jacobinos e sans culottes na revolução francesa

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ENSAIOS DE HISTÓRIA
Universidade Estadual Paulista
São Paulo State University
Reitor
Prof. Dr. Herman Jacobus Cornelis Voorwald
Vice-Reitor
Prof. Dr. Julio Cezar Durigan
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
Diretor
Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel
Vice-Diretor
Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Coordenador
Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi
Vice-coordenadora
Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino
UNESP - Universidade Estadual Paulista
UNESP – São Paulo State University
ENSAIOS DE HISTÓRIA
Revista do Curso de Graduação em História
ISSN 1414-8854
Ensaios de História
Franca
v. 14, n. 1/2 p. 188 2009
ENSAIOS DE HISTÓRIA
Comissão Editorial
Presidente
Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi
Corpo Editorial
Aluana Mayra Borges Rodrigues
Amanda Cristina Stefan
Ana Paula Svirbul de Oliveira
Arthur Jorge Dias de Morais Coelho
Bárbara Mariani Polez
Carolina Defensor Ribeiro
Danilo Medeiros Gazotti
Francisco de Assis Sabadini
Joyce Aparecida Ferraz Vidal
Kátia Lima de Oliveira
Marcos Felipe Godoy
Nívea Lins Santos
Olinda Cristina Pacheco Scalabrin
Paula Fernandes Henrique
Tatiana Rodrigues Milanello
Thiago Fidélis
Publicação Semestral/Semestral Publication
Solicita-se permuta/Exchanged desired
Endereço/Adress
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
Contato: Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, Jardim Dr. Antonio Petráglia,
CEP 14409-160, Franca/SP, Brasil
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Ensaios de História (Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP) Franca,
SP, Brasil, 1996-2009, 1-14
ISSN 1414-8854.
Capa: Soldado Romano com a Cabeça de um inimigo Daco. Desenho e arte final:
http://planeta.terra.com.br/arte/mundoantigo/roma/
APRESENTAÇÃO
Desde o ano de 1996, o curso de graduação (bacharelado e
licenciatura) em História da Universidade Estadual Paulista campus Franca
possui a revista Ensaios de História, fundada pelos graduandos em História e
cujo espaço de publicação volta-se exclusivamente a graduandos de diversas
instituições de Ensino Superior.
É notável o prestígio alcançado pela revista, que ao longo desses mais
de dez anos tem seus exemplares disponíveis em cento e cinco instituições
cadastradas, dentre as quais cinco do exterior; além disso, é uma das poucas
publicações no meio acadêmico que tem como foco a publicação de
graduandos.
A revista Ensaios de História é vinculada ao Conselho de Curso e o
chefe deste é também o presidente da Comissão Editorial, que tem como
membros discentes alunos da graduação do curso de História. Tendo em
conta a importância dessa atividade como um espaço incentivador da
pesquisa científica, seja ela de caráter individual ou coletivo, o grupo PET História participa nessa como Comissão Editorial, mais ainda cabe lembrar
que alunos da graduação não pertencentes ao grupo PET têm total
autonomia e liberdade para ingressarem neste corpo editorial, uma vez que a
revista é de responsabilidade do Conselho de Curso, e não somente do PET
História.
O envio de artigos é aberto a todas as áreas de pesquisa em História,
sem restrição de assuntos ou temas, abordando inclusive os estudos sobre
prática educacional, uma vez que nosso currículo acadêmico é também
composto por disciplinas dessa natureza. O critério para a aceitação dos
artigos é que os mesmos recebam o endossamento pelos respectivos
professores orientadores, demonstrando assim comprometimento em relação
ao trabalho produzido.
O trabalho de editoração é subdivido entre uma comissão que é
responsável pela correção gramatical e ortográfica e um segundo grupo que
se responsabiliza pela normatização e diagramação do texto, de maneira a
enviá-lo à gráfica nos moldes para a impressão, publicação e envio às
demais universidades cadastradas.
Logo, o presente trabalho tem grande relevância uma vez que atua de
maneira a instigar os graduandos à atividade de pesquisa e a produção
escrita dessas, sendo um dos pilares da formação dos futuros historiadores.
SUMÁRIO
ALIANÇA POPULAR: JACOBINOS E SANS CULOTTES NA REVOLUÇÃO
FRANCESA
Amanda Cristina STEFAN ....................................... 09
ENTRE OS EMBATES DA LEI DA ANISTIA
Ana Paula Lage de OLIVEIRA
Tiago Santos SALGADO
Victor Augusto Ramos MISSIATO ............................ 17
A EXPORTAÇÃO DA DEMOCRACIA COMO POLÍTICA EXTERNA DOS
ESTADOS UNIDOS
Ariel Andrade de PAULA ......................................... 27
A CONSTRUÇÃO DO NACIONALISMO
Bárbara Mariani POLEZ........................................... 39
AS TRANSFORMAÇÕES CIENTÍFICAS, E O IMPERIALISMO DO SÉCULO XIX
Carolina de Oliveira BELTRAMINI ........................... 47
A HISTÓRIA CÍCLICA ENTRE O MITO E ESCLARECIMENTO
Carolina Defensor RIBEIRO .................................... 55
POLÍTICAS NAPOLEÔNICAS PARA UMA FRANÇA EM CRISE
Danilo Medeiros GAZOTTI ...................................... 63
A ESTRADA DE GOYAS E AS CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DO
MUNICÍPIO DE IGARAPAVA
Diego Lopes de CAMPOS ....................................... 71
O RADICALISMO DA REFORMA NO SÉCULO XVI: OS ANABATISTAS
Filipe Faulin VALENTIM........................................... 79
A MARSELHA: DE CANÇÃO REVOLUCIONÁRIA À HINO OFICIAL DA
REPÚBLICA DA LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE
Henrique Franco da ROCHA ................................... 87
ERASMO, OS DEBATES TEOLÓGICOS E A REFORMA
Jéssica Abud de SOUZA ......................................... 95
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
7
ENTRE O LIBERALISMO E O SOCIALISMO: DISCUSSÃO SISTÊMICA DA OBRA
DE NORBERTO BOBBIO POR PERRY ANDERSON
Thiago FIDELIS
Kátia Lima de OLIVEIRA ......................................... 103
INTELECTUALIDADE E IMPERIALISMO. O DARWINISMO SOCIAL PRESENTE
NA WELTANSCHAUUNG EUROPÉIA ENTRE 1870-1914
Leonardo Fernandes HENRIQUE ............................ 113
ARTE, CIÊNCIA E IMAGEM SOBRE O EGITO NA FRANÇA DE NAPOLEÃO
Luiz Fernando Pina SAMPAIO ................................ 123
O TRAÇADO DAS CIDADES DO BRASIL COLONIAL SOB A LUZ DA
HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
Marcos Felipe GODOY ............................................ 133
RESGATANDO MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: VIDA, OBRA E
CONTRIBUIÇÕES PARA FILOSOFIA E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
Olinda Cristina Pacheco SCALABRIN ..................... 141
BIPARTITE: A PRESERVAÇÃO DO RELACIONAMENTO ENTRE A IGREJA E O
ESTADO BRASILEIRO NA DITADURA MILITAR
Ricardo Augusto Aidar ABIB .................................... 151
ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL DURANTE O PERÍODO DOS
HÀN POSTEIORES
Rud Eric PAIXÃO..................................................... 161
A VISÃO DE TOMÉ APÓSTOLO PELOS GNÓSTICOS E SUA INFLUÊNCIA
SOBRE OS MANIQUEUS
Samuel Cardoso SANTANA .................................... 171
O INDIVIDUAL E O COLETIVO NAS INTERPRETAÇÕES DO PASSADO: UMA
PERSPECTIVA INTEGRADA ATRAVÉS DE TALCOTT PARSONS
Francisco de Assis SABADINI
Tatiana Rodrigues MILANELLO .............................. 181
8
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
ALIANÇA POPULAR: JACOBINOS E SANS CULOTTES NA REVOLUÇÃO
FRANCESA.
Amanda Cristina STEFAN*
RESUMO: A Revolução Francesa foi um dos acontecimentos mais marcantes do século
XVIII, tanto por sua influência em outras revoluções, quanto pela grande participação
popular. Dentro daquilo que consideramos participação popular, destaca-se a aliança
formada entre jacobinos e sans culottes, aliança esta que possibilitou a extensão da
Revolução num momento em que setores revolucionários de classe média haviam
decidido que chegara a hora do conservadorismo. Assim sendo, este artigo tem por
objetivo analisar esta relação que se deu entre jacobinos e sans culottes e a sua
posterior ruptura por divergências de posições políticas.
PALAVRAS - CHAVE: Jacobinos – Sans Culottes – Revolução Francesa
Em 1794, Robespierre, considerado líder da Revolução Francesa no
período jacobino, presencia a queda de sua popularidade que se encerraria
no dia 9 do Termidor. A derrocada do líder revolucionário e do seu apoio
popular pode ser explicada pela divergência política com os sans culottes ao
longo do processo revolucionário. Para compreendermos esta crise, é
necessário entender esta contradição entre os ideais jacobinos e dos sans
culottes, e para isso traçaremos um paralelo entre o nascimento do
jacobinismo e a aliança com o movimento secionário sans culotte.
O Clube dos Jacobinos (que recebeu este nome pois transferiu-se para
a biblioteca dos monges dessa ordem: jacobinos) ou Sociedade dos Amigos
da Constituição, inicialmente Clube Bretão,
Congregava todos os partidários da nova ordem revolucionária,
desde Mirabeau e La Fayette, até Robespierre e Marat. A maior
parte das questões discutidas na Assembleia Constituinte eram
primeiramente examinadas no Clube dos Jacobinos. Sociedades
filiadas foram abertas nas províncias, e o Clube dos Jacobinos
não cessou em crescer em importância 1
Dessa forma, o objetivo da sociedade era, então,
*
1
Aluna do 4º ano de graduação em História, FCHS/UNESP – Franca/SP, sob
orientação da Prof. Pedro Geraldo Tosi. Bolsista PET/MEC/SESu.
MANFRED, A. A Grande Revolução Francesa. Editora Ícone, 1986. p. 87.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
9
discutir as questões que deveriam ser debatidas na Assembleia
Nacional; trabalhar para o estabelecimento e a Consolidação da
Constituição; corresponder-se com outras sociedades do mesmo
tipo que viessem a se formar no reino2
O Clube começou a crescer e agrupar cada vez mais adeptos, o que
significava uma diversidade de opções políticas. Com o aumento do número
de membros, as tendências do clube começavam a se delinear em direita,
esquerda e de centro. À direita, ficavam os nobres liberais, à esquerda,
constavam alguns patriotas declarados (como Robespierre) e o grupo de
centro, defensor de uma monarquia liberal, mas não democrática, que
manteve uma certa influência dominante dentro do Clube. Somente os
patriotas declarados lutavam contra o sufrágio censitário.
No entanto, em meados de 1791, o partido patriota (leia-se
jacobinos), formado à época da Convenção dos Estados Gerais,
viu-se pela primeira vez diante de uma ruptura definitiva. Face à
recusa do rei a um compromisso com a burguesia constituinte,
que se manifestara tanto com sua fuga em junho de 1791 quanto
pela fuzilaria do Campo de Marte no mês seguinte, quando se
levantaram as primeiras vozes seguindo a instalação da
República, ocorreu uma ruptura que dividiu os jacobinos entre
Feuillantes – defensores da continuidade da monarquia, apesar
de tudo – e os que permaneceram no Clube Jacobino 3
Dentro do Clube estavam então, os “jacobinos mistos” – expressão
utilizada por Michelet, para demonstrar a diversidade política que se
encontrava o Clube, que passa a ter duas principais lideranças, a de Brissot,
futuros girondinos, que apoiavam a guerra e Robespierre, contrário à guerra.
Posteriormente, o clube sofreria uma ruptura ocasionada justamente pela
discordância entre o apoio ou não da guerra contra as monarquias européias.
Por seu posicionamento político, os brissotistas passam a ter maior
influência dentro do Clube, sendo, inclusive, convocados pelo rei Luís XVI ao
ministério em Março de 1792.
2
3
VOVELLE, Michel. Jacobinos e Jacobinismo. Editora Edusc. 2000. p. 37.
OLIVEIRA, Josemar Machado de. Robespierre e a “oposição de esquerda”: as
contradições da democracia revolucionária. Dimensões: Revista de história da UFES.
Vitória. N. 13, p. 28-29, jul/dez, 2001.
10
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Porém, a política de guerra dos brissotistas logo lhes trouxe
impopularidade e a radicalização da Revolução, coisa que não
desejavam, no momento em que a França passava por um
verdadeiro caos provocado pela derrota militar e pela invasão
estrangeira4
Então, neste contexto de insegurança, os jacobinos não temem em
formar uma aliança com o povo parisiense, os sans culottes,e acabam por
romper com a ala mais moderada dos jacobinos, liderados por Brissot.
A última alternativa para o radicalismo burguês eram os sans
culottes, um movimento disforme, sobretudo urbano, de
trabalhadores pobres, pequenos artesãos, lojistas, artífices,
pequenos empresários, etc. Os sans culottes eram organizados
principalmente nas “seções” de Paris e nos clubes políticos, e
forneciam a principal força de choque da Revolução – eram eles
os verdadeiros manifestantes, agitadores, construtores de
barricadas 5
Esta aliança desembocou na derrubada da monarquia e na
vitória da chamada Segunda Revolução Francesa, a da Comuna
Insurrecional do 10 de Agosto de 1792, que estabeleceu a
República daquele ano. A partir de então, o jacobinismo foi
dominado por Robespierre 6
Ainda assim, os brissotistas mantinham postos de extrema importância
dentro da Convenção, principalmente por seu grande número de
representantes. A partir de então, os girondinos passam a lutar abertamente
contra os jacobinos pelo controle das instituições políticas. É importante
ressaltar que neste período, início de 1793, a situação da França se agrava
em conseqüência da derrota na guerra.
Neste momento, uma transformação na ordem política estava prestes a
ocorrer.
Diante desses fatos, a luta entre girondinos e jacobinos começou
a tornar-se favorável a estes últimos. Os girondinos
demonstravam clara incompetência para resolver a crise, quando
não se bandeavam para o lado inimigo (caso do general
4
5
6
Idem.
HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
p. 28.
OLIVEIRA, Josemar M. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições da
democracia revolucionária.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
11
Dumouriez). Sentindo-se feridos em seus sentimentos patriotas,
os sans culottes depositaram todo seu apoio em Robespierre e
em seus companheiros. Outro ponto importante para esse apoio
foi a desconfiança que tinham face à hesitação dos girondinos
em colocar em prática suas principais reivindicações sociais 7
Os sans culottes saudaram um governo revolucionário de guerra,
e não apenas porque defendiam com razão que só assim a
contra-revolução e a intervenção estrangeira podiam ser
derrotadas, mas também porque seus métodos mobilizavam o
povo e tornavam mais próxima a justiça social.8
O confronto entre jacobinos e girondinos teve como resultado a
expulsão desses últimos da Convenção e a instalação de um Governo
Jacobino. Tal acontecimento não seria possível sem o apoio popular.
Organizados no movimento sans culottes, possuíam clara influência
rousseaniana.
Isto quer dizer que sua concepção revolucionária se confundia
com a defesa intransigente dos princípios da soberania popular,
das quais as seções parisienses pretendiam ser a encarnação
prática. Esses elementos da ideologia sans culottes, derivados
do pensamento rousseauista que exerceu influência
generalizada nas idéias políticas da Revolução, podem ser
identificadas nas práticas secionarias, como por exemplo, a idéia
de que as assembléias das seções deviam ser permanentes e
que dentro delas o voto seria em voz alta (escrutínio aberto) 9
Os secionários (sans culottes), também eram claramente contra a idéia
de representação. Revogabilidade, sanção popular das leis e mandato
imperativo são palavras de ordem presentes no vocabulário secionista.
Portanto, com a instalação da Convenção Montanhesa (Jacobina),em
1793, a Revolução chega ao seu auge do radicalismo. Com a instalação da
Convenção, acreditava-se que, finalmente, os interesses populares seriam
efetivados, concretizando o ideal de soberania que reside no povo, afinal,
jacobinos e sans culottes possuíam praticamente o mesmo discurso,
embasados na Teoria de Rousseau.
O processo da Revolução, agora nas mãos dos jacobinos, parecia que
desencadearia nesse caminho, algumas reivindicações populares foram
7
8
9
12
OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições
da democracia revolucionária. p.30.
HOBSBAWN, Eric. A Revolução Francesa.p. 37.
Op. Cit. p. 31.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
admitidas, sobretudo com relação à questão da máxima geral de preços, ou
seja, o tabelamento dos gêneros de primeira necessidade.
Uma questão chave vem à tona nesse momento da Revolução.
Além das reivindicações que estavam ligadas ao abastecimento,
a poussé sans culotte (impulso popular) de setembro de 1793
tinha como uma de suas reivindicações a constituição do
governo revolucionário. Dessa forma, a aliança jacobino/sans
culottes garantiu a formação de um governo revolucionário que
se fundamentava num programa baseado na defesa da
soberania popular e no apoio às reivindicações sociais do
movimento democrático secionário, pelo menos em parte. Sem
este programa, teria sido impossível a derrubada dos girondinos
e a ascensão dos montanheses ao poder.10
Porém, o estabelecimento do governo revolucionário da ditadura
do comitê de salvação pública rompeu com esse programa, já
que ele era o resultado de um processo de concentração de
poder que se iniciou a partir do início do verão de 1793 e teve
sua conclusão em dezembro do mesmo ano, quando o Comitê
de Salvação Pública passou a ser o verdadeiro chefe do
Executivo, o que significou a concentração de poderes entre as
mãos dos mandatários do povo, como a única expressão
possível do indispensável despotismo da vontade geral11
Isso significa que, com ascensão dos poderes dos jacobinos, estes
mudaram seu discurso ideológico. Da defesa de que a vontade geral deveria
ser expressa pela soberania popular, e que esta deveria ser inalienável,
passaram a defender a posição de que a decisão política deveria ser
transferida para a Convenção, particularmente para o Comitê de Salvação
Pública, o que significava uma concentração de poderes nas mãos dos
mandatários do povo como única forma de expressão possível.
Essa mudança de discurso reside, principalmente, no fato de que
o desenrolar da Revolução esteve sempre submetido a uma
conjuntura de crise permanente e da necessidade da tomada de
medidas urgentes, portanto, de como adequar a teoria política,
largamente influenciada pela teoria de Rousseau, à prática. 12
OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições
da democracia revolucionária. p.32.
11 OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições
da democracia revolucionária. p.32-33.
12 Idem.
10
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
13
Assim, as tarefas inadiáveis - o combate à contra revolução e à guerra
nas fronteiras – ocasionaram nesta mudança de discurso por parte dos
principais nomes do jacobinismo. Essa mudança se fez necessária, pois a
crise atingia o cotidiano revolucionário, e difíceis escolhas deveriam ser
feitas. O governo necessitava ser estruturado, e para isso eram utilizadas
medidas que nem sempre eram aquelas que interessavam à população e
que não correspondiam aos princípios do governo direto. Dessa forma,
defendia-se medidas que eram frutos de um estado de exceção.
Nesse processo de adequação da teoria democrática
rousseauista à prática, os conteúdos e as práticas do movimento
secionário eram logicamente incompatíveis com os
procedimentos de exceção defendidos por Robespirre e seus
companheiros. Estes procedimentos foram encarados como um
óbice ao poder do governo revolucionário. Os robespierristas não
hesitaram em fazer com que os elementos que compunham a
prática da democracia direta secionaria fossem eliminados um a
um13
Com estas medidas, os sans sulottes vão mostrar-se cada vez mais
descontentes. O formato democrático que caracterizava as seções, vai sendo
aos poucos eliminado pela própria Convenção. As assembléias gerais vão
sendo substituídas por apenas duas assembléias por semana, depois duas
por décade (cada década correspondia a dez dias no calendário
revolucionário), além do fato de os comitês revolucionários ficarem
submetidos aos poderes do Comitê de Convenção, que passam a escolher
seus membros, antes responsabilidade das assembléias de seção.
Assim, através do governo revolucionário, Robespierre e os jacobinos,
iniciam uma política do terror, objetivando levar o governo a uma maior
centralização do poder nas mãos do Comitê de Salvação Pública. Nesse
momento, o movimento secionário vai sendo aos poucos eliminado.
Para Robespierre, o governo revolucionário era o único capaz de
representar o povo soberano uma vez que correspondia à vontade geral,
salientando o caráter ditatorial que assumira o Comitê. Muito diferentes eram
as idéias dos hebertistas (principais porta-vozes dos sans culottes), cujos
ideais ainda mantinham coerência com a teoria de Rousseau, no sentido de
que acreditavam na importância da soberania popular, fato que já não ocorria
integralmente com a instauração da ditadura do Comitê de Salvação Pública.
13
OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições
da democracia revolucionária. p.34.
14
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Na mesma conjuntura política, os jacobinos e porta-vozes do
movimento secionário explicitaram claras diferenças em relação
à democracia revolucionária. Estas divergências acabaram por
levar a uma luta “fratricida” que culminou com o ostracismo
destes porta-vozes ou mesmo sua eliminação física, como
acabou acontecendo com os hebertistas em março de 1794. 14
As massas, portanto, recolheram-se ao descontentamento ou a
uma passividade confusa e ressentida, especialmente depois do
julgamento e execução dos hebertistas, os mais ardentes portavozes dos sans culottes15
Por sua vez, o movimento secionário sans culotte, entravado em
sua organização de base e agora também sem sua liderança,
desarticulou-se a partir desta data. Os robespierristas, olvidando
sua dependência em relação à base popular sans culotte,
acabaram por ficar à mercê dos inimigos da Revolução Popular.
Daí para o 9 do termidor foi um pulo. 16
Assim, o movimento sans culottes, sem seus principais porta-vozes,
desarticula-se. Da mesma forma, os jacobinos caem, por não mais
possuírem o apoio popular.
STEFAN, Amanda Cristina. Popular aliance: jacobina and Sans culottes in the French
Revolution.
ABSTRACT: The French Revolution was one of the most remarkable events of the
eighteenth century, both for its influence in others revolutions, as the great popular
participation, a fact sometimes considered unprecedented in History. Within what we
consider popular participation, there is the alliance formed between Jacobins and sans
culottes, this alliance that made possible the extension of the revolution at a time when
revolutionary sectors of the middle class had decided that it was time for conservatism.
Therefore, this article aims to analyze the relationship between the Jacobins and sans
culottes and their subsequent disruption by differences in political positions.
KEYWORDS: Jacobins, Sans Culottes, French Revolution
OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições
da democracia revolucionária. p. 36.
15 HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. p. 45.
16 OLIVEIRA, Josemar M. de. Robespierre e a oposição de “esquerda”: as contradições
da democracia revolucionária. p.36.
14
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
15
BIBLIOGRAFIA:
HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1996.
MANFRED, A. A Grande Revolução Francesa. Editora Ícone, 1986.
MARAT, Jean. Robespierre, o Incorruptível. Editora Nova Fronteira, 1971.
OLIVEIRA, Josemar Machado. Artigo: Robespierre e a oposição de
“esquerda”: as contradições da democracia revolucionária.
SOBOUL, Albert. Camponeses, Sans-Culottes e Jacobinos, Albert Soboul.
Editora Seara Nova, 1974
VOVELLE, Michel. Jacobinos e Jacobinismo. Editora Edusc. 2000.
16
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
ENTRE OS EMBATES DA LEI DA ANISTIA
Ana Paula Lage DE OLIVEIRA;
Tiago Santos SALGADO;
Victor Augusto Ramos MISSIATO.
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o processo histórico que
acarretou a aprovação da Lei de Anistia (1979) em pleno regime militar e os motivos que
levaram tal lei a ter seus princípios ainda discutidos no cenário político brasileiro,
revelando uma “disputa” entre membros do governo, que estiveram engajados na luta
pelo fim da ditadura, e membros da cúpula das forças armadas pela validade ou não da
Lei aprovada em 1979.
PALAVRAS CHAVE: Anistia, regime militar, forças armadas.
LEI DA ANISTIA (1979)
Sancionada no dia 28 de agosto de 1979, pelo presidente general
Figueiredo, a Lei de Anistia teve como um dos principais objetivos garantir
uma transição tranqüila do regime militar para a democracia. A Lei de Anistia
apresentava como intenção paralisar as penas dos acusados de “subversão”,
trazer de volta presos exilados, retirar das prisões indivíduos que foram
detidos como “inimigos do Estado”, liberar os militares de possíveis crimes
cometidos, além de restaurar direitos políticos e sociais; e, assim, fazer uma
anistia “ampla, geral e irrestrita”.
Passados quase 20 anos de sua adoção, a Lei de Anistia continua
gerando discussões acerca de seu entendimento, visto que alguns de seus
artigos geram polêmica devido à suscetibilidade a diferentes interpretações.
Durante os últimos meses de 2008, a questão da Anistia foi amplamente
debatida no cenário político nacional, gerando desentendimentos entre
integrantes do governo, que divergem quanto à amplitude da Lei em relação
aos militares, acusados de cometerem torturas contra presos políticos
durante o regime militar brasileiro (1964 a 1985), e as Forças Armadas, que
alegam que a lei não deve ser alterada.
A discussão foi intensificada majoritariamente pelo lançamento do livrorelatório, em agosto de 2007, “Direito à Memória e à Verdade”, que acusa o
regime militar de torturas e mortes, além de detalhar os processos de
aproximadamente 400 desaparecimentos durante o governo militar. O
presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, declarou que o livro é um
documento oficial, afirmação que gerou o primeiro mal estar entre a cúpula
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
17
do governo e as Forças Armadas, implicando em uma reunião, ocorrida no
dia 31/08/2007, com a presença do alto comando do Exército para se discutir
a obra. A repercussão causada pelo livro, de acordo com os militares,
poderia ter sido evitada, fazendo assim, com que a discussão acerca da
Anistia não tomasse uma dimensão tão grande.
A discussão ganhou ainda mais divulgação com a chamada “questão
Lamarca”. Carlos Lamarca foi um ex-militar, que desertou, e se juntou ao
grupo denominado Vanguarda Militar Revolucionária1, se tornando um
guerrilheiro. O ministro da Justiça Tarso Genro concedeu anistia post-mortem
a Lamarca, decisão que desagradou o alto escalão das Forças Armadas, que
entraram com uma representação contrária a concessão da Anistia ao exmilitar, para o Exército, somente poderia ser promovido post-mortem o oficial
que ao falecer, satisfizesse as condições de acesso e integrava a faixa dos
oficiais, o que não era a situação de Lamarca.
Sendo assim, fica clara a posição dos militares quanto à “questão
Lamarca”. Os mesmos se colocam de forma contrária aos benefícios
concedidos à família de Lamarca, os quais foram suspensos no dia 05/10/07,
através de uma liminar concedida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro,
devido a uma ação movida pelo clube militar, evidenciando uma discordância
nítida entre as Forças Armadas, juntamente com o Ministro da Defesa Nelson
Jobim, e o Ministro da Justiça Tarso Genro.
A questão da Anistia entra definitivamente no campo de discussões
entre membros das Forças Armadas e do governo, quando em abril de 2008
os coronéis reformados, Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, que
comandaram o Destacamento de Operações de Informações do Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-Codi)2 do segundo Exército em São Paulo
durante os anos de 1970 e 1976, são acusados, pelo Ministério Público
Federal (MPF) pela morte e desaparecimento de 64 pessoas. Foi a primeira
vez que militares foram acusados, pelo MPF, por atos ocorridos na ditadura.
Em coluna do jornal Folha de S. Paulo do dia 16 de junho de 2008,
Aloysio Castelo De Carvalho e Liszt Vieira defenderam que a luta armada na
ditadura militar no Brasil (1964-1985) teve impacto na derrocada do regime
político ditatorial. Carvalho e Vieira afirmam que a Lei de Anistia preservou as
1A
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foi uma organização brasileira de esquerda
que lutou contra o regime militar tendo se formado em 1966 a partir da união dos
dissidentes da organização Política Operária (POLOP) com militares remanescentes do
Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR).
2 O Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI) foi o órgão de inteligência e repressão do governo brasileiro
durante o regime militar.
18
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Forças Armadas de qualquer punição referente aos ataques exercidos contra
a oposição do governo na época. Citando Locke, os autores justificaram que
qualquer ação em resposta a uma opressão política deve ser legitimada, já
que é o povo que sofre com isso. Finalizando o artigo, os dois autores
disseram que caso a luta armada no pós-1968 fosse considerada equívoca
pelos representantes da esquerda, atualmente, ela não sofreria com
questões que a enfraquecem, do ponto de vista moral, frente ao seu apoio no
atual governo 3.
As posições contrárias à revisão da Lei defendem que essa questão já
deveria estar encerrada. Nelson Jobim, ministro da Defesa, é um dos que
compartilham com esta idéia. Ao ser questionado sobre uma possível
mudança no documento, Jobim afirmou que cabe ao Judiciário julgar se é
necessário ou não tal revisão. No dia 06/08/08, o general da reserva Gilberto
Barbosa de Figueiredo, presidente do Clube Militar, em entrevista para o
jornal Estado de S. Paulo, salientou que uma mudança na Lei de Anistia
traria mais problemas para os ex-guerrilheiros, os quais combateram o
regime militar, do que para os militares. Isso se daria, na opinião de
Figueiredo, devido aos arquivos registrados, os quais explicitam os delitos
cometidos pelos guerrilheiros.
Em nota oficial4, representando o Clube Militar, Figueiredo critica alguns
representantes do governo por tentarem fazer com que a Lei de Anistia seja
revisada. Além disso, não concorda que agentes de estado sejam punidos
por terem torturado prisioneiros no regime militar. Defende que essa Lei foi
criada com o intuito de estabelecer uma “pacificação nacional”. No
documento, o general da reserva cita o professor Ives Gandra Martins, como
um dos juristas que corroboram com a posição do Clube Militar. Para Martins,
a anistia firmada na Constituição de 1988, abarcou todos os delitos
cometidos por ambos os lados. No final do texto, Figueiredo tenta entender o
porquê dessa revisão:
Não faz sentido, mesmo, fazer vista grossa para problemas tão
graves que afligem a sociedade brasileira hoje, para dar
prioridade a fatos de um passado de três décadas, em que a
eficácia do que pretendem é juridicamente controversa, pelo
menos. A explicação pode estar em um revanchismo doentio ou
em preparativos, visando às eleições de 2010. Muito
provavelmente em ambos.
3
4
Informe Brasil Nº 297, 5.
http://www.clubemilitar.com.br/site/pres/anistia.pdf - visitado em 08/12/2008
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19
O almirante José Julio Pedrosa, presidente do Clube Naval, caracterizou
essa discussão como um ato político. No mês de agosto de 2008, ocorreu no
Clube Militar, um seminário com o tema “A Lei de Anistia – Alcance e
Conseqüências” 5. Tanto oficiais da ativa como os da reserva estiveram
presentes. Essa reunião ganhou um caráter público, com o objetivo de evitar
que agentes de Estado da época sejam julgados por violação aos direitos
humanos. Esse evento contou com a participação de três seminaristas. O
general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho, o doutor Antônio José Ribas
Paiva e o ex-ministro do Superior Tribunal da Justiça, Waldemar Zveiter.
Coutinho considerou que esse movimento para revisar a Lei de Anistia
poderia ser considerado “revanchismo”, por parte de marxistas-leninistas.
Esses revolucionários, na opinião do general, desejariam com isso, levar a
cabo um projeto socialista e enfraquecer a influência das Forças Armadas na
sociedade brasileira:
Tudo isso, senhores, para neutralizar as Forças Armadas como
trincheiras da burguesia, entre aspas, porque essa é a
expressão de Antônio Gramsci, a grande barreira, como foi
chamada pela União dos Comunistas Brasileiros que fizeram a
sua autocrítica no Chile e em Portugal em 1979.
Ribas Paiva trabalhou com a alegação de que a Lei de Anistia foi uma
iniciativa da nação brasileira, e não apenas de um ou dois representantes do
governo na época. Esse documento serviu de “instrumento para a
pacificação nacional”. Continuou sua explanação refletindo sobre o objetivo
dessa tentativa de revisão. Para o doutor, a meta a ser alcançada com isso
seria fazer com que a sociedade volte a se repartir. Questionou também se
essa divisão teria como finalidade manter a população em uma pobreza
artificial e continuar usufruindo seus recursos naturais.
Waldemar Zveiter alegou que a Lei da Anistia preenche todos os
requisitos. Analisa que a tipificação do crime de tortura só se deu em 1997.
A Anistia foi ampla, geral e irrestrita. Não tem que se inventar
agora que houve tortura e que a tortura não foi anistiada. A
tortura não foi anistiada, é preciso que o senhor ministro da
Justiça saiba disso, se ele não souber, porque simplesmente não
existia como fato típico criminógeno, só por isso. 6
A LEI DA ANISTIA: ALCANCES E CONSEQÜÊNCIAS. Seminário promovido pelo
Clube Militar em 07/08/2008. Disponível em: www.undbrasil.org.
6 Idem
5
20
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Pela perspectiva de Adalgisa Bozi Soares, é relevante para a presente
discussão, a condenação pela justiça brasileira do coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra por um crime cometido no período do regime militar, foi um
marco para a sociedade brasileira e também para a retomada das polêmicas
sobre a Lei da Anistia. O coronel foi qualificado como torturador apenas, não
recebendo nenhum tipo de punição, já que a ação movida foi apenas
declaratória, mas Adalgiza considera um avanço significativo. A autora
publicou um artigo intitulado “Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da
Justiça e da Verdade” 7, no qual adiciona a questão das obrigações
internacionais do Estado à discussão da lei em questão, incrementando os
debates.
Adalgisa afirma que a anistia ampla, geral e irrestrita foi uma
reivindicação dos Comitês Brasileiros de Anistia à época do presidente
Figueiredo e que visava popularizá-la e também exigir a investigação dos
agentes de estado envolvidos em crimes contra a humanidade (que não
ocorreu). Conforme a autora, em nome da reconciliação, entendeu-se que a
lei de anistia era aplicável aos agentes do estado e àqueles que foram
perseguidos pelo regime (auto-anistia), conseqüentemente, houve um
esquecimento dos crimes cometidos pelos agentes de estado e a falta de
identificação desses agentes, ou seja: o estado é impedido de cumprir suas
responsabilidades internacionais e os agentes que cometeram os crimes, por
falta de identificação, continuam exercendo funções públicas.
Conforme colocado pela autora do artigo, “as responsabilidades
internacionais do estado são o conjunto de obrigações que nascem para o
estado a partir da violação de uma norma internacional. Desta forma, o
descumprimento de uma norma internacional, seja ela do direito costumeiro
internacional ou codificada em um tratado, exige que o estado cumpra certas
obrigações, com o objetivo de compensar as vítimas e impedir que a norma
seja descumprida no futuro. No caso específico da tortura, entende-se que o
país descumpriu sua obrigação primária de não torturar seus cidadãos.”8
Portanto, com a violação desta norma do direito costumeiro internacional,
surgem obrigações secundárias para o estado: descontinuar a violação da
norma; comprometer-se em não repetir a violação; deve reparar as vítimas;
instaurar um processo contra o indivíduo que cometeu o crime.
A questão colocada é: se a anistia foi recíproca, por que o coronel Ustra
foi declarado torturador? Porém, o crime de tortura foi interpretado até agora
como crime político ou conexo a este, cobertos pela Lei da Anistia, mas, seria
7
8
SOARES, Adalgisa Bozi. Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da
Verdade. IN: Brasil, Temas da nossa agenda, 2008.
Idem.
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21
a tortura um crime político ou um crime contra a humanidade? Essa é a
segunda questão a ser refletida, pois, segundo a constituição de 1988, a
Convenção Interamericana de Direitos Humanos e a Convenção das Nações
Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis a tortura é
reconhecida como crime contra a humanidade, sendo assim, imprescritível e
não sujeito à graça ou anistia. Retornando ao texto da lei de anistia, não há
concessão de anistia a crimes contra a humanidade, apenas a crimes
políticos.
Segundo Adalgisa, “o entendimento da Lei de Anistia como aplicável aos
agentes do estado está em franco desacordo com as regras internacionais.
Desta forma, não só o estado brasileiro não protegeu seus cidadãos durante
o regime, como recusa a dar-lhes, anos depois, o direito à verdade e à
justiça, por meio da punição de seus agentes que cometeram crimes
internacionais.” E ela enfatiza:
É verdade que muitos setores na sociedade brasileira se
posicionam contra a reinterpretação da lei de Anistia, em
conjunto com o Ministério da Defesa e outras alas do governo,
sob a justificativa de que não se constrói o futuro do país
olhando para o passado e alimentando revanchismos. O que
estes setores não vêem é que a demanda pela persecução penal
dos criminosos vai muito além do revanchismo, sendo justificada
primordialmente pelo direito à verdade e cumprimento das
responsabilidades internacionais do estado. 9
Mesmo que o aspecto das responsabilidades internacionais do estado
seja abstraído, analisando cruamente o fato de um indivíduo (agente do
estado ou não) ser hoje considerado um torturador, por crimes cometidos no
regime militar, do ponto de vista civil: o indivíduo deveria ser condenado por
crime duplamente qualificado (crime político ou conexo e crime contra a
humanidade); por um ele seria anistiado, de acordo com o previsto pela Lei
da Anistia, mas pelo segundo ele seria culpado e deveria receber punição, já
que a pena de um crime contra a humanidade tem efeito retroativo, sendo
imprescritível e não anistiável.
