmente a iniciativa da Bipartite foi freada. Ele desejava realizar uma distensão política, que seria lenta, gradual e segura. Deste modo, as reuniões entre os dois grupos tornavam-se menos necessárias à medida que o dialogo paulatinamente era restabelecido. Geisel preferia lidar diretamente com a hierarquia tradicional, ou seja, considerava o núncio papal o representante apropriado da Igreja, depois os cardeais e após destes os bispos. Caso a CNBB desejasse algo, teria que se pronunciar diretamente à sua pessoa. A Bipartite realizou sua ultima reunião no dia 26 de agosto de 1974. Ao todo ocorreram cerca de 24 encontros. Com a abertura política, a Bipartite não seria mais necessária. “A Bipartite foi um episódio central na historia do Brasil autoritário" (SERBIN, 2001, p.413), pois “[...] permitiu que a Igreja e o Estado coexistissem durante o pior momento de seu longo e complexo relacionamento" (SERBIN , 2001, p.415). Durante o período que permaneceu em atividade, desempenhou seu objetivo: conseguiu evitar que uma ruptura entre as duas maiores instituições do país ocorresse. Através de seus encontros secretos conseguiu realizar o diálogo entre a Igreja o Estado e discutir temas restringidos por um governo que se esquecera da liberdade. O estudo da Bipartite ajuda não só a entender um período conturbado, mas também contribui para reinterpretação do processo de redemocratização brasileira. Ricardo Augusto Aidar Abib - Bipartite: the preservation of the relationship between church ande state in the Brazilian military dictatorship. ABSTRACT: The Bipartite was a series of secret meetings held between the Catholic Church and the Military Government of Brazil, between the years 1970 to 1974. The purpose of these meetings was to ensure the political relationship between church and state, in a context of imminent rupture between them, marked by ideological divergence.The study of Bipartite helps not only to understand a dificult period marked by political repression instituted, but also contributes to understanding the settlement of the conflict between Church and Stante and for the reinterpretation of the democratization process in Brazil. KEYWORDS: Dictatorship; Bipartite 158 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: APARECIDO, Ivan Manoel. O pêndulo da história: A filosofia da história do catolicismo conservador (1800-1960). Franca: [s.n.],1988 ALVES, Márcio Moreira. O Cristo do Povo. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968 ______. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979 BRUNEAU, Thomas. O catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Loyola, 1974 CELAM. A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio: Conclusões de Medellín. Petrópolis: Vozes, 1977. CENTRO DE PASTORAL VERGUEIRO. As Relações Igreja-Estado no Brasil:Durante o governo do Marechal Castelo Branco 1964-1967. São Paulo: Loyola, v.1, 1986 COSTA COUTO, Ronaldo. História indiscreta da ditadura e da abertura Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1999 DOCUMENTOS DO VATICANO II: CONSTITUIÇÕES, DECRETOS E DECLARAÇÕES. Petrópolis, Vozes, 1966. DUSSEL, Enrique. Historia da Igreja latino-americana (1930-1985). São Paulo:Paulus,1989 JOÃO XXIII. Mater et Magistra.In: ______.DOCUMENTOS DO JOÃO XXIII (1958- 1963).São Paulo, Paulinas.v.2.p.144- 219. ______. Pacem in Terris. São Paulo: Paulinas, 2003 LEÃO XIII. Sobre a condição dos operários: Rerum Novarum. São Paulo: Vozes, 1947. Documentos Pontifícios 2 SERBIN, Kenneth. Diálogos na sombra: Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das letras, 2001 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 159 ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL DURANTE O PERÍODO DOS HÀN POSTERIORES Rud Eric PAIXÃO RESUMO: Com origem na Dinastia Qín, o modelo de administração utilizado durante os Hàn, com bases nas idéias legistas, possuía um caráter burocrático muito forte, com as diferentes funções e responsabilidades bem delimitadas, exigindo grande quantidade de funcionários, tanto para a administração central, localizada no Palácio Imperial, quanto para o governo provincial, espalhado pelo território chinês. Este artigo tem por intento realizar uma análise descritiva das principais camadas administrativas existentes no período Hàn Posterior, demonstrando suas responsabilidades e a complexa rede que constituíam, com vista ao desenvolvimento do império. PALAVRAS CHAVE: História antiga; China. O sistema de governo estabelecido com a primeira dinastia imperial, em 221 AEC, era marcado pela divisão das responsabilidades e organização dos diferentes membros da administração em hierarquias, visando evitar que muito poder fosse concentrado em apenas uma pessoa.1 Nesta concepção de governo, as responsabilidades políticas e as distinções sociais eram inseparáveis; assim, a sociedade consistia em homens e mulheres “distinguidos pela natureza de suas obrigações uns com os outros, pelo lugar ocupado na estrutura da autoridade civil e pelo grau de tratamento privilegiado que podiam esperar em um estado ordenado de administração” 2. De forma ampla, podemos classificar a sociedade chinesa como dividida em três camadas: Imperador, oficiais e o povo. Estas usualmente são representadas em forma piramidal e, com exceção do topo, as restantes são interdependentes, sustentando e sendo sustentada. No ápice da estrutura encontra-se o Imperador, fonte única da autoridade e liderança temporais. “Sua posição provém em parte de seus próprios méritos e caráter e, em teoria, da confiança e responsabilidade implantados nele por uma autoridade não-terrena, que é designada no pensamento chinês como ‘Céu’” (LOEWE, 1968, p.29-30); sendo considerado “Filho do Céu”, era o elo entre este e a terra. O direito para TWITCHETT, Denis; LOEWE, Michael (Org.). The Cambridge history of China: Volume I: the Ch'in and Han empires, 221 B.C. – A.D. 220. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 463. 2 LOEWE, Michael. Everyday life in imperial China. Londres: B. T. Batsford LTD, 1968, p. 29. 1 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 161 exercer tal função provinha do “Mandato do Céu”, o qual, assim como lhe assegurava a autoridade sobre o povo e garantia sua lealdade, incluía responsabilidades para com ele, devendo o governante prezar pelo seu bemestar. Caso deixasse de cumprir com suas obrigações e o governo se tornasse corrupto, o equilíbrio natural era rompido, demonstrando o Céu seu desagrado através de manifestações da natureza, como terremotos, secas e enchentes; quando estas ocorressem com freqüência, significaria que o reino não se corrigiu, e que o povo tinha o direito de se rebelar para derrubar a dinastia atual, de onde surgiria outra, receptora do novo Mandato e responsável por restabelecer o equilíbrio rompido. Entendendo-se por ‘povo’ a parcela populacional que não fazia parte da administração imperial, esta era a grande maioria na sociedade chinesa. Sendo basicamente seus membros produtivos, a maior parte habitava e trabalhava nos campos, abastecendo os celeiros do Estado através do pagamento de impostos em espécie. Havia também aqueles que exerciam outros ofícios como artesãos, sapateiros e ferreiros, habitando normalmente nas cidades ou vilas. Inseridos nesta camada, estavam ainda os comerciantes; embora nem todos fossem ricos, os que o eram tinham a possibilidade de comprar postos no governo e, desta forma obter os privilégios por sua nova posição. Os oficiais eram a camada que exercia o governo de fato, derivando sua autoridade do Imperador. Eram organizados em uma rede hierárquica com diversas categorias, cujo número aumentou ao longo do desenvolvimento da administração imperial. A burocracia regular e o serviço civil eram comandados pelas Três Excelências, postos reservados a oficiais seniores e com os mais altos salários3, que supervisionavam o governo imperial como um todo. Logo abaixo destes na hierarquia, encontravam-se os Nove Ministros, os quais dirigiam ministérios especializados; embora supervisionados por seus superiores, não eram diretamente subordinados a seus gabinetes. Estes eram organizados sob a direção de um único oficial, assistido por numerosos subordinados, ficando os deveres específicos divididos entre diversas seções e escritórios. Existiam ainda outros cargos não tão elevados no governo central, para cujo exercício não era necessária tão longa carreira; na maioria das vezes, estes correspondiam à execução de trabalho escriturário, não precisando o oficial lidar com a administração em si. Havia também cargos de categoria sênior disponíveis para militares, como os de General da Esquerda ou da 3 Além dos títulos e respectivos postos na burocracia, o salário recebido pelo oficial também configurava uma distinção social, embora nem sempre caracterizasse a importância ou poder do posto. 162 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Direita e General da Vanguarda ou Retaguarda, cujas posições hierárquicas correspondiam aos Nove Ministros. Estes, entretanto, não eram ocupados com freqüência, pois manter tais órgãos militares com plena força, aumentando o prestígio e poder dos generais, raramente era necessário ou desejoso.4 ESTRUTURA ADMINISTRATIVA CENTRAL A estrutura básica do governo compreende duas partes, a administração central, situada na capital, e os órgãos provinciais, espalhados pelo império. A relação entre estas duas partes através de redes de comunicação era organizada de tal forma que mesmo que alguma província específica sofresse abalos em razão de revoltas, desastres naturais ou guerras, os impactos não eram sentidos no restante do território.5 Como dito anteriormente, o Imperador era formalmente o líder do Estado, sendo o elo que ligava o Céu com a terra; em teoria, todo o poder do império estava em suas mãos. O governo de fato, porém, estava nas mãos das Três Excelências, as quais correspondiam aos postos6 de Grande Comandante, Ministro Sobre as Massas e Ministro dos Trabalhos, sendo sua categoria expressa em um salário de Dez Mil shí7. O primeiro, apesar de possuir o mesmo salário-categoria que as outras duas Excelências e fosse nominalmente igual a elas, era considerado o cargo mais elevado em razão de ser reservado ao mais antigo entre os oficiais seniores. Os vários departamentos sob seu comando lidavam com nomeação, promoção e rebaixamento de funcionários, registro populacionais, agricultura, manutenção das instalações de transportes e correspondência, armazenagem nos celeiros e assuntos militares. Também, era responsável pela supervisão de três dos ministros inferiores: o Ministro de Cerimônias, o LOEWE, Michael. Everyday life in imperial China. Londres: B. T. Batsford LTD, 1968, p. 32-34. 5 Ibid, p. 32. 6 Os títulos aqui explicitados são traduções baseados na adaptação realizada por Rafe de Crespigny no artigo entitulado ‘An outline of the civil administration of the Later Han’ a partir do sistema estabelecido por Homer H. Dubs e posteriomente seguido por Hans Bielenstein em ‘The bureaucracy of Han times’, tentando-se manter a tradução para o português próxima a estas. Também, deve ser levado em conta que os títulos sofreram alterações ao longo das duas dinastias; os aqui presentes referem-se apenas ao período final da Dinastia Hàn Posterior. 7 Trata-se de uma unidade de medida seca utilizada para grãos, equivalente a 100 litros. Metade do valor pago aos oficiais, entretanto, era em moedas. 4 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 163 Ministro da Casa e o Ministro da Guarda. Embora o nome do cargo remeta à esfera militar, este se tornou civil no ano 51.8 Proveniente do antigo posto de Primeiro Ministro9, o Ministro Sobre as Massas era responsável pela elaboração do orçamento anual do reino e pela conferência de altos funcionários de todo o império. Também, lhe cabiam os departamentos relativos ao posto que lhe deu origem, os quais eram quase idênticos àqueles do Grande Comandante. Os ministros que lhe cabia supervisionar eram o Ministro Cocheiro, o Ministro da Justiça e o Ministro Arauto.10 O Ministro dos Trabalhos, embora menos poderoso que seu antecessor, o Secretário Imperial, possuía a tarefa de supervisionar obras públicas ao longo do império. Portanto, era responsável pela construção de muralhas, canais, valas de irrigação, diques, barragens e outros projetos estruturais, devendo enviar relatórios ao imperador sobre as obras e conduta dos administradores locais quanto a elas. Assim como as outras duas Excelências, devia supervisionar três dos Nove Ministros, ficando sob sua incumbência o Ministro do Clã Imperial (Diretor do Clã Imperial), Ministro das Finanças e Ministro Administrador. Possuindo responsabilidades coincidentes com as outras duas Excelências, dava forma a um gabinete de organização tripartida.11 Poderíamos ainda incluir aqui uma “quarta excelência”: o Grande Tutor. Embora não possuísse uma pasta administrativa específica e se encontrasse à parte da administração oficial, servia como conselheiro do Imperador em todas suas tarefas e recebia um salário equivalente aos das Três Excelências, podendo ser considerado superior às outras em virtude de sua ligação direta com o Imperador. Os Nove Ministros, possuidores de um salário-categoria de Completos Dois Mil shí12, eram os segundos na hierarquia burocrática do império sendo, como indicado anteriormente, supervisionados por seus superiores imediatos e, conjuntamente a estes, participavam das conferências de corte em presença do Imperador.13 BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 13. 9 No período Hàn Anterior, as Três Excelências eram: o Primeiro Ministro, ou Chanceler, o Secretário Imperial e o Grande Comandante. 10 BIELENSTEIN, op. cit., p. 14. 11 Ibid, p. 15-16. 12 Alguns salários-categoria eram descritos em termos de ‘Completo’ e ‘Equivalente’, correspondendo respectivamente a um valor ligeiramente superior e inferior. Não se encontrou, entretanto, a medida desta diferença. 13 BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 17. 8 164 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 O Ministro de Cerimônias era o oficial chefe responsável pelos ritos religiosos, preces e manutenção dos altares e templos ancestrais. Embora seu principal dever fosse realizar a ligação do imperador com o Céu e o mundo sobrenatural, também lhe cabia estabelecer os padrões educacionais para a Universidade Imperial. Um de seus principais subordinados era o Astrônomo da Corte, responsável pelas observações astronômicas e pela elaboração anual do calendário.14 O Ministro da Casa era responsável pela segurança do imperador no palácio, nos parques externos e em qualquer lugar ao qual ele decidisse ir de carruagem. Porém, para garantir que sua completa segurança não ficasse sob a supervisão de uma única pessoa, os subordinados do Ministro da Guarda tinham permissão para patrulhar as entradas e muralhas do palácio, enquanto os eunucos guardavam os aposentos privados e o harém. Internúncios, comandados por um Supervisor dos Internúncios, eram seus principais subordinados, devendo comparecer a cerimônias oficiais e agir como diplomatas em feudos semi-autônomos e nas regiões de povos nãochineses nas fronteiras.15 O Ministro da Guarda era responsável pela segurança e patrulhamento das muralhas, torres e portões do palácio imperial; para o controle e monitoramento do tráfego de pessoas, era utilizado um complexo sistema de passaportes, utilizando etiquetas de metal ou madeira. Durante uma emergência, estas eram recolhidas e a ninguém era permitida a entrada no palácio.16 O Ministro Cocheiro tinha por função a manutenção dos estábulos, cavalos e carruagens imperiais para uso do Imperador e de seus atendentes palacianos, além do suprimento de cavalos para o exército. Supervisionava os oficiais responsáveis pela fabricação de arcos, bestas, espadas e armaduras. Outros de seus subordinados eram incumbidos da administração de estábulos fora da capital, especialmente os que cuidavam de cavalos de Fergana, importados ou recebidos como tributo das regiões da Ásia Central.17 O Ministro da Justiça, possuindo apenas o Imperador como superior em questões judiciais, era responsável pela interpretação e aplicação das leis, sendo a autoridade civil máxima para julgar casos provinciais levados à capital. Ele podia recomendar mudanças no código de leis e garantir anistias àqueles acusados de crimes. Ainda, seu ministério era responsável pela manutenção Ibid, p. 19. Ibid, p. 24-31. 