Os defensores dos direitos humanos no Brasil têm exigido o
reconhecimento às vítimas, reafirmando o compromisso do estado com o
cumprimento das normas internacionais e comunicando aos agentes do
estado do presente que a prática de tortura é inadmissível. Julgando os
agentes do estado daquele período, o Brasil poderá assumir com
legitimidade o lugar que tem buscado na comunidade internacional,
9
22
Idem
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
distanciando-se da imagem negativa que ostenta no campo da proteção dos
direitos humanos de seus cidadãos. Hoje, o Brasil é um dos únicos países,
ao lado da Guiana, que ainda não julgou os agentes do estado no período do
regime militar e segundo pesquisa feita pelas pesquisadoras norteamericanas Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling (citadas no artigo de
Adalgisa Soares), o país registra um aumento no índice de desrespeito aos
direitos humanos por agentes do aparato estatal.
No entanto, diante de tantas polêmicas, pode-se entender que estamos
no meio de uma avalanche de discussões que não levam em conta o
interesse e o bem-estar da Nação e da sociedade de forma geral. Estamos
presenciando um embate entre dois grupos que insistem em retomar
questões ultrapassadas em favor de seus próprios egos. De um lado uma
antiga esquerda que (ainda) estaria tentando romancear o movimento
comunista do qual fizeram parte, e de outro, os militares que tentam
resguardar suas “honras” enquanto estiveram no poder.
Se a briga é por poder e/ou por visibilidade e reconhecimento, as
autoridades, civis e militares, mas ambas brasileiras, deveriam seguir o
conselho de Hannah Arendt quando ela afirma: “quanto mais visível é uma
agência governamental, menos poder detém; e, quanto menos se sabe da
existência de uma instituição, mais poderosa ela é” (Arendt, 1979:153).
Guardadas as devidas proporções, já que a filósofa fala sobre o Estado
totalitário de Hitler, a afirmação ainda hoje faz sentido e deveria ser seguida
com atenção, valendo como conselho útil a todas as instituições estatais.
É evidentemente complicada qualquer discussão acerca da Lei de
Anistia, uma vez que, os envolvidos na questão também estiveram
envolvidos na elaboração da Lei e nos incidentes que ocorreram durante o
regime militar. Fica claro ao setor militar que a Anistia não foi uma “vontade”
de um grupo em particular, mas sim, uma reivindicação da sociedade
brasileira, que desejava um Estado democrático.
Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo Eliane Cantenhêde10 se
mostra contrária a esta polêmica, levando em consideração uma série de
erros cometidos por membros do governo e por militares, que tem início com
as declarações de Tarso Genro e culminam com o seminário no Clube Militar.
Em outro artigo publicado, desta vez no jornal O Estado de S.Paulo, por Dora
Kramer11 a jornalista atenta para o fato de que apenas ataques verbais não
solucionarão a questão e que esta discussão é um espelho dos
acontecimentos no último governo ditatorial, portanto, não seria interessante
a retomada deste assunto.
10
11
CATANHÊDE, Eliane. Jornal Folha de S.Paulo, caderno Opinião, 07/08/08.
KRAMER, Doria. Jornal O Estado de S. Paulo, caderno Opinião, 04/11/08.
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23
Em relação aos militares, os mesmos que desejam proteger a nação e o
Estado democrático, parecem se perder em meio a novas interpretações da
Lei e da Anistia que apenas enfraquece as Forças Armadas enquanto
instituição, esta que tem lidado com militares que apelam, inclusive, a foros
com palestras de oficiais de altas patentes, que sugestionam o
estabelecimento de um novo tipo de repressão ou um “novo-velho” modo de
governar, dando a impressão de que desejam novamente gerir a vida política
do país, como nos anos do regime.
Quanto à Lei em si, é bem verdade que o crime de tortura só foi
tipificado em 1997, conforme bem colocou o ex-ministro Waldemar Zveiter no
seminário do Clube Militar: “a lei dos crimes de tortura é a lei 9.455 de 1997 e
que foi aprovada em 7 de abril de 1997, por isso a Lei da Anistia não cuidou
como não poderia cuidar da tortura.” Porém, em 1988, o Brasil editou uma
nova Constituição. E no artigo 5º inciso 3° afirma-se: “ninguém será
submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Segundo
Zveiter, isso demonstra que “Brasil abomina de tal maneira a tortura que
inseriu matéria própria de legislação ordinária no texto da Constituição, a
criminalização da tortura.”
Por um lado, existe um “antes da Constituição de 88” (a.C.) e um
“depois da Constituição de 88” (d.C.), e a garantia que o país oferece aos
cidadãos de que não serão torturados ocorre d.C. Por outro lado, se a
Constituição considera a tortura um crime contra o ser humano, e se há
evidências documentais e físicas de que agentes estatais realizaram esse
tipo de atividade, e também considerando a tortura um crime imprescritível, o
país deveria reconhecer as vítimas, identificar e julgar os criminosos,
cumprindo com sua obrigação perante a sociedade e perante a comunidade
internacional. Sem luta de egos. Mas isso tem parecido muito complicado.
Militares e membros da alta cúpula do governo, uma vez que, estão
ocupando cargos onde a principal responsabilidade é resguardar os
interesses de toda população, têm o dever de lutar pelos interesses da
sociedade, deixando de lado antigas rixas e desavenças. No final das contas,
é preciso compreender que o regime militar acabou, e que estamos diante de
um país democrático, regime este, que foi conquistado após muitas lutas e
vitórias políticas, não apenas de e por um grupo, mas sim, uma vitória do e
pelo povo brasileiro.
Sendo assim, uma solução razoável seria deixar nas mãos da
sociedade a solução, já que a democracia é um valor prezado pelos pólos
que discordam nessa discussão. Autoridades do governo e militares e
defensores dos direitos humanos e as vítimas... Enfim, toda a sociedade, por
meio de um referendo, assim como foi realizado em 2007 com a questão das
24
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
armas, poderia decidir a questão da anistia e isso sim reconciliaria o país e
traria o bem-estar à Nação, organizando e integrando a sociedade brasileira,
conforme pretendia o regime militar e também com o que os governos atuais
também deveriam desejar.
Ana Paula Lage DE OLIVEIRA; Tiago Santos SALGADO; Victor MISSIATO. Clashes
between the Amnesty Law
ABSTRACT: This article aims to analyze the historical process that led to the adoption of
the Amnesty Act (1979) on the military regime and the reasons why such a law to take its
principles also discussed the political scene, revealing a "dispute" between
members government, who were engaged in the struggle to end dictatorship, and
members of the dome of the armed forces for the validity or otherwise of the act passed in
1979.
KEYWORDS: Amnesty, military regime, army
REFERÊNCIAS:
A LEI DA ANISTIA: ALCANCES E CONSEQÜÊNCIAS. Seminário promovido
pelo Clube Militar em 07/08/2008. Disponível em:
<http://www.undbrasil.org/>.
CARVALHO, Aloysio. Geisel, Figueiredo e a liberalização do regime
autoritário (1974-1985). Dados [online]. 2005, v. 48, n. 1, pp. 115-147. ISSN
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OBSERVATÓRIO CONE SUL DE DEFESA E FORÇAS ARMADAS. Informe
Brasil. Nº 290 a Nº 315. GEDES, 2008.
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor. Forças Armadas, transição e
democracia. Campinas, S.P. Ed: Papirus, 1994.
SCHELP, Diego. Questão fora de lugar. Revista Veja, Editora Abril. São
Paulo, número 2086, 2008. Pág 64-65.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
25
A EXPORTAÇÃO DA DEMOCRACIA COMO POLÍTICA EXTERNA DOS
ESTADOS UNIDOS
Ariel Andrade de PAULA*
RESUMO: Este artigo objetiva explanar acerca da correlação entre o conceito de espírito
do capitalismo, de Weber, e a política exterior dos Estados Unidos, e como os dois
fundiram-se em uma lógica que levou à expansão da democracia como norteadora das
relações externas desse país.
PALAVRAS-CHAVE: Estados Unidos, Política Externa, Democracia
É possível traçar-se uma relação entre o conceito weberiano de espírito
do capitalismo e a política americana? É a isso que o presente trabalho se
propõe; mas não se faz possível traçar essa relação sem antes tomar-se por
pressuposto algo inerente não apenas àquele país, mas à todos, que é o de
que uma dada atitude no plano de relações com outras nações não está
desvinculada da política interna, pelo contrário, é esta que guia-a.
Weber defende que o capitalismo, na sua expressão ocidental plena, é
gerido por um ethos, “uma atitude mental da qual deriva o espírito capitalista
especificamente moderno como um fenômeno de massa” 1; mais à frente ele
prossegue, dizendo:
O oponente mais importante contra o qual o “espírito” do
capitalismo – no sentido de um estilo de vida normativo baseado
e revestido de uma ética – teve de lutar, foi esse tipo de atitudes
e reação às novas situações, que podemos designar como
tradicionalismo.2
Em sua obra O Império do Medo, Benjamim Barber critica o moralismo
americano na política, sobretudo sua crença em seu próprio excepcionalismo
perante os demais povos, o que tem guiado desde os fundamentos dos
Estados Unidos sua política externa; à isso corrobora várias declarações de
estadistas americanos, como uma relativamente recente, do então presidente
George W. Bush de que “[...] os Estados Unidos são na face da Terra a
*
1
2
Orientado pelo prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Centauro, 2001. p. 45.
Idem p. 46.
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27
nação mais importante, povoada pelo maior número de gente decente”3. O
processo demográfico de colonização que o território que futuramente seriam
os Estados Unidos sofreu foi marcadamente uma ocupação de sectários de
doutrinas religiosas puritanas, o que marcou profundamente a cultura desse
país4; tais doutrinas, transplantadas para as atividades seculares, exerciam
forte controle sobre todos os aspectos do cotidiano e da própria política e
administração pública, exigindo o respeito aos valores cristãos por elas
propalados, muitos dos quais em nada diferiam do tradicionalismo observado
pelos católicos. Desta feita, como explicar a concomitante expansão do
capitalismo ali, já que este, para mais poder se expandir e fortalecer, precisa
desconsiderar muitas das verdades defendidas pela religião? O próprio
Weber ressalta que
Em geral, não há apenas uma ausência de qualquer relação
entre as crenças religiosas e a conduta, mas também, onde
existe alguma, [...] tende a ser do tipo negativo. Tais pessoas
[capitalistas], dominadas pelo espírito do capitalismo tendem a
ser hoje indiferentes, se não hostis para com o Igreja. 5
Acontece que nos Estados Unidos houve a fusão de duas noções
diferentes, como o ressalta William Fulbright 6, o que redundou na fusão de
duas novas outras noções, que embora não excludentes reciprocamente, não
são equivalentes. A primeira dessas fusões foi a entre democracia e
liberdade, e a segunda entre liberdade e livre-mercado, o que resultou na
tentativa de – ignorando aqui quaisquer outros interesses – exportar o
capitalismo e a democracia, para o bem de todos, como se fossem termos
correlatos.
Desde as primeiras aventuras no México antes da Guerra Civil [...]
até a guerra no Vietnã, os Estados Unidos sempre conseguiram
encontrar motivos idealistas para justificar intervenções que não
podiam ser explicadas pela necessidade de autodefesa [...]. Isso
foi o que aconteceu no caso de Cuba e na campanha para
“libertar” as Filipinas da Espanha (1898), assim como nos casos
3
4
5
6
Pronunciamento de 28 de novembro de 2002. Citado em: BARBER, Benjamim. O
Império do Medo. Guerra, terrorismo e democracia. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.78.
Cf. KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São
Paulo: Contexto, 2008; e RÉMOND, René. História dos Estados Unidos. São Paulo:
Difel, 1961.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. p. 55.
Cf. FULBRIGHT, J. William. Velhos mitos e novas realidades. Rio de Janeiro: Record,
1965.
28
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
do México (1914), Haiti (1915), República Dominicana (1916 e, de
novo, 1965) e Granada (1983). As razões alegadas resultavam
das virtudes excepcionalistas da América do Norte – sua vontade
de ampliar o âmbito da liberdade, introduzir a prática do livre
mercado aos seus parceiros comerciais, levar a democracia ao
mundo inteiro. 7
Com o tratado de 1783, as 13 Colônias obtiveram formalmente a
independência da Grã-Bretanha, contudo, muitos dos demais países da
Europa esperavam que a experiência republicana além-Atlântico seria falha,
já que não desejavam que seus princípios contagiassem outras possessões
européias. Assim, houve um longo período até o reconhecimento dos
Estados Unidos como um Estado legítimo – Portugal só o reconheceu em
1791, a Rússia o fez em 1809, por exemplo – o que acarretou certos
agravos, como a proibição de navios americanos de atracarem em muitos
dos portos europeus. Mesmo uma década após o tratado de 1783, ainda
haviam tropas inglesas em território americano, assim como eram também
frequentes incursões de franceses e espanhóis. Mais tarde, com as guerras
resultantes da Revolução Francesa, os Estados Unidos viram-se envolvidos
nos antagonismos entre os países europeus por mais de duas décadas,
acarretando em uma segunda guerra contra os ingleses, de 1812 a 1814, e
conflitos, embora não sendo guerras declaradas, permeados de combates
marítimos e terrestres, contra França e Espanha. Visando proteger os
Estados Unidos dos embates entre os europeus, George Washington, o
primeiro presidente americano, adotou a política de neutralidade, o que em
geral afastou inimigos em potencial, mas também afastou possíveis aliados
ou parceiros. A chamada “Mensagem de Despedida”, de Washington, de
1796, continha uma norma de conduta que norteou o país por todo o século
XIX – podendo ser extendida sua influência, inclusive, aos século XX e XXI –
que tinha por objetivo livrar os Estados Unidos do que mais tarde alcunharia
Thomas Jefferson de “enredo das alianças”, isto é, livrá-lo das alianças
permanentes8. Washington diz:
A principal norma de conduta para nós, no que se refere a
países estrangeiros, é ampliar nossas relações comerciais com
eles e, ao mesmo tempo, ter tão poucas ligações políticas
quanto possível. Cumpramos com inteira boa fé os
compromissos até agora assumidos, mas paremos neles. Os
7
8
BARBER, Benjamin. O Império do medo. Rio de Janeiro: Record, 2005.p. 75-76.
Cf. BERDING, Andrew. A formulação da política exterior dos Estados Unidos. Rio de
Janeiro: Cruzeiro, 1966.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
29
interesses essenciais que guiam a Europa pouco ou mesmo
nada têm que ver conosco. Por causa deles, ela se vê
frequentemente a braços com querelas cujas causas são
basicamente estranhas a nossas preocupações [...]. Nossa
verdadeira política é evitar alianças permanentes com qualquer
país do mundo [...]. 9
A ideia de uma Europa submersa em problemas e querelas, em
contraste com a América dinâmica e inovadora, levou ao isolamento dos
Estados Unidos10; num plano mais pragmático o posicionamento foi
delineado pela concepção, vinda de George Washington, de que alianças
temporárias seriam o bastante para defender o país de qualquer imprevisto.
A guerra de 1812-1814 contra os ingleses foi um caso extraordinário, dado
que estes haviam desrespeitado a autoridade americana prendendo
marinheiros estadunidenses e submetendo-os a trabalhos forçados em
navios de guerra; à isso somou-se a possibilidade de expansão territorial,
com a anexação do Canadá e a conquista da Flórida, que, embora não
fossem regiões tomadas, sofreram com o rompimento das relações entre os
ingleses e os indígenas, no Território Noroeste; independentemente das
razões, “a Guerra de 1812 [...] confirmou a independência da América, e
contribuiu para o patriotismo e orgulho nacionais.”11
Depois da segunda guerra contra os ingleses, os Estados Unidos
dedicaram-se novamente ao isolamento para com o exterior, enquanto no
plano “interno” iniciaram mais efetivamente a expansão territorial: em 1803
há a compra da Lousiana, o que dobra a extensão total do território
americano; em 1819 a Espanha cede aos Estados Unidos todas as suas
terras a leste do Mississípi; em 1848, com o tratado de Guadalupe Hidalgo,
extendem suas fronteiras ao sudoeste, abrangendo o que é hoje a Califórnia,
Nevada, Utah e partes do Arizona, Colorado, Novo México e Wyoming; em
1853 há a compra da região do vale de Gila River; em 1867 há a compra do
Idem. p. 19.
Donald Brandon, em A política externa americana, nota que, apesar do “sentimento de
superioridade e desdém para com as desavenças e forças políticas européias e a
crença de que o Novo Mundo não poderia ser preservado de influências européias
corruptoras se a América se tornasse enredada em assuntos do Velho Mundo, [...] a
distanciada posição física dos Estados Unidos em relação aos centros de conflito
internacional foi, entretanto, a causa principal do isolacionismo”, cf. BRANDON,
Donald. A política externa americana. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1967, p.26.
Não cabe aqui fazer o balanço de qual dos fatores foi o mais preponderante, nem
considerar outros fatores quaisquer, se atenhará apenas a influência da cultura
americana na política externa dos Estados Unidos.
11 BRANDON, Donald. A política externa americana. p. 30.
9
10
30
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Alasca. Essas aquisições só foram possíveis pelo sucesso dos americanos
em explorar os conflitos de interesses entre os europeus, através de
empreendimentos em parte diplomáticos e em parte comerciais, e em parte
também militares, só que contra os indígenas. Além disso, a expansão, a
“Marcha para Oeste”, evitava a formação de países autônomos nessa região,
bem como evitava o perigo do surgimento de novas colônias européias na
América do Norte. Além disso, o incentivo que os futuros ganhos econômicos
propiciavam foram significativos: segundo Andrew Berding, as estradas de
ferro passaram de 23 milhas em 1830 para 30.626 milhas em 1860, assim
como a marinha mercante observou um aumento, no mesmo período, de 1
milhão para 5 milhões de toneladas brutas comercializadas, o incremento
financeiro daí decorrente foi o crescimento, entre os anos de 1821 e 1860, de
35 milões para 217 milhões de dólares em importações da Europa, e de 25
milhões para 249 milhões em exportações.12
Um senso de singularidade e superioridade moral com relação ao
Velho Mundo levou os americanos do século dezenove a distinguirem entre
expansão continental dos Estados Unidos e o colonialismo ultramarino das
potências européias. O movimento da América rumo ao oeste foi visto como
uma inevitável e justificada extensão de democracia e civilização, enquanto o
imperialismo europeu era observado como o produto de dinástica voracidade
econômica e cobiça por prestígio e poder. Foi pela natureza das coisas que a
jovem República pôde tirar vantagem do perigo europeu e da fraqueza do
índio nativo para ocupar o vácuo de poder no continente norte-americano.13
Foi defendendo a idéia da democracia – liberdade, em outros termos –
que o entusiasmo popular se elevou, e muitos queriam o envio de uma força
expedicionária americana para auxiliar os gregos no seu movimento
separatista contra o Império Otomano, ou para auxiliar os húngaros em ação
correlata para com a Áustria dos Habsburgo. A pressão exercida pelo povo e
a necessidade de manter a independência dos Estados Unidos, levou à
formulação da Doutrina Monroe, em 1823, que em um ultimato enviado às
nações européias assegurava que os Estados Unidos não tolerariam
qualquer ação de caráter colonizador no continente americano, apesar de
garantir a não-interferência em nas colônias já existentes. Essa doutrina
culminou na intervenção dos Estados Unidos no México, após Napoleão III
instalar Maximiliano como imperador desse país. Infere-se que a prática do
isolacionismo e da Doutrina Monroe garantiam aos Estados Unidos evitarem
os problemas do resto do mundo, ao mesmo tempo que garantiam
Cf. BERDING, Andrew. A formulação da política exterior dos Estados Unidos. Rio de
Janeiro: Cruzeiro, 1966, p.22-23.
13 BRANDON, Donald. A política externa americana. p. 31.
12
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
31
imunidade, ao menos ideológica, contra possíveis ataques, e legitimidade
para realizar suas próprias investidas, como foi no caso da abertura
comercial forçada do Japão, em 1854, e a declaração do presidente Tyler,
em 1842, de que os Estados Unidos não tolerariam a perda de
independência do Havaí, apesar de em 1898 esse arquipélago acabar sendo
anexado pelos americanos, assim como o foram as Filipinas, Porto Rico e
ilhas no Caribe e no Pacífico.14
O período da Guerra Civil não teve grandes abalos na política exterior,
os governos europeus assistiam ao conflito esperançosos de que acarretaria
em um equilíbrio de poder, semelhante ao que ocorria na Europa, só que no
caso dos Estados Unidos seria um equilíbrio restrito ao Norte-Sul; o principal
motivo da não participação de outro país no conflito foi o sentimento
antiescravagista no mundo que evitou a ajuda européia a Confederação.
A mudança da atitude isolacionista americana só se alteraria
verdadeiramente com o fim da II Guerra Mundial; mesmo no período pré e
pós-I Guerra, e durante a própria, os Estados Unidos mantiveram sua política
de isolamento e defesa da liberdade. A entrada do país na guerra foi em prol
da democracia – à revelia do fato da Rússia czarista ser um dos Aliados – a
justificativa do presidente Woodrow Wilson em declarar guerra à Alemanha
deu-se nos seguintes termos:
Devemos lutar pelas coisas que sempre tivemos mais chegadas
aos nossos corações: pela democracia, pelo direito daqueles que
se submetem à autoridade para ter uma voz em seus próprios
governos, pelos direitos e liberdades de pequenas nações e por
uma soberania universal de direito, em forma de um concerto de
povos livres, que traga paz e segurança a todas as nações e
faça o próprio mundo livre, afinal.15
Os ideais democráticos alardeados não podem tampouco obnubilar os
proveitos auferidos economicamente, como, segundo Donald Brandon, os
US$1.900.000.000 em empréstimos aos Aliados16 , antes da entrada dos
Estados Unidos na guerra, e os grandes lucros auferidos por empresas
americanas no trabalho de reconstrução de uma Europa da qual o potencial
agrícola e industrial foram reduzidos em 30% e 40%, respectivamente.17
Cf. BRANDON, Donald. A política externa americana. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1967,
p.34-35.
15 BRANDON, Donald. A política externa americana. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1967, p.55.
16 Idem. p.51.
17 Cf. MILZA, Pierre. De Versailles a Berlin (1919-1945). Paris: Masson, 1968, p.13.
14
32
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Mesmo em face das transformações causadas por essa guerra, os
Estados Unidos mantiveram seu isolamento; à partir de 1930 ocorreram uma
série de ameaças à paz mundial, como a invasão da China pelo Japão, da
Etiópia pela Itália, o crescente poderio da Alemanha reconstruída e o culto
hitlerista da força e da violência, assim como a Guerra Civil Espanhola; ainda
assim, o governo americano e a sociedade americana eram favoráveis ao
não-envolvimento do país, o que redundou nas Leis de Neutralidade, que
impediam a prática de qualquer ato que pudesse trazer a guerra aos Estados
Unidos. Com o início de um novo conflito mundial, as Leis de Neutralidade
apenas retardaram, mas não puderam impedir, a participação americana nos
combates, a partir de 1941.
Após a vitória sobre o Eixo, os Estados Unidos empenharam-se em
expandir a democracia; seu papel de grande potência garantiu o apoio de
diversos países ocidentais, que tanto necessitavam de ajuda para se
reerguerem quanto temiam o avanço do comunismo, ou até mesmo uma
invasão soviética. O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, de
1947, foi um primeiro esforço americano nesse sentido, seguido da criação
da OTAN, para, sobretudo, garantir a liberdade da Europa, assim como
vieram tratados menores, regionais, como ANZUS18 (1951), OTASE19
(1954) e CENTO20 (1959); a preeminência inicial dos Estados Unidos na
ONU foi assegurada, tendo em vista que o principal órgão dessa instituição, o
Conselho de Segurança, tinha um número de membros permanente
favorável à sua política – as excessões eram China e União Soviética, que
sozinhas não conseguiam fazer frente à coalizão Estados Unidos, Reino
Unido e França – só mais tarde enfrentariam problemas com a divisão entre
seus parceiros e o surgimento de interesses entre eles, conflitantes aos seus.
Diferentemente do que havia acontecido ao fim da I Guerra Mundial,
nesse novo contexto os Estados Unidos viam-se ameaçados por uma outra
potência, cuja ideologia era assimetricamente contrária à sua. Apesar da
inicial vantagem americana pela posse exclusiva da bomba atômica, já em
1949 os soviéticos realizaram a primeira detonação desse artefato, o que
levou ao “equilíbrio de terror” que marcaria a Guerra Fria. A origem da
oposição americanos-soviéticos – ou capitalismo-socialismo – tem origem
anterior: durante o desenrolar da II Guerra Mundial, Roosevelt e Churchil
uniram-se não-oficialmente para um possível embate contra a União
Soviética, a qual, eles acreditavam, não resistiria à atração oferecida pelos
espólios da guerra, sobretudo o que concerne à aquisição de novos
18
19
20
Aliança para Ajuda Recíproca entre Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos.
Organização do Tratado do Sudeste Asiático.
Organização do Tratado do Centro Asiático.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
33
territórios, pelo vácuo deixado pela derrota do Império Hitlerista. Em 5 de
maio de 1946, em uma viagem pelos Estados Unidos, Churchil, ao lado do
recém-empossado presidente Truman, declarou que
Uma sombra desceu sobre o cenário até há pouco iluminado
pelas vitórias aliadas. Ninguém sabe o que a Rússia Soviética e
sua organização internacional comunista pretende fazer no
futuro imediato, ou quais são os limites, se é que os há, para as
suas tendências expansionistas e proselitistas. [...] De Stettin, no
Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu
sobre o continente. Atrás daquela linha todas as capitais de
antigos Estados do Centro e do Leste europeu, Varsóvia, Berlim,
Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia [...] vivem
no que se poderia chamar de esfera soviética e todas estão
sujeitas, de uma forma ou de outra, não apenas à influência
soviética, mas em crescente medida ao controle de Moscou. [...]
Quaisquer conclusões que possam ser tiradas destes fatos – e
fatos eles são – esta não é certamente a Europa libertada que
lutamos para construir. Também não é uma que contenha os
ingredientes de uma paz permanente. (BARROS, p.19-20)21
A chamada Doutrina Truman foi consequência desse raciocínio
expresso por Churchil, ao qual uniu-se a idéia americana de que com a
implementação de mercados livres desenvolvidos, que garantiriam a
liberdade de escolha e a liberdade nas relações, seria possível manter a
democracia, pois
[...] as sementes do totalitarismo nutrem-se na miséria e na
necessidade. Elas se espalham e crescem no solo mau da
pobreza e das lutas, atingindo seu completo desenvolvimento
quando a esperança do povo em uma vida melhor
desapareceu.22
À necessidade – do ponto de vista americano – de defesa da
democracia unia-se a necessidade de propagação do capitalismo, como se
ambos formassem um todo articulado, ou até mesmo a mesma coisa. A
Doutrina Truman preconizou, dessa meneira, dois modos de ação: ajuda
financeira e intervenção militar.
O primeiro caso é marcado sobretudo pelo Plano Marshall, iniciado
em 1947, que oferecia recursos financeiros aos países destruídos pela
21
22
BARROS, Edgard Luiz de. A Guerra Fria. Campinas: Atual, 1988.p. 19-20.
Discurso de Truman ao Congresso, no dia 12 de março de 1947. Citado em BARROS,
Edgard Luiz de. A Guerra Fria. Campinas: Atual, 1988, p.25.
34
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
guerra23; a reconstrução do Japão, após sete anos de ocupação americana,
seguiu o mesmo plano, tendo em vista a formação de um baluarte
democrático no Extremo Oriente, para se antepor ao comunismo. O segundo
caso é o das guerras periféricas nas quais os Estados Unidos se envolveram
ou então financiaram, como é o caso do apoio, frustrado, ao Kuomitang, o
governo conservador chinês presidido por Chiang Kai-Shek contra o Exército
Popular comunista liderado por Mao Tsé-Tung; a participação na Guerra da
Coréia, na qual os Estados Unidos tiveram que se contentar, após a perda
das vidas de 142.000 cidadãos americanos, com o simples armistício de
Panmunjom, de 1953, e que consolidou o poder de Kim Il Sung, o ditador
comunista local; e a igualmente frustrada campanha no Vietnã, de 1964 a
1974. Os Estados Unidos, seguindo essa programática militar, também
apoiaram, com o envio de armas, ajuda logística e de treinamento, reforço
diplomático e envio de dinheiro, outros tantos conflitos, no Laos, Tailândia,
Panamá, Guatemala, entre outros, sendo que essas intervenções indiretas
foram ainda mais acentuadas na América do Sul, com o financiamento de
ditaduras de direita para reprimir revoluções em andamento ou em potencial.
No plano interno, os Estados Unidos por um longo tempo adotaram a
doutrina do senador McCarthy de perseguição à todos que exercessem
“atividades anti-americanas”, o que levou à grandes expurgos que acabaram
em prisões e no interrompimento de muitas carreiras, isso foi marcadamente
mais forte entre artistas e intelectuais acusados de subversão. Para
convencer a opinião interna da justeza da luta contra os soviéticos, e a
opinião externa das excelências do capitalismo-democracia, o governo
americano, através da mídia, propagou a noção de american way of life, isto
é, a superioridade moral americana alcançada pelo sucesso material, o modo
de ser americano.
Pressionada pelos Estados Unidos, com suas campanhas
econômicas, militares e ideológicas, a União Soviética adotou medidas que,
para muitos dos que vivenciaram o evento, quase levaram ao início de uma
guerra entre as duas potências, que foi a instalação de mísseis nucleares em
Cuba, em 1962, à 150 quilômetros do território americano. A obstinação do
governo americano em não aceitar essa situação forçou os soviéticos a
retirarem os mísseis, evitando um conflito.
23
Vale ressaltar que Stálin rejeitou essa ajuda, embora dela necessitasse, e isso “não
apenas porque teria sido obrigado a revelar a assustadora exaustão da URSS e a
terrível lacuna em sua mã-de-obra, mas principalmente porque temia a penetração
norte-americana na Europa Oriental (e até mesmo em seu próprio país), que poderia
impulsionar todas as forças anticomunistas locais e fomentar a contra-revolução”
(BARROS, p.28-29).
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
35
Mesmo antes do episódio da crise dos mísseis em Cuba via-se a
necessidade da adoção de políticas menos agressivas, a União Soviética iniciou
assim uma campanha de conscientização da sua própria população da grande
ameaça que era a possível guerra nuclear; o premier Nikita Kruschev chegou a
afirmar no XX Congresso do PCUS, em fevereiro de 1956, que
[...] o princípio da coexistência pacífica está ganhando cada vez
mais aceitação internacional. E isso é lógico, pois não há outra
saída para a situação atual. Na realidade, só existem duas
soluções: a coexistência pacífica, ou, então, a mais devastadora
guerra da História. 24
Contudo, nos Estados Unidos, tanto entre o Congresso, como entre o
Pentágono e a mídia, havia a tendência em considerar essa atitude dos
soviéticos como sendo uma armadilha, preparada para fazer com que os
americanos reduzissem seus armamentos, e desse modo ficassem expostos
à violência de um ataque por parte deles, soviéticos; mesmo ações como a
retirada do Exército Vermelho da Áustria, em 1955, e a aproximação
diplomática soviética para com a República Federal da Alemanha não
bastaram para dirimir as suspeitas. O apelo americano em pintar a União
Soviética como o “Império do Mal”, eternamente à conspirar contra a
liberdade e todos os demais valores ocidentais sofreu sério abalo quando, a
5 de maio de 1960, Kruschev anunciou a queda de um avião U-2 americano
sobrevoando o espaço aéreo soviético, em missão de espionagem, o que
destruiu a oportunidade de um entendimento entre os dois países na
conferência que seria realizada em Paris naquele mês. As desconfianças
recíprocas permaneceram até o fim, com a derrota econômica soviética,
décadas depois, no que foi considerado nos Estados Unidos como o segundo
triunfo dos americanos sobre o totalitarismo.
O quadro posterior da política externa americana, durante a década de
90, foi a preeminência inconteste em todos os setores, fosse econômico,
militar, político, cultural e científico, após o colapso da sua antiga rival, em
1991, e a abertura político-econômica da Rússia e de todos os demais países
que formavam a União Soviética. A preponderância americana, sua situação
de única super-potência do mundo, levou os Estados Unidos, adotando
políticas unilaterais, à desprezarem durante essa década muitas iniciativas
de outros países para a defesa do meio-ambiente, tema que ascendeu
consideravelmente na última década; como também à desprezarem as
tentativas de equilíbrio econômico mundial e propostas de reformulação da
24
36
BARROS, Edgard Luiz de. A Guerra Fria. p. 69-70.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
ONU, e também as próprias deliberações dessa entidade, que no passado só
foi possível a criação pela participação americana.
Na década seguinte, já século XXI, os Estados Unidos revigoraram o
mito de excepcionalismo americano depois do atentado de 11 de setembro
que resultou na corrida pela caça a terroristas. O atentado terrorista em Nova
York mostrou aos Estados Unidos, e ao mundo, o poder do medo sobre a
população, e também mostrou as limitações que o poderio militar tradicional
representam em contraposição aos novos métodos destrutivos
implementados como tática de guerra.25 Não apenas isso, mas mostrou,
sobretudo, a ineficiência em se ater à modelos de fronteiras nacionais para
realizar atos políticos de grande vulto. A resposta dos Estados Unidos foi o
uso da guerra preventiva, justificada pelo fato de que as nações vulneráveis a
agressões terroristas são isentas da obrigação para com as normas morais e
legais que regem as guerras tradicionais; assim, os Estados Unidos se autoeximiram da responsabilidade por desrespeitar a soberania do Afeganistão e
do Iraque, quando das suas invasões, respectivamente em 2001 e 2003,
alegando que esses países abrigavam e financiavam grupos terroristas. O
governo americano, invertendo os valores defendidos pela comunidade
internacional, não apenas justificaram seus atos, mas afirmaram a missão
cruzadística de liderar o mundo contra o Mal, seguindo sua política rotineira
de intervenções iniciada com a guerra contra o México, passando pela
intervenção na Alemanha durante a I Guerra Mundial, no Vietnã, no Chile e,
mais recentemente, na Somália. Apesar de mudanças na atual administração
Obama, é difícil dizer até que ponto essa tendência de expansionismo bemintencionado foi tolhida, espera-se que – não fazendo aqui qualquer
apreciação valorativa – os Estados Unidos superem suas deficiências nas
relações com as outras nações, ainda que seja pouco provável que
características tão entranhadas na cultura possam ser tão facilmente
abandonadas. Os recentes acontecimentos no Magreb e no Oriente Médio
expuseram a fragilidade diplomática na qual os Estados Unidos se
encontram: em virtude dos malfadados projetos pelo Iraq Freedom e pela
destruição efetiva do Talibã, o governo americano vê-se agora tolhido para
fazer qualquer ação de vulto na Líbia ou no Iêmen, por exemplo, para
defender sua tão querida democracia, já que qualquer intervenção direta
poderia soar como um oportunismo visando a dominação desses países,
como no caso do Iraque e do Afeganistão.
25
Independente de serem atos terroristas, as práticas de implementação de bombas,
uso de aviões como mísseis, e o suicídio objetivando não só a própria morte, mas
também o homicído, não deixam de ser técnicas de combate, isto é, formas de se
sobrepor, pela violência, a um dado inimigo, seja destruindo-o ou dominando-o.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
37
Em resposta a uma possível ligação entre o espírito do capitalismo
weberiano e a condução da política externa dos Estados Unidos pode-se dizer
que sim, os dois estão intimamente interligados. Para Weber, “ganhar dinheiro
dentro da ordem econômica moderna é [...] o resultado e a expressão de
virtude e de eficiência em uma vocação”26 , para os americanos ganhar
dinheiro, isto é, produzir dentro do sistema capitalista, e consumir o que é
produzido, requer também expandir o capitalismo, assim também que para se
ser um verdadeiro democrata não basta viver a democracia, é preciso exportála; contudo, isso é ocioso de se dizer pois, aparentemente, os Estados Unidos
são permeados pelo princípio de que ser capitalista é ser livre.
PAULA, Ariel Andrade de. Democracy as United States’ foreign politic.
ABSTACT: This article objective to explain about the correlation between the concepts to
capitalism’s spirit and United States’ foreign politic and as it’s fused in an expansion of
democracy’s logic as guide of foreign relations of this country.
KEYWORDS: United States of America, Foreign Politic, Democracy
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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BARROS, Edgard Luiz de. A Guerra Fria. Campinas: Atual, 1988.
BERDING, Andrew. A formulação da política exterior dos Estados Unidos.
Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1966.
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1967.
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Record, 1965.
______. A arrogância do poder. São Paulo: IBRASA, 1969.
KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI.
São Paulo: Contexto, 2008.
MILZA, Pierre. De Versailles a Berlin (1919-1945). Paris: Masson, 1968.
RÉMOND, René. História dos Estados Unidos. São Paulo: Difel, 1961.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Centauro, 2001.
26
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. p. 42.