16 Ibid, p. 31. 17 Ibid, p. 34-35. 14 15 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 165 e administração da Prisão Imperial, onde ocorriam julgamentos e eram realizadas execuções.18 O Ministro Arauto era o oficial chefe responsável por receber os convidados de honra no palácio, como membros da nobreza e embaixadores estrangeiros. Juntamente com o Ministro do Clã Imperial, devia supervisionar sucessões de títulos e feudos, oferecer pêsames em nome do Imperador durante funerais e memorizar nomes póstumos de reis e marqueses19. Seu departamento, no começo de todo ano, recebia os relatórios enviados pelas províncias antes de repassá-los às Excelências; seus subordinados serviam como guias para nobres e delegados estrangeiros em cerimônias e sacrifícios oficias.20 O Ministro do Clã Imperial, único posto entre os Nove Ministros reservado apenas a membros da família do Imperador, tinha por função supervisionar as concessões de títulos e feudos e as interações da corte imperial com a nobreza e com o restante da família imperial. Seu ministério era responsável pela manutenção de registros referentes a todos os nobres, sendo estes atualizados anualmente. Seus subordinados eram encarregados de realizar a ligação entre a nobreza nos feudos e o palácio, ouvindo suas reclamações e lhes informando sobre novas ordens. Excluindo-se os feudos de reis e marqueses, todos os outros se encontravam sob sua supervisão direta.21 O Ministro das Finanças era o tesoureiro da burocracia e das forças armadas, tendo em suas mãos tanto as rendas do reino quanto as do imperador. Era responsável pela administração dos impostos recolhidos em moeda ou em espécie e pelo suprimento público de grãos, podendo ainda implementar políticas de controle de preços quanto a algumas mercadorias; também, lhe cabia fixar os padrões para as unidades de medida.22 O Ministro Administrador servia exclusivamente ao Imperador, provendo-o com diversões e entretenimento, vestimentas e alimentos apropriados, remédios, cuidados físicos, objetos de valor e equipamento. Embora não fosse castrado, muitos de seus funcionários o eram em razão de seu ministério lidar com o harém imperial; ele, no entanto, não tinha permissão para adentrá-lo. Seus secretários eram dirigidos pelo Mestre de BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 38-39. 19 Tratava-se do mais alto titulo nobiliárquico conferido a pessoas não pertencentes à família do Imperador. 20 BIELENSTEIN, op. cit., p. 39-40. 21 Ibid, p. 40-41. 22 Ibid, p. 43-44. 18 166 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 Escrita, responsável pelo Secretariado Imperial, tendo eles a função de transmitir ao Imperador as mensagens provindas das Excelências, dos Ministros, das autoridades provinciais, do povo comum e de não-chineses. Seus vários subordinados incluíam, entre outros, o Médico da Corte, o qual checava a saúde do imperador diariamente, e o Provedor da Corte, responsável por sua alimentação.23 Para além desta estrutura oficial, alguns departamentos possuíam grande importância na administração, como o já citado Secretariado Imperial. Embora com salário-categoria de Mil shí, seus oficiais tinham uma posição especial em razão das tarefas com que lidavam, as quais incluíam criar editos imperiais, recebendo instruções diretamente dos mais altos níveis do governo, e servir no corpo de investigação em casos de impeachment ou acusações de lesa-majestade. Da mesma forma, encontrava-se o departamento dos eunucos, formalmente sob o comando do Ministro Administrador, mas gozando de grande independência durante os Hàn Posteriores por servirem no harém imperial. A posição mais alta a que estes chegavam era de Atendente Regular, com salário-categoria de Mil shí; enquanto a maior parte dos outros oficiais eunucos servia nos Portões Amarelos do harém, os oficiais seniores entre eles possuíam acesso total ao Imperador até em seus momentos íntimos, o que lhes dava grande influência e até mesmo algum poder24. ESTRUTURA ADMINISTRATIVA PROVINCIAL O império chinês, na metade do século II, encontrava-se hierarquicamente dividido em províncias, em número de treze, capitanias, somando algumas centenas, e condados, na casa dos milhares. Também, havia alguns reinos, que eram feudos concedidos a reis e marqueses, e estados dependentes, os quais se encontravam no nível das capitanias, somando a elas; principados, cedidos a princesas da família real, entravam na categoria dos condados. A província da capital era dirigida pelo Diretor dos Militares, com salário-categoria de Equivalente a Dois Mil shí, possuindo autoridade não apenas para investigar a administração de suas capitanias subordinadas, BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 47-50. 24 CRESPIGNY, Rafe de. An outline of the civil administration of the Later Han empire. 2007. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/asianstudies/decrespigny/HanCivil Admin_for_Internet.doc>. 2007. Acesso em: 14 out. 2008, p. 2. 23 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 167 mas também para impugnar oficiais do governo central.25 As outras províncias ficavam a cargo de Inspetores ou de Governadores; este último cargo, no entanto, foi instituído apenas em 188, como forma de permitir às lideranças provinciais o combate de forma mais direta aos bandidos remanescentes da Revolta dos Turbantes Amarelos, sem depender da burocracia estatal para poderem agir. Os primeiros, com salário-categoria de Seiscentos shí, tinham autoridade para investigar o governo das capitanias e reinos no seu território devendo reportar qualquer transgressão ao trono, mas sem permissão para agir por conta própria. A esta regra, entretanto, havia duas exceções: na província de Jiāo, localizada no extremo sul do império, onde possuía poderes executivos especiais, em razão das dificuldades de comunicação com o governo central, e em caso de rebeliões suficientemente problemáticas, onde podia requerer forças militares das capitanias e tomava controle sobre as operações para suprimir as revoltas. Os Governadores, embora com funções semelhante, detinham poder executivo de fato.26 No nível inferior à província, e representando o núcleo da administração local no império, estava a capitania, comandada por um Grande Administrador com salário-categoria de Dois Mil shí, líder militar e administrativo do território; não era permitido ao oficial, contudo, a administração de sua capitania natal. Como subordinados, possuía um Assistente e, quando nas fronteiras, um Comandante, o qual se responsabilizava pelas tarefas militares; em alguns casos, mais de um podia ser apontado para o mesmo território. Várias das capitanias, especialmente as menores, localizadas na parte oriental do império, eram identificadas como reinos e administradas por um Chanceler com salário-categoria de Dois mil shí. A única diferença real entre um reino e uma capitania é que a primeira trata-se de um feudo cedido a um membro da família do imperador para ali viver e usufruir de parte de sua captação em impostos; o Rei, entretanto, não possuía qualquer poder político, ficando o comando do território a cargo do Chanceler.27 Os condados eram a menor divisão política cujo administrador era nomeado pelo governo central; dependendo de seu tamanho, eram governados por Prefeitos ou Chefes, com salário-categoria variando entre Mil e Seiscentos shí para o primeiro e entre Quinhentos e Trezentos para o CRESPIGNY, Rafe de. An outline of the civil administration of the Later Han empire. 2007. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/asianstudies/decrespigny/HánCivil Admin_for_Internet.doc>. 2007. Acesso em: 14 out. 2008, p. 2. 26 Ibid. 27 Ibid, p. 3. 25 168 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 segundo. Cabia a eles manter a lei e ordem, guardar grãos para quando houvesse escassez, registrar a população para taxação, mobilizar trabalhadores para obras públicas e supervisioná-las, renovar escolas e promover rituais. Ainda, possuíam o dever de agir como juízes em caso de processos serem levados a ele; como sua autoridade judicial concorria com a do Administrador, acordava-se que o primeiro a prender o suspeito tinha o direito de julgá-lo.28 PAIXÃO, Rud Eric. Organization of the Imperial Administration During the Later Hàn Period. ABSTRACT: With origins in the Qín Dynasty, the administration model used during the Hàn, with bases on the legalists ideas, had a very strong bureaucratic character, with different roles and responsibilities clearly defined, requiring a large number of employees, both for central government, located at the Imperial Palace, and for the provincial government, spread throughout the Chinese territory. This article has the intention to perform a descriptive analysis of the main administrative layers that existed during Later Han, demonstrating their responsibilities and the complex web that constituted, aiming for the development of the empire. KEYWORDS: Ancient History, China REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge University Press, 1980. CRESPIGNY, Rafe de. An outline of the civil administration of the Later Han empire. 2007. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/asianstudies/decrespigny/HanCivilAdmin_for_Internet .doc>. 2007. Acesso em: 14 out. 2008. LOEWE, Michael. Everyday life in imperial China. Londres: B. T. Batsford LTD, 1968. TWITCHETT, Denis; LOEWE, Michael (Org.). The Cambridge history of China: Volume I: the Ch'in and Han empires, 221 B.C. – A.D. 220. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. 28 CRESPIGNY, Rafe de. An outline of the civil administration of the Later Han empire. 2007. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/asianstudies/decrespigny/HanCivil Admin_for_Internet.doc>. 2007. Acesso em: 14 out. 2008, p. 3. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 169 A VISÃO DE TOMÉ APÓSTOLO PELOS GNÓSTICOS E SUA INFLUÊNCIA SOBRE OS MANIQUEUS Samuel Cardoso SANTANA* RESUMO: O presente artigo pretende apresentar a continuidade, as mudanças e permanências dos escritos gnósticos atribuídos ao apóstolo Tomé e a forma como esses escritos influenciaram a religião maniquéia. Busca-se assim, criar novas perspectivas de análise de alguns dos vários textos de grupos gnósticos e refletir sobre a importância que tiveram na construção das doutrinas maniquéias. PALAVRAS-CHAVE: Tomé, gnosticismo, maniqueísmo Os gnósticos tiveram várias temáticas cristãs e muitos de seus escritos, principalmente os das primeiras seitas, reivindicavam a autoridade de apóstolos e de membros da Igreja primitiva, assim como os maniqueus fariam depois. De tais escritos poucos são datados do século I, sendo a maioria dos séculos II e III. As principais figuras do cristianismo primitivo a serem utilizadas são Pedro, Paulo, João, Tiago e Tomé, sendo que somente este último não possui textos considerados ortodoxos nem canônicos. Remetendo-se a ele, existe um total de seis documentos que possuem sinais claros de diferentes seitas gnósticas e do maniqueísmo, mesmo que raras vezes, apareçam trechos que remetem a temáticas ortodoxas. Porém, foram condenadas pelos concílios, três delas pelo Decreto Gelasiano1. No entanto, um destes documentos, o Evangelho de Tomé, possui cerca de um terço do seu conteúdo de citações canônicas, sendo que dos 114 ditos, são “37 unidades de tradição independentemente presentes em Q2 e em Tomé”. (CROSSAN, 2006, p.188). Nos canônicos, Tomé aparece poucas vezes, é um apóstolo pouco presente. Porém entre os gnósticos aparece não apenas com freqüência, mas em várias ocasiões como protagonista. Os escritos atribuídos a ele * Graduando em História na UNESP – Campus de Franca sob a orientação do Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas. 1 Decreto papal, oriundo do Concílio regional de Roma de 371, originalmente feito pelo Papa Damaso (366-384), mas que possuímos a versão redigida pelo papa Gelásio (492-496). Primeiro documento a delimitar os livros da Bíblia, condenou vários apócrifos. 2 A fonte Q (Quelle) é uma forma de se estudar os evangelhos de Lucas e Mateus, acoplando suas citações em comum para se remeter a uma hipotética fonte em comum, paralelamente ao evangelho de Marcos, ou o próprio. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 171 podem ser entendidos de forma cronológica e segundo uma diferenciação de crenças contidas em cada um, segundo a seita que o escreve. O Evangelho de Tomé, como já vimos, é o primeiro nesta lista, e o que possui mais características em comum com os canônicos. Têm-se duas versões, uma em grego, o Oxyrhynchus Papyri 1, 654 e 655, incompleto, e uma em copta, da Biblioteca de Nag Hammadi. 3 “Pelo menos um destes fragmentos é em grego originário de um manuscrito que foi escrito antes de 200” (KOESTER, 2006, p.114). Mas devido à semelhança de tantos trechos com os evangelhos canônicos, inclusive a fonte Quelle, é provável que ele tenha sido escrito entre 70 e 140, partindo destes trechos em comum com Q, e ganhando acréscimos de escritores posteriores até chegar à versão que possuímos. Os sinais que possui de gnose, são poucos em comparação com os demais escritos atribuídos a Tomé. Nesses trechos vemos exemplos: 2-Jesus disse, “Deixai aquele que busca continuar buscando até que encontre. Quando encontrar, se tornará aflito. Quando se tornar aflito, será surpreendido e reinará acima de tudo”. (LAMBDIN, 2006, p.116). 67-Jesus disse, “Se aquele que souber de tudo ainda se sentir como uma pessoa imperfeita, é porque é completamente imperfeito”. (LAMBDIN, 2006, p.122). 80-Jesus disse, “Aquele que tenha reconhecido o mundo encontrou um corpo, contudo aquele que tenha encontrado o corpo é superior ao mundo”. (LAMBDIN, 2006, p.123). Estes trechos demonstram as características gnósticas principais: a oposição entre o corpo, mundo material, e a alma, mundo espiritual, busca pelo conhecimento (gnosis), de forma a se libertar desta condição de simples homem imperfeito. Estes possíveis acréscimos podem ter sido acrescentados pelos judeu-cristãos da síria, que já eram apontados por Paulo como perigosos: “Ó Timóteo, guarda o bem que recebeste; foge do mundano e vão palavreado, e das questões sobre o que falsamente chamam conhecimento”. (2 Timóteo, 6, 20-21). Contemporaneamente a este documento, mas um pouco mais recente, meados do século II, foi escrito um outro, os Atos de Tomé. Em treze atos, narra como Tomé sai da Judéia após o dia de Pentecostes e vai 3 Série de 52 escritos, sendo 46 textos diferentes entre si, encontrados em Nag Hammadi no Egito. A maior parte dos documentos é gnóstica. 172 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 até a Índia, onde converte muitos. Possui ainda várias características de ortodoxismo como: batismo, unção com óleo, eucaristia em pão e vinho, exorcismo. No entanto compartilha com idéias de gnose como: busca extrema por sabedoria, terror ao sexo mesmo entre casados, estranhamento ao corpo, desejo de morrer na luz. Um trecho em especial, o Hino da Pérola, influenciou muito a corrente gnóstica dos mandeus, no Império Sassânida, e o maniqueísmo, que trataremos adiante. Outro escrito atribuído a Tomé é um evangelho sobre a infância de Jesus, um período da vida de Jesus pouco comentado nos canônicos, apenas em Mateus e Lucas e com poucos detalhes, mas muito explorado pelos gnósticos, em pelo menos cinco evangelhos apenas sobre este período da vida de Jesus. Um deles é o de Tomé, do qual hoje possuímos três versões, bastante divergentes entre si. “... o Evangelho de Tomé é de indatável antigüidade. É mencionado por nome por Orígenes, citado por Irineu e o autor do Philosophumena diz que ele foi usado pelos Nachashenes...”