38
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
A CONSTRUÇÃO DO NACIONALISMO: A NAÇÃO REVOLUCIONÁRIA
Bárbara Mariani POLEZ*
RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar o surgimento e a constituição do
conceito de nação e nacionalismo, perpassando o século XVIII e o XIX. Com essa
finalidade leva-se em conta a Revolução Francesa; um marco da história universal que
inaugurou o sentido moderno do termo nacionalismo.
PALAVRAS-CHAVE: nação – nacionalismo - revolução
O final do século XVIII foi marcado pela crise do Antigo Regime
europeu e seus sistemas econômicos, suas últimas décadas se depararam
com intensa agitação política.
A quantidade de agitações políticas é tão grande que alguns
historiadores mais recentes falaram de uma ‘era da revolução
democrática’, na qual a Revolução Francesa foi apenas um
exemplo, embora o mais dramático e de maior alcance e
repercussão. (HOBSBAWM, 1996, p. 10)
A Revolução Francesa foi uma das mais importantes (se não a mais
importante) revoluções que já ocorreram. Por não ter sido um fenômeno
isolado, ela foi muito mais fundamental que outros fenômenos
contemporâneos e, portanto, suas conseqüências foram mais profundas. Ela,
diferentemente das outras revoluções que a precederam ou a seguiram, foi
uma revolução social de massa, foi a única ecumênica: a Revolução
Americana foi crucial para a história americana mas foi pouco relevante em
outras partes do mundo, enquanto que a Revolução Francesa foi um marco
em todos os países. Suas repercussões ocasionaram os levantes que
levaram à libertação da América Latina em 18081. Sua influência se estendeu
até Bengala, onde inspirou o primeiro movimento de reforma hindu,
predecessor do nacionalismo indiano moderno. “A Revolução Francesa é,
assim, a revolução do seu tempo, e não apenas uma revolução [...]”
(HOBSBAWM, 1996, p. 13)
Sendo assim, a economia no século XIX foi fortemente influenciada pela
Revolução Industrial inglesa, enquanto que a ideologia e a política foram
Aluna do 3º ano de graduação em História, FCHS/UNESP – Franca/SP, sob orientação
do Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi. Colaboradora PET/MEC/SESu.
1 HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
*
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
39
constituídas pela Revolução Francesa. A França forneceu o vocabulário e os
temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo.
Foi ela que inaugurou (em seu sentido prático) o conceito e o vocabulário do
nacionalismo.
El nacionalismo, tal como lo entendemos nosotros, no es anterior
a los últimos cincuenta años del siglo XVIII. La Revolucíon
Francesa fué su primera gran manisfestacíon, dando al nuevo
movimeinto una fuerza dinâmica creciente. (KOHN, 1949, p. 17)
Pode-se dizer que o sentido moderno do termo nacionalismo apareceu
durante o século XVIII. Muitas vezes e por muito tempo foram usados
critérios simples como língua, etnia, território comum, história comum, traços
culturais comuns, dentro outros para explicar porque certos grupos se
tornaram “nações”, sendo esta uma abordagem objetiva. Contudo, essa
tentativa falhou, uma vez que esses critérios são em si mesmos ambíguos e
mutáveis.
Hobsbawm (1990) ainda afirma que não é possível reduzir a
“nacionalidade” a uma dimensão única, seja política, cultural, etc.
Há pessoas que podem identificar-se como judeus mesmo que
não partilhem da religião, língua, cultura, tradições, herança
histórica, padrões grupais de parentesco ou de uma atitude em
relação ao Estado judeu. (HOBSNAWM, 1990, p. 17 e 18)
Assim, para se estudar a “questão nacional” é mais proficiente abordar
primeiramente o conceito de “nação”. Dentre os aspectos abordados por
Hobsbawm em relação à nação se encontra: o nacionalismo (na definição de
Gellner2) que fundamentalmente é um princípio que sustenta que a unidade
política e nacional deve ser coerente, trata-se de um imperativo de
legitimidade política; as fronteiras étnicas não se devem sobrepor às
fronteiras políticas, nem devem separar os detentores do poder de um
determinado estado das restantes populações, isto é, as populações aspiram
estar reunidas sob a autoridade de governantes que pensam ser-lhes
semelhantes.
2
Foi um filósofo e antropólogo social judeu-checo nascido a França e mais tarde
naturalizado britânico. Foi um importante teórico da sociedade moderna e das
diferenças que a distinguem das sociedades precursoras. Sua esfera de influência é
pouco comum e abrange os campos da Filosofia, Sociologia, Ciência Política, História e
Antropologia Social.
40
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
A ‘nação’ pertence exclusivamente a um período particular e
historicamente recente. Ela é uma entidade social apenas
quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial
moderno, o ‘Estado-nação’; e não faz sentido discutir nação e
nacionalidade fora desta relação”. (HOBSBAWM, 1990, p. 19)
Segundo Walter Bagehot3, a história do século XIX é marcada pela
“construção das nações”. Sendo que, o interesse pelo estudo do
nacionalismo surge após a Primeira Guerra Mundial, quando o mapa da
Europa estava sendo, pela primeira e única vez, redesenhado de acordo com
o princípio da nacionalidade.
A partir do século XIX, dicionários e enciclopédias passaram a definir
“nação” como comunidade de cidadãos de um Estado, vivendo sob o mesmo
regime ou governo, tendo comunhão de interesses; a coletividade de
habitantes de um território com tradições. Portanto, o conceito de governo
não foi ligado ao conceito de nação até o século XIX.
O primeiro significado da palavra “nação” indicava origem e
descendência. Pátria, durante o século XVIII, era entendida como lugar, a
terra onde se nascia, adquirindo, assim, uma conotação diferente de nação.
Isso porque até o final do século XIX, a terra não era vinculada a um Estado.
Dessa forma, um dicionário da língua holandesa designava que a
palavra “nação” se referia a pessoas que pertenciam a um mesmo Estado
sem, porém, falarem a mesma língua. Assim, evidencia-se que o significado
do termo “nação”, em seu sentido moderno, é historicamente muito recente.
As raízes do nacionalismo se encontram no passado, como em todo
movimento histórico.
Las condiciones que hicieron posible su aparición habian
madurado durante siglos antes de converger en su formación.
Estas evoluciones – política, econômica e intelectual –
necesitaron mucho tiempo para crecer, avanzando em cada país
con paso diferente. (KOHN, 1949 P. 17)
Historicamente, vamos encontrar suas origens na Europa Medieval,
mais especificamente na Restauração Inglesa de 1690. Contudo, observa-se
que a forte afirmação desse modelo de Estado deu-se (como já foi
mencionado anteriormente) com a Revolução Americana de 1776 e com a
Revolução Francesa de 1789, ou seja, com o conjunto de revoluções que
formam o que se usualmente são denominadas de as grandes "revoluções
3
Britânico ensaísta e jornalista que escreveu extensivamente sobre literatura, política e
economia.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
41
burguesas". Assim, a idéia de Nação, já presente nos pensadores do século
XVIII e em Hegel, passou a caracterizar toda a política moderna e
contemporânea. O Estado-Nação passa a ser a realidade política por
excelência, em torno da qual gravitam os atos históricos, persistindo ainda
hoje, embora com o acréscimo de diversidades e novidades.
No momento de emergência do Estado-Nação foram derrubadas todas
as barreiras que fragmentavam a atividade econômica e política e eliminadas
as velhas lealdades feudais que tanto dificultavam a realização da unidade
nacional.
Quanto à significação da Revolução na América do Norte, tem-se,
dentre outros aspectos importantes, que a rebelião das treze colônias de
origem britânica foi modelo de luta contra uma sujeição ilegítima, realizando a
secessão a partir de embasamentos políticos retirados da própria metrópole,
como a igualdade natural, a liberdade de empresa, o direito de usufruir da
propriedade e dos frutos do trabalho, o direito de escolher as instituições e os
magistrados mais convenientes e o direito de representação na Assembléia
que decidia sobre seus problemas. O processo revolucionário levou à
fundação, por agregação, da República dos Estados Unidos da América do
Norte.
Na França, a Revolução caracterizou-se como a luta da Nação (Terceiro
Estado, composto pela burguesia, pelos artesãos e camponeses) contra o
Rei Luís XVI, representante da sociedade aristocrática baseada na
desigualdade e na hierarquia. Diferentemente do ocorrido nos Estados
Unidos da América, o coletivo francês tinha uma forte imagem de Nação,
sendo que a agitação revolucionária deflagrada em 1789 foi uma revolta ao
agravamento da carga tributária incidente sobre o Terceiro Estado,
decorrente da grande despesa do Estado com o sustento de uma nobreza
parasitária. Foi justamente por ocasião da convocação dos Estados Gerais
(que desde 1614 não se reuniam) visando aprovar novos impostos sem o
princípio da votação individual, que daria maioria ao Terceiro Estado, que
este, por proposta do abade Emmanuel Joseph Sieyês, declarou-se,
separadamente, Assembléia Nacional, em uma ação irreversível contra as
duas ordens privilegiadas: o clero e a nobreza.
Durante e após a revolução, esperava-se que o novo regime instaurado
não expressasse somente os interesses de classe, mas também a vontade
geral do “povo” que, por sua vez, era “a nação francesa”. Assim, à maneira
da Revolução Francesa, a nação igualava e punha no mesmo plano o “povo”
e o Estado. Uma vez que, Hobsbawm considera a nação como escolha da
cidadania com base na idéia do povo soberano, em ligação com o exercício
42
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do poder em seu nome, assim, prende-se o conceito de nação ao conceito de
Estado.
... a nação era o corpo de cidadãos cuja soberania coletiva os
constituía como um Estado concebido como sua expressão
política. Pois fosse o que fosse uma nação, ela sempre incluiria o
elemento da cidadania e da escolha ou participação de massa.
(HOBSBAWM, 1990, p. 31)
‘O povo’ identificado como ‘a nação’ era um conceito
revolucionário; mais revolucionário do que o programa liberalburguês que pretendia expressá-lo. (HOBSNAWM, 1996, p. 21)
Sendo assim, nação, Estado e povo se constituem como um mesmo
elemento e, mais tarde, como não podia deixar de ser, o território foi
vinculado à idéia de nação.
Entretanto, a Revolução Francesa foi estranha ao princípio de
nacionalidade, porque não havia ligação entre o corpo de cidadãos de um
Estado territorial e a identificação de uma “nação” em bases lingüísticas,
étnicas ou em qualquer outra característica que permita o reconhecimento
coletivo do pertencimento do grupo. A língua, em princípio, não tinha nada a
ver com ser “inglês” ou “francês”. Os especialistas franceses lutaram
tenazmente contra as tentativas de fazer a língua falada um critério de
nacionalidade4.
Do ponto de vista revolucionário, o que a “nação” possuía em comum
não era a língua e a etnicidade, mas, sim, o fato do “povo-nação” ter em
comum a característica de ser contra os interesses particulares e a favor do
bem comum contra o privilégio. Portanto, a “nação revolucionária” é diferente
do Estado-nação. Contudo, sob uma perspectiva mais prática, se insistia na
idéia de que uma tradição cultural compartilhada, representada
especialmente pelo idioma francês, definia a nação francesa. Assim, o critério
etnolinguístico de nacionalidade era freqüentemente aceito, pois “não há
dúvida de que, para a maioria dos jacobinos um francês que não falasse
francês era suspeito”. (HOBSBAWM, 1990, p. 33)
Com isso, durante a Revolução, os franceses insistiam na uniformidade
lingüística, o que para a época era bastante excepcional. Em certo sentido,
adotar o francês era uma das condições da plena cidadania francesa (e,
assim, da nacionalidade). Os indivíduos que não fossem franceses poderiam
se integrar à nação francesa desde que aceitassem as condições da mesma,
o que incluía falar francês.
4
HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
43
Já em relação ao conceito de nacionalismo, ele não deve ser isolado
dos conceitos de Estado e de nação. No seu mais amplo significado, a
palavra “nacionalismo” designa a atitude mental que confere à entidade
nação um altíssimo posto na hierarquia de valores.
De acordo com Kohn (1949), não é concebível falar-se de nacionalismo,
sem relacionar este fenômeno com a idéia de soberania popular, sem um
estudo da posição do governante e dos governados, das classes. Há indícios
de que os nacionalismos emergem e se tornam violentos em situação de
crise econômica. Têm sucesso quando todos os estratos sociais passam a
considerar a revolução indispensável para o prosseguimento de seus fins. Os
novos estados respondem à necessidade de auto-estima e de
reconhecimento internacional, e tendem a exercer sobre as minorias
nacionais o mesmo tipo de opressão de que se emanciparam.
Tuvo que quebrantarse el tradicionalismo de la vida econômica
com la aparición del ‘tercer estado’, que iba a desviar la atención
de la corte e de su civilización hacía de la vida, el idioma y las
artes del pueblo. Esta nueva clase estaba menos ligada a la
tradición que la nobleza o clero; representaba una nueva fuerza
en lucha por cosas nuevas; estaba dispuesta a romper con el
pasado, hollando la tradición con opiniones más de lo que lo
hacía en la realidad. No sólo pretendia representar a una nueva
clase y sus intereses, sino todo el pueblo. (KOHN, 1949 p. 17)
Tudo se encaminha para a aceitação de que o nacionalismo descobriu a
sua força nas transformações políticas e econômicas registradas na França
(século XVIII), EUA (século XVIII) e Inglaterra (século XVI), precisamente
quando o Terceiro Estado, a terceira ordem, conseguiu ter preponderância e
conseguiu aperceber-se do seu efetivo poder. O crescimento do
nacionalismo se dá com o processo de integração das massas populares em
uma forma política comum.
Por lo tanto, el nacionalismo presupone la existencia, de hecho o
como ideal, de una forma centralizada de gobierno, en un
teritorio grande y definido. Los monarcas absolutos, que abrieron
el paso al nacionalismo, crearon esa forma; la Revolución
Francesa heredó y continuó las tendências centralistas de los
reyes, pero, al mismo tiempo, llenó la organización central con
un espíritu nuevo, dándole uma fuerza de cohesión desconocida
antes. (KOHN, 1949 p. 18)
44
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Por outro lado, pode-se ainda salientar que, em regiões onde a
expressão do Terceiro Estado era fraca ou nula ou se encontrava em
formação, no início do século XIX, assistimos ao fato do movimento
nacionalista ter se enraizado no campo cultural, como se verificou na
Alemanha, Itália e nos Países Eslavos. Isso ocorre porque, como afirma
Kohn, o espírito do povo – Volksgeist – com as respectivas manifestações
literárias e folclóricas se tornou alvo das atenções do nacionalismo, como
movimento libertador.
Assim, privilegiando o conceito de nação, em desfavor do conceito de
Estado, os revolucionários franceses de 1789 souberam aproveitar os
anseios justificados do Terceiro Estado, e a força e prestígio acumulado
pelas ordens privilegiadas durante séculos anteriores, terminando com a
hegemonia imposta pelo poder absoluto.
Vale ressaltar que o nacionalismo é uma identidade formal
suficientemente poderosa para poder unir lealdades pré-existentes: mito de
origem comum, raça, língua, religião e território. Todavia, se a raça, a língua,
a religião e o território podem fortalecer a consciência de nacionalidade, o
mito de origem comum é indispensável: nenhum grupo lingüístico ou cívico
pode desenvolver o fenômeno de nacionalismo. Assim, o sentimento nacional
é um estado de espírito, resultante do meio social e da educação/cultura.
Embora o sentimento nacional seja freqüentemente associado à
Revolução Francesa, o mesmo constitui um dos mais antigos sentimentos da
Humanidade. Assume influência decisiva na política conjunta, sobrepondo-se
a quase todos os outros sentimentos e motivos coletivos.
POLEZ, Bárbara Mariani. The construction of nationalism: the revolutionary nation.
ABSTRACT: This article aims to analyze the emergence and formation of the concept of
nation and nationalism, spanning the eighteenth and nineteenth centuries. For this
purpose it takes account of the French Revolution, a milestone in world history that
launched the modern sense of the term nationalism.
KEYWORDS: nation – nationalism – revolution
REFERÊNCIAS:
GEARY, Patrick J. O Mito das Nações: a invenção do nacionalismo. São
Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005.
HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1996.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
45
HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e
realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
KOHN, Hans. Historia del nacionalismo. México: Fondo de Cultura
Económica, 1949.
46
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
AS TRANSFORMAÇÕES CIENTIFÍCAS, E O IMPERIALISMO NO SÉCULO
XIX
Carolina de Oliveira BELTRAMINI *
RESUMO: O século XIX foi permeado pelo desenvolvimento científico e filosófico em
diversas áreas do conhecimento: biológicas, exatas e sociais. Com o tempo essas teorias
científicas foram aplicadas a sociedade, como justificativa do Imperialismo para levar
evolução e progresso de civilizações ditas “avançadas” para civilizações ditas
“atrasadas”. A questão racial também foi uma constante no século XIX, justificando a
inferioridade de um povo pelas características biológicas.
PALAVRAS-CHAVE: Ciência, religião, darwinismo social, “raça”, Imperialismo.
Os anos pós Revolução Francesa e Industrial ficaram marcados pelo
desenvolvimento científico, seguido de crise intelectual e perda dos valores
tradicionais da Igreja Católica. Houve uma tentativa de construção de
métodos para oficializar as ciências. Os dois métodos filosóficos que mais
obtiveram repercussão foram: “(…) o Positivismo francês, associado à escola
do curioso Auguste Comte, e o Empirismo inglês, associado a John Stuart
Mill(…)”. (HOBSBAWM, 2007, p. 350).
Talvez a química e a biologia tenham sido as ciências que mais se
desenvolveram, ao longo do século XIX. A primeira, bastante dependente do
empirismo, da descoberta de novos compostos, para utilização na indústria.
Enquanto a biologia, através da Teoria da Evolução, proposta por Charles
Darwin e apoiada no Positivismo ganhará um caráter teórico inovador que
com o passar dos anos não será aplicado apenas às ciências naturais, mas
também a sociedade.
Auguste Comte, através do Positivismo, propõe que se estabeleça uma
ordem social a partir das leis da ciência experimental. É a sociedade pautada
na ordem, com o intuito de atingir o progresso que Comte visa no século XIX.
A reafirmação da ciência gera um enfraquecimento religioso. A igreja,
vista como uma oposição à razão, ao longo do século será uma das
responsáveis pela crise intelectual. Esse novo cientificismo desenvolvido
pelos homens do XIX tornar-se-á uma importante justificativa do Imperialismo
e da dominação de outros povos tidos como inferiores. No século XIX a Igreja
perde espaço por não caber no discurso imperialista justificado pela ciência.
*
Graduanda do quarto ano do curso de História da Universidade Estadual Paulista
“Julío de Mesquita Filho” UNESP – Franca. Orientanda da Profª. Drª. Ana Raquel
Marques da Cunha Martins Portugal.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
47
Partindo de uma perspectiva sócio-cultural, este artigo, pretende
analisar como o desenvolvimento da ciência pode acarretar no recuo da
tradição religiosa, o espiritismo, por além de ter resultado em novas
experiências espirituais. Também pretendemos ver de qual forma a ciência
levou ao Imperialismo, como ela foi capaz de criar uma justificativa plausível
a dominação de povos e territórios. Para isso a análise das obras de Eric
Hobsbawm é de fundamental importância, assim como a tese de Eliane
Moura Silva1
No século XIX, com uma tendência a normatização, propõe-se uma
fixação das unidades e o agrupamento destas em famílias. Em 1860
desenvolvem-se técnicas de mensuração. (HOBSBAWM, 2007). Nota-se,
com esses exemplos, a vontade deliberada de tornar as ciências, disciplinas
técnicas e padronizadas. Tratam-se de propostas apoiadas no método
Positivista de Comte.
A busca pela racionalização das coisas é ponto fundamental no
desenvolvimento da segunda metade do século XIX. Esses valores também
se transpõem aos padrões sociais, propondo regras de evolução, baseadas
na “Seleção Natural” de Charles Darwin.
A teoria da “Seleção Natural” queria de inicio explicar as variedades
das espécies presentes no mundo, mas com o Darwinismo social ela ganhou
outra conotação, e passou a justificar a divisão dos homens em inferiores e
superiores, assim como, mais e menos evoluídos respectivamente. Esta era
a “desculpa” que o Liberalismo necessitava para poder justificar o neocolonialismo e a necessidade de um Imperador.
Com o passar dos anos, cada vez mais, as teorias da evolução,
propostas pela biologia são aplicadas a política. Em 1883 cria-se o termo
“eugenia”, uma tentativa de vinculação de ideologia com genética, logo
implantada por muitos governos propõe realizar uma “limpeza”, proporcionar
uma melhoria genética a sociedade mundana, pautada na eliminação dos
indesejáveis. (HOBSBAWM, 2008, p.352)
O racismo também era uma teoria social que passou a desempenhar
um papel considerável na sociedade do XIX. Pautado em duas ciências
básicas a “antropologia física” e a “etnografia”. O conceito de “raça” passou a
ser utilizado com freqüência e somado a ideia de evolução. O racismo
defendeu e justificou teorias que tratavam da inferioridade e superioridade
dos povos, pautadas em diferenças biológicas. Para Hobsbawm a biologia
era de fundamental importância quando se pretendia justificar o discurso
1
48
Eliane Moura Silva é professora doutora pelo Departamento de História da UNICAMP
(IFCH). Concluiu seu doutorado pela mesma instituição em 1993, sua área principal de
atuação é em História das Religiões.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
igualitário da burguesia, assim as desigualdades estavam pautadas no
nascimento.
(…) raças eram “inferiores” porque representavam um estagio
anterior da evolução biológica ou da evolução sócio-cultural, ou
então de ambas. E essa inferioridade era comprovada porque,
de fato, a “raça superior” era superior pelos critérios de sua
própria sociedade: tecnologicamente mais avançada,
militarmente mais poderosa, mais rica e mais “bem-sucedida.
(HOBSBAWM, 2007 p.370)
Apoiando-se nas idéias da historiadora Eliane Moura Silva (1999) podese dizer que no século XIX houve uma Revolução Cientifica, na qual a
tendência racional é bastante forte. O mundo das sensibilidades é
sistematizado pelo conhecimento da psicologia, da psicanálise e da
medicina. As emoções, o sobrenatural perdem espaço quando não podem
ser inseridos no contexto racional. Entretanto, como todo período de
transição é marcado por continuidades e rupturas, a ciência passa por uma
crise do conhecimento, uma crise pela estruturação do saber técnico. Muitas
teorias já não podiam mais nem ser compreendias por grandes parcelas da
população. Há uma forte dependência cientifica a partir da metade do século
XIX.
Para Hobsbawm, no século XIX, o método científico passou a ser
aplicado em diversas áreas, a principio nas ciências naturais, porém, com o
tempo, ganhou também o cenário das ciências sociais, consolidando assim
uma busca insaciável pela verdade. Há diversas contradições no mundo
cientifico que não podiam ser resolvidas, mas isto não impediu que a ciência
ganhasse cada vez mais forças. Pois, um dos princípios científicos é gerar
contradições.
Há uma evolução no trabalho cientifico pela melhoria das condições
técnicas. Com o desenvolvimento da matemática, as outras ciências, como a
física e a química também evoluem. Surgem os grandes laboratórios, as
faculdades e universidades, com financiamento do governo, afirma-se assim
uma ciência política. Mas, no final do século, ocorre certa frustração das
expectativas, muito do conhecimento técnico produzido nos laboratórios e
Universidades não são aplicáveis no cotidiano, a sociedade passa a não
entender muitas das teorias recém escritas.
Para Nietzsche, a decadência da vanguarda, o pessimismo e o
niilismo dos anos de 1880 eram mais que uma moda. Eram
“resultado final lógico de nossos grandes valores e ideais”. As
ciências naturais, dizia ele, produziram sua própria
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
49
desintegração interna, seus próprios inimigos, uma anticiência.
As conseqüências das modalidades de pensamento aceitas pela
política e pela economia do século XIX eram niilistas. A cultura
da época estava ameaçada por seus próprios produtos
culturais.” (HOBSBAWM, 2008 p. 359)
Hobsbawm acredita que a crise intelectual apesar de existir estava
presente apenas em uma parcela pequena da população, a crise estava com
as pessoas que não conseguiam compreender esta nova forma de ver os
problemas do mundo. Se a crise fosse tão geral, não teria aumentado
significativamente o número de estudantes universitários de química, física e
ciências sociais, como ocorreu em vários países da Europa.
Eliane Moura afirma que a crise também podia ser percebida através
de algumas reações de grupos que lidavam, com magia, misticismo,
características da religião oriental. Havia alguns grupos que eram
completamente contra a ciência. A parapsicologia e o espiritualismo forma
importantes formas de reação.
O que deixa claro o desenvolvimento da ciência e da razão é um recuso
significativo da religião tradicional. O pensamento racional pregava uma livre
interpretação do mundo, o que vai contra os valores e princípios de diversas
religiões cristãs. A instituição religiosa não se adéqua e nem aceita as teorias
evolucionistas, muito pelo contrário ela se opõe. O espaço religioso é cada
vez mais tomado pela figura feminina, já que esta apresentava para aquela
sociedade uma inferioridade na capacidade de pensamento e um maior
apego à fé.
Começa na metade do século, por parte do racionalismo, uma política
de combate a religião. Em 1850 anticlericalismo torna-se ponto fundamental
da luta da esquerda francesa. Para E. Hobsbawm (2008) o anticlericalismo
era possível, pois a Igreja Católica se opunha totalmente a razão e ao
progresso, e porque a luta contra a superstição criava uma identidade unindo
classe trabalhadora e com a burguesia liberal. Ocorreu desta forma um
grande processo de descristianização.
Contudo, no centro dos países burgueses, embora talvez não nos
EUA, a religião tradicional estava recuando com rapidez sem
precedentes, tanto em sua força intelectual como entre as
massas. Tratava-se, até certo ponto, de uma conseqüência quase
automática da urbanização, pois é praticamente certo que, outros
fatores permanecendo iguais, a cidade tem mais probabilidades
de desencorajar a devoção que o campo, e a grande cidade mais
que a pequena. (…)(HOBSBAWM, 2008 p. 367)
50
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Serge Berstein e Pierre Milza (1997) no livro “História do século XIX”
afirmam ter ocorrido algo diferenciado na França os franceses tentam uma
reaproximação entre catolicismo e liberalismo com o intuito de se
restabelecer da crise religiosa. Defendeu-se assim, a liberdade de imprensa
e uma firmação do discurso divino, acredita-se que o discurso divino pode ser
plausível a uma sociedade liberta. O processo, segundo estes autores, obtém
sucesso e há uma retomada da fé na França do final do século XIX.
A religião para que possa sobreviver deve aproximar-se das doutrinas
cientificas, muitas pessoas acreditavam que a ciência salvaria o mundo. A
colisão entre religião e ciência é imensa no século XIX. Propunha-se novas
formas de pensar, introduzir no pensamento verdades religiosas, para Eliane
Moura Silva é o que podemos chamar de “fé racional”. (SILVA, 1999 p.19)
É também no século XIX que o agnosticismo e o ateísmo ganham mais
força, são as máximas da ciência presentes na religião. À ciência positiva
cabe também a religião a partir deste século, analisam-se então os
fenômenos religiosos, busca-se o que pode ter de científico na fé religiosa. O
estudo da religião passa a ser pela necessidade da aquisição de
conhecimento vinculado a religião. A fé “ganha” métodos científicos.
Segundo Eliane Moura Silva (1999) é no século XIX que surgem os
primeiros trabalhos acadêmicos sobre religião. A partir dai que essa autora
inicia sua análise. Com a perda de espaço do catolicismo e ascensão das
ciências desenvolvem-se outros tipos de espiritualismo, o espiritismo é uma
das religiões que mais cresce no século XIX. Os estudos do século XIX sobre
religião tentam, em sua maioria, separar em: racional o que era visível e
irracional que só depende da fé. A ciência passa a fazer parte da religião,
como podemos ver no trecho abaixo:
O darwinismo implicava na ideia de que o homem não sofrera
uma “queda” espiritual por perder a “graça divina”, mas
simplesmente, evoluirá a partir de formas inferiores de vida,
assim como todos os seres vivos. Intelectualmente, a Bíblia
estava sendo analisada como uma peça literária, uma parte da
imensa cultura religiosa da época. O conhecimento intelectual e
cientifico elevava os homens à imagem e semelhança de Deus.
A religião, se quisesse sobreviver, deveria adotar os métodos da
ciência para “provar” suas doutrinas. (SILVA, 1999 p. 74)
O darwinismo social é a forma justificada de ataque dos Impérios, é
através dele que se pode dominar e ser dominado. No mundo do Império,
“avançados” dominam “atrasados”, levam o progresso tão debatido pela
filosofia de Auguste Comte. O século XIX é denominado, a Era dos Impérios
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
51
por Hobsbawm, segundo este autor nunca houve antes um período que
tantos governantes denominavam-se imperadores.(HOBSBAWM, 2001)
O Imperialismo foi feito a partir de uma junção de idéias que iam desde
a ordem psicológica, passando pela cultural e ideológica, atingindo a política.
O imperialismo talvez possa ser visto como a vitória da ciência. Todavia, fica
bastante claro, o quanto a questão da superioridade foi fundamental para
dominação de alguns povos.
A “raça” torna-se questão de dominação, o negro é visto como “inferior”,
incapaz de pensar por si próprio. A Europa reconquista com o intuito, ou
subterfúgio de levar a “evolução”, o progresso e até mesmo a civilização a
regiões como a da Ásia e África, por exemplo. O crescente capitalismo para
Hobsbawm (2008) é o primeiro fator do Imperialismo do século XIX a busca
pela matéria-prima e a compra de produtos manufaturados, além da mão-deobra barata que os países colonizados fornecem.
Contudo a Era dos Impérios não foi apenas um fenômeno
econômico e político, mas também cultural: a conquista do globo
pelas imagens, idéias e aspirações transformadas de sua
minoria “desenvolvida”, tanto pela força e pelas instituições como
por meio do exemplo e da transformação social. (…)
(HOBSBAWM, 2008, p.114)
Os valores que mais tarde vão compor o Imperialismo conforme vimos
iniciam-se no início do século XIX, a ciência e a religião tem papel
fundamental na construção do imaginário que mais tarde vai possibilitar o
Imperialismo. A questão racial tão forte no século XIX gera o discurso que
justifica o Imperialismo, que o mostra para o mundo de uma forma mais sutil,
menos agressiva. Para adentrar em um território é necessário que se tenha
uma justificativa e o Imperialismo do século XIX, diz pretender humanizar,
civilizar e levar o progresso as civilizações menos “evoluídas”.
Vale lembrar, que no século XIX o termo evolução está vinculado à
noção de progresso, pautado pelo Positivismo, assim como praticamente
todas as questões cientificas da época. Pode-se dizer que a filosofia de
Comte gera as bases científicas e sociais do século XIX. É a partir da Ordem
e do Progresso que se justificarão as medidas tomadas no XIX.
BELTRAMINI, Carol de Oliveira. The scientific change, and imperialism in the nineteenth
Century.
ABSTRACT: The nineteenth century was permeated by the scientific and philosophical
knowledge in several areas: biological, social and exact. Over time, these scientific
theories were applied to society as a justification of imperialism to bring development and
52
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
progress from so-called "advanced" civilizations to so-called "backward" civilizations. The
race was also a constant in the nineteenth century, justifying the inferiority of a people by
biological characteristics.
KEYWORDS: Science, religion, social Darwinism, "race," Imperialism.
REFERÊNCIAS:
AZEVEDO, Célia M. M. “A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a
noção de raça”, IN: Rago, Margareth & Gimenes, Renato, Narrar o passado,
repensar a História, Campinas, IFCH, 2000.
BERSTEIN, S. e MILZA, P. História do Século XIX. Sintra: Publicações
Europa América, 1997
HOBSBAWM, E. J. A Era do Capital 1848-1875. 13ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2007.
______. A Era dos Impérios 1875-1914. 12ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
SAID, E. W. Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
SILVA, E. M. O Espiritualismo No Século XIX: Reflexões Teóricas e
Históricas
SOBRE Correntes Culturais e Religiosidade. 1. ed. CAMPINAS: UNICAMP,
1997.V. 27.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
53
A HISTÓRIA CÍCLICA ENTRE MITO E ESCLARECIMENTO
Carolina Defensor RIBEIRO*
RESUMO: A partir da obra “Dialética do Esclarecimento“ de Adorno e Horkehimer, este
artigo demonstrará a construção de um ciclo conceitual, e não temporal, composto pela
mitologia e pela ciência. Baseado na epopéia Homérica, Odisséia, o artigo buscará
estabelecer correlações entre os conceitos que se formulam para conferir suporte à razão
do homem esclarecido e a dimensão vinculada à mitologia que neles persistem. A tensão
entre os dois conceitos (mito e esclarecimento) surgirá com a tentativa do homem
racional de anular a “irracionalidade” mitológica presente nos ideais do homem civilizado.
Tal atitude irá levar os seus próprios fundamentos ao encontro dos fundamentos do mito.
PALAVRAS CHAVES: mitologia, esclarecimento, razão, natureza, ciclo, Ulisses.
“A maldição do progresso irrefreável é o irrefreável regresso.”
(Theodor W. Adorno e Max Horkheimer)
INTRODUÇÃO
Afirmado como um livro gerador de alguns ideais da Escola de
Frankfurt, “Dialética do Esclarecimento” intensificou pesquisas sobre a
relação entre mitologia e o esclarecimento. O livro, que foi escrito durante a
Segunda Guerra Mundial, examina os ideais do homem ocidental esclarecido
representado em Ulisses, na Odisséia. Serão apresentadas, a partir da
análise dos autores alemães, características em Odisseu1 que podem ser
atribuídas ao homem contemporâneo, já que esse se supõe detentor de
mentalidade capaz de diminuir seus medos a partir de um rebaixamento
intelectual daquilo que é temido, pretendendo seu progresso. Com uma
postura contrária ao positivismo, a obra decompõe os posicionamentos do
esclarecimento que visava atingir uma postura distanciada da mitologia e,
conseqüentemente, da natureza. Tal análise do esclarecimento, na tentativa
de romper com o mitológico, constatou a formação de um ciclo, pelo fato de
mito e esclarecimento possuírem semelhanças em diversos pontos de seus
conceitos, ocorrendo encontros entre seus fundamentos.
*
1
Graduanda em História na UNESP- Campus de Franca sob a orientação do Prof. Dr.
Pedro Geraldo Tosi. Bolsista PET/MEC/SESu
Herói da epopéia histórica de Homero. Também pode ser nomeado como Ulisses.
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Adorno e Horkheimer, fundamentais para a compreensão da influência
da Escola de Frankfurt na historiografia, cumpriam exílio da Alemanha em
função da II Guerra e, nesse período, produziram a obra. Logo, essa faz uma
análise crítica aos aspectos sociais fundados na racionalidade instrumental
vincada pela Ilustração, que levará a algumas reflexões quanto à conduta do
homem, que apesar de se considerar civilizado e esclarecido, ainda se
submetia a conflitos por causas supostamente primárias. Os autores
trabalham com a oposição dialética entre mitologia e esclarecimento. Tal
movimento da compreensão do problema disserta sobre ruptura promovida
pelo esclarecimento em relação ao mito, e, a um só tempo aponta a indelével
ligação entre ambos.
ESCLARECIMENTO E MITO
É necessário, antes de tudo, definir o conceito de esclarecimento a ser
utilizado. Segundo Guido Antônio de Almeida2
Em Adorno e Horkheimer, o termo é usado para designar o
processo de “desencantamento do mundo”, pelo qual as pessoas
se libertam do medo de uma natureza desconhecida, à qual
atribuem poderes ocultos para explicar seu desamparo em face
dela. Por isso mesmo o esclarecimento que falam não é, como o
iluminismo, ou a ilustração, um movimento filosófico ou uma
época histórica determinados, mas o processo pelo qual, ao
longo da história, os homens se libertaram das potências míticas
da natureza (...) (ADORNO e HORKHEIMER.1985, p.7-8).
Esta definição é fundamental para o entendimento do ciclo, que
explicará as tentativas falhas do homem esclarecido em negar ligações com
a mitologia. O mito seria o primeiro vínculo humano com respostas a fim de
esclarecer constantes dúvidas. Trata-se de uma elucidação que inicialmente
proporcionaria conformidade à consciência e explicaria todos os conteúdos
imagináveis. Pelos mesmos motivos surgiu o esclarecimento, entretanto esse
conceito possui elementos fundados na teoria positivista. Dentro dessa
perspectiva, a ideologia esclarecida, ao tentar construir formas de anulação
dos princípios mitológicos - que muitas vezes são também os seus -, acaba
anulando inclusive suas próprias bases.
O ciclo também aparece quando o homem impõe sua suposta
superioridade ao mito, sustentada unicamente no fato de ele deter
2
56
Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e tradutor da obra
Dialética do Esclarecimento.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
conhecimento explicativo e capacidade empírica. Isso lança o homem ao
fantástico, posicionando-o em um patamar inatingível, o que seria
inconcebível aos esclarecidos por serem, novamente, remetidos ao mítico. A
improdutiva rejeição ao mito pode ser interpretada em outra obra da História
Antiga, além da Odisséia. Sófocles demonstra, em Édipo Rei, o erro na
tentativa do homem em fugir do mito
Ai de mim! Ai de mim! Tudo é claro agora! Ó luz do dia, vejo-te
pela última vez, eu que nasci de quem não devia nascer, e me
casei com quem não deveria me casar-me, e matei quem eu não
deveria matar! (SÓFOCLES. 1988, p. 81)
O trecho demonstra a tristeza de Édipo ao saber que sua sina se
cumpriu. A personagem, pretendendo fugir do destino em que mataria seu
pai, tornar-se-ia Rei ao casar-se com sua mãe, e teria filhos com ela,
acabaria, assim, por cumprir exatamente a sorte que tanto temia. Sófocles
traz um possível rompimento com mito (sina de Édipo), que não teve
alterações mesmo com a racionalidade e esperteza - ou seja, esclarecimento
- do futuro Rei, situação que também está presente na obra Odisséia.