. (SCHAFF, 2005, p.624). O fato de ser citado por Orígenes e Irineu4 o coloca no início do século II. O texto narra como Jesus possuía vários poderes desde quando era criança, que possuía grande conhecimento ao ponto de ensinar os próprios professores. São escassas as citações em comum com os canônicos, sendo que apenas uma das versões possui trechos paralelos com o Evangelho de Lucas. A busca pelo entendimento do ser das letras do alfabeto e a simbologia do a-o, princípio e fim do conhecimento, aparecem nas três versões. Jesus possui um caráter vingativo e tenta abolir o corpo das pessoas e salvá-las dele. Influenciou os maniqueus profundamente, a ponto de que para “Cirilo de Jerusalém a autoria não ao apóstolo, mas ao Tomé que era um dos três discípulos de Manes”. (SCHAFF, 2005, p.625). O que é impossível já que Manes começa a pregar vinte anos após a citação de Irineu, mas compreensível a partir do ponto que este texto aparece nas fontes maniquéias. A partir de meados do século II, a ortodoxia5 parece estar mais definida, de forma que esta designação começa a ter menos vínculos com o judeu-cristianismo e a se definir como unicamente cristã, abolindo todos os vínculos com aquelas seitas. Dessa forma os gnósticos também se afastam da ortodoxia, fundando escolas gnósticas e uma rede de doutrinas fundamentadas em princípios próprios. 4 5 Apologistas cristãos que viveram na virada do século II para o III. O conceito de ortodoxia é falho, pois dentro de próprio cristianismo havia dissidências, mas é o termo usado pela maior parte dos estudiosos. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 173 A Consumação de Tomé é um texto curto, provavelmente um trecho dos Atos de Tomé, mas é incerto. Após ficar preso, Tomé é executado por um grupo de soldados depois de realizar uma longa oração, elogiando a sabedoria. Demonstra uma despreocupação com a morte diferenciada do martírio, pois a aceita como libertação, e não como prova de fé. Após alguns anos, a filha de um dos soldados fica doente, ele vai até o lugar onde enterrara Tomé para pegar uma relíquia para curar a filha. O apóstolo aparece para ele e diz que apenas Jesus poderia curá-la. Mesmo que apareça a citação da relíquia, é gnóstico, pois no cristianismo ortodoxo os mortos não aparecem, mesmo que ressuscitados6. Não possui paralelos com os textos do Novo Testamento, sendo totalmente gnóstico. Antes de tratarmos dos últimos dois livros referentes exclusivamente a Tomé, falaremos um pouco de um livro que o coloca em importante posição, juntamente com Mateus e Felipe de forma diferente dos canônicos, que destacam Pedro, Tiago e João. A Sophia de Jesus, é uma obra de princípios gnósticos, provavelmente da última década do século I, no Egito, que foi muito influente. Este documento foi encontrado em Nag Hammadi, onde também estavam o Evangelho de Tomé e Tomé Contendor, além de possuir outras obras da seita dos valentinos, dos zostrianos e outros grupos gnósticos. Isto demonstra a fundamentação gnóstica da obra, cujo conteúdo é profundamente hermético. Trata da sabedoria como um eon7 proveniente do Pleroma8, o que faz com que aquele que a alcança através do conhecimento possa chegar a Deus, ao eterno, vencendo o corpo e a morte. Seguindo estas doutrinas, os próximos escritos sobre Tomé tratam de um homem que recebe conhecimentos diretamente de Jesus. O Apocalipse de Tomé é um deles. Possuímos três versões que se complementam, datado do século III. Traz uma série de diferenças em relação ao texto canônico. Trata de uma revelação direta com traços de diálogo em um dos documentos, em que Jesus relata a Tomé como será o fim. Serão sete dias, nos quais haverá uma série de desastres que matarão muitos. Mas há pouquíssima simbologia, se compararmos com o canônico. Há ainda a presença dos anjos, que serão os responsáveis por levar os mortos para os Vide Carta para o Cuidado com os Mortos de Santo Agostinho de Hipona. Os eons são emanações, entes saídos do próprio Deus. Dentro do gnosticismo estes eons são divididos em vários grupos, sendo a Sabedoria um deles. 8 O Pleroma é o Grupo de eons mais próximos de Deus, que participam das pessoas dele, entre os quais está a Sabedoria, a Fé e a Grande Espírito (o Espírito Santo para eles é um ente feminino, o que caracterizará, no maniqueísmo uma criação de um homem andrógeno). 6 7 174 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 céus ou deixa-los sofrendo na Terra, sendo um ecletismo de idéias cristãs, anjos e Juízo, e gnósticas, a Terra permanecer na Terra como punição. O último dos livros atribuídos a Tomé também está em Nag Hammadi. É o Tomé Contendor, um dos textos mais gnósticos do Ciclo de Tomé9. É o mais recente de todos os textos, sendo da segunda metade do século III. Escrito por Mathaias (Mateus em aramaico). Trata-se de um diálogo entre o Jesus ressuscitado e Tomé, ainda antes da ascensão. O apóstolo, que é irmão gêmeo de Jesus, faz perguntas profundamente herméticas para o Mestre, este as responde. Diferente dos diálogos filosóficos platônicos, não se trata de uma cosmologia separada entre Mundo das Idéias e de Mundo Sensível, traz um antagonismo interno do homem, corpo e alma em um conflito antropológico, no qual a alma deve alcançar o conhecimento profundo para chegar à luz que ilumina o corpo, uma deformação material. Demonstra uma aversão ao sexo típica das seitas gnósticas do século III, demonstra a morte e conhecimento como formas de se libertar da carne, uma aversão à ingestão de carne, que seria viver pela matéria. Todos os que não vivem segundo estas regras são ignorantes (não gnósticos), portanto desconhecem a salvação e serão jogados no abismo do Hades (inferno). A vida só vale enquanto espírito, portanto tudo o que é corporal é mal, sendo este o porquê de se apoiar a morte e evitar filhos: seria criar mais espíritos prisioneiros da carne. Estes contrastes antropológicos são as bases doutrinais do mandeísmo, religião de origem parta que adquiriu, através de complexo ecletismo, doutrinas mitráicas, zoroastrianas e gnósticas. Há ainda dúvidas a respeito das origens do mandeísmo, se ele antecede, é contemporâneo ou posterior ao maniqueísmo, mas sabe-se que ambos estão em um patamar de similaridades muito grandes. Alguns textos maniqueus como a Kephalaia, a autobiografia10 de Manes, traz uma série de citações das raízes religiosas de Manes e seu pai, muito similares às mandeístas. Há um problema central em saber qual a ordem dos fatores, pois, o tipo de gnose batista que Manes relata é tão extremista como a doutrina apresentada no Tomé Contendor, mas o mandeísmo não era tão radical, já que aceitava e até proclamava o casamento. Segundo Puech, “... creio que os primeiros fermentos de seu pensamento religioso os deve Manes a uma Utiliza-se o termo Ciclo para designar-se uma série de documentos a respeito de um mesmo tema, no caso aqui apresentado, os textos sobre Tomé. 10 Esta palavra, no seu sentido moderno, não é a ideal para expressar o gênero literário do Kephalaia, pois não discorre de forma histórica a vida de Manes, mas segundo uma narrativa simbólica, mítica e muitas vezes, fabulosa. No entanto é o termo usado por vários estudiosos do assunto, e pelo próprio Puech. 9 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 175 gnose batista análoga ao mandeísmo, ou a uma forma primitiva do mandeísmo propriamente dito”. (PUECH, 1957, p.30). Neste ponto começamos a compreender melhor o percurso da figura de Tomé como o portador da gnose, do conhecimento, e como a visão que projetam dele acompanha a dinâmica religiosa do gnosticismo até chegar ao maniqueísmo. Nos primeiros relatos de sua pessoa, ou seja, nos evangelhos canônicos, aparece como um apóstolo incrédulo, empirista, sensitivo. Após a ressurreição precisa tocar as feridas de Jesus para crer nele. (JOÃO 20, 2429). No Evangelho de Tomé adquire saberes únicos, diretamente de Jesus, que lhe impossibilitarão de morrer. Nos Atos de Tomé, ele adquire poderes, ganha massas convertendo-as, apresenta um profundo conhecimento de si mesmo e do Ser em si no Hino da Pérola. No Evangelho da Infância de Jesus, é o portador da história de vida e de crescimento de Jesus. Em A Consumação de Tomé, demonstra seu desprezo pelo corpo e a doutrina da metempsicose. 