Podemos figurar o ciclo, entre mito e esclarecimento, tomando como base os
fatos que levaram Édipo a completar seu destino. Mesmo afastando-se de
suas raízes (ação dos esclarecidos em relação ao mito), agia de forma que o
ligava à profecia mítica, cumprindo sua sina infeliz em todos os detalhes.
MITO E NATUREZA
A natureza, que é uma aliada da mitologia para a construção de
respostas, será analisada pelos esclarecidos visando apontar a
irracionalidade de ambas. A natureza será examinada como um alicerce dos
conceitos mitológicos, e por isso torna mais fácil ao esclarecimento rebaixálos. Para Adorno e Horkheimer, a natureza é vista como um medo do
homem. Uma vez que esse observa o potencial de força da natureza e sua
irregularidade, cria-se um receio do homem em relação aos fenômenos
naturais. Neste momento, surgem as diversas formas de mito com a
finalidade de esclarecer e tornar o meio natural mais tolerável às sociedades,
o mito não é verdadeiro no seu conteúdo manifesto,
literal, expresso, dado. No entanto, possui um valor e, mais
que isto, uma eficácia na vida social. (EVERARDO.1985, p.
11).
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
57
A história da mitologia deixa evidente sua função esclarecedora para a
sociedade, mesmo dentro de campos imagináveis e não concretos. E para
isso usa da natureza para construir um condutor de respostas- exemplos
disso, a oscilação das colheitas eram atribuídas ao temperamento de
Deméter, deusa dos grãos e da fertilidade da terra na mitologia grega.
Mesmo com o amparo mitológico, o homem produziu outra imagem da
natureza a fim de anular, totalmente, seus temores.
A constituição do medo da natureza na História do homem foi argumento
para formular métodos capazes de inferiorizá-la. Há, em Dialética do
Esclarecimento, uma proposta de voltar à Antiguidade e à sua literatura para
demonstrar os primeiros feitos do homem, que foram capazes de desafiar a
natureza. O trecho analisado estudará a viagem do herói grego, Ulisses, em
retorno à sua ilha após a guerra de Tróia. Na obra, os desafios lançados por um
“deus-natureza” são sempre superados pelo racionalismo humano. A proposta
dos autores de Frankfurt é analisar todo o trajeto do navegante e os pontos
fundamentais que visavam à demonstração da superioridade da razão em
detrimento da natureza. É nesse contexto que o Homem travará sua primeira
ruptura com os deuses, buscando o início de liberdade racional.
ULISSES E ESCLARECIMENTO
Adorno e Horkheimer acreditam que a epopéia homérica seja a obra
mais rica para figurar a intenção de exclusão do mito da realidade do homem
esclarecido. O primeiro excurso da obra alemã, “Ulisses ou mito e
Esclarecimento”, analisa como a própria forma de narração conduzida por
Homero irá desconstruir o mito.
O autor da Odisséia exaltará Ulisses durante o retorno à ilha de Ítaca após
sua vitória em Tróia. Sob o castigo de Poseidon3, o herói grego enfrenta e supera
diferentes desafios da natureza tendo em vista sua racionalidade. A astúcia será
aliada de Ulisses ao traçar diferentes soluções para enganar a natureza, já que o
navegante reconhece sua inferioridade perante as forças dela.
O poder racional será essencial para subjugar a natureza e submetê-la ao
homem. Há, neste excerto, a possibilidade de identificar atitudes da civilização
ocidental no comportamento de Ulisses, o viajante será uma personagem
alegórica da sociedade contemporânea, segundo Adorno e Horkheimer.
Primeiro traço de identificação com a realidade civilizada é a percepção de
Ulisses quanto ao tempo, atitude inconcebível à mitologia e à natureza.
3
Deus da mitologia grega que domina os mares. Na Odisséia, o Deus aplica um castigo
a Ulisses ao ser ofendido pelo guerreiro, deixando-o navegar por dez anos antes de
voltar para Ítaca.
58
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
As passagens tentaram demonstrar o homem como um ser superior.
Passagens como a das sereias, Canto XII, mostra a astúcia de Ulisses e seu
desvinculo com o instinto e o sentimentalismo, a fim de dar credibilidade à
razão e ao pensamento esclarecido. O Canto narra o encontro com as
sereias que entoam uma canção capaz de seduzir e matar quem a ouve.
Hipnotizados, desprovidos de razão, os marinheiros jogavam-se ao mar com
o objetivo de alcançar as sereias, morriam afogados em decorrência da ânsia
de seus instintos.
Ulisses elabora um plano capaz de enfrentar a natureza sem
competição de forças, apenas com a racionalidade. Amarra-se a um mastro e
ordena que seus companheiros remem com os ouvidos tampados com cera,
Assim diziam [as sereias], entoando um belo cantar. Meu
coração desejava escutá-las; eu pedia aos companheiros que
me soltassem, acenando-lhes com os sobrolhos; eles, porém,
acurvando-se, remavam. Súbito, Perímedes e Euríloco
levantaram-se e prenderam-me com laços mais numerosos e
apertados. Quando, afinal, eles tinham passado além das
Sereias e já não ouvíamos a sua voz e o seu canto, sem demora
meus leais companheiros retiraram a cera com que eu lhes
vedara os ouvidos e soltaram-me os laços. (HOMERO.A
Odisséia, p.143).
A passagem demonstra a derrota dos desejos, manifestações
irracionais, pela razão do homem - estratégia de Ulisses para vencer os
cantos das sereias. A crítica dos autores alemães está na forma pela qual
Ulisses superou as sereias. A partir de egocentrismo, o herói escuta o canto
sem se prejudicar, já seus companheiros não têm oportunidade de desfrutar
da música, apenas de obedecer às ordens de Ulisses para livrá-los da morte.
Outra crítica dos autores à “astúcia” do homem esclarecido sustentou-se
no fato de Ulisses ser conhecedor das tentações que enfrentaria com as
sereias. Depois de receber orientações da deusa Circe4, o herói evidenciou a
necessidade de recorrer à mitologia (deusa) para superar os elementos
míticos. Éolo, deus dos ventos, em outro momento da epopéia, também
ajudou o navegante a superar os desafios lançados por Poseidon.
Configurando, assim, um paradoxo em que deuses aliados ao homem
oferecem recursos capazes de combater outras divindades.
O herói utilizará a linguagem como uma exclusividade humana, que foi
utilizada como artifício para diminuir a natureza. O jogo de palavras com o
4
Deusa da mitologia grega que possui o poder de transformar homens em animais.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
59
ciclope5 presente na epopéia foi capaz de dar à racionalidade mais uma
suposta vitória. O nome “Ninguém”, adotado por Ulisses para enganar o filho
de Poseidon, foi método para derrotar o gigante, comprovando a ignorância
de um indivíduo que vive na natureza e é sustentado somente por ela. A
passagem que inclui o ciclope critica diretamente o homem que não vive em
sociedade, o indivíduo que não possui leis e doutrinas e por isso é
considerado irracional e passível de armadilhas.
O ciclo será fechado, mais uma vez, ao analisar a necessidade de
autonegação de Ulisses. Ele se transfere para um estado de morto, remetendoo à afirmação de que também é natureza. A morte é a única certeza de todos os
seres, sendo eles racionais ou não. Logo, o gigante se assemelha a Odisseu de
alguma forma, mesmo sendo irracional e isolado da civilização. Outras
passagens que não serão analisadas aqui, mas não se tornam menos
importantes, podem demonstrar as tentativas de Ulisses superar a natureza.
Passagens como a da deusa Circe e a da flor de Lótus afirmam a retração dos
sentimentos para a sobrevivência do viajante, reforçando a necessidade do
homem esclarecido em renunciar a natureza biológica.
Ao proclamar “não sou Ninguém, meu nome é Ulisses” como se fosse
apenas um sucedâneo capaz de vencer o mito não só suscita a ira de
Poseidon, mas o condena ao exílio, à privação dos objetivos racionalmente
concebidos: seus retornos à própria casa e sua suposta vitória ficam
severamente comprometidos.
O CICLO
O ciclo definido nesse artigo não tem a intenção de intitular um período
histórico específico. Ao contrário disso, as análises aqui expostas devem se
estender a outros períodos da história do homem para que tenham sentido.
Adorno e Horkheimer encontram na narrativa Antiga a melhor forma de
estabelecer a homologia entre razão e (dês)razão, já que a analogia de um
ciclo entre mito e esclarecimento na modernidade se instala frente ao
imponderável da afirmação da autoria ou da preponderância da razão
atribuída a alguém.
A racionalidade sempre atribuída a Ulisses tem suas origens mitológicas,
da mesma forma que o mito surge para esclarecer questões inexplicáveis ao
homem, assim “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por
reverter à mitologia” (ADORNO e HORKHEIMER. 1997, p.15).
É ineficaz a tentativa do esclarecimento em anular as formas de
mitologia. A insistência da ciência no empirismo literal como único caminho
5
Gigante de um só olho, na testa. Filho do deus Poseidon.
60
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
para tornar claros questionamentos sempre evidenciará falhas, o que
remeterá o Homem às respostas mitológicas. Assim, o ciclo esclarecimentomito é reafirmado.
Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento,
assim também o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a
cada passo que da, na mitologia. (ADORNO e HORKHEIMER.
1985, p.23).
RIBEIRO, Carolina Defensor. The cyclic history of myth and Enlightenment.
ABSTRACT: From the book "Dialectic of Enlightenment, this paper will demonstrate the
construction of a cycle conceptual, not temporal, composed of mythology and science.
Based on the Homeric epic, the Odyssey, the article will examine the similarities between
the concepts that formulate enlightened man of reason and nature linked to mythology.
The cycle between the two concepts (myth and enlightenment) will come up with man's
attempt to cancel the "irrationality" of the mythical ideal of civilized man. Such an attitude
will bring their own foundations to meet the foundations of myth.
KEYWORDS: mythology, enlightenment, reason, nature, cycle, Ulysses.
REFERÊNCIAS:
ADORNO, Theodor W. ; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
FRAGA, Paulo Denisar. Mito e ciência: a confluência turva do
esclarecimento. Revista espaço acadêmico, 2007. Disponível em:
http://www.espacoacademico.com.br/072/72fraga.htm
GAFFO, Leandro. De Ulisses a Frankenstein ou do Confronto com a
Natureza Exterior à Dominação da Natureza Interior. Revista de Estudos da
Religião, 2006. Disponível em:
http://www.pucsp.br/rever/rv3_2006/p_gaffo.pdf
MATOS, Ogária C. F. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo.
São Paulo: Moderna, 1993.
ROCHA, Everardo P. G.. O que é mito? São Paulo: Brasiliense, 1985.
SÓFOCLES. Édipo Rei. Chile: Sociedade Comercial y Editorial Santiago
LDA, 1988.
VASCONCELOS, João Perboyre de. A volta ao mito: à margem da obra de
Marcuse. Rio de Janeiro: Laudes, 1970.
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61
POLÍTICAS NAPOLEÔNICAS PARA UMA FRANÇA EM CRISE*
Danilo Medeiros GAZZOTTI *
RESUMO: O presente artigo pretende demonstrar como as reformas napoleônicas no
período do consulado deram estabilidade e prosperidade a França, a ponto da população o
proclamar o “salvador” e a burguesia lhe dar o apoio necessário para ele tornar-se imperador.
PALAVRAS-CHAVE: Napoleão, Reformas, Consulado.
INTRODUÇÃO
Muito se fala na historiografia de Napoleão Bonaparte, principalmente de
suas conquistas militares na Europa do séc XIX. Mas além de ser um grande
militar, Napoleão também foi um estadista e através de suas políticas
econômicas conseguiu conter o “caos” político e social que tinha se estendido
na França devido ao desastroso governo do Diretório. Além do mais conseguiu
vencer as ameaças externas a França, que na época figurava na segunda
coalizão, formada pela Áustria, Prússia e Rússia, que pretendiam invadir o país,
acabar com a República e restaurar a dinastia dos Borbons.
Através dessas realizações como estadista, Napoleão conseguiu uma
extrema popularidade sendo chamado pela população de o “salvador da
França” e também ganhou o aval da burguesia para continuar no poder. Com
apoio das massas e da elite Napoleão tem a força necessária para se
proclamar imperador, acabando assim com a fase republicana da Revolução
Francesa e dando início ao Império.
No presente artigo pretendo explorar a chegada de Napoleão ao
poder e suas reformas como primeiro Cônsul, mostrando como elas
conseguiram trazer paz à França, tanto internamente com externamente,
abrindo o caminho do trono para o seu interlocutor.
CHEGADA AO PODER
A França passava por um momento de grande tensão, internamente
encontrava-se com uma crise política e social e externamente enfrentava o
perigo de uma invasão provocada pela segunda coalizão.
Artigo produzido como avaliação da matéria História Contemporânea I, ministrada pela
Prof.ª. Dra. Márcia Pereira da Silva
** Graduando do curso de História da UNESP - Campus de Franca. Bolsista
PET/MEC/SESu
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63
Ela precisava de alguém de prestígio que tomasse suas rédeas,
amenizasse seus problemas internos e que ainda tivesse poder para
enfrentar o exército que a ameaçava. O diretório depois de numerosos
desastres já não era capaz disso, por isso apoiou-se na única instituição da
França que ainda tinha prestígio, o exército, que nos últimos tempos
amparados na figura de um de seus generais, Napoleão Bonaparte, só tinha
trazido glórias a França.
Durante sua campanha no Egito, Napoleão recebeu as notícias dos
desastres ocorridos na França revolucionária e concluiu que para salvá-la ele
teria que voltar e tomar o poder. È o que nos diz Octave Aubry, (AUBRY,
1958, p.73)“Vida Íntima de Napoleão”:
Da Europa, nenhuma notícia. Devorado pela inquietação,
Bonaparte envia ao almirante Sydney Smith um parlamentar.
Sob o pretexto de tratar da troca de prisioneiros, deve conseguir
algumas informações. Ironicamente, Smith presenteia o
comissário com um maço de jornais. Bonaparte fica então ciente
dos sucessivos desastres que se abateram sobre a França
nestes últimos meses: A Áustria e a Rússia estão novamente ao
lado da Inglaterra; Morreu fora batido em Cassano; Jourdan, em
Stokach; a Itália abandonada; o inimigo transpondo as fronteiras
como nos mais tristes dias da Revolução. [...] Não pode
demorar-se mais tempo no Egito. Kleber ficará encarregado de
manter a conquista. Para salvar a Revolução, a França e sua
maravilhosa conquista a Itália, Napoleão deve regressar e tomar
o poder. Atualmente, quem poderá impedi-lo? [...] A própria
distancia ainda faz com que tenha mais brilho. Logo que surja, a
França se entregará a ele.
Depois disso Napoleão voltou para França praticamente incógnito em
um navio e aportou nela sendo recebido com um herói. Désiré Lacroix cita na
obra “História de Napoleão” esse momento:
Tudo de degradava. Sentia-se que a França estava em perigo.
Era preciso que uma autoridade se impusesse em lugar daquele
governo desprezível e nulo. Quando se soube da volta de
Bonaparte pensou-se nele, eis porque sua chegada causou uma
alegria geral.(LACROIX,1904, p. 261.)
A burguesia que controlava o poder, sabendo do poder e prestígio de
Bonaparte e vendo nele a última esperança de salvar a França, não teve dúvidas
em dar um golpe em si mesma e entregar o poder a ele. Como diz Hobsbawm:
“O poder foi em parte atirado sobre seus ombros e em parte agarrado por ele
64
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
quando as invasões estrangeiras de 1799 revelaram a fraqueza do Diretório e sua
própria indispensabilidade.” ( HOBSBAWN, 1997, p. 51-52.)
Estava dado o golpe 18 de Brumário, iniciando o período do Consulado
na França, com Napoleão no cargo de 1ºConsul.
AS MEDIDAS INTERNAS EM NOME DA PAZ
Ao assumir o poder Napoleão tomou uma série de medidas que
visavam estabilizar econômica, jurídica e administrativamente a França,
dentre as quais podemos destacar:
A Criação do Banco da França em 1800: Essa medida foi a maior
mostra da estabilidade burguesa. O banco controlou a emissão de moedas,
reduzindo a inflação e impôs tarifas protecionistas. O resultado disso foi o
fortalecimento do comércio e da indústria e um estímulo a produção e ao
consumo interno. Segundo Désire Lacroix em “História de Napoleão”:
A gloria militar de Bonaparte fora tão refulgente, que todo o
mundo se acostumara a considerá-lo somente como o homem
dos campos de batalha. Foi com admiração e quase com
espanto que se o viu dirigir os movimentos da indústria [...] com
a data de 4 de março de 1801, instituiu a exposição periódica
dos produtos manufatureiros e industriais da França.
(LACROIX,1904, p. 308.)
Concordata com a Igreja em 1801: Ao assinar esse acordo com o Papa
Pio VII, Napoleão reconhecia a Papa como chefe soberano da Igreja, e a
igreja como religião da maioria dos franceses e comprometia-se a remunerar
o clero. Em troca a Igreja se comprometia a assegurar a paz, a coesão social
e o respeito às leis e renunciava a reclamar das terras confiscadas durante a
revolução. Com esse acordo Napoleão conseguiu utilizar a religião como
instrumento político. Lacroix em “História de Napoleão” diz:
A 15 de julho ele concluiu uma Concordata com a Corte de Roma
pela qual foi restabelecida a Igreja na França, que conservando
todas as suas liberdades, reconheceu por chefe o Soberano
Pontifício. A Concordata foi para a França uma verdadeira
restauração: recebida com as mais vivas demonstrações de alegria
por tudo o que havia de honesto, de religioso, ela implicava a
condenação dos excessos revolucionários, dava à política exterior
arras de confiança e de estabilidade, agrupava em torno do
Primeiro Cônsul um grande número de famílias nobres que, apesar
das suas vitórias, teriam continuado a renegar a Revolução. .
(LACROIX,1904, p. 311-312.)
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
65
Criação do Código Civil em 1804: O Objetivo dessa medida foi colocar
um fim a anarquia social em que a França se encontrava. Através de suas
leis, que representavam em grande parte interesses burgueses, foi instituído
o respeito a propriedade privada, o casamento civil, o direito a liberdade
individual e a igualdade jurídica. Lacroix nos esclarece novamente em
“História de Napoleão:
Enfim, aspirando por nobre ambição a todas as espécies de
glória, ele lançava os fundamentos do Código Civil, monumento
imperecível que foi pedir á justiça, o qual unificava a legislação,
ligando às tradições do passado as conquistas do presente.
(LACROIX,1904, p. 308.)
Hobsbawm comenta as reformas internas do primeiro cônsul:
E com sua chegada, como que por milagre, os problemas
insolúveis do Diretório tornaram-se solúveis. Em poucos anos. A
França tinha um Código Civil, uma concordata com a Igreja e até
mesmo o mais significativo símbolo da estabilidade burguesa –
um Banco Nacional. E o mundo tinha o seu primeiro mito
secular. (HOBSBAWM,1997, p. 52.)
Através destas medidas Napoleão conseguiu resolver grande parte dos
problemas por qual a França passava, e atingindo uma imensa popularidade
com a burguesia e a população em geral.
AS MEDIDAS EXTERNAS EM NOME DA PAZ
Um dos principais motivos que proporcionou a chegada de Napoleão ao
poder foi a ameaça externa provocada pela segunda coalizão. Rússia,
Áustria, Baviera e Inglaterra, uniram suas forças com o propósito de encerrar
a revolução na França e restaurar a dinastia do Borbons. Napoleão foi visto
pela burguesia como o único capaz de enfrentá - la e salvar a França.
Amparado no ideal de que a paz seria a mais desejável vitória,
Napoleão através de um grande ato de generosidade, estritamente calculado,
consegue desligar da coalizão um de seus maiores auxiliares, a Rússia:
Felizmente que, por um ato de generosidade bem calculado, ele
acabava de desligar da coalizão um dos mais formidáveis
auxiliares com que ela contava, o imperador da Rússia. Nove mil
prisioneiros russos estavam espalhados por diversos pontos da
Rússia. O Primeiro Cônsul reuniu-os, ordenou que se lhes desse
66
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
roupa nova, devendo cada um vestir o uniforme do seu
regimento, e mandou-os para a Rússia, pagando todas as
despesas de viagem, e sem propor permuta alguma. Paulo I
ficou tão vivamente comovido com este procedimento
cavalheiresco que se encheu de entusiasmo pelo Primeiro
Cônsul, chamou todas as suas tropas que estavam na
Alemanha, expeliu os ingleses de sua capital, e tornou-se, se
não um zeloso defensor, pelo menos um admirador ardente do
governo francês. Ao mesmo tempo, a Suécia e a Dinamarca,
cedendo às exortações e ao exemplo da Rússia, consentiram em
observar uma neutralidade estrita.” (LACROIX, 1904, p. 279.)
Mesmo depois da Paz com a Rússia restavam na coalizão Inglaterra,
Áustria e Baviera.
Com seu exército partiu para a Itália que estava totalmente nas mãos
dos austríacos. Após vários combates a Áustria foi derrotada definitivamente
na Batalha de Marengo, sendo expulsa da Itália.
Na Alemanha, a Áustria também não teve muito sucesso e após o
combate de Neubourg via o exército francês ocupando o centro da Baviera.
O Imperador austríaco pediu um armistício, para recompor suas tropas.
Napoleão o concede, mas após não chegar a um acordo com ele, recomeça
a guerra, infligindo várias outras derrotas a Áustria.
Após esta série de derrotas e vendo a união entre França e Rússia, a
Áustria não tem outra saída, que não seja a paz.
A Áustria via alarmada a união entre intima do imperador da
Rússia com a República Francesa: vencida e humilhada na
Alemanha, e na Itália, ela não tinha outro remédio senão fazer a
paz” A Inglaterra, sem poder defendê-la, era obrigada a deixá-la
agir só.[...] A notícia da assinatura da paz de Luneville chegou
em Paris a 12. Toda a população transportou-se ás Tulherias,
aos gritos de Viva Bonaparte!(LACROIX, 1904, p. 304-305.)
Depois disso só restava a Inglaterra na coalizão. Napoleão sabia que
ela só se renderia depois de um grande desembarque em sua costa. Por isso
mandou tudo o que dispunha de sua marinha neste plano.
Ao ver o Porto de Bolonha cheio de armamentos e com mais de cem
mil homens, a Inglaterra tentou fazer duas grandes tentativas para destruir
esses armamentos, mas foram em vão. Alarmada com esses insucessos,
resolveu finalmente assinar um tratado de paz e reconhecer Napoleão com
Primeiro Cônsul.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
67
Esses insucessos não deixaram de influenciar no tratado de paz
que foi assinado em Amiens a 25 de março de 1802 entre a
República francesa, a República Batava e a Inglaterra. A
Inglaterra reconhecia Bonaparte na qualidade de Primeiro
Cônsul e restituía á República e aos seus aliados o que
conquistara nos dois hemisférios. (LACROIX, 1904, p. 304-305.)
Com a vitória sobre a segunda coalizão, Napoleão via cada vez mais o
crescimento de seu prestígio e popularidade, vendo o caminho do trono, cada
vez mais próximo.
CHEGADA AO TRONO
Após o sucesso de suas reformas internas e a vitória sobre a segunda
coalizão, o Conselho de Estado decidiu que seria aberta uma votação que
pediria um governo napoleônico vitalício. O resultado foi uma vitória
esmagadora a favor de Napoleão, que em 2 de agosto de 1802 era
proclamado Primeiro Cônsul Vitalício.
Mas para Napoleão isso pareceu não ser o suficiente, ele queria além
da vitaliciedade a hereditariedade. Apoiando-se na ideia de estabilidade do
governo e na previsão de guerras novamente em breve, Napoleão se fez
sentir cada vez mais necessário. A população tinha a ideia de que se ele
fosse morto, a França voltaria a caos em que estava, então ela cada vez dá
mais apoio a essa ideia da hereditariedade.
Baseando-se nessa ideia da necessidade o tribunato propôs uma
moção que elevava Bonaparte a dignidade imperial. Essa proposta foi
aprovada por unanimidade no Senado. Em 18 de maio de 1804, Napoleão
era proclamado imperador da França, decisão que foi ratificada com
aclamação popular. De acordo com Lacroix
Era manifesto aos olhos de todos que a morte de Bonaparte,
lançando a França de novo no caos da anarquia, seria o sinal
para as dissensões civis e para a guerra estrangeira, e como a
maior parte dos franceses estava satisfeita com os sentimentos
de liberdade e de tolerância que constituíam a regra da
administração, ela não inspirava senão á continuidade do
governo fundado por Bonaparte. Com a ideia de estabilidade e
de continuidade não se estava longe de chegar á da
hereditariedade. O Consulado vitalício já não parecia uma
garantia suficiente de estabilidade. Bonaparte viu sem duvida
com prazer a marcha dos acontecimentos que lhe iam dar a
coroa. A moção em que se propunha elevar Napoleão Bonaparte
à dignidade imperial, e se declarava o Império francês hereditário
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em sua família, partiu do Tribunato. A proposta do Tribunato,
subscrita pelo Corpo Legislativo, foi comunicada ao Senado, que
a adotou unanimemente. A 18 de Maio o Senado, incorporado,
foi a Saint- Cloud e apresentou a Bonaparte o ato institucional
que lhe conferia o título de imperador. O Senado, incorporado,
foi a Saint-Cloud e apresentou a Bonaparte o ato institucional
que lhe conferia o título de imperador. O senátus-consulto havia
consagrado o voto dos três grandes poderes da nação, que foi
ratificado pela aclamação popular”.(LACROIX ,1904, p. 320-321)
Napoleão finalmente conseguiu atingir um de seus maiores objetivos, e
subiu no trono francês, acabando com o período republicano da Revolução
Francesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Devido as suas grandes realizações Napoleão atingiu uma popularidade
tão grande, que foi considerado um mito ainda em vida. Com isso pode-se
dizer que ele tinha um poder simbólico na França, como explica Pierre
Bourdieu (2003, p. 14-15):
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela
enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o
mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite
obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.
[...] O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem,
poder de manter a ordem ou a de subverter, é a crença na
legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença
cuja produção não é da competência das palavras.
Hobsbawm enfatiza seu prestígio:
Napoleão deu à ambição um nome pessoal no momento em que
dupla revolução tinha aberto o mundo aos homens de vontade.
Ele foi ainda mais. Foi um homem civilizado do século XVIII,
racionalista, curioso, iluminado, mas também discípulo de
Rousseau o suficiente para ser ainda o homem romântico do
século XIX. Foi o homem da Revolução, e o homem que trouxe
estabilidade. Em Síntese, foi a figura com que todo homem que
rompesse os laços com a tradição podia-se identificar em seus
sonhos.[...] Para os franceses ele foi, também, algo bem mais
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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simples: o mais bem sucedido governante de sua longa história.
Triunfou gloriosamente no exterior, mas, em termos nacionais,
também estabeleceu ou restabeleceu o mecanismo das
instituições francesas com existem até hoje. (HOBSBAWN,1997,
p. 54.)
As suas vitórias militares, aliadas ao sucesso de suas políticas
governamentais, trouxeram um período de grande prosperidade a França,
trazendo sucesso ao nome Bonaparte. Sucesso que não foi abalado nem
com sua derrota e exílio. Precisando-se ter um novo Napoleão, anos mais
tarde, para a população entender que este sistema de governo só foi viável
naquela época, não devendo mais retornar.
GAZZOTTI, Danilo Medeiros. Napoleonic policies for France in crisis.
ABSTRACT: This article seeks to demonstrate how the reforms during the Napoleonic
consulate gave stability and prosperity to France, to the point of the population to proclaim
him the "savior" and the bourgeoisie give him the necessary support to become emperor.
KEYWORDS: Napoleon, Reforms, Consulate.
REFERÊNCIAS:
AUBRY, Octave. A Vida Íntima de Napoleão. 3ª ed. Rio de Janeiro; Casa
Editora VECCHI Ltda, 1958.
LACROIX, Désiré. História de Napoleão. 1ª ed. Rio de Janeiro; H, Garnier,
Livreiro-Editor, 1904.
HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. 1ª ed. São Paulo; Paz e Terra,
1997.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 6ª Ed. Rio de Janeiro; Bertrand
Brasil, 2003.
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Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
A ESTRADA DE GOYAS E AS CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO
DO MUNICIPIO DE IGARAPAVA, EM MEADOS DO SÉCULO XIX.
Diego Lopes de CAMPOS*
RESUMO: O trabalho intenciona lançar luz a alguns pontos relativos à fundação do
município de Igarapava, oferecendo subsídios para posteriores estudos. Uma vez que é
raro este tipo de empreendimento sobre tal município, este trabalho pode ajudar
posteriores reflexões acerca da realidade história da cidade.
PALAVRAS-CHAVE: História Regional, Igarapava, ocupação territorial.
O Nordeste paulista, em meados do século XIX, possui uma rede
fundiária relativamente recente, pois a abertura do Caminho de Goiás, ainda
em princípios do século XVIII, não implicara no desbravamento dos vastos
territórios a sua margem1
A história da cidade de Igarapava poderia ser confundida com a história
de muitas outras do interior paulista situadas ao longo do Caminho de Goiás.
As terras, antes ocupadas pelos índios caiapós, passaram a ser percorridas
pelos bandeirantes, que, seguindo as nascentes dos rios, chegaram até Vila
Boa de Goiás, onde encontraram ouro. A trilha do Anhangüera seria, a partir
de então, caminho de viajantes em busca de fortunas. O Brasil interiorizavase a partir da Vila de São Paulo de Piratininga em direção a Minas e Goiás
onde muitos pousos surgiram na passagem de rios e, destes, arraiais,
freguesias, vilas e cidades.
Somente no inicio do século XIX, em momento de instauração de
uma importante migração de mineiros, é que se principiou a
desbravar o Sertão do Caminho de Goiás. Grandes glebas de
terras foram abertas e ocupadas com a criação de gado, a
produção de queijos e o plantio de milho e feijão.
Largas extensões de terras devolutas eram apossadas. O futuro
posseiro esticava suas divisas ate onde a sua visão alcançava,
normalmente aproveitando as pequenas bacias hidrográficas
como norteadoras dos limites de suas posses 2
*
1
2
Graduado no curso de História da UNESP – Campus de Franca. Sob orientação de
Pedro Geraldo Tosi. Ex- Bolsista: PET/SESu/DDPG.
BACELLAR, C. A. P. e BRIOSHI, L. R. (Orgs). Na estrada do Anhanguera: uma
visão regional da história paulista. São Paulo. 1999. p 93.
BACELLAR, C. A. P. e BRIOSHI, L. R. (Orgs).Op. cit. 1999. p 93.
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71
O nome da cidade de Igarapava vem da terminologia tupi, Igarava –
canoa e Pava – porto, portanto o “porto das canoas” que se encontrava nas
barranqueiras do Rio Grande já era um caminho conhecido tanto por
indígenas quanto por bandeirantes que transitavam pela “estrada para
Goyas” na altura do caudaloso rio rumo aos sertões das Minas Gerais.
A fundação da cidade é algo um tanto quanto controverso, no entanto
cronistas da cidade datam o périplo pelos idos de 1842, com o vilarejo ainda
conhecido por Santa Rita do Paraízo e parte integrante da comarca de
Franca, neste intento destaca-se as figuras do Capitão Ferreira Anselmo de
Barcelos, Padre Zeferino Batista do Carmo e João Gomes na constituição
física do lugarejo.
A instigante figura de Anselmo de Barcelos oferece-nos referencias
interessantes de apreensão do processo de povoamento de Santa Rita do
Paraízo. Natural de Franca, o capitão protagonizou uma sedição contra os
poderes do juiz de paz Manuel Rodrigues Pombo. O certo era que o Cap.
Barcelos era sobrinho do Cap. Hipólito Antônio Pinheiro, fundador de Franca,
e então vereador da cidade e envia um oficio ao juiz de paz da
municipalidade (1836) por considerar fraudulentas as eleições que excluíam
o seu grupo político das fileiras de poder municipal. Inicia-se, então um malestar, dentro da política local de grupos rivais. O grupo político antigo local,
que dentre as suas lideranças figurava o Cap. Ferreira de Barcelos ao perder
as eleições para juiz de paz e vereadores em 1836, enceta uma série de
ataques políticos aos rivais representados por Antônio Barboza Sandoval,
Luis Gonçalves Lima e Manoel Rodrigues Pombo acusando-os além de
fraudes para com o certame eleitoral, de culpa em alguns casos de querelas
de ordem pessoal.3
A sociedade brasileira vivia o turbulento período regencial e levantes
ocorreram em quase todas as Províncias do Império, contra o poder central
ou mesmo em disputas locais que tinham como caixa com consonância as
disputas políticas em voga no Rio de Janeiro. Com a descentralização do
poder central, em época das regências, a política se desenvolvia tendo por
núcleo o município, o que colocava na base do poder os grandes
proprietários do interior, os chefes de parentelas e de grandes famílias. E o
que havia de importante então eram as lutas dos proprietários rurais entre si
para terem o poder, ou as lutas dos grandes proprietários contra as
influencias da Metrópole ou do Rio de Janeiro4
3
4
72
Casos desta ordem são referencias narradas pelas monografias do professor
Carmelino Corrêa que se encontram arquivadas no Museu de Franca.
Pereira de Queiroz, Maria Isaura. O mandonismo local na vida política brasileira e
outros ensaios. São Paulo. Alfa Ômega, 1976. p 19.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Mesmo com as divergências entre as várias versões sobre a história
das “Anselmadas”, é convergente a ideia sobre a invasão do Capitão
Barcellos a Vila de Franca, em 1 de Janeiro de 1838, na companhia de 30
cavaleiros armados, com objetivo de depor o Juiz de Paz em exercício, seu
opositor e substituí-lo por José Joaquim do Carmo, seu aliado político. O fato
é mais uma prova de brutalidade e mandonismo com que se conduzia a
política local. Esta característica não só exclusiva da localidade francana em
conduzir os seus interesses políticos vem corroborar com a fama de “lugar
violento” como ficou conhecida a Vila Franca do Imperador, e uma “boca do
sertão”, ou seja, uma local de refugiados, criminosos como bem ressalta
viajantes como Saint Hilaire5 e D’ Alincourt6
A vida cotidiana marcada pelo ritmo monótono foi abalada por
este episódio, que a nosso ver demandaria um estudo particular
haja vista características e diversas posições e versões
adotadas. As ruas da cidade, então cheias de mato, animais
soltos, mascates, artífices, vagabundos e marcadas pelo transito
de escravos e tropas de cavalos, viram-se invadidas e
dominadas pelo temor. É provável de as portas das casas,
raramente trancadas numa sociedade onde inexistia o crime
contra a propriedade, fosse, a partir daí, alvo de maior atenção e
vigilância.7
Não obstante ao julgamento por atentado ao bem público e ordem, o
Cap. Ferreira de Barcelos em setembro de 1838, invade outra vez a
localidade francana no intento de assassinar o Juiz de Paz Manoel Pombo,
no entanto os ânimos são amainados pela interferência do Padre João
Teixeira d’ Oliveira Cardoso que contêm os revoltosos.8 No entanto, o Juiz de
Paz Manoel Pombo, não obteve a mesma sorte, no dia 6 de Novembro de
1838, em que foi encontrado morto e com as suas orelhas decepadas, nas
intermediações da Fazenda Borda da Mata de propriedade da família
Ferreira de Barcellos.
Com os acontecimentos políticos e repercussões para a Vila de Franca
e perda de sua sede para a Freguesia do Bom Jesus da Cana Verde, Atual
5
6
7
8
SAINT-HILARE. Auguste. Viagem à Província de São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Edusp, 1976.
D’ Alincourt, Luiz. Memórias sobre a viagem do porto de Santos à cidade de
Cuyaba. Anais do Museu Paulista. Tomo XVI, 1950
BENTIVOGLIO, Júlio C. Trajetória Urbana de Franca. Franca. Editora UNESP. 2000.
p 53.
SOUZA, Sebastião Ângelo de. Pelos Caminhos da História de Santa Rita do
Paraízo. São Paulo. Ed Vitória. 1985. p 82.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
73
Batatais, a situação do Cap. Barcelos mostrou-se insustentável e fez-se
necessário sua volta para a fazenda Borda da Mata, referida em alguns
relatos da época por muitos outros nomes e que depois ficou conhecida,
popularmente, por Vargem Alegre, no que hoje é conhecido pelo município
de Igarapava. Inclusive tais talhões de terras datam de uma ordenação
metropolitana de 1804 referentes a uma sesmaria oferecida à família
Barcelos assim de sua vinda às terras paulista partindo de Minas Gerais.9
De caráter impetuoso e rebelde reconhecido por muitos por mais
respeito que temerosidade, como destaca Chiachiri, ou mesmo um “protocoronel” que apenas desrespeitou as leis e as normas do bem-viver jogando
com os interesses políticos locais, como analisa Bentivoglio. A figura de
Anselmo de Barcellos ora é quisto como um herói local que combate os
desmandos dos vereadores combatendo a corrupção e resolvendo litígios,
outra vez é relatado como um sedicioso que se rebela contra as autoridade
quanto não como um criminoso, como no caso da morte do Juiz Manuel
Pombo. O certo é que a sua ação política extrapola os limites paulistas, como
no caso de sua invasão a vila do Sertão da Farinha Podre, que atualmente
corresponde a Uberaba, Minas Gerais.
O Padre Zeferino do Carmo, residente em Uberaba, torna- se um
grande amigo de ideias do Capitão Anselmo. Em 1842, por meter-se à
política local e em meio a Revolução Liberal que eclode contra o Poder
Central é preso, torturado e na enxovia sofrera grandes humilhações por
parte de seus inimigos políticos, ligados ao Partido Conservador em
Uberaba.
Por ocasião da Revolução Liberal, ocorrida no ano de 1842,
Anselmo Ferreira de Barcelos invadiu a Vila de Uberaba e
libertou da prisão o padre Zeferino Batista do Carmo, vereador
liberal e detido por motivos políticos. Este radicou-se na região e,
juntamente com Anselmo, fundou o Arraial de Santa Rita do
Paraízo, que no ano de 1851 elevado a freguesia e em 1873 a
vila, com o nome de Igarapava.10
É justamente, a partir da chegada do Padre Zeferino e atuação de
homens como Capitão Anselmo de Barcellos e de João Gomes,
paralelamente, com a fundação da capela de Santa Rita do Paraízo, é que se
vitaliza um conglomerado populacional, um posto de passagem e muitas
vezes de parada entre as Minas Gerais e São Paulo, via Rio Grande.
9
10
74
De acordo com informações colhidas no Arquivo Municipal de Franca
BACELLAR, C. A. P. e BRIOSHI, L. R. (Orgs). Op. cit. 1999. p 82.
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Há indícios, de acordo com cronistas locais, de que as edificações da
Capela Santa Rita do Paraízo e do “pouso” para viajantes na fazenda
Vargem Alegre foram concluídos no ano de 1843, meses depois da chegada
de Zeferino no sítio da família Ferreira de Barcellos. Os desdobramentos
destas edificações foram sentidos, em 1851, com a Lei nº 7, sob as penas do
então Presidente da Província de São Paulo Vicente da Motta com a criação
de Freguesia de Santa Rita do Paraízo.11
Com a construção da edificação da Igreja Matriz de Santa Rita, em
novembro de 1853, e seu termino em 1858 o Padre Zeferino Batista
agradecia ao Governo Provincial a remessa de 400$000 (quatrocentos mil
réis) para as obras do templo12
O “pouso” às margens do Rio Grande crescia em números de pessoas,
o que traduzia o aumento no número de suas edificações. Em 1857, foi
instalado na freguesia uma agencia dos Correios; em 1858 o Padre Zeferino
comunicava ao Governo Provincial que o Livro de Registros de Terras
encontrava-se em seu poder, o que no ano seguinte por Portaria Provincial
era nomeado como Inspetor da Instrução Pública do Distrito do Carmo, ao
qual pertencia a Freguesia de Santa Rita do Paraízo.
Em 23 de Janeiro de 1863, a Câmara Municipal de Franca, solicitou ao
Governo da Província, uma doação de 1.000$000 ( um conto de réis) para a
construção de uma cadeia pública, em Santa Rita do Paraízo “por aquele
arraial distar de desta cidade treze legoas e ser um districto populoso”...O
dinheiro demorou; os moradores, subscrevendo a importância de 500$000
(quinhentos contos de réis), deram inicio à obra, que só ficou pronta no inicio
de 1865, quando o Governo Provincial remeteu uma verba de 700$000
(setecentos contos de réis) em mais 200$000 (duzentos contos de réis) para
reforma de um valo.13
A Freguesia logo assumiu os contornos de Vila, em 14 de Abril de
1873, o que mais tarde fora instalada a Comarca de Santa Rita do Paraízo,
desmembrada do município de Franca, pela Lei nº 80, em 25 de agosto de
1892. A religiosidade popular muitas vezes ultrapassava os muros da igreja e
denotava os contornos do “agem” público, como no caso de muitos
municípios brasileiros receberem o nome de sua padroeira, a Comarca Santa
Rita do Paraízo não era exceção a esta regra tão comum e detectável da
constituição do processo histórico dos municípios brasileiros.
Publicado da Secretária do Estado de São Paulo, em sete de Abril de mil oitocentos e
oitenta e um. Registrado no livro 3º de Leis, fls 111, em oito de Abril de mil oitocentos e
oitenta e um.
12 SOUZA, Sebastião Ângelo. Ob cit. 1985, p 187.
13 SOUZA, Sebastião Ângelo de. Op. Cit.. 1985. p 187
11
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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A escolha do nome Igarapava surge em substituição ao nome da
padroeira da cidade, depois que uma discussão acalorada em sessão pública
da Câmara Municipal14, da referida localidade. Os defensores da causa
argumentavam sobre as várias cidades com o nome de Santa Rita, o que
poderia causar confusão entre as pessoas e entrave para as pretensões da
cidade. O nome sugerido, pelo grupo de vereadores liderados por Gabriel
Vilela, vinha em se justificar pelo porto de travessia pelo Rio Grande que
naquela paragem recebia o nome de Porto da Ponte Alta, e que
anteriormente, era conhecido pelos indígenas e bandeirantes por Porto das
Canoas, o que em língua tupi significa Igara (porto) e Pava (das canoas). A
Lei que altera o nome da comarca é a de número 1.097, de quatro de
Novembro de 1907.
Tabela 8 – Nordeste Paulista: Freguesias e Municípios criados até 1889.
Municípios
Data da
Data do
Município de
Freguesia
Município
Origem
Franca
1804
1821
Mojimirim
Batatais
1815
1839
Franca
Cajuru
1846
1865
Casa Branca
Ribeirão
1870
1871
São Simão
Preto
Ituverava
1847
1885
Franca
Igarapava
1851
1873
Franca
Rifaina
1873
1948
Pedregulho
Morro
1872
1934
Orlândia
Agudo
Jeriquara
1885
1964
Franca
Fonte: IGC, 1995.
CAMPOS, Diego Lopes de. The Goyas road and considerations about the formation of
Igarapava city in the mid-century XIX.
ABSTRACT: This article intends to make clear some points relating to the founding of
Igarapava city, offering subsidies for further studies, cause this kind of study about this
region is rare, which may help further reflections on the historical reality of the city.
KEYWORDS: Regional history, Igarapava, land occupation
14
Livro de Atas da Câmara Municipal de Igarapava, do ano de 1907.
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REFERÊNCIAS
BACELLAR, C. A. P. e BRIOSHI, L. R. (Orgs). Na estrada do Anhanguera:
uma visão regional da história paulista. São Paulo. 1999
BENTIVOGLIO, Júlio C. Trajetória Urbana de Franca. Franca. Editora
UNESP. 2000.
BIANCONI, Renata. Dinâmica econômica e formas de sociabilidade:
aspectos da diversificação das atividades urbanas em Campinas (18701905). Campinas, 2002. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Economia,
Universidade Estadual de Campinas.
CAMARGO, José Francisco de. Crescimento da população no Estado São
Paulo e seus aspectos econômicos. São Paulo: Instituto de Pesquisas
Econômicas, 1981.
D’ Alincourt, Luiz. Memórias sobre a viagem do porto de Santos à cidade de
Cuyaba. Anais do Museu Paulista. Tomo XVI, 1950
SAINT-HILARE. Auguste. Viagem à Província de São Paulo. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976.
SOUZA, Sebastião Ângelo de. Pelos Caminhos da História de Santa Rita do
Paraízo. São Paulo. Ed Vitória. 1985.
Pereira de Queiroz, Maria Isaura. O mandonismo local na vida política
brasileira e outros ensaios. São Paulo. Alfa Ômega, 1976.
TOSI, Pedro Geraldo. Capitais no Interior. Franca e a história da indústria
coureiro-calçadista, (1860-1945). Franca/SP: FHDSS, 2002.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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O RADICALISMO DA REFORMA NO SÉCULO XVI:
OS ANABATISTAS
Filipe Faulin VALENTIM*
RESUMO: Os anabatistas foram os principais representantes do radicalismo da Reforma
no século XVI. Depois de romperem com as concepções de Lutero e Zuínglio, iniciam um
movimento que não possui apenas ideias religiosas, mas sim sociais, com isso,
expandem sua seita para diversas regiões da Europa, principalmente nos Países Baixos.
Dessa forma o anabatismo passa a ser condenado e seus membros perseguidos em
diversas áreas europeias, mas mesmo assim esse grupo consegue deixar o seu legado
na História.
PALAVRAS-CHAVE: anabatistas, Reforma, radicalismo, Münster.
No que se refere aos estudos realizados sobre a Reforma, a
historiografia dá pouca atenção aos movimentos radicais religiosos ocorridos
no século XVI, no qual tiveram como “símbolo”, os anabatistas. Por mais que
muitos marginalizem esse grupo, dizendo que teriam um papel secundário no
contexto da época, é importante ressaltar a contribuição social dos
anabatistas, principalmente por pregarem um modo de vida relacionado à
valorização da liberdade.
Desse modo, pode-se destacar que os anabatistas não estavam
somente preocupados com a questão religiosa, mas também contestavam a
estruturas políticas existentes no século XVI, pois rejeitavam as leis civis e os
deveres militares e opunham-se a qualquer forma de autoridade humana. Um
dos motivos para essas concepções é a Confissão de Scleitheim (um dos
documentos mais divulgados pelos anabatistas, foi redigida em 1527 pelo
mártir Miguel Sattler), esta possui sete artigos:
1. Afirma-se o Batismo só de crentes (os anabatistas não aceitavam o
batismo das crianças, pois alegavam que elas não estavam preparadas
para recebê-lo, portanto somente os adultos convertidos à seita
poderiam ser batizados).
2. A separação dos que caem no erro do pecado, a excomunhão. Aqui
simplesmente seguem Mateus 18.
3. Defendem uma comunhão fechada, ou seja, só podem participar os
membros comprometidos da comunidade e que vivem em santidade.
*
Graduando do curso de História da UNESP – Franca, sob orientação do Profº Dr. Lélio
Luiz de Oliveira
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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4. É exigida absoluta rejeição de toda “servidão da carne”, deve-se
afastar de todo o tipo de pecado, maldade, idolatria e abominação.
Inclusive frequentar bares e cultos tais como o culto das igrejas
romanas, luteranas e zuíngliana. É proibido o uso de armas até em
defesa própria.
5. Cada congregação escolhe seus próprios pastores e estes devem
gozar de boa reputação dentro e fora da comunidade e, por meio deles,
administrar sua disciplina.
6. Quanto ao governo civil, diziam ser necessário nesse mundo
imperfeito, mas o cristão nele não deve participar, nem tomar armas ou
lançar mão de coerção.
7. O cristão sempre deve dizer a verdade e não fazer qualquer tipo de
juramento.
Além disso, é importante realçar outras características desse grupo:
possuía uma crença geral no livre arbítrio, oposto à ortodoxia protestante da
predestinação, poucos aceitavam a poligamia, não defendiam
sistematicamente uma sociedade onde todos viveriam em comum (embora
em algumas áreas, como a Moravia, os anabatistas aplicavam-na) e
acreditavam na volta do Messias.
... o anabatismo não era uma crença que procurava abrir
caminho, um movimento confuso e desordeiro, mas sim uma
conspiração internacional destinada a abater a frágil estrutura
social da Europa. Observado desse ponto de vista, não se
admira que fosse objeto de certa perseguição, pois não tinha
caráter estritamente religioso. (DICKENS, 1971, p.144).
Esse trecho mostra o anabatismo sendo alvo de perseguição por ser
considerado não só relacionados a assunto religiosos, desse modo entendese que essa crença era formada por um grupo de revolucionários, no entanto
não se pode generalizar, pois existiam anabatistas que se dedicavam a uma
vida piedosa, retirada do mundo, preparando-se para a “nova vinda de
Cristo”.
A expansão das ideias da Reforma feita por Lutero abriu caminho para
um novo modo de pensar sobre a Instituição religiosa e os seus princípios;
uma das mudanças propostas pelos protestantes era livre interpretação da
Bíblia, consequentemente isso favoreceu para inúmeras divisões do
protestantismo. Foi nesse contexto que surgiu na Suíça o zuínglianismo,
esse movimento, ao contrário de Lutero, colocava o papel do homem de
Estado ao de reformador religioso, além disso, Zuínglio também fez uma
80
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
racionalização da doutrina eucarística, simplificou as fórmulas culturais e
discutiu o valor do batismo das crianças.
Entre 1523 e 1526 o pensamento anabatista teve sua maior força em
Zurique, pois surgiam nesse local os primeiros grupos liderados por Conrado
Grebel, Baltasar Hübmaier e Félix Mantz, todos estes eram discípulos de
Zuínglio, e sempre discutiram a questão do batismo das crianças, no entanto
pretendiam a levar ideia mais ao extremo. Em 1525 começaram a batizar
várias pessoas que aceitavam os preceitos anabatistas, desde então o grupo
rompeu com zuínglianismo e começou a praticar a suas ações declarando-se
uma seita autônoma.
Em pouco tempo o movimento espalha-se por toda Suíça, tendo maior
sucesso nas pequenas aldeias, onde houve uma grande aceitação entre os
camponeses, pois os chefes anabatistas despertavam uma legítima emoção
popular. Além disso, a rejeição ao protestantismo conservador pode ter sido
reforçada posteriormente, devido à condenação da revolta dos camponeses
por Lutero (DICKENS, 1971). Outra contribuição a esse repúdio foi que as
autoridades de Zurique realizaram a prisão de Grebel, Mantz, Blaurock
(sacerdote convertido para seita e também foi um líder influente no
anabatismo) e submeteram Hübmaier a tortura. Desse modo foram feitas
várias perseguições aos grupos anabatistas, obrigando a seita a se instalar
em lugares mais isolados e assim as suas principais ações ocorrem fora da
Suíça.
É importante destacar a influência da corrente anabatista na Guerra
dos Camponeses, um conflito que ocorreu entre 1524-25 devido à situação
que se encontrava o meio rural na Alemanha em decorrência da crise do
sistema feudal, dessa maneira os camponeses liderados por Thomas
Müntzer reivindicavam a livre escolha dos líderes espirituais, a abolição da
servidão, a diminuição dos impostos sobre a terra e a liberdade para caçar
nas florestas pertencentes à nobreza. Dickens explica como Müntzer adquiriu
a idéias anabatistas e tentou aplica-las nessa revolta:
O anabatismo tinha relações com a heresia e o profetismo da
Idade Média. Os movimentos organizados não provinham
unicamente de Zurique. Podem encontrar-se elementos a eles
relativos na caótica Vitemberga de 1521, quando o batismo das
crianças se discutia e quando os profetas de Zwickau tentavam
organizar uma igreja separada. Foi deste meio que emergiu
Müntzer, o qual tentava desviar a revolta dos camponeses ao
extremismo religioso. (DICKENS, 1971, p. 131).
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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Em fevereiro de 1525, a revolta havia se espalhado por todo o sul da
Alemanha e começava a se alastrar para o norte e leste. Porém ela chega ao
fim nesse mesmo ano, afinal os camponeses não tiveram chance contra um
exercito de soldados experientes e bem equipados, foram cercados e
milhares dizimados, já Müntzer foi preso, torturado e depois decapitado.
Mas o anabatismo consegue espalhar-se consideravelmente entre os
camponeses e habitantes pobres das diversas cidades regiões da Europa
como a Áustria e principalmente a Moravia, essa expansão foi teve grande
ajuda de Hans Huth (foi um dos discípulos de Thomas Müntzer) que
conseguiu conquistar muitos adeptos por onde passava, mas foi em lugares
mais distantes como Nikolsburg, na Moravia, onde suas profecias
apocalípticas obtiveram maior sucesso. Posteriormente, após a morte de
Huth, os anabatistas desse local receberam um ilustre líder Jacob Hutter,
este novo organizador baseava-se nos primeiros capítulos dos Atos dos
Apóstolos, de que a comunidade de bens era a prática dos verdadeiros
cristãos (DICKENS, 1971), dessa maneira por volta de 1529 os moradores da
Moravia começaram a ser organizar em sociedades que colocavam os bens
em comum, Hutter conseguiu fundar cerca de oitenta fundações anabatistas
nessa região. Alguns anos depois passaram a ser perseguidos, Hutter foi
morto em 1536, foram expulsos e receberam auxílios de outras comunidades
anabatistas da Europa, ficaram conhecidos como hutteristas.
Um episódio extremamente marcante na história do movimento
anabatista foi a ocupação da cidade episcopal, localizada na Vestefália,
chamada Münster. Mas, antes de entrar diretamente nesse caso, é relevante
analisar os fatos que levaram a ação desse acontecimento.
Primeiramente, destaca-se a figura de Melchior Hoffmann, este foi um
missionário que não aceitava as ideias de Lutero e Zuínglio e juntou-se ao
anabatismo na cidade de Estrasburgo (grande centro de concentração de
anabatistas e outros radicais), logo depois consegue lançar um novo
movimento imbuído de radicalismo na Holanda, tendo um importantíssimo
papel religioso durante 1530 e 1533, até ser preso por autoridades de
Estrasburgo. No entanto, um grupo de seus discípulos liderado por João
Matthys de Harlém, foi o responsável na propagação dessas novas ideias
para as outras cidades holandesas.
Desse modo, em 1533, Matthys e um grande grupo de anabatistas
ficam cientes que na cidade de Münster um antigo pregador luterano
Bernardo Rothmann estava denunciando o batismo das crianças e
sustentava a comunidade de bens, assim desafiava o príncipe/bispo católico
e desejavam a expulsão dos luteranos, em consequência disso tomou a
cidade em Janeiro 1534, com ajuda das classes populares e do rico
82
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Knipperdolling. Diante a essa situação, João Matthys e os seus seguidores
se juntaram aos anabatistas de Münster, onde em seguida assumiu o
comando da cidade e teve de lidar com os problemas encontrados devido ao
cerco instalado em Fevereiro pelo príncipe/bispo. Porém em Abril é morto
pelas tropas inimigas, então a liderança foi transferida para o antigo alfaiate
João de Leida, onde este acabou com o conselho da cidade e instaurou uma
teocracia; no seu governo todos os pecados (como por exemplo: blasfêmia,
adultério, desobediência aos pais ou ao um patrão e a falsa denúncia) eram
punidos com a morte. Já a poligamia era admitida em Münster, mas segundo
Dickens isso pode ser explicado:
É justo, no entanto, esclarecer que se tratava de um código de
natureza militar. O mesmo podemos pensar da instituição da
poligamia, pois na cidade havia 1700 homens para quatro vezes
mais mulheres e muitos milhares de crianças a proteger. É inútil
acrescentar que a poligamia era defendida mediante o apoio de
numerosos textos bíblicos pelo antigo sacerdote Rothamann,
que empregava também argumentos empíricos. Desde que o
objetivo do casamento era a fecundidade, um marido não
deveria ser impedido, pela esterilidade ou indisposição, de uma
esposa.(DICKENS, 1971, P.140).
Em Junho de 1535 termina o cerco em Münster, tendo como resultado
uma chacina de grande parte dos defensores da cidade, já outros, como
João de Leida e Knipperdolling, foram torturados até a morte. Depois desse
episódio intensificaram as perseguições aos anabatistas, sendo que milhares
foram capturados e mortos nos decênios seguintes do século XVI.
Após a catastrófica experiência ocorrida em Münster, o anabatismo
encontra uma salvação, isso se deve a Meno Simonis, este era um padre
alemão que foi admitido na seita em 1536 e assim passou a fazer varias
peregrinações na Alemanha e na Holanda no intuito de ajudar e acolher os
grupos que tentavam fugir das perseguições. Dessa forma consegue um
grande numero de seguidores, posteriormente ficam conhecidos como
menonistas.
Em decorrência desse sucesso entre os anabatistas, Meno Simonis
impõe ideias próprias no movimento; mesmo influenciado pelos conceitos de
Hoffmann, renuncia qualquer prática violenta e divulga os princípios do
pacifismo e da não resistência. Porém muitos não aceitavam as ideias de
Simonis e desse modo vão para outros locais, como Inglaterra, Polônia e a
Itália, e organizam novos grupos anabatistas.
Estes opositores a corrente menonista criaram um movimento mais
ligado ao pensamento teológico, onde negavam a Santíssima Trindade e
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
83
diziam que somente Deus deveria ser glorificado, assim não consideravam
Jesus Cristo uma figura divina; os seguidores dessa nova concepção ficaram
conhecidos como unitaristas. A partir disso diversos desses novos
anabatistas fundaram a Igreja Menor Reformada da Polônia, onde esta
espalhou por todo o território polonês, tendo maior destaque a propriedade
de João Sieninski, chamada Rakow. Foi esse lugar que Fausto Sozzini, um
grande dirigente italiano unitarista, deu a corrente unitarista uma consciência
de doutrina e um método de pensamento mais coerente, dessa forma após a
sua morte, em 1605, os discípulos publicam um documento muito influente
no unitarismo: a Confissão rakoviana.
Já na Inglaterra, o movimento surge antes por volta de 1530, aonde
chegam vários panfletos radicais vindo da Antuérpia e logo depois começa
uma grande emigração de anabatistas dos Países Baixos, criando grupos
numerosos no território inglês. Em 1535 começa as perseguições, quatorze
anabatistas são queimados nesse ano e mais vítimas acontecem até o fim do
reinado de Henrique VIII, pois este queria sufocar os radicais para que o
anglicanismo tivesse um triunfo por completo na Inglaterra. No governo de
Eduardo VI, os anabatistas ingleses adquirem certa liberdade e assim
recrutam mais adeptos e imprimem panfletos incentivando a tolerância
religiosa, em resposta a isso o bispo anglicano Hooper, o deão de Gales
Guilherme Turner e outros membros eclesiásticos ingleses, publicam vários
livros contra o anabatismo (DICKENS, 1971). Desse modo, depois dessa
data a seita não faz grande progresso, tendo ainda que conviver com
inúmeras perseguições.
Em consequência desse contexto conturbador que os anabatistas
ingleses viviam, muitos optaram em ter uma nova vida nos Estados Unidos,
mais precisamente na região da Nova Inglaterra.
Na Nova Inglaterra, o movimento radical tomou uma outra forma.
O país estava semeado de uma mistura de estabelecimentos
colonizadores, encorajados por investigadores londrinos, e de
refugiados da política religiosa do governo inglês, quer
presbiterianos, independentes, batistas* ou católicos romanos.
A Carta da Companhia de Virgínia (1606) estipulava que a
verdadeira Palavra de Deus devia ser pregada aos colonos e aos
selvagens, e a partir de 1609 os batistas foram excluídos. A
colônia tencionava reproduzir a Igreja de Inglaterra do outro lado
do Atlântico. (CHADWICK, 1964, p.204).
*
84
O termo anabatista passou a ser usado na Inglaterra no século XVII para designarem
as pessoas que faziam parte da seita do anabatismo.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Como foi possível observar, por mais que existissem situações
controvérsias, onde envolvia demasiadas perseguições, os anabatistas
resistiram ao longo do século XVI e conseguiram levar o seu legado até o
inicio da colonização da América.
A partir dessas informações, é possível concluir que o anabatismo teve uma
enorme influência social durante o século XVI, pois esse grupo desejava,
através de suas ideias radicais, ir além das propostas de Lutero e Zuínglio,
ou seja, os anabatistas queriam mais que uma reforma religiosa, eles
idealizavam criar um modelo de sociedade livre das instituições politicas e
religiosas, diferente de qualquer outra organização social dessa época.
VALENTIM, Filipe Faulin. The Radical Reformation in the sixteenth century: the
Anabaptists
ABSTRACT: The Anabaptists were the main representatives of the radicalism of the
Reformation in the sixteenth century. After breaking up with the ideas of Luther and
Zwingli, start a movement that not only has religious ideas, but social, thereby expanding
their sect for various regions of Europe, mainly in the Netherlands. Thus Anabaptism shall
be condemned and persecuted its members in several European areas, yet this group
manages to leave his legacy in history.
KEYWORDS: Anabaptists, Reform, Radicalism, Münster.
REFERÊNCIAS:
CHADWICK, Owen. A Reforma. Lisboa, Editora Ulisseia Ltda, 1964.
CHAUNU, Pierre. O tempo das Reformas (1250-1550) II. A Reforma
Protestante. Lisboa, Editora Almedina, 1993.
DICKENS, A. G.. A Reforma e a Europa do século XVI. Lisboa, Editorial
Verbo, 1971.
MATOS, Henrique C. J.. Introdução à História da Igreja, v.2. Belo Horizonte,
Editora O Lutador, 1997.
NASCIMENTO, Luis Felipe Mendes. A Reforma vista por um olhar marginal.
Revista Theos – Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica
Batista de Campinas, Campinas, 5ª edição, v-4, nº 1, Junho de 2008.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
85
A MARSELHESA: DE CANÇÃO REVOLUCIONÁRIA À HINO OFICIAL DA
REPÚBLICA DA LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE1
Henrique Franco da ROCHA
RESUMO: O ano de 1792 foi cheio de perturbações dentro da França, a maior delas,
pode-se dizer, foi a declaração de guerra da França contra a Áustria. Em meio aos
conflitos o oficial do exército Rouget de Lisle compôs, a pedido do prefeito de
Estrasburgo, a canção que chamou de Canto de Guerra para o Exército do Reno,
conhecida como A Marselhesa. O objetivo desse artigo é analisar o processo pelo qual
passou A Marselhesa que de simples canção revolucionária voltada apenas ao incentivo
de um exército passou a figurar no imaginário de um povo como a mais perfeita
representação dos ideais do mesmo.
PALAVRAS-CHAVE:
revolucionário;
A
Marselhesa;
Revolução
Francesa;
Imaginário;
Hino
Allons enfants de la Patrie,
Le jour de gloire est arrivé!
Contre nous de la tyrannie,
L'étendard sanglant est levé,
Entendez-vous dans les campagnes
Mugir ces féroces soldats ?
Ils viennent jusque dans vos bras
Egorger vos fils, vos compagnes!
Aux armes, citoyens,
Formez vos bataillons,
Marchons, marchons !
Qu'un sang impur
Abreuve nos sillons !2
O fragmento acima consiste na primeira estrofe e no refrão da música
composta em 1792 pelo oficial do exército francês, Rouget de Lisle. Com
letra de grande impacto e fervor patriótico repleta de ideais revolucionários, a
canção serviria para animar o exército com intuito de criar um sentimento
1
2
Este artigo é fruto do Trabalho de Conclusão da disciplina intitulada História
Contemporânea I e foi orientado pela Profª. Drª. Márcia Pereira da Silva.
Avante, filhos da Pátria/O dia da Glória chegou/Contra nós, da tirania/O estandarte
ensangüentado se ergueu/Ouvis nos campos/Rugirem esses ferozes soldados?/Vêm
eles até aos nossos braços/Degolar nossos filhos, nossas mulheres/Às armas
cidadãos!/Formai vossos batalhões!/Marchemos, marchemos!/Que um sangue
impuro/Ágüe o nosso arado
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nacionalista revolucionário ainda maior que levaria a França à vitória contra
os “inimigos da liberdade”, e que seria difundida por todo o território francês.
Ao ser usada pelo exército de Marselha a música ficou conhecida como A
Marselhesa.
A Revolução Francesa produziu não somente uma nova ordem políticosocial na França, como também contribuiu para as mudanças que se deram
no imaginário do povo e na formação de seus principais símbolos dentro do
novo Estado. Os novos valores, que iam contra o Antigo Regime, em que o
rei absoluto mandava e o povo obedecia, acompanharam o processo
revolucionário permitindo uma nova dimensão de se pensar o povo, que não
seria mais abarcado como passivo nas representações do Estado.
Após o ano de 1789 a França passou por significativas mudanças no
âmbito político e social. O rei até então absoluto, foi obrigado por pressões
internas a se curvar diante de uma constituição, o povo não mais assistia
calado ao governo e vontades do rei. Idéias vindas dos iluministas,
principalmente de Rousseau, como o caso da Liberdade, igualdade e
fraternidade passaram a figurar dentro das discussões do povo sobre o
Estado e sobre seus direitos enquanto cidadãos. Principal afirmação dessas
idéias se deu na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
documento composto principalmente pela burguesia em 1789, que defendia o
direito a propriedade privada e o fato de os homens nascerem livres e iguais
perante a lei, incluindo o próprio rei, que deveria governar sem, no entanto,
se sobrepor à lei. Segundo o historiador Eric J. Hobsbawm, “a propriedade
privada era um direito natural, sagrado e inviolável. Os homens eram iguais
perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas ao talento”
(HOBSBAWM, 1977, p.77).
A Assembléia Nacional, que continuava vendo na figura do rei um
governante, derivada da reunião dos Estados Gerais em finais de 1788 e
início de 1789, compôs no cenário francês uma força contrária às
prerrogativas da aristocracia. Os anos seguintes foram cheios de
conturbações; em 1790 foi votada a Constituição Civil do Clero, que deixou o
clero nas mãos do Estado. As conturbações chamam a atenção de outros
governantes europeus, que embora alarmados com os acontecimentos da
França, ao menos por hora, não se manifestaram de fato. Parte da corte
emigrou, principalmente após a abolição de fato do direito feudal; os
emigrados tentaram levar outras cortes a tomarem medidas contra os
revolucionários franceses. O rei francês secretamente “suplicava aos reis que
interviessem” (SOBOUL, 1964, p.189); em junho de 1791 tentou fugir para
tentar recuperar, com o auxílio dos exércitos austríacos, sob comando de
88
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Bouillé, seu antigo lugar dentro do reino da França, no entanto foi descoberto
e acabou preso.
A proclamação redigida por Luís XVI antes de sua fuga, e
dirigida aos franceses, não deixava qualquer dúvida a respeito
de suas intenções. Ele pretendia insuflar as tropas de Bouillé, o
exército austríaco dos Países-Baixos, depois retornar a Paris,
dissolver a Assembléia e os clubes e restabelecer o poder a
absoluto. Toda a política secreta de Luís XVI tendia provocar
uma intervenção da Espanha e da Áustria, em seu favor.
(SOBOUL, 1964, p.193)
A fuga e a prisão do rei causaram conseqüências externas, o
imperador Leopoldo II e o rei Guilherme II da Prússia se uniram no intuito de
salvar a família real e, em agosto de 1791, assinaram a declaração de
Pillnitz, que foi tomada pelos revolucionários como uma ameaça, uma
interferência estrangeira, “a Revolução sentiu-se ameaçada (...) o sentimento
nacional superexcitou-se” (SOBOUL, 1964, p.196). A declaração dividiu os
revolucionários entre os que queriam a guerra e os que não queriam. Dentro
da França ocorreram grandes debates sobre essa decisão; em abril de 1792
a França declarou guerra ao rei da Hungria e da Boêmia, o que significava
uma declaração de guerra à Áustria e não ao império todo.
Com a guerra cresceu novamente o sentimento nacional, os
revolucionários defenderam que a “liberdade” devia ser levada às
outras nações e o sentimento que insuflava o exército era o
patriotismo, a defesa da pátria e da nação livre, contra os tiranos:
A guerra foi declarada em abril de 1792. A derrota, que o povo
(bem plausivelmente) atribuiu à sabotagem e à traição real, trouxe
a radicalização. Em agosto-setembro, a monarquia foi derrubada,
a República(...) (HOBSBAWM,1977, p.84)
Após a declaração de guerra de 1792 a França percebeu que a crise
nacional pela qual passava atingiu também o exército. O exército estava
decomposto, seus oficiais não possuíam mais tanta autoridade, a no início
das batalhas as tropas foram massacradas, os homens estavam
indisciplinados, e os conflitos nacionais de âmbito político chegavam ao
exército “opondo a tropa patriótica ao comando aristocrático” (SOBOUL,
1964, p. 196).
Nas palavras de Hobsbawm, “o que sobrou do velho exército francês
(...) era incapaz e inseguro” (HOBSBAWN, 1977, p.85). Uma das soluções
encontradas ainda segundo o autor foi a “virtual abolição, em casa, e no
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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exterior, da distinção entre soldados e civis” (HOBSBAWM, 1977, p.85); civis
agora compunham o exército, o povo lutava.
A MARSELHESA ABSORVIDA PELO POVO
Durante os conflitos, as tropas precisavam ser animadas e o ideal da
Revolução precisava ser mantido. O povo, que agora compunha boa parte do
exército, deveria ser movido por tais sentimentos; o canto de guerra era uma
boa arma para manter o ânimo e os ideais, pois mantinha aceso o fervor
revolucionário e as causas defendidas pela França ao se lançar em guerra
contra nações vizinhas:
A 26 de abril, em Estrasburgo, Rouget de Lisle lançara seu
Canto de Guerra para o Exército do Reno, cujo ardor, ao mesmo
tempo nacional e revolucionário, não deixava dúvida. No espírito
do autor, como no espírito dos que cantavam, Revolução e
nação não se distinguiam. Os tiranos e os vis déspotas, que
cogitavam de entregar a França à antiga escravatura, são ali
denunciados, mas também a aristocracia, os emigrados, essa
horda de escravos, de traidores, esses parricidas, esses
cúmplices de Bouillé. A pátria, cujo amor sagrado é exaltado, a
cuja defesa se faz apelo (“Percebei, nos campos, berrar os
ferozes soldados...”) é a pátria que, depois de 1789, foi
levantada contra a aristocracia e o feudalismo.
Não se pode separar o que logo se tornou o Hino dos
Marselheses de seu contexto histórico: a crise da primavera de
1792. Impulso nacional e assomo revolucionário foram
inseparáveis; um conflito de classes lastreava e exacerbava o
patriotismo. Os aristocratas opunham o rei à nação que
desprezavam, os do interior esperavam o invasor com
impaciência, os emigrados combatiam nas fileiras inimigas. Para
os patriotas de 1792 tratava-se de defender e de promover a
herança de 89. (SOBOUL, 1964, p. 209)
A música composta por Rouget de Lisle, a pedido do prefeito de
Estrasburgo, deveria ser um estimulo e um encorajamento ao exército que
combatia nas fronteiras próximas ao rio Reno. Idéias de extrema importância
ao contexto da época foram expressas na letra, em meio à guerra a música
incitava os cidadãos franceses à pegarem em armas, formarem batalhões e
lutarem em favor da pátria
O sentimento expresso na letra da música era exatamente o que
deveria ser mantido pelos que lutavam. A tirania deveria ser combatida, a
pátria defendida, deveria se evitar a qualquer custo a retomada do país pela
90
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
monarquia. A canção ganhou grande popularidade, principalmente nas tropas
de Marselha. Quando da derrubada do rei, na insurreição das Tulherias, as
tropas de Marselha entram em Paris entoando a música de Rouget de Lisle
que ficou assim conhecida como A Marselhesa.
A Marselhesa foi, em pouco tempo, absorvida pelo povo como hino
revolucionário, pois sua letra representava a nova posição do povo, que
passa a figurar em lugar de destaque na nascente república. A idéia de
liberdade, herança de Rousseau, permeava de forma clara o sentimento
nacional, e como tal, também era expressa em versos da canção, exaltandoa, bem como as novas bandeiras sob as quais a nova pátria estava se
edificando: “a França aparece como portadora de um novo evangelho. Em
todos os cantos liberdade é o valor maior que os franceses podem oferecer
aos povos”. (SQUEFF, 1989, p.76).
A República colocou fim a séculos de monarquia, o Estado não mais
era o rei e sim o povo. Na República o francês, mais que nunca, era um
cidadão que deveria lutar pela liberdade e defender a pátria a qualquer custo.
A Marselhesa acabou sendo incorporada ao imaginário do cidadão ideal e de
certa maneira apropriada por ele, tornando-se mais um símbolo da nova
ordem.
Parte do antigo Terceiro Estado tomou o poder e criou uma nova
ordem dentro da França. A burguesia assumiu o controle definitivo dos
órgãos administrativos do país, no entanto, o forte sentimento revolucionário
acabou dividindo em facções o Terceiro Estado. A França passou então por
vários conflitos internos e por várias fases que, uma a uma, acabaram em
virtude de tal divisão. O novo Estado francês não adquiriu estabilidade e, de
certa forma, não consolidou o controle burguês conforme planeja
inicialmente, mergulhando o país em relativa desordem que só foi superada
na tomada de poder, pelo golpe de 18 de Brumário (9 de novembro) de 1799,
por Napoleão Bonaparte.
Sob a égide de Napoleão a França entrou num período em que mais
uma vez se tentou a centralização do poder, tanto no Consulado quanto no
Império. Napoleão ficou no poder, primeiro como Primeiro Cônsul e em
seguida como Imperador, de 1799 a 1814. Sua política foi uma das mais
belicosas que o país já teve, anexando durante esse tempo muitos territórios
europeus à França.