11 A Sophia de Jesus, coloca Tomé entre os maiores apóstolos, aprendendo o que há de mais profundo na gnose. No Apocalipse de Tomé, ele recebe de Jesus a sabedoria para se salvar da destruição do mundo material e, por fim, no Tomé Contendor, o apóstolo é o irmão gêmeo de Jesus que em diálogo com ele, aprende o que há de mais profundo na alma do homem, a forma de se libertar do corpo12. As representações foram criadas à medida em que as doutrinas adquiriam mais consolidação de suas idéias fundamentais. A pergunta que prevalece é: como elas chegaram até a Pártia de Manes se estas seitas estavam localizadas, principalmente, na Síria, no Egito, Penínsulas da Anatólia e Itálica? Aqui que se compreende o papel dos gnósticos batistas pré-mandeus e do documento mais citado pelos maniqueus: o Hino da Pérola. “No glossário do simbolismo gnóstico, “pérola” é uma das metáforas para “ser” 13 no sentido supranatural”. (JONAS, 2001, p.125). Esta é a razão, fundamental para ele ser tão usado pelos maniqueus, pois entre suas doutrinas de fundamento zoroastriano14 não possuía esta interioridade. O maniqueísmo adotou o hino como a alegoria máxima do Ser. Tomé é o apóstolo de Jesus, responsável por transmitir tal conhecimento aos Doutrina órfica do retorno dos espíritos, também existente entre os gnósticos. Devemos lembrar que estes dois últimos escritos não foram conhecidos por Manes, pois são posteriores a ele, mas influenciaram o maniqueísmo após a morte de Manes. Em A Moral dos Maniqueus, Santo Agostinho descreve três doutrinas dos Selos, que se assemelham muito a estas doutrinas. 13 Trata-se da alma, do ser, da essência metafísica. 14 O zoroastrismo admitia a dualidade de substâncias, bem e mal, mas não possuía doutrinas de antagonismo antropológico entre espírito e matéria. 11 12 176 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 discípulos. A religião ainda adotou a prática de produzir hinos no mesmo molde, ou seja, a busca da exaltação da luz interior. No “Hino do Ser Vivente” temos: Esta alma redimida veio, E veio para a Igreja da Iluminação. Peça para sempre, você que é eleito, Até que maravilhosamente me purifique E me deixe vivo. Abençoado você é, oh Ser, com sua forma divina! 15 Assim temos as semelhanças, em forma alegórica, como esta passagem do Hino da Pérola: Eles tiraram de mim a veste da glória, do qual o amor deles feito para mim, e o meu manto roxo que estava servindo perfeitamente na minha figura, e fez um acordo comigo, e escreveu no meu coração que eu não esqueceria isso: Quando você for para o Egito e trouxer uma Pérola que está deitada no meio do oceano, a qual está envolvida por uma serpente, você deverá colocar de novo a veste da glória e o manto sobre ela e com seu irmão estará entre o nosso Reino. (JONAS, 2001, p.113). Neste trecho Tomé narra como foi orientado pelo seu senhor e irmão16, para descobrir seu interior, despojando-se do que é material, buscando o íntimo de seu ser, que está envolto no mal da matéria, 17 a forma de encontrar a entrada para o Reino18. Explica Hans Jonas: A “pérola” é essencialmente a “pérola” perdida, e tem que ser encontrada. O fato de a pérola estar presa dentro de uma concha e escondida no fundo, deve ter estado entre as associações que originalmente sugeriram a imagem. (JONAS, 2001, p.125). Disponível em: http://www.gnosis.org/library/hymntlivs.htm Jesus é tido pelos gnósticos como irmão de Jesus. Dídimo, como Tomé é conhecido, quer dizer gêmeo em grego. 17 A serpente que tenta Eva no paraíso é tida pelos gnósticos como a matéria que enganou o homem e a mulher, fazendo-os perder o conhecimento. 18 Reino de Deus, a salvação. 15 16 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 177 O maniqueísmo apresenta sua dicotomia do bem e do mal presentes em cada ser dessa forma, sendo Tomé, o principal guardião destas doutrinas. 19 Este antagonismo tem sua origem na criação do mundo, na versão maniquéia. Na criação Deus criou tudo perfeito, mas o Mal, representado pela serpente, toma posse do espírito da humanidade. Deus criara o homem andrógeno, retirando a mulher de dentro dele, mas com a entrada do Mal20 no mundo, os homens se tornaram impuros, transmitindo a prisão da alma através do corpo. O filho de Adão, Seth, 21 foi o primeiro Iluminado22 a conseguir se libertar pela gnose, seguido de Enoch, Budha, Zoroastro e Jesus, sendo que este último previra a volta do Paráclito 23 que era o próprio Manes. Este era, portanto, o portador máximo das verdades da luz, o único que seria capaz de unir todas as religiões com seus iluminados em uma única, de forma a criar uma religião universal que abarcasse todos os homens e nações sobre a Terra. O ecletismo religioso fundamentou uma doutrina que permitiu ao seu fundador expandir sua doutrina da Índia até o Império Romano. No Kephalaia lemos: As Escrituras, as Sabedorias, os Apocalipses, as parábolas e os salmos das Igrejas anteriores têm vindo de todas as partes a reunirem-se em minha Igreja à Sabedoria que eu tenho revelado. Como um rio se une a outro para formar uma corrente poderosa, assim têm confluído os velhos livros em minhas Escrituras; e tem construído uma grande Sabedoria como nunca houve nas gerações precedentes. (PUECH, 1957, p.50). Desta forma tornou-se compatível para o maniqueísmo adotar diferentes crenças sem se preocupar com uma ortodoxia. O fato de os vários textos que retomam Tomé terem doutrinas diversas, pode ser um dos motivos pelo atrativo que Manes e seus discípulos tiveram deles. O fato de Tomé ter pregado na Índia, local onde Manes também pregou, facilitou a assimilação das práticas cristãs associadas com as práticas locais em um 19Deve-se lembrar que Tomé não foi o único a transmitir essas doutrinas, mas o mais influente. João também aparece muito. Os demais apóstolos e discípulos de Jesus aparecem poucas vezes. 20 Para Manes o Mal era substancial, tinha existência própria, não necessitava de prática para existir. 21 No Gênesis canônico Seth é o terceiro filho de Adão e Eva, mas estes não são andrógenos. 22 Designação que Manes utiliza, vinda do budismo, Budha significa iluminado. 23 Várias vezes diz Manes em seus escritos que é o Paráclito, Espírito Santo que Jesus anunciou a volta. 178 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 hibridismo que impulsionou a conversão de muitos entre a Pártia e a Índia. Após a morte de Manes, sua religião chega até a China, onde ainda hoje existe em grupos minoritários, mas com diferenças fundamentais com a doutrina desta época. Na Índia ainda existem tradições que relembram os Atos de Tomé. O apóstolo incrédulo torna-se assim o mais crente e eclético de todos. SANTANA, Samuel Cardoso. The vision of Thomas apostle by gnostics and its influence against manichaeans. Revista Ensaios de História, Franca ABSTRACT: This article pretends to present the continuity, the changes and permanences from the gnostics scripts attributed to Thomas and the form how this scripts have influenced the Manichaean religion. We pretend this way create new perspectives of analyses about some various texts of gnostics groups and reflect about importance that they had on the construction form the Manichaean doctrines. KEY WORDS: Thomas, Gnosticism, Manichaeism FONTES: LAMBDIN, Thomas O. O Evangelho de Tomé. In ROBINSON, James M. A Biblioteca de Nag Hammadi. 2.ed. São Paulo: Madras, 2007, p. 114-125. TURNER, John D. O Livro de Tomé, o Contendor. In ______. A Biblioteca de Nag Hammadi. 2. ed. São Paulo: Madras, 2007, p. 176-183. JAMES, M. R. Apocalypse of Thomas. The Apocryphal of New Testament. (em inglês) Disponível em: <http://www.gnosis.org/library/apcthom.htm> Acessado em 21/06/2010. RIDDLE, M. B. Apocrypha of the New Testament. In SCHAFF, Philip. The Twelve Patriarchs, Excerpts and Epistles, the Clementia, Apocrypha, Decretals, Memoirs of Edessa and Syriac Documents, Remains of the first age. (em inglês) Disponível em: <<http://153.106.5.3/ccel/schaff/anf08.html>> Acessado em 22/06/2010 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CROSSAN, John Dominic. Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos sobre o Jesus Histórico. In CHEVITARESE, André Leonardo, CORNELLI, Gabrielli e Selvatici Mônica (org.). Jesus de Nazaré: uma outra História. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2006, p.165-192. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 179 PUECH, Henri-Charles. Maniqueísmo. El Fundador. La Doctrina. Madrid: LAVS DEO, 1957. KOESTER, Helmut. O Evangelho de Tomé. In ROBINSON, James M. A Biblioteca de Nag Hammdi. 2.ed. São Paulo: Madras, 2007, p.114-116. JONAS, Hans. The Gnostic Religion. Boston: Beacon Press, 2001. RIDDLE, M. B. Apocrypha of the New Testament. In SCHAFF, Philip. 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Sua extensa obra, atualmente pouco trabalhada no Brasil, pode colaborar significativamente para variados estudos na área das ciências sociais, inclusive a História. PALAVRAS CHAVE: Ciências Sociais, Talcott Parsons, teoria da ação. Ao aceitar algumas definições bastante sintéticas e básicas acerca do que constitui a História enquanto ciência e ao que esta se refere e aborda através das análises dos que dela se ocupam, tem-se algumas semelhanças entre os significados que lhe são atribuídos. “[...] deva ela [a história] voltar-se de preferência para o indivíduo ou para a sociedade, para a descrição das crises momentâneas ou a busca dos elementos mais duradouros.” (BLOCH, 2001, p.51) História se refere tanto ao conjunto da produção humana, ações e/ou práticas humanas concretas, quanto à obra histórica, ou seja, a História – Conhecimento. [...] Neste sentido, o historiador tenta compreender as ações práticas dos homens, os móveis que os animam, os fins que os norteiam, o seu universo simbólico e as significações que para esses homens tinham seus comportamentos e ações. O historiador opera diante de ações realizadas, cuja significação procura desvendar (JOBSON, 1998, p.175) A partir destas considerações, pode-se depreender que a História busca, entre outros objetivos, não só descrever, mas também refletir e compreender variados questionamentos sobre o homem e suas ações tanto de forma individual quanto coletiva. Assim sendo, tem-se que a História, como qualquer outra ciência inserida na área das humanidades, também busca o auxílio de diferentes campos do conhecimento a fim de tornar cada Graduando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, sob orientação da Profª. Msª. Maria Celeste Facchin. Bolsista PET/MEC/SESu. ** Graduanda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi. Bolsista PET/MEC/SESu. * Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 181 vez mais completa sua análise. A interação, a troca de informações e as novas reflexões originadas por este intercâmbio, tornam possíveis maiores questionamentos que contribuem de modo significativo, complementando o estudo da História. Uma das primeiras e principais disciplinas a se relacionar com a História, a Filosofia, por longo tempo exerceu grande influência sobre a seleção dos métodos utilizados, as abordagens designadas e, principalmente, a escolha dos objetos que seriam estudados. No entanto, como retrata François Dosse, as profundas mudanças que ocorrem na contemporaneidade – a título de exemplificação, as grandes guerras mundiais, a ascensão e queda de novos regimes totalitários, a instalação dos “valores de uma sociedade técnica e moderna” (DOSSE, 1992, p. 61) acabam por tornar necessária a contribuição de outras ciências humanas, as quais permitiriam uma melhor compreensão acerca do homem e de suas evidentes transformações. A História e as outras ciências humanas ganham novo campo de estudo e espera-se repostas delas acerca das drásticas mudanças que ocorriam no mundo. Fala-se em “novos problemas que obrigam a repensar a própria História; novas aproximações que modificam, enriquecem, revolucionam os setores tradicionais da história; novos objetos, enfim, aparecem no campo epistemológico da história”. (LE GOFF, 1974, p. 211, citado por JOBSON, 1998, p.177). É nesta perspectiva em que a Escola dos Annales se mostra fundamental na transformação do estudo histórico1. Ao defender o intenso diálogo entre as ciências, a História vai se aproximar de diversas disciplinas inseridas nas Ciências Sociais, tais como a Geografia, Antropologia, Psicanálise, Etnologia, Ciências Econômicas e Sociologia, que podem fornecer à história o auxílio que esta necessita para compreender as 1 A Escola dos Annales acaba por romper com determinadas formas de se escrever a história que eram muito comuns. Como demonstra José Carlos Reis, “[...] esse rompimento com a tradição pode ser descrito assim: abandonou o pressuposto da história produzida pelo sujeito consciente através do Estado - Nação, recusando a história política, [...] abandonou o pressuposto do estudo do singular, do específico, do irrepetível, recuperando o ‘evento’; abandonou o pressuposto do fim que justifica todo o passado, o presente e o futuro, recusando a forma narrativa do discurso histórico; [...] abandonou o pressuposto da história partidária, parcial, a serviço de poderes religiosos e políticos, recusando a ideologização do discurso histórico; abandonou o pressuposto do tempo cronológico, linear, irreversível, recusando o evolucionismo progressista; abandonou o pressuposto da história conhecimento do passado, recusando a ‘história museu’.” (REIS, 2004, p.66) 182 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 modificações sofridas por seu principal objeto de estudo, o homem. 2 Seus temas e enfoques diferenciados acabam por complementar variados estudos, tornando-os cada vez mais interdisciplinarizados. Cada uma destas áreas do conhecimento pode contribuir de forma significativa às outras, sugerindo novos caminhos, abordagens e métodos diferenciados: “A história uniu-se às ciências sociais: ela constrói seu objeto, põe problemas e levanta hipóteses, usa conceitos e técnicas das ciências sociais [...].” (FEBVRE, 1965, p.14 citado por REIS, 2004, p.81). “Assim, apesar das omissões, das oposições, das tranqüilas ignorâncias, esboça-se a construção de um mercado “comum” [entre as diversas ciências].” (BRAUDEL, 1965, p. 262). Mesmo questionados por muitos historiadores, os novos métodos sugeridos pela Escola dos Annales se difundem na pesquisa histórica. Ao se restringir um pouco mais essa influência abordando somente as interações entre História e Sociologia, é perceptível que serão absorvidos modelos teóricos das ciências sociais que constroem uma explicação a respeito da dinâmica social e das respectivas mudanças que podem ocorrer nos sistemas sociais: são teorias que buscam generalizações e criam modelos para a compreensão do convívio organizado humano. A incorporação deste discurso pela História acontece de forma delicada, uma vez que pressupõe o apagamento do indivíduo e considera a cultura como manifestação estrutural, gerando um embate sobre a validade da História como disciplina autônoma. No entanto, pode-se perceber a existência de determinadas teorias que não abrandam a importância individual, mas sim a analisam de forma igualmente determinante como a ação coletiva. Um exemplo deste modo de estudo é realizado pelo sociólogo norte americano Talcott Parsosns. Inserido numa tradição sistêmica da sociologia, Parsons difere de muitos outros sociólogos de sua época: ao iniciar alguns de seus principais estudos no período entre guerras e estendendo-os até o fim da década de 1970, Parsons se preocupa com a teorização da sociologia americana que, naquele período, era dominada pelo empirismo. Portanto, vai contribuir de forma singular à sociologia americana ao fornecer o aparato teórico que julgava ser necessário a qualquer ciência. Parsons acredita que a ciência não se satisfaz somente com a pesquisa empírica; ela precisa ser enquadrada por um pensamento teórico que fornece as intuições, as hipóteses, as relações lógicas, as interpretações explicativas e, finalmente, os fundamentos da previsão crítica. (ROCHER, 1976, p. 25) 2 Ver DOSSE, A História em migalhas: dos annales à