A Marselhesa, nessa época, foi praticamente banida, pois Napoleão
achava que ela incitava demais à violência. Le Chant Du Départ, de autoria
de Méhul, um dos maiores compositores franceses do período, composto em
1794 com letra de M. J. Chénier “se constituiu no mais acabado exemplo de
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
91
uma música a serviço da causa. Napoleão o preferia a todos os hinos
compostos até ali” (SQUEFF, 1989, p.120).
La République nous appelle
Sachons vaincre ou sachons périr
Un Français doit vivre pour elle
Pour elle un Français doit mouri.3
Este também era um canto revolucionário, sua letra exaltava a
república francesa e o francês como povo guerreiro, no entanto, nada dizia
de pegar em armas e formar batalhões, o que era perigoso para Napoleão
que impunha à França sua autoridade. “Napoleão Bonaparte não gostava da
Marselhesa. Consta que só permitiu que seus soldados a cantassem na
grande vitória de Austerlitz; depois disso, nunca mais.” (SQUEFF, 1989,
p.131).
No entanto o hino não foi esquecido pelo povo, mesmo que Le Chant
Du Départ cante também as glorias da República, A Marselhesa foi tão
fortemente incorporada pelo povo que não desapareceu totalmente,
continuando a ser a melhor representação do “francês revolucionário”.
Em abril de 1814, Napoleão foi vencido e foi restaurada a monarquia
na França. Em 1815, Napoleão retornou ficando no poder por mais cem dias,
sendo depois mais uma vez restaurada a monarquia que permaneceu até
1848. Sob o governo de Carlos X ,em 1830, a França passou por mais uma
perturbação, que se deu contra o rei que tentara reviver o direito divino e o
absolutismo. Hector Berlioz, compositor contemporâneo à revolta, num dos
capítulos de suas Memórias fala sobre a Revolução de 1830: “o povo está
nas ruas, os estudantes discutem sobre barricadas e então, um dia, em plena
Paris revoltosa, Berlioz encontra um grupo de jovens formando um coro com
cantos revolucionários” (SQUEFF, 1989, p.88).
A multidão que aos poucos foi se acumulando ao redor do coro
improvisado tem ainda bem frescos na memória os combates do
dia anterior. Então o pequeno coro entoa a Marselhesa. Conta
Berlioz: ‘Aos primeiros compassos a multidão ruidosa que se
agitava a nossos pés se imobilizou calada. (...) Contudo, depois
do primeiro estribilho, o povo cala: passado o terceiro, o mesmo.
Não era esse meu desejo. (...) Então, na quarta estrofe, sem
poder mais agüentar, gritei: ‘Ei, vamos lá, vocês aí, cantem’. O
povo então lançou seu Aux armes, citoyens, com a unidade e a
energia de um coro ensaiado. Recordando que a galeria que
3
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A República chama-nos/Vamos conquistar ou vamos perecer/A França deve viver por
ela/Por ela, o francês deve morrer.
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desembocava na rua Neuve des Petits Champs estava cheia,
que a rotunda do meio estava lotada, que essas quatro ou cinco
mil vozes estavam amontoadas num lugar fechado (...),
recordando, ademais, que a maior parte dos cantores, homens,
mulheres e crianças, por outro lado, palpitavam de emoção pelo
combate da véspera, imagine-se qual foi o efeito deste
fulminante estribilho’. (SQUEFF, 1989, p.89).
O que Hector Berlioz nos revela é que mesmo sem ter ainda caráter
oficial o hino continuava a figurar o imaginário do povo quando, na passagem
acima citada, o povo ao ouvir o velho canto revolucionário acaba por explodir
em um imenso canto, ou seja, os ideais expressos pela letra de Rouget de
Lisle ainda eram reconhecidos pelo povo como o do povo francês. Após a
Revolução de 1830 a França continuou monárquica até 1848 quando foi
proclamada a segunda República e eleito presidente Luís Bonaparte,
sobrinho de Napoleão, que após três anos de governo deflagrou um novo
golpe e se proclamou imperador dos franceses com o título de Napoleão
terceiro.
Começou o segundo império que duraria até 1870 quando a França
proclamou sua terceira república, ocasião em que A Marselhesa foi adotada
como hino oficial. Em 1847 uma versão “oficial” é adotada pelo ministério da
guerra após passar por uma comissão de revisão, composta por músicos
profissionais que apresentaram a versão oficial após revisão do texto e da
harmonia melódica, sendo essa a versão tocada até hoje nas cerimônias
oficiais. O caráter de hino nacional para A Marselhesa foi novamente
afirmado nas Constituições de 1946 e de 1958 (artigo 2º)4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Rouget de Lisle compôs em 1792 apenas uma canção que serviria
para incitar tropas combatentes a se manterem firmes diante do inimigo, no
entanto esse canto de guerra, mais tarde chamado de hino, foi incorporado
pelo povo como um dos principais valores da nova França. Mesmo passando
por diversos tipos de governos e por uma série bastante relevante de
perturbações, o povo manteve o hino vivo dentro do seu imaginário se
reconhecendo em sua letra, pois ainda hoje é um dos símbolos mais fortes
da República francesa.
4http://www.elysee.fr/elysee/francais/les_symboles_de_la_republique/la_marseillaise/la_
marseillaise.21106.html. Acessado em 03/05/2010 – 00h38
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ROCHA, Henrique Franco da; La marseillaise (the song of marseille): From revolutionary
song to national anthem of the liberty, equality and fraternity republic.
ABSTRACT: 1792 was a year full of disturbance in France. The biggest of them was the
declaration of war against Austria. Amongst the conflicts the army officer Rouget de Lisle
composed, at the request of the Strasbourg mayor, the song he called War Song for the
Army of the Rhine, known as La Marsellaise. This articles goal is analyse the process
through which La Marsellaise turned from a simple revolutionary song meant to
encourage an army to being in the conscience of a people as the most perfect
representation of their ideals.
KEY WORDS: La Marseillaise; The French Revolution; Imaginary; revolutionary anthem.
FONTES:
http://www.elysee.fr/elysee/francais/les_symboles_de_la_republique/la_mars
eillaise/la_marseillaise.21106.html Acessado em 03/05/2010 – 00h38
REFERÊNCIAS:
SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa. Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1964.
HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1977.
SQUEFF, Enio. A Música na Revolução Francesa. Porto Alegre: L&PM, 1989
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ERASMO, OS DEBATES TEOLÓGICOS E A REFORMA
Jéssica Abud de SOUZA.
RESUMO: O presente artigo trabalha com parte da obra Elogio da Loucura de Erasmo.
Ela se insere no contexto das reformas religiosas do século XVI. Erasmo é um teólogo
católico que propôs mudanças em algumas concepções católicas e nos hábitos dos fiéis.
Porém, seu direcionamento foi pela manutenção da Igreja Católica e não por sua cisão.
Buscamos analisar a maneira como os debates teológicos se desenvolveram, e
diferenciar as concepções católicas das protestantes a respeito de questões sobre a
salvação.
PALAVRAS-CHAVE: Reforma, Igreja Católica, Erasmo, salvação, teólogos, clérigos,
burguesia.
Em duas palavras, na prática da história religiosa, o método do é
verdade que não conduzirá a um beco? Mas o do é possível que
não conduzirá, pelo contrário, ao fim último de toda a história:
não já saber, apesar das etimologias, mas compreender?
(FEBVRE, 1970, p. 29)
Buscamos neste artigo analisar parte da obra Elogio da Loucura de
Erasmo (2010), em um contexto de efervescência dos debates teológicos
que envolveram o século XVI. Através dessa obra é possível compreender
alguns aspectos do momento em que se insere a Reforma. É importante
destacarmos o caráter inovador da escrita, o atrevimento ao criticar o
proceder das autoridades religiosas, e como dessa maneira Erasmo se
encaixa como um homem de seu tempo.
O debate teológico a respeito do cristianismo não se encerrou com o
século XVI. Os questionamentos entre os cristãos do Ocidente continuam
presentes no cotidiano das pessoas, inclusive no dos estudiosos. Por isso, ao
fazer o estudo desse tema é importante que o historiador concentre especial
atenção aos perigos do anacronismo.
O foco desse artigo não é a religião reformada, mas a escrita de um
homem que propôs e argumentou em favor de um catolicismo humanista.
Erasmo propunha uma religião mais bem adaptada às necessidades do
homem do século XVI, porém bem diferente da proposta luterana.
O intento de Erasmo não era o cisma da Igreja católica, mas o de uma
reforma espiritual dessa Igreja. Para ele, isso deveria trazer a união entre os
crentes com a superação das diferenças, e a identificação entre eles com
elementos e modos de vida da igreja primitiva, acima dos rituais e
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superstições católicas. Assim, poderiam seguir os ensinamentos de Deus e
manifestar os dons do Espírito Santo. Isso tudo sem o peso que o catolicismo
do seiscentos gerava aos fiéis. (FEBVRE, 1970)
Sua pregação se difere muito daquela tradicionalmente empreendida
pela Igreja católica. Para Erasmo, a consciência do cristão e o seu dever
moral necessitariam estar em primeiro lugar, pois todas as suas práticas,
religiosas e seculares, deveriam estar submetidas a ela. Assim, os
sacramentos tiveram a sua importância diminuída, os santos e a Virgem
perderam o seu lugar de destaque.
Em sua obra Elogio da Loucura, Erasmo construiu um discurso irônico
e crítico, em que a Loucura é personificada e defende a si mesma. Na
composição do texto, o autor utilizou um recurso recorrente entre pensadores
e artistas do Renascimento, que foi o uso da personificação de conceitos e
sentimentos humanos, como por exemplo a própria Loucura, a Embriaguez, a
Volúpia, o Amor-próprio, a Adulação, a Preguiça, o Esquecimento e a
Ignorância.
Erasmo, por meio da fala da Loucura, legitima o seu argumento
recorrendo a fatos e acontecimentos históricos que, segundo as suas
interpretações, comprovariam que a Loucura impulsionou o homem a obter a
conquista de grandes feitos e vitórias, enquanto a Sabedoria despertou a
timidez e o medo que fez com que o homem recuasse em meio às
adversidades e momentos decisivos.
Em seu discurso, a Loucura confronta a Sabedoria. Ela demonstra que
o homem não pode se desvencilhar de sua natureza humana, pois segundo o
já mencionado neste artigo, ela tenderia sempre para o bem. Com sua
entonação irônica, argumentou a favor do humano:
A verdadeira prudência consiste, já que somos humanos, em
não querer ser mais sábios do que nossa natureza o permite. É
preciso ou suportar com boa vontade as loucuras da multidão, ou
deixar-se levar com ela pela torrente dos erros. “Mas, direis, é
loucura conduzir-se assim.” Concordo contanto que concordeis
também que isso é realmente o que se chama representar a
comédia da vida. (ERASMO, 2010, p.43).
Erasmo também criticou os religiosos que seguiam correntes de
pensamento filosófico que defendiam a razão acima de todas as coisas. Uma
das possíveis conclusões a respeito dessa crítica pode ser o fato de que
esses teóricos, religiosos e intelectuais que defendiam a razão e a sabedoria,
e os cristãos que participavam de rituais e se declaravam adoradores de
algum santo, eram os mais facilmente guiados pela Loucura. Através da
96
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
ironia, realiza a crítica a hipocrisia do modo de vida dos católicos, que para
ele, estavam resumindo o catolicismo às práticas ritualísticas, tornando
superficial a ideal de vida cristão. Isso pode ser exemplificado pelo seguinte
trecho:
Uma quantidade de gente acredita, por exemplo, honrar muito a
Virgem queimando, em pleno meio-dia, uma pequena vela diante
de uma de suas imagens. Como são poucos, ao contrário, os
que procuram imitar a sua castidade, sua modéstia e seu valor
pelas coisas espirituais e divinas! Seria esse, no entanto, o
verdadeiro culto, aquele que agradaria infinitamente a todos os
habitante do Olimpo e o Empíreo. (ERASMO, 2010, p.74).
Os clérigos que possuíam uma moral duvidosa, por não se
comportarem segundo os preceitos morais cristãos, que não cumpriam com
as funções pertinentes aos seus cargos, e usavam de sua posição para
garantir benefícios pessoais, também foram duramente criticados. Muitos
deles se importavam mais com o reconhecimento que obtinham como
autoridade religiosa do que em terem uma conduta que agradaria a Deus.
Esses religiosos eram vaidosos e gananciosos, ou seja, o oposto do que
deveriam ser. Os bispos deveriam buscar ter uma vida apostólica, porém,
esqueceram-se das suas funções e de seus princípios, só se preocupavam
com o dinheiro que iriam obter.
Os bispos de hoje não são tão bobos; pensam em apascentar-se
eles mesmos, deixando a Jesus, aos vigários e aos monges
mendicantes o cuidado de apascentar seu rebanho; esquecendo
facilmente que a palavra bispo significa trabalho, solicitude,
vigilância, mas lembrando-se muito bem disso quando se trata
de arrecadar dinheiro. (ERASMO, 2010, p.105).
Erasmo condena a classe dos mercadores. Esse julgamento é fruto do
pensamento católico que desaprova a prática da usura como forma de gerar
lucro. Para ele, esses homens são pessoas desprezíveis, mentirosas, ladras
e gananciosas. Com isso, é possível evidenciar o seu caráter reformista,
porém discordante da ética protestante que não reprimia práticas como essa,
ao contrário, incentivava que o burguês fizesse o uso de ferramentas como a
usura, não só para obter lucro, como também para glorificar a Deus com o
fruto de seu trabalho.
Os clérigos não se preocupavam com o exercício da caridade e da
piedade. Com tudo isso, a grande ironia do livro é a de que os sábios, ou a
verdadeira sabedoria, são desprezados nesse mundo, e que apenas os que
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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são adoradores da Loucura é que obtêm o sucesso. Nesse trecho, o autor
procura esclarecer o que o Elogio da Loucura significa:
Tudo o que eu disse foi apenas para mostrar claramente que
nenhum mortal pode viver agradavelmente na terra a menos que
seja iniciado nos meus mistérios e que eu derrame sobre ele
meus preciosos favores. (ERASMO, 2010, p.111)
É preciso considerar que nesse período toda a vida das pessoas era
permeada e centrada em torno da religião. Todos os aspectos de sua vida
estavam impregnados pelo cristianismo, sua vida privada, a pública e a
profissional. E isso não era uma escolha, era inerente ao seu nascimento.
(FEBVRE, 1970)
Segundo Febvre, em Erasmo, la contra reforma y el espiritu moderno,
todas as cerimônias, rituais, costumes e tradições estavam envolvidos na
atmosfera cristã. Nesse período também há um imenso apetite divino, que se
inicia de um sentimento de mal estar, de desgosto e de uma aspiração
confusa a algo mais. Nessa época havia uma classe em ascensão que
conquistava ao mesmo tempo riqueza e honra. Essa era a burguesia. Os
homens que faziam parte dessa classe, que eram os comerciantes, os
mercadores e os viajantes, necessitavam do saber e da instrução, como algo
útil em seu trabalho e na geração de lucro; assim como de religião, pois essa
estava no centro de todas as coisas de sua vida.
Os homens que faziam parte dessa nova classe possuíam seriedade
e necessidade de correção moral. Foi na religião protestante que esses
homens encontraram as respostas as suas necessidades e a identificação de
seus anseios. (FEBVRE, 1970, p.49)
Febvre (1970) afirma que dois foram os fatores que determinaram o
sucesso da Reforma protestante: a tradução da Bíblia em língua vulgar e a
afirmação da salvação pela fé. A proposta de Lutero foi à de que o acesso ao
Eterno acontecesse sem intermediários, pois cada cristão seria o sacerdote
de si mesmo. Confrontou a Igreja católica com relação aos ritos pela
purificação dos pecados, e as interpretações que o clero dava a bíblia como
sendo únicas.
A Reforma foi a revolução de costumes e conceitos, ela nasceu das
necessidades de uma época, segundo o autor, em plena evolução social e
moral. Os homens desse período estavam ávidos de certezas. A novidade da
fé como única justificação produziu uma nova e vigorosa satisfação. Essa foi
a proposta que interessou e cativou os homens daquele tempo. (FEBVRE,
1970, p.49)
98
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Isso a Igreja Católica não conseguiu fazer. O problema é que o
catolicismo não correspondia aos anseios da burguesia em ascensão, pois
os homens dessa nova classe desejavam uma fé mais clara, simples e
objetiva. Esses homens estavam paralisados por uma sensação de vazio,
pois eles participavam e cumpriam com os rituais da Igreja, mas não
entendiam o seu significado. Ou seja, não havia identificação real entre eles
e as práticas católicas. Os seus ritos formais geravam uma obediência
mecânica. O abismo entre os anseios da burguesia e a moral da Igreja
católica, que o autor chama de anacrônica, se tornava cada vez maior.
(FEBVRE, 1970, p.49)
Para Febvre, isso era causado pela falta de senso de realidade e de
interesse dos teólogos católicos pelas mudanças sociais e pelos anseios da
população. Eles não conseguiam atender ao verdadeiro estado de ânimo dos
burgueses da época. Por isso é que o anticlericalismo da Reforma foi popular
e desejado. O protestantismo teve significado na vida das pessoas. O que é
possível concluir disso é que a Reforma correspondia às aspirações
burguesas.
Outro ponto que é de essencial importância, principalmente para esse
trabalho, é o embate teológico que ocorria nesse período. Esse acontecia
não somente entre protestantes e católicos, mas também entre os próprios
pensadores reformados. Porém, o ponto em que os protestantes concordam
entre si é que: “[...] a Escritura é a única fonte de religião; o homem não se
justifica senão pela fé.” (FEBVRE, 1970, p.311).
O Protestantismo traz a solução para o problema da salvação de que
os católicos eram afligidos. Para a Igreja Católica, a salvação consistia em
fazer parte da Igreja, e para isso era necessário ter fé, acreditar na pregação
do sacerdote, e realizar a confissão de todos os pecados que tivesse
cometido ao clérigo, para que assim pudesse assim obter a absolvição de
seus pecados; também tinham o dever de praticar boas obras. Para os fiéis
isso significava um problema angustiante, pois declarar todos os pecados
cometidos para obter a remissão dos mesmos era uma tarefa impossível.
Nesse trecho o autor mostra a causa de inquietação:
Pero existe otra causa de tormento, otra cruel perspectiva: quien
muera em estado de pecado mortal se condenará e irá al fuego
eterno; los demás [...] los demás expiaram em el purgatório, esse
lugar mal definido y por ello más temible: durante cierto tiempo,
que nadie puede predecir, el alma pecadora conoce allí el
sufrimiento redententor. (FEBVRE, 1970, p.67)
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A discussão sobre a existência do Purgatório foi motivo de debates entre
católicos e reformadores. Para a Igreja Católica, o Purgatório era uma pena
para a alma dos mortos que serviria para a justificação de seus pecados. Os
protestantes criticavam e negavam a sua existência. O primeiro motivo foi pela
falta de textos válidos ou autorizados que comprovassem a sua real existência.
O segundo e mais preponderante motivo foi ilustrado pela crítica feita por
Calvino, que possuía o argumento de que a única condição para ser salvo
seria ter fé em Jesus Cristo, pois ele foi o responsável por justificar todos os
pecados dos homens. Ou seja, para os protestantes, o purgatório era
responsável por tirar o mérito da salvação de Cristo e o transferir para si. O
que essa pregação despertou nas pessoas foi a fé e a confiança na
misericórdia divina, o que produziu a paz em suas almas. Em contrapartida, o
que provocou a rejeição das pessoas a doutrina católica foi a idéia elevada
sobre a majestade e a soberania de Deus, a qual o homem comum se viu
obrigado a se submeter por muito tempo. (FEBVRE, 1970, p.67).
Portanto, nesse artigo procurou-se trabalhar o Elogio da Loucura com o
intuito de se compreender um pouco mais sobre os embates teóricos
travados no século XVI, através, principalmente, das críticas feitas ao clero e
as práticas cotidianas da burguesia e, consequentemente, a nova moral
burguesa surgida no período. Com esse estudo, foi possível visualizar a
dimensão e a importância desses debates para a sociedade renascentista.
O debate inclui os intelectuais e teólogos protestantes e católicos que
defendiam desde a cisão com a Igreja Católica Romana, até os reformadores
das formas de expressão da fé, mas que não viam a necessidade de
rompimento com Roma. A obra analisada neste artigo foi produzida por um
desses intelectuais que não desejavam a cisão da Igreja. Erasmo se insere
no contexto do Renascimento por seu caráter humanista e inovador.
A história é viva, e o debate permanece presente no cotidiano das
pessoas, despertando paixões e suscitando questionamentos das mais
diversas ordens. Por isso, perder a noção romântica e mistificada não é um
empreendimento fácil, mas é tarefa e dever fundamental do historiador.
Vislumbrar o passado com outros olhares como resultado da busca por
compreendê-lo é um exercício diário que necessita dedicação e esforço, que
como qualquer tarefa árdua, produz frutos de satisfação e de desejo por
novas descobertas.
SOUZA, Jéssica Abud de. ERASMO, THE THEOLOGICAL DEBATES AND REFORM.
Revista Ensaios de História, Franca.
ABSTRACT: This article deals with part of the work of Erasmus Praise of Folly. It is within
the context of the religious reforms of the sixteenth century. Erasmus is a Catholic
100
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
theologian who proposed changes in some Catholic views and habits of the faithful.
However, its focus was the maintenance of the Catholic Church and not by its division.
We analyze how the theological debates have developed, and differentiate between
Catholic
views
of
Protestants
on
issues
of
salvation.
KEYWORDS: Reformation, the Catholic Church, Erasmo, salvation, theologians, clergy,
bourgeoisie.
FONTES:
ERASMO, Desidério. Elogio da Loucura. Porto Alegre, L&PM, 2010.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FEBVRE, Lucien. O problema da descrença no século XVI: A religião de
Rabelais. Éditions Albin Michel, Paris, 1970. Traduçao: Rui Nunes, Editorial
Início.
FEBVRE, Lucien. Erasmo, la contrarreforma y el espíritu moderno.
Barcelona, Ediciones Martínez Roca, S. A. 1970.
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101
ENTRE O LIBERALISMO E O SOCIALISMO: DISCUSSÃO SISTÊMICA DA
OBRA DE NORBERTO BOBBIO POR PERRY ANDERSON
Thiago FIDELIS*.
Kátia Lima de OLIVEIRA**.
RESUMO: O objetivo deste artigo é mostrar a crítica de Perry Anderson a Norberto Bobbio
contida no livro Afinidades seletivas, a respeito das obras do pensador italiano sobre
democracia e liberalismo e, sobre a validade da distinção política entre direita e esquerda.
PALAVRAS – CHAVE: liberalismo, socialismo, direita, esquerda
A formação do pensador italiano foi permeada, segundo Anderson, por
um liberalismo que tinha como foco a manutenção do Estado e da Ordem. A
unificação dos territórios sob a égide de um único país com o nome de Itália
na segunda metade do século XIX fora feita através de inúmeros conflitos; a
instabilidade política sempre fora marca deste território, tendo a ascensão de
Mussolini na década de 20 do século XX como o grande trunfo do Estado
sobre a nação. Quando a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) acaba e
Mussolini é morto, a reorganização do Estado volta a ser a grande discussão
no meio político italiano1.
A partir desta situação, seria pouco provável pensar em liberalismo e
socialismo na Itália, uma vez que a divisão política no entre guerras dividirase entre os apologistas e os opositores do fascismo. Assim, o hibridismo
apontado pelo historiador inglês em relação ao filósofo italiano é justificado
pela situação neste meio, uma vez que Anderson, dentro de sua orientação
marxiana quanto a organização social e política de um país, é taxativo sobre
as peculiaridades italianas
Revolução liberal, liberalismo socialista, socialismo liberal,
comunismo liberal: alguma outra nação dispôs de tal gama de
híbridos? Eles eram possíveis na Itália, porque não houvera
tempo para a democracia burguesa ou para a democracia social
se instalarem depois da Primeira Guerra Mundial, estabelecendo
um quadro estável de demarcações para a política sob o
capitalismo (...)2.
*
*
1
2
Aluno da graduação em História da Unesp – Campus de Franca. Artigo sob orientação
do Profº Pedro Geraldo Tosi. Bolsista: PET/SESu/DDPG
* Aluna da graduação em História da Unesp – Campus de Franca. Artigo sob
orientação do Profº Pedro Geraldo Tosi. Bolsista: PET/SESu/DDPG
ANDERSON, Afinidades Seletivas, p. 208 a 211.
Ibidem, p. 213.
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103
A síntese entre o liberalismo e o socialismo buscada por Bobbio seria
uma constante desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com a
reorganização da política italiana liderada pelas duas principais forças
partidárias do país – o Partido Democrata Cristão e o Partido Comunista
Italiano, sendo o filósofo contrário a estes dois. Ao mesmo tempo em que
rejeitava o conservadorismo cristão e a ortodoxia comunista, Bobbio tornavase socialista não abandonando, necessariamente, o liberalismo. Se tal ponto
parece, a primeiro momento contraditório, Anderson coloca que, pela forma
como o liberalismo era entendido na Itália, ele seria um momento de
passagem, uma transitoriedade até um Estado onde as injustiças sociais
fossem dirimidas, ficando assim uma sociedade mais justa e mais igualitária3.
A democracia era, então, a idéia mais cara no pensamento do filósofo
italiano4. O ordenamento do Estado deveria ser base para o bem-estar de
todos. Ao pensar a organização deste Estado, Bobbio aponta que o recurso
legitimador deste órgão sempre será pautado pelo uso da força, assegurando
assim seu monopólio (idéia baseada em Max Weber). Logo, a democracia
mal empregada pode levar, inexoravelmente, a um mau uso deste poder pelo
Estado (vide o fascismo, tão viva na lembrança); de maneira bem geral,
Anderson aponta para 4 tópicos centrais o método democrático trabalhado
por Bobbio: sufrágio adulto e universal; direitos civis assegurando a liberdade
de expressão e de organização; respeito a decisões tomadas pela maioria e,
por fim, que os direitos da integridade da minoria fiquem resguardados
perante a possíveis abusos da maioria5. O grande desafio, nesta relação
Estado/democracia, acaba sendo como colocar em prática estes quatro
pontos
No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia,
como é a que aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado
número de cidadãos do direito de participar direta ou
indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem a existência
de regras de procedimento como a da maioria (ou, no limite, da
unanimidade). É indispensável uma terceira condição: é preciso
que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que
deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e
postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para
que se realize esta condição é necessário que aos chamados a
decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de
3
4
5
Ibidem, p. 214 e 215.
Vários dos seus livros tratam diretamente deste ponto, sendo a obra O Futuro da
Democracia, lançada em 1983, uma espécie de síntese da visão do pensador acerca
do assunto.
Anderson, idem, p. 219.
104
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de
reunião, de associação, etc. — os direitos à base dos quais
nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do estado de
direito em sentido forte, isto é, do estado que não apenas exerce
o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do
reconhecimento constitucional dos direitos "invioláveis" do
indivíduo6.
A democracia não é um fim em si mesma, mas um meio de harmonizar
o convívio entre as pessoas. Partindo desse pressuposto, tanto o modelo
liberal quanto a abordagem socialista da idéia de Estado não agradaria
Bobbio: a democracia liberal, colocando o Estado como mero regulador da
economia, não satisfaria a idéia de organização social, permitindo que todos
pudessem fazer o que bem entendessem, sem se preocupar
necessariamente com o todo; e a supressão do Estado proposta por Marx e
Engels demonstraria um grande desprezo pelas vias institucionais, dando
origem a uma ditadura do proletariado que suspenderiam os direitos
individuais em nome de um prol comum, em nome de um bem maior; as duas
formas de organização não atingiam o ponto nevrálgico da questão, pois uma
tendência tendia a ignorar o que tinha de melhor na outra (a liberdade e a
igualdade, respectivamente).
A questão da representatividade seria um problema bastante presente:
o grande problema relacionado ao sufrágio universal é que o voto em si
mesmo não garantiria a participação de todos no processo de organização e
manutenção deste Estado. Assim, os interesses individuais não são mais
representados: são necessários as criações de grupo, e cada grupo irá
representar um conjunto de interesses comuns a certa classe. Logo, estes
grupos disputarão entre si o poder, pois caso um grupo venha a subjugar o
outro, ficaria mais fácil para direcionar o Estado conforme seus interesses,
não levando em conta o todo. O cidadão, assim, se distanciaria cada vez
mais da política, uma vez que sua participação seria atrelada única e
exclusivamente ao voto, pois o resto seria responsabilidade dos políticos, os
“profissionais” do ramo.
Um outro problema surgido, segundo Anderson, é em relação ao
filósofo utilizar um método marxista para resolver um problema liberal é a
questão da democracia parlamentar. Após o problema da representatividade
exposto, haveria outro de cunho mais amplo: a extensão do Estado, uma vez
que a democracia seria garantida apenas no espaço da política, não
chegando a outras extensões, tais como a família, a igreja, a escola, etc.
6
BOBBIO, O Futuro da Democracia, p. 20.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
105
Para a existência de uma democracia plena, todos deveriam ter direito a se
auto organizar a partir de interesses em comum, e decidir como fazer de
maneira plena – até mesmo nestes micro-núcleos da sociedade, a
responsabilidade de gerir não deveriam ficar a cargo de um governo central
ou de poucos técnicos “especializados”, mas sim de uma decisão tomada por
todos (um tipo de organização que lembra, mesmo que vagamente, as
comunas, os núcleos de gestão própria da França no século XIX)7.
No entanto, mesmo apontando todos estes pontos, Anderson enfatiza
que Bobbio não cria um modelo alternativo, embora use o discurso de uma
terceira via (bastante usado nos anos 70 na Itália). Ao apoiar a social
democracia, há o apontamento da manutenção das instituições liberais, mas
a manutenção do socialismo é fundamental para diminuir (ou extinguir) os
defeitos surgidos na organização do Estado; ou seja, o Estado liberal não
seria o ideal, mas seria o mais indicado para a organização social, e o
socialismo seria sua espécie de consciência, aquele quem frearia os
possíveis abusos (ou as possíveis omissões) liberais
(...) Ele não subscreve o tipo de sociedade sobre a qual se tem
fundado a democracia social no Ocidente e não exclui a
possibilidade de um terceiro – quanto a isto, ele observa, ou um
quarto ou quinto – modelo de sociedade, alternativo, distinto de
uma Terceira Via que passasse pelos dois modelos antagônicos
atualmente existentes. O ponto essencial é que qualquer avanço
em direção ao socialismo em países com instituições liberais
deve preservá-las e proceder por meio delas. O realismo
histórico de Bobbio o previne de negar que tem havido outros
caminhos para a superação do capitalismo em outros períodos
ou outras regiões. A democracia não é um valor supra-histórico
(...)8.
Finalizando a crítica central, Anderson acusa o filósofo de ser um
conservador liberal por trás de uma carapuça reformista, uma vez que, pela
situação política da Europa atual (seria o distanciamento do cidadão com a
política, já acusado pelo próprio Bobbio), o melhor que seria a fazer é
direcionar os esforços para o desenvolvimento tecnológico e nas melhores
condições de vida do ponto de vista econômico, lutando por maior acesso a
educação (para a formação profissional) e aumento nos salários, sendo
assim uma forma de alargar a democracia já existente nos parlamentos.
7
8
Anderson, op. cit., p. 226-227.
Ibidem, p. 229.
106
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Este pessimismo de Bobbio é interpretado como omissão por Anderson,
e é também apontado como um certo cinismo, uma vez que o filósofo italiano
teria, segundo o historiador inglês, influenciado bastante a política italiana em
aspectos positivos, promovendo maior preocupação com o aspecto social e
alargando as bases democráticas de uma política tradicionalmente
autoritária, dando um aspecto mais includente para a população; e, depois de
tudo isto, o que ocorrera? Uma grande desilusão quanto ao mau uso que
continuava sendo feito da política, dos órgãos responsáveis pela gestão do
país (desilusão esta estendida a todo o continente), e uma grande negação,
de certa forma, de todas as conquistas realizadas pelo filósofo até então
Este autor pertence a uma geração de pessoas que perderam
suas esperanças há mais de trinta anos, logo depois do fim da
guerra, e nunca as recuperou a não ser em momentos
ocasionais, tão raros quanto rápidos, e que não levaram nada.
Estes vinham numa média de um por década: a revogação da
Legga Tuffa (1953), a formação do Centro-Esquerda (1964), a
grande revivescência do PCI (1975).
Como alguém que passou por muitos anos de esperanças
frustradas, aprendi a me resignar com minha própria
impotência... Mas aceito plenamente que estes argumentos não
sejam importantes para os jovens na Itália, que não conheceram
o fascismo e conheceram apenas esta democracia nossa, que é
menos do que medíocre e, portanto, não estão igualmente
dispostos a aceitar o argumento do mal menor9.
Em uma carta para Anderson a respeito do artigo em si, em uma das
passagens Bobbio também deixa claro que, de fato, valoriza o liberalismo,
colocando-se como um liberal no que diz respeito ao direito de liberdade de
todos, e considera este, de todos os males, o pior deles
Do ponto de vista ideológico, creio que a principal razão de
contraste entre nós seja o meu liberalismo inicial e jamais
abandonado, entendido, como o entendo, digo de uma vez por
todas, como a teoria que afirma serem os direitos de liberdade a
condição necessária (mesmo que não suficiente) de qualquer
democracia possível, mesmo da que se afirma socialista (se é
que será algum dia possível). Pode ser que esta idéia fixa
dependa do fato de eu pertencer a uma geração que chegou à
política combatendo uma ditadura e que continua a viver numa
sociedade na qual nunca faltaram as tentações autoritárias. Você
pode retrucar que quem fica firme com a democracia liberal não
9
Bobbio, O Futuro da Democracia, In: Anderson, op. cit., p. 237
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
107
chegará jamais ao socialismo. Eu respondo, como sepre
respondi ao longo de todos esses anos aos comunistas, que
quem tomou o atalho para o socialismo jamais voltou aos direitos
de liberdade.10
Escrito na década de 80, esta análise de Anderson reflete, de certa forma,
uma resposta do próprio historiador perante o desmantelamento da URSS, e a
onda que já refletia em todo o Ocidente do triunfo do Capitalismo, que agora
reinaria livremente sem nenhum tipo de freio. Afinal, ao observar que um
pensador feito Bobbio de certa forma se “entregara” a este tipo de visão, a
reação de Anderson dificilmente seria outra: afinal, se todos aqueles que
propuseram algo de diferente durante todo este tempo simplesmente se
conformassem e aceitassem esta situação, o que seria daí para diante? Ao ser
interpelado pelo italiano em uma carta, a resposta enfatiza bem este ponto
Como vamos avaliar a possibilidade de um progresso que
supere os limites da ordem liberal capitalista? É sobre este ponto
que imagino que o senhor tenha abandonado com muita pressa
pelo menos uma parte de sua crítica original, substituindo por
promessas “inviáveis” as promessas “não cumpridas” da
democracia e assim sugerindo a criação de uma espécie de
fronteira institucional última da liberdade – por mais
desesperante que isso possa vir a ser11.
A DIADE CONTESTADA E A DISTINÇÃO ENTRE DIREITA E ESQUERDA
O ponto de partida de Bobbio em seu livro Direita e Esquerda é a rejeição
freqüente no debate político das noções de direita de esquerda, apesar da
distinção ainda ser muito usada. Bobbio aponta algumas objeções à díade:
A primeira é sugerir o relativismo da díade pela insistência numa
‘terceira incluída’, a saber um centro moderado entre a esquerda
e a direita, que ocupa a maior parte do espaço real dos sistemas
políticos democráticos. A segunda forma de rejeitar a distinção é
insistir na perspectiva de uma ‘terceira inclusiva’, que integra e
supera os legados de esquerda e direita em alguma síntese além
delas. A última é apontar o crescimento de uma ‘terceira
transversa’, que penetra os campos da esquerda e da direita e
rouba-lhes a relevância. 12
10
11
12
ANDERSON, op. cit., p. 240.
ANDERSON, op. cit., p. 241.
ANDERSON, op. cit., p. 243.
108
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Contestando os argumentos contrários à díade, Bobbio aponta que a
existência de um centro não impede que haja uma direita e uma esquerda;
que a idéia de uma síntese para além destes pólos oculta o intuito de uma
neutralizar e absorver a outra; e, por fim, os grupos que se estendem através
da esquerda e da direita, têm a tendência de redividir as duas.
Considerando que nenhum desses motivos são validos, Bobbio formula
uma hipótese para essa rejeição. Para ele a díade só perderia a validade se
um dos lados deixasse de existir. Isso nunca ocorreu, mas com o colapso do
comunismo, a esquerda sofreu uma profunda derrota e passou a argumentar
que a distinção perdeu o significado, buscando esconder sua fragilidade.
O cerne de seu argumento é que a distinção perdura pois está baseada
em visões diferentes de igualdade. Além disso, “a esquerda acredita que a
maior parte das desigualdades são sociais e elimináveis; a direita, que são
naturais e inalteráveis. Para a primeira, a igualdade é um ideal; para a
segunda, não.”
Bobbio não considera, segundo Anderson, que a liberdade seja uma
linha divisória entre as duas correntes, mas é o principio que separa
extremistas de moderados. “Na posição entre direita e esquerda ele ocupa
uma posição de meio e não de fim”. 13
Analisando as distinções que Bobbio faz entre direita e esquerda,
Anderson aponta que as proposições reunidas não independentes e
contrárias. Entre as que enumera estão as questões da factualidade,
alterabilidade, funcionalidade e direcionalidade da desigualdade humana.
Para Bobbio,
a esquerda vê a desigualdade natural entre os humanos como
menor que sua igualdade , a maior parte das formas de
desigualdade como sendo socialmente alteráveis, que poucas
são positivamente funcionais e que demonstrarão cada vez mais
sua efemeridade histórica.
A direita, entretanto
está comprometida com a visão de uma desigualdade natural
entre os seres humanos maior que sua igualdade, com a idéia de
que poucas formas de desigualdade são alteráveis, que a
maioria delas são socialmente funcionais e que sua evolução
não pode ser direcionada.
13
ANDERSON, op. cit., p. 245.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
109
Anderson aponta que não há, necessariamente, uma ligação entre os
dois conjuntos de caracterização, pois é possível crer que os humanos são
mais iguais que desiguais e afirmar que a maior parte das formas de
desigualdade não são elimináveis, assim como é possível considera-los mais
desiguais do que iguais e pensar que as desigualdades sociais podem ser
eliminadas.14
Estabelecer a validade ou não dessa interpretação, não é o foco de
Anderson. Mas apontar aspectos que não foram abordados em seus
argumentos. Considera que “basear a distinção entre direita e esquerda em
julgamentos ontológicos do equilíbrio entre igualdade e desigualdade
humanas é apóia-la numa base muito frágil” .
Outro aspecto contestado é a observação de Bobbio quando a
inevitabilidade da desigualdade para a direita, mas que não se detem na
visão da esquerda sobre este ponto. Anderson diz que este poderia ter sido
um meio mais seguro para a diferenciação, mas que, entretanto, se mostra o
mais precário. Olhando para o cenário europeu pode ver que a desigualdade
cresceu mais em paises governados por partidos de esquerda do que nos de
direita. Será mesmo que a esquerda nega a funcionalidade da desigualdade?
Bobbio não nega que as políticas econômicas da direita e da esquerda
estejam cada vez mais semelhantes, mas descarta as ações da esquerda
como exceções irrelevantes para seus ideais.
Mais uma proposição analisada por Anderson é a noção da
direcionalidade da desigualdade. A explicação de Bobbio desta vez mostra
apenas a visão da esquerda, que reflete um movimento em direção á
igualdade, sem demonstrar que o pensamento da direita se voltaria para
essa perspectiva. Anderson, entretanto, não considera que um pensamento
de direcionalidade ampla, como o da esquerda, possa ser compatível com a
concepção da direita.15
A defesa da distinção entre direita e esquerda é considerada por
Anderson como vulnerável. A razão para isso reside na “dificuldade de
construir uma axiologia de valores políticos sem uma referência coerente ao
mundo social empírico.”16
A existência de todos esses argumentos contra a díade, e as críticas à
Bobbio, não significam que estes conceitos tenham que ser abandonados.
Entretanto, sua validade será afetada se não houver atenção para seu
constante esvaziamento.
14
15
16
ANDERSON, op. cit., p. 246.
ANDERSON, op. cit., p. 249.
ANDERSON, op. cit., p. 250.
110
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
FIDELIS, Thiago and OLIVEIRA, Kátia Lima. Between liberalism and socialism: a sistemic
discussion of Norberto Bobbio's work by Perry Anderson
ABSTRACT: The objective of this article is to show the criticism of PerryAnderson to
Norberto Bobbio contained in the book “Selective affinities”, about the works of the Italian
thinker on liberalism and democracy and on the validity of the distinction between right
and left politics.
KEYWORDS: liberalism, socialism, right, left
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Perry. Afinidades seletivas. São Paulo : Boitempo, 2002
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
______. Direita e Esquerda. São Paulo: Editora da UNESP, 2001.
______. Qual socialismo?: debate sobre uma alternativa. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1983.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
111
INTELECTUALIDADE E IMPERIALISMO
O DARWINISMO SOCIAL PRESENTE NA WELTANSCHAUUNG
EUROPÉIA ENTRE 1870 E 1914
Leonardo Fernandes HENRIQUE*
RESUMO: A intenção do presente artigo é esclarecer a importância que os intelectuais
tiveram na formulação da concepção de mundo (Weltanschauung) das elites governantes
européias entre 1870 e 1914, justificando suas ações imperialistas. O impacto do
evolucionismo proposto por Charles Darwin será analisado com maior atenção, pois suas
idéias de “seleção dos mais aptos” podem esclarecer muito a respeito da política e
mentalidade imperialista desse período.
PALAVRAS CHAVE: Imperialismo, Intelectualidade, Darwinismo Social
Em certo momento na Europa do final do século XIX algo
extremamente significativo aconteceu, fazendo com que as pretensões do
antigo colonialismo do período das Grandes Navegações fossem retomadas,
mas de forma diferente. Pode-se dizer que, após um período de relativo
desinteresse no começo do citado século, os projetos de conquista do mundo
por parte das grandes nações européias foram retomados, porém sob novos
aspectos.
Uma das características mais salientes do novo imperialismo foi
sua agressividade e crueldade. Os governos imperiais,
tipicamente, perseguiram seus interesses coloniais de um modo
ruidosamente agressivo. Guerras sangrentas e unilaterais com
os aborígenes dos territórios conquistados eram o lugar-comum
– ‘guerras esportivas’ disse um vez Bismarck. As próprias
potências raramente entravam em confronto militar direto, mas a
competição entre elas era viva, e estavam constantemente
envolvidas em várias crises diplomáticas. Em contraste com os
anos anteriores, de comparativa calma política, o período após a
década de 1870 foi de hostilidade e tensão fora do comum
(COHEN, 1976, p.34).
O século XIX foi marcado por grandes transformações tecnológicas,
industriais e intelectuais, como também por permanências do passado. “Ao
*
Graduando do curso de História UNESP – Campus de Franca.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
113
mesmo tempo, o público moderno do século XIX ainda se lembra do que é
viver, materialmente e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser
moderno por inteiro” (BERMAN, 2008, p.26). Essa época, marcada por
convulsões sociais e políticas, afeta a vida das pessoas de maneira
considerável, pois foi um período em que a individualização foi incentivada.
Porém, a era imperialista ultrapassa a virada desse século, sendo
presente também nos anos anteriores a Primeira Guerra Mundial (19141918). Entre 1870 e o início desse conflito ocorreram eventos expressivos
que, embora incluídos nos efeitos determinantes do imperialismo, devam,
primeiramente, ser considerados como fenômenos independentes. Exemplo
disso temos a emancipação dos trabalhadores, das mulheres e da juventude;
o progresso técnico e industrial; os novos e ampliados horizontes culturais,
bem como a crise do cristianismo e a perda da autoridade eclesiástica.
A dificuldade de conceitualizar o imperialismo faz-se por que as idéias
referentes ao termo são modificadas de acordo com a época histórica. Na
Antiguidade, por exemplo, significava o domínio de vários povos por um só.
Num contexto mais próximo, na França do reinado de Luís Filipe, o conceito
esteve ligado a toda e qualquer ação política poderosa. Ainda no caso
francês, Napoleão III utilizou o termo como um slogan de sua campanha
política. Todavia, a palavra imperialismo ganhou um significado mais preciso
na Inglaterra do último quartel do século XIX, e é pautado nessa visão que o
artigo se seguirá.
De acordo com a utilização da palavra pela nação imperialista
exemplar, a Inglaterra, pioneira desse “novo colonialismo” e mais bem
sucedida nos seus propósitos, o termo referia-se ao prolongamento da
política nacional ativa no quadro internacional, sendo obrigatoriamente mais
sujeito que objeto no panorama político mundial. Esse império fortemente
reconhecido pelos demais povos construía-se a partir de aquisições coloniais
adquiridas por meio de um Exército e de uma Marinha eficientes e bem
organizados, capazes de invadirem a soberania da nação visada. Entretanto,
isso também gerou conseqüências econômicas,
afinal, a Política desempenha um papel na Economia
Internacional. O poder, de fato, desempenha um papel nas
relações entre os (países) ricos e pobres. Há dominação,
dependência e exploração. Há imperialismo (COHEN, 1976,
p.11).
Do colonialismo simples, existente entre os séculos XV e XVIII, passouse a formas mais complexas de economia, de subjugação de mercados
consumidores, de oportunidades de investimentos e fontes de matérias114
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
primas, decorrentes do advento da Revolução Industrial. O desenvolvimento
das exportações e dos empreendimentos em outros países, bem como do
protecionismo econômico adotado através de um governo forte, acabou
gerando uma política nacional que funcionava como órgão executivo dos
grandes grupos financeiros, favorecendo e incentivando homens
empreendedores com alianças entre as grandes empresas e a política
nacional.
Podemos, então, notar outro diferenciador dessa era imperialista,
também chamada de “clássica”, onde os indivíduos de cada nação
igualmente se envolveram nas relações internacionais, da mesma forma que
os grupos, as organizações e as empresas.
Era indispensável que os grupos dirigentes se identificassem
com o programa imperialista, que as novas convicções
houvessem conquistado solidamente a opinião pública e, não se
limitando à prática, o imperialismo se impusesse como
movimento intelectual (GOLLWITZER, 1969, p.18).
Dentre as várias teorias para explicar porque a partir de 1870 o projeto
imperialista foi tão envolvente, optamos pela interpretação de Joseph
Schumpeter (1883-1950), economista austríaco que apoiava suas teorias na
História e, principalmente, na Sociologia. Tal escolha é justificada por
considerar ainda latente a força do passado, que permeará a forma
conservadora com que os escritos de Darwin serão incorporados por esse
movimento intelectual. De acordo com essa interpretação, o capitalismo não
foi a principal causa do imperialismo. Toda nação, de acordo com
Schumpeter, tem remanescentes de classes guerreiras que perderam sua
função social no século XIX, pois logo após a queda de Napoleão Bonaparte
em 1815, a Europa viveu um período de calmaria.
Schumpeter considerou o imperialismo atávico1, vestígio hereditário
de uma época anterior que corria o risco de extinção, pois os nobres
guerreiros buscavam reviver suas glórias militares e sua tradição do passado.
Essa expansão atávica seria irracional, instintiva, ilimitada e sem objetivo
próprio. Dessa forma, Schumpeter retira do capitalismo, que é por excelência
racionalista, o peso de gerador do imperialismo, depositando nas relações de
produção do passado, pré-capitalistas, a gênese desse fenônemo europeu
ocorrido entre 1870 e 1914. Seguindo a mesma linha, o historiador Arno
Mayer (1987) escreve que a Europa que chega à Primeira Guerra Mundial
1
Reaparecimento, nos descendentes, de certos caracteres físicos ou morais não
presentes nas gerações imediatamente anteriores.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
115
ainda era como no Antigo Regime (conservadora, antidemocrática, antiliberal
e hierárquica), criadora de barreiras às idéias iluministas do século XIX. A
síntese burguesa e sua concepção de mundo durante esse século ainda não
haviam superado os pressupostos da nobreza, fazendo com que as tradições
e os valores europeus fossem de épocas anteriores ao capitalismo.
O liberalismo foi impotente para conter essa remobilização da
antiga sociedade civil e política, em boa parte porque a
burguesia oscilante se dividiu em duas, cabendo a resistência
apenas aos seus elementos pré-industriais mais débeis
(MAYER, 1987, p.269).
As elites tradicionais geralmente reconheciam a ascensão burguesa.
Isso não quer dizer que a aceitavam. Deixando cada vez mais a pequena
nobreza de fora dos assuntos políticos e econômicos, a alta burguesia não
tinha, porém, uma cultura própria, fazendo com que sucumbisse a um
processo de “feudalização”, adotando um estilo de vida aristocrático, obtendo
grandes propriedades e primando pelo ócio (GOLLWITZER,1969). Essa
persistência do Antigo Regime na sociedade européia capitalista e, agora,
imperialista, caracterizou-se pela aliança entre a aristocracia e os burgueses
contra um inimigo comum: o acesso das massas populares à política e à
cultura através da democracia.
Todavia, a burguesia era mais frágil que a coesa mentalidade
aristocrática, e precisava com mais freqüência do apoio das classes
dominantes e governantes, como tarifas alfandegárias favoráveis aos seus
negócios, contratos e cargos públicos aos seus filhos, bem como proteção
armada a nível interno e externo para as suas iniciativas.
Em troca dessa ajuda para obter assistência estatal, os líderes
do mundo dos negócios abandonavam suas crenças liberais,
abraçavam a concepção de mundo conservadora das elites
tradicionais e apoiavam a política do antiliberalismo. Esse
realinhamento reduziu os conflitos e debates ideológicos da elite,
em favor de um consenso essencialmente voltado para a antiga
ordem moral, cultural e política (MAYER, 1987, p.270)
Num cenário de progresso tecnológico, com cidades industriais e
industrializadas recebendo cada vez mais pessoas, Estados nacionais em
construção e movimentos sociais de massa, diferenciamos a classe dos
intelectuais, muitos deles considerados como “profetas furiosos da
decadência” (MAYER, 1987, p. 270).
116
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
A intelligentsia [...] alinhava-se com a ordem social estabelecida,
garantia da cultura de elite. Esse viés conservador inato se
confirmou depois da virada do século quando, em vez de
escaparem para um esteticismo e dandismo refinados, muitos
profetas da decadência se uniram em torno das igrejas
estabelecidas ou dos novos cultos de super patriotismo (MAYER,
1987, p.271).
As ideias de decadência e degenerescência da cultura superior,
aliadas ao medo da virada do século XIX para o XX, infiltraram-se no
psicológico da aristocracia, sendo tão fortes que não precisavam,
necessariamente, de uma confirmação lógica. Nesse momento conturbado,
intelectuais e políticos não se viam como degenerados. Ao contrário,
propunham superar e controlar a crise, com a finalidade de restaurar e
proteger a antiga sociedade hierárquica, sem reformas ou democratizações.
Assim, “como as classes dominantes e governantes, a intelligentsia procurou
se isolar, a fim de preservar seus valores em crise diante das plebes
urbanas” (MAYER, 1987, p. 272).
A angústia causada pela sensação de perigo iminente apavorou a
todos, principalmente quando os conceitos de Thomas R. Malthus (17661834) profetizavam que, em pouco tempo, o mundo não teria condições de
alimentar toda a população, bem como fornecer os recursos naturais capazes
de sustentar a humanidade em sua plenitude (MALTHUS, 1951). Esse
período de tensão e rivalidade entre as grandes nações, o medo de ser
ultrapassado e esmagado por outrem, o aumento populacional e a
complicação do aparelho social e político gerou um espírito de competição
acirrada entre os Estados. A guerra não era exatamente pretendida, mas
sabia-se que era possível e até mesmo inevitável.
Em termos de Weltanschauung e de atitude perante a vida
correspondia a reconhecer a guerra e acentuar os aspectos
positivos sem, necessariamente, fechar os olhos aos seus
horrores. [...] Fazia-se o elogio do serviço militar e da guerra,
considerada como base de formação do caráter e preparação
para a vida; [...] uma oportunidade de regeneração total
(GOLLWITZER, 1969, p.186).
Os defensores do imperialismo tinham um alto conceito de moral,
considerando-se sempre a favor de uma grande causa, glorificando o “culto
ao dever” e idealizando o trabalho. Contavam que também sofriam com suas
ações imperialistas, pois a vitória custava caro igualmente aos vencedores.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
117
Entretanto, somente o mais forte e apto conseguiria alcançar a vitória se a
causa fosse nobre2.
Este exercício do poder podia ser temporário e indispensável à
consecução de um fim exaltante ou ser a expressão da lei eterna
que quer que o mais forte domine o mais fraco e o mais poderoso
o humilde - isto para benefício e bem-estar dos governados
(GOLLWITZER, 1969, p.176).
A guerra não teria por finalidade destruir, mas sim intensificar a
potência do Estado conquistador e do Estado conquistado. Alguns grupos
queriam combinar o alargamento territorial com as idéias messiânicas de
proteção e expansão da humanidade, da liberdade e da cultura ocidental.
A maior parte dos círculos imperialistas contentava-se em
observar o poder, o prestígio da sua pátria, contemplar a sua
expansão à escala mundial, registrar outros sucessos políticos.
Alguns grupos, porém, queriam mais; [...] desejo de abandonar a
rotina quotidiana por uma existência nobre, consagrada a uma
grande causa (GOLLWITZER, 1969, p. 188-189).
A Europa do final do século XIX estava constantemente amedrontada,
como vimos anteriormente. Quer seja pela proximidade com a virada do
século, quer seja pelas ideias de decadência da raça e da cultura europeia, o
fato é que, a nível externo, o Velho Mundo temia o desenvolvimento
econômico e político de outras nações: do Japão – medo dos “amarelos”
tomarem os empregos dos “brancos”, somado ao seu armamento moderno e
superioridade numérica; a África era relacionada com o “perigo negro”, pois
se acreditava que os africanos retomariam o poder sobre seu continente em
breve; os Estados Unidos também passavam a imagem de novo inimigo, pois
já se destacavam no cenário mundial.
Até mesmo nos movimentos operários, organizados sob a égide da
doutrina marxista e, por isso, anti-imperialistas por natureza, o medo da mãode-obra “de cor” tomar o emprego dos europeus “brancos” gerou problemas,
pois o preço pago pelo industrial na contratação dos povos “inferiores”
2
O comportamento de um imperialista típico era permeado de fascínio pelo poder,
vontade de prestígio, porte autoritário e consciência da sua autoridade afirmada com
energia. Assim sendo, o imperialista estava sempre associado a uma política de
dominação e supremacia. Mas isso não significa dizer que ele se vangloriava da sua
situação, pois seria sua “missão civilizatória”, o “fardo do homem branco”, que o fazia
agir assim, para o bem de seus subordinados.
118
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
(principalmente asiáticos e afro-descendentes) era mais baixo, resultando em
protestos e contestações por parte dos trabalhadores europeus “puros”.
É nessa sociedade aterrorizada, carente de fé e segurança, que os
escritos de Darwin darão o embasamento intelectual para que a vida fosse
considerada um verdadeiro palco de guerra. No entanto, já de início é bom
que se diga que o darwinismo das ciências biológicas e sua aplicação na
base ideológica imperialista não surgiram juntos, como nos alerta o biólogo
evolucionista Michael Rose (2000, p.227):
Infelizmente, essa origem intelectual criou um problema para o
darwinismo: o ‘darwinismo social’. Este não foi obra de Darwin.
Na verdade, aliás, foi anterior a ele, embora o uso da expressão
tenha surgido após a sua morte.
O imperialismo explorou as ciências naturais, que por sua vez
procuravam atender às exigências da época. Antes de progredirmos nesta
análise, seria bom demonstrarmos o que Darwin propôs, originalmente, na
sua teoria da seleção natural (DARWIN, 2002) conforme nos elucida o
sociobiologista Edward O. Wilson (1981, p. 79):
Os indivíduos de cada população variam em sua composição
genética e, por conseguinte, em sua habilidade para sobreviver e
reproduzir-se. Os mais bem sucedidos transmitem mais material
hereditário à geração seguinte, e, como resultado, a população
como um todo progressivamente modifica-se, passando a
assemelhar-se aos tipos bem sucedidos.
O impacto das idéias de Darwin foi muito vasto, e também interpretado
das maneiras mais diversas possíveis. O desprezo que políticos e
intelectuais tinham pela igualdade humana agora poderia ser justificado
“cientificamente” através da seleção natural. Uma vez convertidas ao
darwinismo social, as elites governantes trataram de canalizar seus medos,
angústias e apreensões de forma agressiva, levando isso para a política.
Outro fato importante foi a consagração da idéia de que a humanidade
estaria dividida em raças.
A idéia de que existem raças humanas, cada qual com seus
próprios ancestrais e com um destino comum, levou muitos
biólogos e praticamente todas as outras pessoas à idéia de que
a evolução humana estava ligada a uma competição entre raças.
[...] Somava-se a isso a idéia de uma competição na qual as
raças superiores venceriam – e, possivelmente, eliminariam – as
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
119
demais. E essa visão da história foi adornada com a idéia de que
essa era uma situação boa, aliás, providencial, e de que a vitória
da(s) raça(s) superior(es) deveria ser vista como um resultado
apropriado da história (ROSE, 2000, p.166-167).
De acordo com Arno Mayer (1987), a crise geral europeia da segunda
metade do século XIX foi uma reação das antigas elites, que temiam a perda
de suas posições privilegiadas. O medo da modernização capitalista, de uma
revolta popular, da ascensão da burguesia e da suposta fragilidade do
aparelho estatal deu vazão a um universo belicoso. A militarização da
sociedade, da política (e dos próprios políticos) foi extremamente benéfica
para as antigas classes dominantes, que resolveram a ocorrência induzindo,
como solução, o conflito armado.
A guerra deixou de ser a continuação da diplomacia, para se
converter no prolongamento da política. [...] Numa atmosfera
intelectual e psicológica carregada de influências socialdarwinistas e nietzschianas3, a guerra era celebrada como um
novo remédio que curava tudo. A violência e o sangue da
batalha prometiam revigorar o indivíduo, restabelecer a nação,
restaurar a raça, revitalizar a sociedade e regenerar a vida moral
(MAYER, 1987, p.295-296).
O darwinismo social, concepção de mundo preponderante nas classes
governantes européias, agradou a casta marcial, inativa desde o início do
século XIX. A obra “A Origem das Espécies através da Seleção Natural”, de
1859, veio num momento onde as ciências naturais eram pouco
questionadas, pois forneciam a base do progresso tecnológico e médico.
Utilizando-se dos métodos racionais e empíricos do estudo evolucionista de
Charles Darwin, as antigas classes dominantes deram-no uma interpretação
conservadora, mas levemente progressista, da luta pela vida.
Embora o termo darwinismo social fosse muito utilizado, não
estabelecia regras específicas de ação prática, o que favorecia sua aplicação
desde a vida cotidiana até as instituições e projetos coletivos. Entretanto,
apesar das diferentes interpretações e métodos, todos os darwinistas sociais
eram elitistas - temiam o nivelamento social, cultural e político - pois tinham
“em sua concepção, (que) os homens eram desiguais por natureza, e o
mesmo ocorria quanto à estrutura da sociedade, para sempre destinada a ser
dirigida pela minoria dos mais aptos a governá-la” (MAYER, 1987, p. 276).
3
Referência ao conceito de “vontade de poder”, do filósofo alemão Friederich Nietzsche
(1844-1900). Para saber mais, ver em STERN, 1982.
120
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Seus preceitos, com o passar do tempo, foram saindo da esfera
econômica e política, servindo para justificar todas as ações, e a luta pela
sobrevivência virou uma disputa pela superioridade internacional.
As antigas elites estavam preparadas para empregar a supremacia
ressurgente da política exterior e imperial para reforçar suas
posições internas. Apoiadas pela casta guerreira poderiam, até, se
declarar especialmente qualificada para dirigir a guerra de todos
contra todos na arena mundial, onde a vitória militar constituiria a
suprema prova de aptidão (MAYER, 1987, p 275).
Através das ideias explicitadas no presente artigo, podemos concluir
que a base científica e filosófica das práticas imperialistas europeias, entre
1870 e 1914, foi a incorporação pelas elites intelectuais, da teoria da
evolução pela seleção natural de Charles Darwin, proposta por ele nas
ciências naturais mas adaptada à Weltanschauung e aos interesses das
antigas classes guerreiras. A essa intelectualidade defensora dos valores
“superiores”, da cultura erudita e da concentração do aparelho político nas
mãos da aristocracia, reflexo ainda do Antigo Regime que não findara no
século XIX, estava aliada a burguesia, tão criticada antes, mas agora
parceira no projeto de impedir que a democracia, o marxismo e os
movimentos populares atingissem qualquer tipo de êxito.
Julgando-se então serem os mais aptos, selecionados através da luta
diária pela sobrevivência, os intelectuais e os políticos deste período
transferiram para a vida cotidiana a guerra de todos contra todos, tanto em nível
interno quanto externo. Assim, desvinculando às idéias de que o imperialismo
fora causado apenas pelo capitalismo industrial, e considerando-o
primordialmente uma reação atávica dos nobres de tradição guerreira, o
darwinismo social caiu feito uma luva nas suas pretensões aristocráticas.
HENRIQUE, Leonard Fernandes. The social darwinism presents in the European
Weltansch between 1870 and 1914. Revista Ensaios de História, Franca,
ABSTRACT: The intention of the present article is to clarify the importance that the
intellectuals had had in the formularization of the conception of world (Weltanschauung) of
the European governing elites between 1870 and 1914, justifying its imperialistas action.
The impact of the evolucionismo considered for Charles Darwin will be analyzed with
bigger attention, therefore its ideas of “election of most apt” can very clarify regarding the
politics and imperialista mentality of this period.
KEYWORDS: Imperialism, Intellectuality , social darwinism.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
COHEN, Benjamim. A questão do imperialismo: a economia política da
dominação e dependência. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
GOLLWITZER, Heinz. O imperialismo europeu: 1870-1914.
Lisboa: Verbo, 1969.
MALTHUS, Thomas R. Ensayo sobre el principio de la poblacion.
México: Fondo de Cultura Económica, 1951.
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1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
ROSE, Michael. O espectro de Darwin: a teoria da evolução e suas
implicações no mundo moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
STERN, J.P. As idéias de Nietzsche. São Paulo: Cultrix, 1982
WILSON, Edward. Da natureza humana. São Paulo: T. A.
Queiroz: EDUSP, 1981.
122
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
ARTE, CIÊNCIA E IMAGENS SOBRE O EGITO NA FRANÇA DE
NAPOLEÃO
Luiz Fernando PINA SAMPAIO
RESUMO: O artigo que aqui apresentamos tem como objetivo geral estabelecer um
breve histórico-analítico acerca das origens da Egiptologia na França Napoleônica,
tomando por pilares fundacionais a arte, a ciência e as imagens – todas as três
fortemente influenciadas pela “egiptologia” e “egitomania” decorrentes da Campanha de
Napoleão no Egito entre 1798 e 1801.
PALAVRAS-CHAVE: Egiptologia, França Napoleônica, Arte, Ciência, Imagens.
PREFÁCIO
Escrever sobre um assunto tão vasto e complexo, como são as origens
da Egiptologia nos séculos XVIII e XIX, demanda de nossa parte algumas
considerações iniciais.
Partimos de uma reflexão que tem como parâmetro de observação o
elemento cultura, aqui compreendido não somente como um sistema de
normas e modos de agir, costumes e instruções de um povo, mas antes,
como que um depositário das artes, da ciência e do imaginário. Isso não quer
dizer, de modo algum, que consideremo-la como um fenômeno desassociado
ou mais relevante do que a economia, a política e outros aspectos sociais
relacionados, até porque se fala muito, nas duas décadas anteriores à nossa,
nos conceitos de cultura-política, cultura-econômica. Fizemos a escolha de
uma abordagem cultural, pois esta pareceu-nos mais adequada para a
discussão que pretendíamos.
Em função do reduzido espaço disponível, optamos por não fazer uso
de imagens ou ilustrações, mesmo quando discutimos arte. Limitamo-nos a
apontá-las, quando julgamos necessário, nas suas respectivas bibliografias.
Embora cientes das contribuições da Inglaterra, Alemanha, Itália e
Espanha, para o desenvolvimento do pensar egiptológico, centramos a
discussão na França imediatamente anterior, durante e posterior a Napoleão.
ORIGENS MAIS PRIMIEVAS DO ESTUDO EGIPTOLÓGICO
O Antigo Egito conta com uma História cuja cronologia ultrapassa três
milênios. E ao fazer esta afirmação referimo-nos unicamente ao período em
que o Egito foi um verdadeiro Estado (independente, organizado e unificado),
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
123
ou seja, aquela época que vai de meados de 3100 a.C., quando teria ocorrido
a fundação do Estado Egípcio, ao ano 30 a.C., quando a ocupação dos
romanos fez-se presente de forma definitiva (BAINES; MÁLEK, 2007, p.8-9).
Ao escrever que “(...) os primeiros egiptólogos foram os Egípcios
Antigos” (ALDRED, 1966, p.15), o autor francês Cyril Aldred fazia alusão ao
fato dos habitantes do Vale do Nilo terem sido especialmente zelosos para
com o seu passado trimilenar, a fim de preservar eventos, feitos e memórias
de outrora.
Quando o faraó Neferhotep I (cerca de 1741-1730 a.C.) resolveu
mandar que se construísse uma nova estátua do deus Osíris procurou, nos
arquivos de uma biblioteca em Heliópolis, um antigo modelo a partir do qual
pudesse esculpir a sua (ALDRED, 1966, p.15) – segundo os rígidos cânones
estéticos da arte oficial, que no Egito dos faraós, tinha caráter de
“instrumento mágico” (ESPAÑOL, 1992, p.19-23).
As listas de reis dos templos de Karnak e Abidos, os relevos de
Sakkara, (JOHNSON, 2002, p.38-39) e tantos outros, podem ser sintetizados
numa idéia: a necessidade de manutenção da maat (a ordem cósmica
egipcíaca), o que garantiria que o Egito não viesse a ser lançado num caos
total, levava-os ao cumprimento de práticas e costumes reguladores, ligados
aos fazeres da economia, da política e da religião.
Contudo, um registro direcionado e preocupado com um estudo do
passado egípcio só aconteceria pela primeira vez, até onde sabemos, com
Mâneton de Sebennitos, um sacerdote egípcio que viveu no terceiro século
antes de Cristo, sob o governo dos dois primeiros faraós ptolomaicos1
(JONHSON, 2002, p.37-38). Sua obra, História do Egito (Aegyptiaca), fala
das origens mais remotas à sua época. O texto, que não chegou intacto até
nossos dias, muito embora contenha certos exageros cronológicos, é um dos
referenciais fundamentais para o conhecimento das dinastias egipcianas.
É certo que nomes como Heródoto, Estrabão, Plínio (SAUNERON,
1970, p.7), e outros, também deram seu contributo, ainda que tenham legado
certa visão demasiado mistérica e imprecisa de muitas formas acerca da
terra dos faraós.
Durante a Idade Média, os relatos de viajantes, que passaram pelo
Egito e seus lugares cristãos santos – como aqueles associados à jornada de
Cristo ainda criança, ou mesmo pelas pirâmides, consideradas os celeiros de
1
Denomina-se ptolomaicos ou ptolemaicos os governantes egípcios que comandaram de
cerca de 330 a.C., com o general de Alexandre, o Grande, Ptolomeu, até 30 a.C., com
Cleópatra VII Filopator, a conhecida rainha que envolveu-se com Júlio César e Marco
Antônio.
124
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
José (BAINES; MÁLEK, 2008, p.22) – davam ao Ocidente uma turva visão do
que era o Egito.
Ao final do século XVII, e ao longo do XVIII, o número de viajantes,
bem como os registros e desenhos que estes fizeram acerca do Egito,
aumentaram gradualmente. Contudo, somente em fins do século XVIII
descobertas realmente paradigmais e científicas, sobre a terra das pirâmides,
tomariam forma.
A REVOLUÇÃO FRANCESA E A GÊNESE DE NAPOLEÃO
Como escreve-nos o historiador alexandrino Eric. J. Hobsbawm, se a
influência da Revolução Industrial sobre a economia do século XIX é
marcante, a sua política e ideologia foram fundamentadas na Revolução
Francesa (HOBSBAWM, 1996, p.9).
Tendo se passado numa nação muito poderosa e populosa, a
Revolução na França teve caráter radical, contou com uma participação
social em peso e configurou-se num evento ecumênico, já que seus exércitos
e idéias influíram em outros movimentos revolucionários no mundo
(HOBSBAWM, 1996, p.10-12). Este tríduo faz dela um acontecimento
paradigmático.
Foi no período do Diretório (1795-99), que um jovem general chamado
Napoleão Bonaparte, passaria a ganhar destaque dentro do Exército francês.
Nascido em Ajáccio, Córsega, era nobre de nascimento, ao menos
para os padrões da ilha italiana. Seu nome, coincidentemente, era o nome de
um mártir egípcio que havia morrido em Alexandria sob o governo de
Diocleciano, século III d.C. Sua mãe, conforme narram suas biografias, teria
pronunciado um breve “oh” ao tomar conhecimento do significado e origem
do nome escolhido para o filho (CRONIN, 1973, p.17).
A CAMPANHA AO EGITO
Ao contrário do que sustentam certos autores, fazendo eco a uma
abordagem mais idílica, as razões que levariam o general francês até o Nilo
teriam um substrato bem mais político e econômico, a priori, do que culturalcientífico, como revelar-se-ia a posteriori.
Vejamos. O Egito fazia parte das pocessões do Império Otomano
naquele momento. Nações da Europa, como a Inglaterra, a Áustria, a Rússia,
e especialmente a França, vinham apontando as miras de seus canhões e
arcabuzes para estes lados do Mediterrâneo já há algum tempo. De um
ponto de vista geopolítico, a hora para a intervenção francesa havia chegado.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
125
Após as épicas campanhas na Itália, Napoleão convertera-se no “herói do
momento” (SILIOTTI, 2007, Pt. I, p.81) para o opinião pública, e ajudara a
fazer da França importante potência militar.
Assim, uma vez que o Diretório desejava uma ação beligerante direta
contra a Inglaterra, incumbiu Napoleão de fazê-la. Parece que o general, ao
refletir sobre os perigos, decidiu-se por levar as tropas para o Mediterrâneo
(CRONIN, 1970, p.175). O Diretório esperava, caso a incursão contra a
Inglaterra viesse a falhar, que ao menos a imagem do jovem general,
considerado por eles um perigo potencial, viesse a ser reduzida.
Como observa V. Cronin (1973, p.176-177), os objetivos da expedição
eram três: primeiro, Napoleão deveria ocupar o Egito e libertá-lo do domínio
dos mamelucos, e aí desenvolver uma colônia francesa. Segundo, pretendiase enfraquecer a Inglaterra mediante o domínio por sobre a Índia, a pocessão
inglesa mais rica, o que far-se-ia criando uma aliança com a Turquia e a
Pérsia, ou, mais ambiciosamente, construindo um Canal no istmo de Suez
para alcançar o Mar Vermelho e daí o Oceano Índico. E terceiro, a França, na
visão de Napoleão, iria ao Egito objetivando “ensinar e aprender” – ensinar
os meios para o desenvolvimento dos nativos (ciência, medicina e tecnologia)
e aprender sobre esta terra quase desconhecida para a Europa (cultura,
geografia, história e etc).
Então, com uma “expedição de dimensões colossais, formada por 13
navios de guerra, seis fragatas, uma corveta, 35 naves menores e 300
barcos de transporte
com 10.000 marinheiros e 35.000 soldados”2 (SILIOTTI, 2007, Pt. I, p.80) e
cerca de 200 sábios, cuja missão era explorar, descrever e possivelmente
escavar, Napoleão chegou a Alexandria, em julho de 1789. A Comission dês
sciences et des arts (Comissão de ciência e artes), composta por nomes
como Dolomieu, Geoffroy Saint-Hillaire e Vivant Denon, foi o grupo dos já
mencionados sábios, responsáveis por deslindar o mundo pouco conhecido
dos egípcios.
Isto não se fez sem muitas mortes – sejam em decorrência de doenças
ou das batalhas nas quais os franceses viram-se envolvidos.
Com a ajuda do Ministro de Assuntos Exteriores do Diretório, Charles
Maurice Talleyrand, o Exército do Oriente (como se denominou os militares
da campanha) foi organizado e entregue a Napoleão.
Vislumbrar as pirâmides de Gizé era exercício mais simples. Duras
foram as longas e cansativas viagens deserto adentro, por áreas controladas
2
As consultas às obras de Aldred, Sauneron e Siliotti revelaram valores distintos nos três
textos, mas, que no geral, têm margem estatística aproximada.
126
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
pelos árabes, em virtude da escassez de alimentos em certos períodos, em
função do clima hostil ou então devido à geografia desconhecida.
Todavia, os achados e estudos que daí resultaram, foram únicos. A
exempli gratia, o barão Dominique Vivant Denon fez centenas de desenhos e
registros: o templo da deusa Háthor, em Dendera, as ruínas de Tebas, que
fora capital do Antigo Egito por séculos, Luxor e Karnak, templos dedicados
ao deus Amon-Rá, e dezenas de outros túmulos, templos e paragens
(SILIOTTI, 2007, Pt. I, p.88-89).
Estes desenhos, assim como várias centenas de outros trabalhos,
foram compilados e publicados entre 1808 e 1828, em Paris, na colossal
“Descríption de l’Égypte ou Recueil des Observations et des Recherches qui
ont été faites em Égypte pendant l’expédition de l’armeé française, publié par
les ordres de S.M. l’Empereur Napoleón”. Para sua impressão, criou-se um
formato especial de papel e uma máquina de impressão especial, projetada
pelo engenheiro Nicolas Jacques Conte. Oitocentos e noventa e sete
gravuras, muitas das quais eram coloridas, de mais de três mil desenhos de
duzentos artistas. Pesquisas de arqueologia, ciências naturais, arquitetura,
geografia, mineralogia, e outros campos do conhecimento de então, foram aí
publicados (SILIOTTI, 2007, Pt. I, p.100-129)3.
Só que os resultados da expedição não foram exclusivamente
benéficos. A
obtenção de Antiguidades egípcias tornar-se-ia, nos anos do século XIX que
já se avizinhavam, como que “capricho, num jogo de rivalidades
nacionalísticas que os vários representantes das dez Grandes Potências
(européias) travavam uns com os outros (...)” (SAUNERON, 1966, p.21).