nova história (1992) Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 183 O maior expoente da sociologia parsoniana é a Teoria Geral da Ação que, por ser uma convergência e unificação de conceitos e teorias de outros autores (podem ser citados Weber, Durkheim, Freud), torna-se uma importante ferramenta capaz de evitar a armadilha da leitura unidirecional da História através de modelos ou de grandes homens e/ou fatos. Através desta teoria, Parsons propôs uma análise do sistema social juntamente com a personalidade do indivíduo, dando enfoque, na formação e construção de ambos, bem como a cultura, as instituições e as interações sociais. A característica do sistema social é ligar entre si uma pluralidade de atores, é ser antes de mais nada uma rede de relações interindividuais e intergrupais. Em outras palavras, no sistema social considera-se a ação dos atores do ângulo específico de sua relação com os “objetos sociais” de seu meio, isto é, do ângulo de sua interação com os outros atores. Nesta perspectiva, os objetos físicos ou objetos simbólicos ou culturais não pertencem propriamente ao sistema social: tornam-se fatores exteriores que condicionam ou determinam a interação dos atores. (ROCHER, 1976, p. 63) Diferindo de outras abordagens, Talcott Parsons concebe o indivíduo dentro de um sistema social, como um ator que age tanto individualmente quanto em grupo. Algumas disciplinas como a Psicanálise e a História - na interpretação da escola Metódica - focam o indivíduo ou a sua personalidade. Outras como a Sociologia, a História analisada através da corrente Marxista de pensamento e a própria Escola dos Annales, possuem como centro de suas análises a conduta de vários indivíduos que constituem um sistema social e que, neste caso, é o “motor” da História. Neste sentido, Parsons dialoga com ambas as vertentes, individual e coletiva, ao conceber que um ator social pode agir de algum modo sozinho ou em grupo. Este teria sua personalidade moldada pela cultura na qual está inserido e, em movimento sincrônico e recíproco, as variáveis culturais também seriam amplamente moldadas pela interação com outros sujeitos (pela articulação dos indivíduos). Ou seja, apesar de haver um padrão comum relativo às características locais garantidas pelas normas morais e culturais que vão moldar a personalidade, esta também será submetida, em maior ou menor escala, a condicionantes gerados pelas interações entre os indivíduos. Portanto o indivíduo pode agir estando dentro do sistema social, ou pode agir “isoladamente”. Aqui cabem algumas ressalvas, pois a personalidade do indivíduo já entrou em contato e foi moldada por toda uma espécie de Cultura Comum. Esta é uma forma regulativa da ação individual, uma vez que estabelece normas e 184 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 variáveis pelas quais os indivíduos irão agir. Convenções de linguagem, valores, vestuário, normas, etc, orientam a interação entre as diversas pessoas (os atores) que estão no interior do campo de uma dada cultura. Por outro lado, há sempre uma parcela da personalidade que é proveniente de uma cultura distinta ou de pequenas mudanças ocorridas pela transgressão às normas culturais locais. Nos múltiplos processos de interação de personalidade, que se entrecruzam no interior de uma sociedade, acontecem as variações nos sistemas sociais. Este fenômeno deve ser perceptível no tempo, hora acontece bruscamente, sendo chamado de revolução, outras vezes é um processo paulatino perceptível apenas na longa duração. Un sistema social es, pues, una función de la cultura común, que no solo forma la base de la intercomunicación de sus miembros, sino que define – y así en cierto sentido determina – los status relativos de esos miembros. Dentro de limites sorprendentemente amplios, no hay significación intrínseca alguna de las personas entre sí independiente de su interacción real. En la medida que estos status relativos están definidos y regulados em términos de uma cultura común, es válida la siguiente afirmación, en apariencia paradójica: solo puede entenderse lo que son las personas en términos de um conjunto de creencias y sentimientos que definen lo que ellas deberían ser. Aun cuando esta proposición es verdadera solo de un modo muy general, resulta crucial para el entendimiento de los sistemas sociales. (PARSONS, 1953, p.16) Os ambientes culturais, físicos, biológicos, psicológicos e sociais, variam muito de uma para outra sociedade, deixando claro que estas são interdependentes desses fatores ambientais. A análise teórica leva a crer que dentro da sociedade ocorrem processos interligados entre estas diferentes partes que a constitui, e são responsáveis pela mudança estrutural da mesma. Se tomarmos por base uma sociedade, logo estaremos adentrando nos diversos campos em seu interior. Instituições como universidades, igreja, órgãos públicos são campos culturais com seus próprios valores que destoam muito ou pouco da cultura comum. Paralelo a esta constatação, ocorre que a cultura da maioria é permeada por diversos nichos culturais menores que participam do processo de interação com a cultura da maioria ou a cultura institucionalizada, quer a nível individual ou grupal. Portanto uma cultura nunca é pura e está sempre em processo de diálogo com outras formas de interpretação do mundo. Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 185 Retomando a importância do indivíduo dentro do sistema social, percebe-se que a possibilidade de trabalhar o papel do indivíduo na sociedade permanece aberta na teoria de Parsons. Esta considera um sistema como algo a ser compreendido a partir de um ponto de vista que pode alternar entre um indivíduo, um grupo ou uma sociedade. Assim sendo, um ator social pode influenciar toda uma mudança na orientação cultural de um dado lugar; ao mesmo tempo em que ele recebe deste, cultura, religião, língua, etc., através das relações que ocorreram no tempo e no espaço. A partir do momento em que age, podendo ser de forma física ou verbal/gestual, proporciona sua contribuição no processo histórico, que por sua vez agrega outras ações e o retroalimenta com uma nova carga de componentes sociais e culturais. Torna-se, portanto, primordial não excluir nem o sujeito, nem o contexto sócio-cultural: ambos devem ser vistos em relação. O ator deve ser visto dentro de seu meio social, porém deve ser lembrado que a transposição dos limites postulados por este também ocorre. Visto dessa forma, Parsons propõe uma teoria estrutural, um modelo generalizante em contexto historicamente construído. Explorando-se a obra de Talcott Parsons juntamente com o estudo de História, é possível analisar no processo histórico a influência mútua do indivíduo e do corpo social no qual este está inserido. As análises de Parsons, ao apresentar certas divergências da maior parte da historiografia usual, podem contribuir significativamente para a ampliação de novos horizontes e reflexões no campo da História. MILANELLO, Tatiana Rodrigues e SABADINI, Francisco de Assis. The individual and colletive in the analysis of the past: an integrated approach by Talcott Parsons ABSTRACT: The present work aims to expose and illustrate the importance of dialogue in history with the other social sciences - especially sociology - presenting findings of the American sociologist Talcott Parsons about the individual and their forms of action within a social system as well as the role of culture in this process. His extensive work currently little attention in Brazil, may contribute significantly to many studies in social sciences, including history. KEY WORDS: Social Sciences, Talcott Parsons, theory of action. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARRUDA, José Jobson. Linhagens historiográficas contemporâneas por uma nova síntese histórica. Revista Economia e Sociedade, Campinas, (10): 17591, jun. 1998. 186 Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009 ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006 BLOCH, Marc. 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