Nasceram daí os cônsules-antiquários – autoridades que passariam a
saquear bens e tesouros do Egito, e a suprir coleções particulares, museus
europeus e até americanos. Os egiptologistas de hoje referem-se a isso, com
grande pesar, como a “violação do Nilo”.
É preciso ressaltar que os próprios egípcios tomaram parte nessa
“obscura” empreitada. Desde os tempos dos faraós da IIIª Dinastia (26492575 a.C.), e talvez até mesmo antes, saqueadores de túmulos eram comuns
e combatidos. Havia mesmo um verdadeiro “mercado negro” de peças
arqueológicas. Gerações de egípcios, ao longo dos séculos, encabeçaramno. Muitos deles persistem ainda hoje.
A 23 de agosto de 1799, por questões político-ecnômicas e pessoais,
Napoleão retornaria à França. A expedição ainda duraria até meados de
3
A obra “Primeiros Descobridores. A descoberta do Antigo Egito. Pt. I. Barcelona: Folio,
2007”, de S. Siliotti, traz reproduções de dezenas de imagens destas aquarelas e
desenhos.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
127
1801, quando as forças inglesas entrariam no Egito pondo um fim ao
brevíssimo Protetorado Egípcio (embora a França ocupasse o Egito, eram os
árabes-muçulmanos que permaneciam no governo).
Alguns dos artefatos obtidos durante a Campanha de Napoleão seriam
confiscados pelos ingleses. Dentre eles, estava a Pedra de Roseta, um
achado que se deu por acaso pelos franceses, nas imediações de uma
fortaleza árabe do século XV d.C., próximo à cidade de Roseta, no norte do
Egito (SOLÉ, 2003, p.357).
O mencionado achado mudaria o curso da história da egiptologia
nascente dentro de alguns anos.
JEAN-FRANÇOIS CHAMPOLLION: DECIFRANDO O EGITO
Jean-François Champollion, nascido em Figeac, no Quercy, França,
em 23 de dezembro de 1790, e que, portanto, tinha cerca de nove anos
quando a Campanha do Egito ocorrera – não, ele não estava no Egito com
Napoleão em 1798, como muitos pensam ainda hoje – foi um jovem
intelectual cujos trabalhos levariam à
decifração da escrita hieroglífica contida na Pedra de Roseta. Lia grego,
hebraico, síriaco, caldeu, árabe e copta. Em declaração, de janeiro de 1806,
afirmou: “Quero fazer dessa antiga nação um estudo aprofundado e
contínuo... De todos os povos que mais admiro, nenhum abala minha
predileção pelos egípcios” (SOLÉ, 2003, p.80-81).
Napoleão mandara fazer cópias da Pedra antes de os ingleses
confiscarem-na. As cópias foram enviadas para estudiosos na França. Um
deles era Champollion (MARUCCI, 2001, p.147).
A pedra, atualmente no Museu Britânico, em Londres, trata-se de uma
estela (monólito retangular para inscrições oficiais) de basalto, que traz de
cima para baixo, em três línguas (hieróglifo, hierático e grego), um decreto do
faraó Ptolomeu V Epifânio, de 196 a.C.
Ao estudar a pedra, e baseando-se no trabalho de outros
pesquisadores, Champollion decifrou a escrita hieroglífica nela contida. Era
14 de setembro de 1822 quando deu o grito de “eureca!”. Escreveu sua
famosa carta, Lettre à M. Dacier..., no dia 22 daquele mesmo mês, narrando
sua descoberta. Só em 1824, com a obra Précis du système
hieroglyphique..., expôs os conceitos fundamentais da escrita hieroglífica
(SILIOTTI, 2007, Pt. II, p.11).
Em 1828 ocorreu a Expedição Franco-Toscana, outra importante
incursão científica ao Egito, na qual Champollion tomou parte e pôde colocar
à prova sua descoberta, decifrando outros textos pelos lugares históricos do
128
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Egito e fazendo com que os antigos egípcios pudessem falar novamente,
pela primeira vez, desde o reino de Teodósio, século IV d.C., quando foi feita
a última inscrição hieroglífica de que se tem notícia. Este feito garantiu-lhe o
epíteto de o “pai da egiptologia”.
AS ARTES
As influências de todas as descobertas decorrentes da Campanha
Napoleônica no Egito far-se-iam bem evidentes nas Artes – especialmente
nas artes plásticas (pintura e escultura).
Como observa E. J. Hobsbawm (1977, p.275-279), uma das coisas
que muito nos surpreendem quando analisamos a época da “revolução
dupla” (1789 e 1848) é o desenvolvimento das artes. Temos aí o que ele
considera uma espécie de “ressurreição e expansão das artes” que atraíam
um público dotado de certa erudição. Isso na música, literatura, pintura,
escultura, arquitetura... As artes e os assuntos públicos estreitaram-se ainda
mais nos países onde a consciência nacional e os movimentos de unificação
e libertação eram fortes. A França certamente era um desses lugares.
Se Champollion é nomeado o “o pai da egiptologia”, o título de
incentivador máximo da “egitomania” é sem duvidas do l’Empereur Napoleão.
Mas ele não estava sozinho.
Como registra Robert Solé:
A Revolução Francesa revelou-se ainda mais egitomaníaca que
a monarquia: a cada festa, erguiam-se nas praças parisienses
obeliscos ou pirâmides de papelão. No dia 10 de agosto de
1793, até se instalou na praça da Bastilha uma fonte de gesso
revestido de bronze, na qual Ísis, sentada entre dois leões,
vestida com um páreo egípcio, espreme ‘dos seios fecundos o
licor puro e salutar da regeneração’ (...) (SOLÉ, 2003, p.148).
Assim, com Napoleão, a egitomania atingira seu ápice. Monumentos,
fontes, móveis, porcelana de Sèvres, papéis de parede, estátuas, pinturas, e
outros mais. Isto sem falarmos nas múmias: muitas destas foram trazidas
para a Europa nessa época. Tornavam-se parte integrante das coleções
pessoais de burgueses e nobres, ou então, ingrediente n’alguma fórmula de
panacéia. Cerimônias de “abertura de múmias” eram comuns.
Numa sala principal da Vila de Napoleão, do século XIX, pode-se
observar pinturas em estilo egípcio, como se vê em Egito: um olhar amoroso,
de R. Solé (2003, p.148).
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
129
O desenho do projeto de um obelisco, por Lecoint, para um
monumento em substituição à estátua do rei Henrique IV, sobre a Ponte
Neuf, na extremidade da Ile de La Cite (Ilha da cidade), de 1809, pode ser
visto em Plaisir de France, de D. Adrien (1969, p.24-25). Na mesma revista,
apresenta-se a imagem de uma fonte egípcia, na rua de Sèvres, feita por um
decreto de 2 de maio de 1806, responsável pela criação de 65 fontes
(ADRIEN, 1969, p.28-29).
Digna de menção mais detalhada é a porcelana de Sèvres. Era
utilizada para o “grande deleite dos ricos do século XVIII (...)” (ADRIEN,
1969, p.18). A produção desta cerâmica ampliou-se com Napoleão, que nela
viu uma fonte de atividade remunerável, mas também, um fino objeto para
uso pessoal ou como presente: nas alianças diplomáticas, nos casamentos
principescos, e mais ocasionalmente, nas visitas oficiais às Manufaturas
(ADRIEN, 1969, p.18-19).
O SÉCULO DOS EGIPTÓLOGOS
Chamamos assim o século XIX. Outras importantes expedições
ocorreram no Egito nessa época. Após a Expedição de Napoleão, de
Champollion, sem dúvidas a do alemão Richard Lepsius, entre 1842 e 1846,
foi uma das mais importantes. Superou inclusive àquela de Napoleão.
Lepsius é considerado fundador da egiptologia alemã. Antes dele, o inglês
John G. Wilkinson, em 1821, que passou a década seguinte copiando
desenhos, pinturas e relevos, e escavando em solo egípcio. Outro nome
importante é o francês Emile Prisse d’Avenes, que a partir de 1827 passaria
a viver e trabalhar no Egito. Pôde explorar por muitos anos templos e
construções antigas, retratando-as em belos desenhos.
Outro nome essencial ao se falar desse período é o francês August
Marriette (1821-1881). Nascido em Boulogne-sur-Mer, este estudioso e
arqueólogo francês foi enviado ao Egito pelo Museu do Louvre, em 1850, a fim
de colher peças de cultura material. Contudo, acabaria vendo as necessidades
de se criar uma legislação voltada para a proteção e valoração do patrimônio
local (EINAUDI, 2009, p.13-14). Graças à sua insistência foi criado o Service
des Antiquités (Serviço de Antiguidades), em 1858. Em 1863, conseguiu, enfim,
inaugurar um museu no Cairo. Tempos depois de sua morte, a situação desse
museu tornou-se crítica devido às inundações contínuas causadas pelas cheias
do Nilo. A coleção foi levada para uma das residências do Vice-Rei Khedivé
Ismail durante um tempo (1889-1902). Em 1902, a coleção foi finalmente
transportada para um novo prédio criado especialmente para ela: o Museu
Egípcio do Cairo (EINAUDI, 2009, p.15-16), no qual permanece, com muitas
ampliações e melhorias conservacionais, até hoje.
130
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Aos egiptólogos que vieram depois dele – Flinders Petrie, Griffith,
Montet, e tantos outros, coube-lhes árduo trabalho, achados grandiosos ou
pequenos achados – sendo que são estes últimos aqueles que de fato dão
sustentação à pesquisa científica egiptológica.
Os exploradores “sábios” de Napoleão contavam com sua curiosidade
e audácia, quase que exclusivamente. Hoje, além de nos beneficiarmos com
os frutos de seus trabalhos, dispomos de técnicas e métodos bastante
avançados. Enfim, uma coisa é certa: o espírito sequioso por conhecimento
que movia àqueles ainda paira sobre nós.
PINA SAMPAIO, Luiz Fernando. Art, science and images about the Egypt on Napoleon’s
France. Revista Ensaios de História. Franca,
ABSTRACT: The article presented here by us has as general objective stablish a brief
hirtorical-analytic, concerning to the origins of Egyptology on the napoleonic France,
taking the art, the science and the images by basis – all the three of them strongly
influenced by “egyptomania” and “egyptology” on resulting from the Napoleon Campaign
in Egypt between 1789 and 1801.
KEY WORDS: Egyptology, Napoleonic France, Art, Science, Images.
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Fevereiro: 1969.
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HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de
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MARUCCI, Liege M. de Souza. Egitomania: O Fascinante Mundo do Antigo
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Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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SAUNERON, Serge. A Egiptologia. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1970.
SILIOTTI, Alberto. Primeiros descobridores. A descoberta do Antigo Egito. Pt.
I. Barcelona: Folio, 2007.
______. Viajantes e Exploradores. A descoberta do Antigo Egito. Pt. II.
Barcelona: Folio, 2007.
SOLÉ, Robert. Egito: um olhar amoroso. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
132
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
O TRAÇADO DAS CIDADES DO BRASIL COLONIAL SOB A LUZ DA
HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
Marcos Felipe GODOY
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise comparativa da
bibliografia referente às características da formação das cidades coloniais da América
portuguesa e espanhola, mais especificamente no que diz respeito ao traçado das
mesmas, destacando as opiniões convergentes e divergentes entre os autores brasileiros
de referência no assunto, a fim de obter uma visão mais ampla acerca do fenômeno da
urbanização na América colonial, com ênfase no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Urbanização; Brasil colonial; Análise bibliográfica; América
espanhola.
O processo de urbanização está intimamente relacionado com o
desenvolvimento das mais diversas relações sociais, e é justamente por este
motivo que se mostra importante o estudo da formação das cidades. Neste
artigo, buscaremos analisar as diferentes perspectivas de três dos principais
historiadores brasileiros no que diz respeito à formação das cidades no Brasil
colonial: o ilustre Sérgio Buarque de Holanda, através do pequeno-grande
livro “Raízes do Brasil”, e os “clássicos arquitetos-historiadores de nossas
cidades”, como os chamou Fania Fridman: Nestor Goulart Reis Filho e Paulo
Santos. Comecemos então pelo primeiro.
É notável o fato de a obra “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de
Holanda ser toda permeada por uma análise psicológica do homem
português, a fim de explicar certas especificidades de nossa sociedade
contemporânea remetendo a características herdadas de nossos
colonizadores, no que diz respeito a desde certos hábitos e costumes, até o
nosso modo de ver o mundo e viver em sociedade. Em um primeiro
momento, o autor procura fazer uma análise específica da mentalidade
ibérica, investigando as peculiaridades deste povo que habita uma “região
indecisa entre a Europa e a África” (HOLANDA, 2005, p.32). Justamente pelo
fato de a península ibérica ser um território fronteiriço por onde a Europa se
comunica com outros povos, não tem arraigado um europeísmo tão
marcante, apresentando características diferenciadas do restante do
continente.
Após a investigação de tais características inerentes ao povo ibérico, o
autor passa a apontar as peculiaridades relativas aos portugueses e as
relativas aos espanhóis, traçando uma distinção importante para a
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133
compreensão das diferenças entre a colonização lusitana e castelhana na
América. Enquanto os portugueses são fortemente marcados por uma
aceitação da vida como ela é, uma “razão cautelosa”, uma preferência pela
adaptação à natureza e não pelo desafio à mesma, um certo “desleixo”, os
espanhóis apresentam uma “fúria centralizadora”, codificadora,
uniformizadora, refletida no gosto por regulamentos meticulosos, que vem de
um povo internamente desunido, ao contrário do português, que alcançou
sua unidade política no século XIII, com uma apreciável homogeneidade
étnica. No caso espanhol, “O amor exasperado à uniformidade e à simetria
surge, pois, como um resultado da carência de verdadeira unidade”.
(HOLANDA, 2005, p.117).
Seguindo essa linha de raciocínio, fica fácil entender porque as nossas
cidades coloniais apresentam um traçado tão irregular, com casas
desalinhadas e sem a notável uniformidade apresentada nas cidades de
colonização espanhola, como Buenos Aires, cuja planta mais parece um
grande tabuleiro de xadrez.
Seja como for, o traçado geométrico jamais pôde alcançar, entre
nós, a importância que veio a ter em terras da Coroa de Castela:
não raro o desenvolvimento ulterior dos centros urbanos repeliu
aqui esse esquema inicial para obedecer antes às sugestões
topográficas.
A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os
portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua
atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências
sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar
de antemão um plano para segui-lo até o fim. (HOLANDA, 2005,
p.109).
Embora o traçado regular possa ser encontrado de maneira parcial em
algumas de nossas cidades coloniais, este existe apenas onde não encontra
maiores obstáculos naturais, demonstrando o que Sérgio Buarque constatou
em relação à mentalidade portuguesa. É nesse momento que se mostra
profícuo transcrever um dos trechos mais incisivos de Raízes do Brasil em
relação à formação das cidades coloniais brasileiras, no qual o renomado
autor afirma que
A cidade que os portugueses construíram na América não é
produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e
sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor,
nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse
significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” –
134
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
palavra que o escritor Audrey Bell considerou tão tipicamente
portuguesa como “saudade” e que, no seu entender, implica
menos falta de energia do que uma íntima convicção de que
“não vale a pena...”. (HOLANDA, 2005, p.110).
Essa visão de Sérgio Buarque se perpetuou durante muito tempo na
historiografia brasileira, só vindo a ser efetivamente questionada em fins da
década de 1960, quando foram publicados os trabalhos de Nestor Goulart
Reis Filho e Paulo Santos.
Reis Filho, através de seu livro “Evolução Urbana do Brasil”, publicado em
1968, que tem como base sua tese de livre-docência, mas com alguns
aperfeiçoamentos alcançados através de críticas e sugestões dos componentes
da banca examinadora (dentre os quais estavam Sérgio Buarque e Paulo
Santos), questiona muitos dos pontos levantados por Sérgio Buarque.
O autor explicita cidades brasileiras nas quais se pode identificar o
traçado regular, certamente não tão marcante quanto nas cidades de origem
hispânica, mas o suficiente para enfraquecer a idéia de que a urbanização
em terras tupiniquins tenha se dado de maneira aleatória, como se fosse
obra de semeadores. O predomínio da traça irregular pode ser observado
nas vilas e cidades erigidas pelos donatários e pelos colonos, mas não nas
chamadas cidades reais, nas quais cabiam exclusivamente à Coroa as
tarefas de urbanização, que eram realizadas através do emprego de
arquitetos e engenheiros militares, o que revela o cuidado com o
planejamento destas cidades. Nessa categoria se enquadram as cidades de
Salvador, Rio de Janeiro, São Luís e Belém, que serviam como cabeças da
rede urbana.
É possível afirmar, portanto, que até meados do século XVII,
Portugal aplica no Brasil uma política urbanizadora que consistia
em estimular, indiretamente, a formação de vilas nos territórios
pertencentes aos donatários e a expensas desses, reservandose as tarefas correspondentes a fundação de centros de controle
regional. Deixando a organização espacial daquelas a critério
dos donatários e seus representantes, orientados apenas pelas
Ordenações, procurou porém exercer uma influência mais direta
e com controle mais eficaz sobre as cidades reais, para cuja
função e desenvolvimento procurou fornecer, quase sempre,
pessoal e recursos. Dotou-as, desse modo, de um quadro
urbano que, sob vários aspectos, podia ser comparado com as
experiências de maior importância, da mesma época, nas Índias
ou com as obras de urbanização colonial de outras nações.
(REIS FILHO, 1968, p.73)
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135
Mesmo na tentativa de explicar as razões da irregularidade no traçado
das cidades cuja edificação foi de responsabilidade dos donatários e não da
Coroa portuguesa, o autor não recorre a fatores estritamente culturais,
discordando da opinião de que congenitamente a ordem seria ignorada pelos
portugueses, e deste modo, determinando as questões de urbanização e
planejamento das cidades. Ao invés disso, prefere atribuir tal fenômeno a
outros motivos, como por exemplo, à posição de segundo plano do meio
urbano em relação ao rural. Como a grande maioria dos rendimentos da
colônia era canalizada para a produção agro-exportadora, ou seja, para o
meio rural, as atividades econômicas urbanas não apresentaram uma
produtividade razoável para adquirirem uma dinâmica própria. Assim, apenas
a partir de meados do século XVII, e devido a fatores externos, a
intensificação da vida urbana passou a despertar um maior interesse no que
tange a organização espacial das cidades.
Outro motivo no mínimo razoável, e em oposição às colônias hispânicas
na América, consiste na necessidade destas em afirmar sua superioridade
técnica e cultural perante povos também bastante civilizados – Incas e
Astecas – através da arquitetura e de uma simbólica submissão da natureza
às vontades do colonizador. Já no caso da América portuguesa, “os
principais agentes do processo de colonização não chegam a ter
necessidade de empregar a arquitetura como recurso de expressão do poder
pois este era indiscutível”. (REIS FILHO, 1968, p.186)
Mais um argumento forte de Reis Filho se origina da comparação entre
a urbanização levada a cabo pelos portugueses e pelos holandeses em
território brasileiro. É notável o fato de que os holandeses, nos trinta anos de
sua colonização no Nordeste, mantiveram a mesma política de colonização
que os portugueses. Assim como os lusitanos por meio das cidades reais, os
holandeses canalizaram suas atenções em um único núcleo, o Recife, e a
partir daí geriram indiretamente as demais povoações. Além do mais, o
traçado irregular também pode ser observado na Recife holandesa. Usando
as palavras do próprio autor, “Colocados em face das mesmas condições,
dois tipos de colonizadores comportavam-se de forma semelhante”. (REIS
FILHO, 1968, p.185).
Juntamente com o fato de que em muitos pontos a política de
colonização francesa no Canadá se assemelha à dos portugueses no Brasil,
– inclusive se compararmos a traça da cidade de Quebec com a de Salvador
– esse argumento tende a enfraquecer as explicações de cunho cultural para
a postura colonizadora dos portugueses, uma vez que mostra semelhanças
importantes destes com outros colonizadores da América.
136
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
O terceiro autor, do qual iremos tratar agora, é Paulo Santos. Por meio
de seu livro “Formação de Cidades no Brasil Colonial”, ele desenvolve uma
interpretação sobre o tema completamente diferente das anteriores, na
medida em que desenvolve uma argumentação a fim de valorizar o traçado
irregular das cidades do Brasil colonial. Enquanto os dois autores
supracitados vêem a traça regular com bons olhos, como um sinônimo de
progresso, Paulo Santos vem a questionar essa concepção, mostrando suas
limitações e carências.
Santos prefere denominar as cidades do Brasil Colonial antes como
cidades portuguesas do Brasil do que como cidades brasileiras, uma vez que
apesar de suas peculiaridades e aspectos regionais, preservam o “cunho
inequívoco da mãe pátria”. (SANTOS, 2001, p.17). Assim, para
compreendermos a formação de nossas cidades coloniais, devemos antes
investigar as origens das cidades portuguesas.
As cidades portuguesas denunciam uma dupla origem: a informal da Idade
Média e a formalizada da Renascença. Características marcadamente
medievais são perceptíveis nas principais cidades portuguesas, bem como nas
cidades do Brasil colonial. O caráter predominantemente militar, com uma
cidadela no alto com funções de defesa, e uma continuidade da povoação numa
região mais baixa, configurando as famosas denominações de cidade alta e
cidade baixa, bem como a forte influência da forma do terreno no traçado
urbano, são traços medievais que permitem paralelos entre as cidades do Porto
e de Salvador, e também entre Lisboa e Rio de Janeiro, muito semelhantes
quanto ao traçado e à organização urbana. Vale destacar também a influência
da arquitetura muçulmana devido ao domínio mouro em Portugal até o século
XII, que contribuiu bastante para o gosto pela irregularidade no traçado das
ruas. Afinal, na cidade mourisca, era o alinhamento – ou desalinhamento – das
casas que definia o traçado da rua, e não o contrário.
Já a cidade do renascimento era marcada pelo resgate dos ideais
greco-romanos, o gosto pela ordem geométrica e o domínio do homem sobre
a natureza, sendo caracterizada pelo traçado xadrez ou radiocêntrico. Na
Espanha as possibilidades foram maiores para o aparecimento dos traçados
regulares, talvez por ter sofrido maior influência política e comercial das
cidades italianas, principais difusoras dos ideais renascentistas. Em todo
caso, não foi na Europa, mas sim na América que a cidade em xadrez do
renascimento encontrou o campo propício para o seu surgimento, e como
pudemos ver, mais especificamente na América hispânica.
Tal tendência pode ser notada no detalhamento das Leyes de India,
verdadeiro código legislativo a que, no campo urbanístico, se deve atribuir a
unidade dos traçados. Na América portuguesa, a ereção de cidades era feita
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
137
a partir de recomendações das Cartas régias, que em sua maioria indicava a
formação de povoações em sítio saudável, com proximidade de água e
lenha, que se erguessem a praça principal, o pelourinho, a igreja, prédios
públicos, que as ruas fossem largas e retas e ainda que se preservasse área
para futura expansão, mas que mesmo assim, não eram nem de perto tão
rígidas e detalhadas quanto a legislação espanhola.
Entretanto, como dito anteriormente, na opinião do autor, essa relutância do
urbanismo ultramarino português em adotar sistemas geométricos demasiado
rigorosos não deve ser interpretado com algo ruim. Muito pelo contrário. Para
Paulo Santos, a cidade regular nada mais é do que “produto de uma idéia
preconcebida com que o projetista pretende, não raro artificiosamente, ordenar,
disciplinar, modelar a vida que nela vai ter lugar” (SANTOS, 2001, p.18). Marcada
pela secura e pela monotonia, chega a ser uma “regressão urbanística”, pura
abstração de espírito, demasiado subjetiva devido à sua predeterminação, “De
menor significação, por conseguinte, para o arquiteto e o urbanista do que muitos
dos planos informais”. (SANTOS, 2001, p.76).
Estes sim deveriam ser mais valorizados, já que são expressões de um
traçado logicamente concebido, expressando as condições da vida
contemporânea através de uma coerência orgânica e uma unidade de
espírito, que permitem uma vida mais aconchegante e familiar aos
moradores.
O principal argumento do autor em defesa das cidades informais é o de
que justamente as nossas cidades aparentemente mais caóticas, como Ouro
Preto, São João Del Rei, Mariana, Tiradentes e tantas outras, foram elevadas
à categoria de monumentos nacionais, “expressão da suma de nossa cultura
artística, aquilo de que mais nos orgulhamos de ter feito, o sulco maior
deixado no tempo pela nossa sensibilidade e nosso espírito”. (SANTOS,
2001, p.18); E mais:
É inútil procurar explicar, fora do plano urbanístico, a sedução
que Salvador, Olinda, Ouro Preto, Parati, e tantas e tantas outras
cidades do Brasil Colonial nos inspiram, só porque elas não se
enquadram nos tecnicismos urbanísticos deste século. Tais
tecnicismos estão estabilizados na consciência do homem do
nosso tempo, e não são válidos para o aferimento do que
fizeram os nossos maiores. Se aquelas cidades agradam tanto é
porque o nosso instinto e o nosso bom senso, mais que os
nossos conhecimentos acadêmicos, nos dizem que as soluções
delas são boas. E teremos muito a aprender estudando-as, não
para copiá-las, é claro, mas para corrigir as distorções que o
exagerado tecnicismo da Idade Industrial tem gerado em nós.
(SANTOS, 2001, p.76).
138
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Deste modo, pode-se notar que o que o autor propõe é uma quebra de
paradigma – uma nova maneira de pensar e julgar as cidades de plano
informal, que deixe de lado os tecnicismos e os preconceitos de nosso
pensamento pseudo-racional.
A análise e comparação das obras desses três clássicos da história da
urbanização no Brasil colonial nos dão uma ampla noção de como se deu
esse processo que durou séculos, assim como nos possibilita perceber como
um mesmo tema pode ser abordado sob as mais diferentes perspectivas, nos
mostrando como a constante renovação da historiografia torna quase
impossível o esgotamento de um assunto, que a qualquer momento pode ser
retomado sob um novo ângulo e explorado nos seus mais variados
desdobramentos.
GODOY, Marcos Felipe. The trace of the Colonial Brazil’s citys in the light of brazilian
historiograpy.
ABSTRACT: This article aims at a comparative analysis of bibliography relating to the
characteristics of the build of cities of colonial America Portuguese and Spanish, more
specifically as regards it trace, highlighting the convergent views and divergent between
Brazilian authors of reference in the matter, in order to obtain a wider vision about the
phenomenon of urbanization in America colonial, with emphasis in Brazil.
KEY WORDS: Urbanization; Colonial Brazil; Bibliographic analysis; Spanish America.
REFERÊNCIAS:
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em Nome do Rei. Uma história fundiária da
cidade do Rio de Janeiro. Editora Garamond, 1999.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Ed Companhia das Letras,
26° edição, 2005.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Evolução Urbana do Brasil. Editora da
Universidade de São Paulo, 1968.
SANTOS, Paulo Ferreira. Formação de Cidades no Brasil Colonial. Editora
UFRJ, 2001.
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RESGATANDO MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: VIDA, OBRA E
CONTRIBUIÇÕES PARA FILOSOFIA E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA.
Olinda Cristina Pacheco SCALABRIN*
RESUMO: Mário Ferreira dos Santos foi um dos maiores filósofos brasileiros e deixou
contribuições valiosíssimas para a filosofia e historiografia nacional, mas não foi
devidamente reconhecido enquanto vivo e nem após sua morte em 1968. O objetivo
desse trabalho é traçar basicamente alguns aspectos fundamentais da biografia desse
autor e principalmente demonstrar sua interpretação da História e valorização da
historiografia; destacando a importância de haverem maiores estudos sobre suas
produções no meio intelectual, uma vez que o autor realiza análises fundamentais e que
auxiliariam muito na historiografia, sociologia e filosofia não só nacionais como
internacionais.
PALAVRAS CHAVE: Mário Ferreira dos Santos, filósofo, Historiografia brasileira;
História concreta.
INTRODUÇÃO
Mário Ferreira dos Santos nasceu em 3 de janeiro de 1907 na cidade
de Tiête (São Paulo), ainda criança mudou-se com seus pais para Pelotas
(Rio Grande do Sul) onde viveu grande parte de sua vida. Estudou
diretamente com jesuítas e destes recebeu influência na construção de seu
pensamento, principalmente sobre a filosofia positiva1 que seria o fio
condutor de sua própria produção filosófica. Ainda jovem participava de
muitas peças de teatro como ator e escritor. Em 1930 bacharelou-se, com
louvor, em “Direito e Ciências Sociais” pela Faculdade de Direito de Porto
Alegre. Trabalhou como jornalista em alguns jornais e periódicos de Pelotas,
com publicações de artigos nos jornais “Diário Popular” (1928), foi diretor do
jornal “A Opinião Pública” (1929), teve breve participação no jornal “Clímax”
Graduanda em História na Unesp – Campus Franca. Sob a orientação do Profº Drº
Pedro Geraldo Tosi. Bolsista PET/MEC/ SESu.
1 “Com os jesuítas, desde o início, recebi a orientação que me aproximou da filosofia
positiva e dela fiz a espinha dorsal da estrutura filosófica que hoje tenho: a filosofia
positiva e concreta; positiva no sentido de filosofia que parte e permanece na afirmação
ao que constrói, que pertence a todos os grandes ciclos culturais da humanidade, mas
que encontrou o seu desenvolvimento máximo no pensamento grego, e a sua coroação
no pensamento ocidental, sob as linhas, sem dúvida, criadoras e analíticas da
Escolástica (SANTOS, auto-retrato em Rumos da Filosofia Atual no Brasil, 1976
pp.407-427).
*
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(1939), colaborou no órgão “Movimento” (1940) e, no final de sua carreira
como jornalista participou com suas publicações no “Diário de Notícias” e
“Correio do Povo”. É importante destacar algumas preocupações e
perspectivas de Mário constantemente presentes em seus artigos, em que
tratava desde questões políticas (mesmo estando inserido no árduo contexto
histórico da Segunda Guerra Mundial, foi capaz de analisá-la com eficácia; o
que para muitos é demonstração de que, mesmo em análises históricas mais
complexas, mostrava boa capacidade para diagnosticar os problemas e tratar
dos conflitos de maneira muito clara, com grande conhecimento histórico,
alertando o povo brasileiro sobre os perigos do Nazismo2), econômicas –
tanto nacionais quanto mundiais – até questões sociais e culturais, sempre
acreditando na superação humana, no seu progresso e na sua capacidade
de buscar uma civilização mais avançada, distinta pelo conhecimento e pelo
amor à verdade.
O AUTOR EM QUESTÃO
Mário Ferreira dos Santos produziu uma surpreendente quantidade de
publicações que são incomparavelmente enriquecedoras à intelectualidade
brasileira. Sendo admirador do filósofo Friedrich Nietzsche, foi contratado
pela Livraria do Globo para traduzir inúmeras obras, servindo inclusive de
grande referência para os para estudiosos deste filósofo.3 Além de várias
outras traduções de obras clássicas, publicou quase uma centena de livros e,
mesmo tendo dificuldade no começo devido ao “desinteresse” dos brasileiros
pela Filosofia, não desistiu de seu objetivo “em 1953 fundou a Livraria e
Editora Logos e iniciava-se, assim, o plano editorial, que contou com obras
não só de cultura geral, mas principalmente Filosofia” (SANTOS, 2001, p.14)
sem contar as edições que não conseguiu terminar durante sua vida, que
foram editadas por outros autores ou ainda não foram publicadas. Criou
alguns pseudônimos para disseminar suas idéias internacionalmente – uma
“O mundo está ameaçado pelos bárbaros do século XX que são os totalizadores que
impõe uma só ideologia, uma só vontade, um só chefe, uma só raça de senhores. Se a
guerra de 14 foi uma guerra de imperialistas, está é uma guerra liquidadora de
imperialistas.” [...] O nazismo não pode ser vencido apenas materialmente, precisa ser
aniquilado, porque não se vence uma fatalidade ao deixá-la prosseguir seu destino. O
nazismo não é apenas uma ideologia. Toda a simbologia é fanática. Há em todo
nazismo uma preparação para a morte. Impossível para Alemanha pôr-se na defensiva.
Hitler disse: ‘Lutaremos até o último homem’. A Alemanha sabe que não pode esperar
contemplação dos aliados. Ela tem, porém, esperança numa possível desunião entre os
aliados.” (SANTOS, Yolanda Lhullier dos, 2001, pp.9-10)
3 Id, 2001, p.11
2
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Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
vez que a produção intelectual brasileira não era tão valorizada – e redigiu
enciclopédias e dicionários de Filosofia baseados em definições clássicas,
incrementadas com seu claro e surpreendente domínio na filosofia,
sociologia, História e axiomas.4
Na década de 50, mudou-se para São Paulo onde sua vida como
intelectual tornou-se ainda mais dinâmica e seus trabalhos se intensificaram
cada vez mais. Em 1963, fundou uma editora chamada Matese, que em
grego significa “instrução”, nome dado devido a influência que sofreu das
idéias de Pitágoras (que seriam explanadas posteriormente em suas obras),
as quais foram fundamentais para o desenvolvimento de seu pensamento.
Ministrou cursos dos mais variados assuntos tendo muitos alunos,
tanto particulares quanto os que acompanhavam suas aulas em grupos e/ou
através de suas conferências, como, por exemplo, a partir do “Instituto
Cultural Logos”, também de sua fundação em 1967 e que matinha cursos
orais e por correspondência:
Estes, englobados sob o título de Cultura e Filosofia Geral eram
na época uma novidade, pois os poucos que haviam, vinham
diretamente dos Estados Unidos ou da Europa. Não iam,
evidentemente, ao encontro às necessidades do nosso povo.
Isto o levou a preparar, de forma cuidadosa, o texto procurando
expor a matéria de forma acessível sem rebaixar o
conteúdo.Bastante solicitados, abrangiam uma gama bem
ampla, indo de Língua Portuguesa, História do Brasil, História
Geral, Geografia Geral e do Brasil, Ciências Físicas e Naturais,
Matemática, Cultura, Higiene, desdobrado para Psicologia
Teórica, Psicologia Prática, Filosofia Geral, Lógica Geral,
Dialética, Visão Geral do Mundo (Cosmovisão) que, em grande
parte, foram editados em livros que vieram a constituir a
Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais. As apostilas,
enviadas para todo o território nacional, eram divulgadas por
cada um dos alunos a amigos interessados e em anúncios de
jornais e revistas. (SANTOS, Yolanda Lhullier; GALVÃO
Nadiejda Santos Nunes. “Monografia sobre Mário Ferreira dos
Santos”, 2001, p. 16).
Além disso, foi introdutor do sistema de livros vendidos a crédito, já que
não aceitava ajuda de nenhum meio publicitário para divulgar suas obras.
4
“Num sentido mais preciso chamam-se axiomas as proposições que constituem uma
regra geral do pensamento lógico, em oposição aos postulados, que são concernentes
uma matéria especial.” (SANTOS Mário Ferreira,1963, p.202)
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143
A obra que impulsionou o sucesso de suas publicações foi o livro
intitulado “Curso de Oratória e Retórica” 5 com onze edições,
compulsivamente procurado por intelectuais, empresários e políticos que
buscavam a inspiração tão bem representada por Mário em seus discursos
fluentes e argumentativos, magnetizando admiradores e mesmo críticos (por
se espantarem com tamanho talento e criatividade do autor). “Há muitas
pessoas que admiram que eu sendo um filósofo, que trate de matérias que
pertencem a tantas e diversas disciplinas, mas todas essas disciplinas
pertencem a Filosofia.” (SANTOS, 2001, p.16)
PENSAMENTO E OBRA: PERSPECTIVAS E INFLUÊNCIAS NO
DESENVOLVIMENTO DE SUAS PRODUÇÕES.
As concepções de Mário eram baseadas em princípios libertários, nos
quais o homem é um ser livre para escolher e captar as possibilidades
formadoras de seu próprio caminho, alcançando assim os fins que lhe são
benéficos. Em todas as suas obras, antes de começar a desdobrar seu
pensamento e explicar suas conclusões, definia a origem dos termos que
usava e quais os conceitos que deveriam ser entendidos pelos leitores. Esse
método, essencial para qualquer estudo que se proponha a tratar da
compreensão da sociedade, é voltado tanto às ciências humanas e filosóficas
quanto às exatas, já que sem essa premissa as argumentações e
constatações tornam-se superficiais, sem embasamento lógico e ontológico.
Partimos do seguinte: aceitamos a frase de Aristóteles, a única
autoridade é a demonstração, quer dizer, enquanto não de
demonstra apoditicamente um juízo também exclusivo, nós não
alcançamos o fim da nossa pesquisa. Se isso é possível ou não
é que se discute, nós dizemos que é possível e provamos.
(SANTOS, Yolanda Lhullier; GALVÃO Nadiejda Santos Nunes.
“Monografia sobre Mário Ferreira dos Santos”, 2001, p. 19).
Mário demonstra sua preocupação com o rumo da intelectualidade e o
modo como o pensamento estava se moldando principalmente no século XX.
Essa preocupação se reflete em temas constantemente retomados em suas
obras.
O que temos que fazer hoje é construir. Na realidade, o espírito
destrutivo, o demoníaco, vence em quase todos os setores
desse período histórico que vivemos, e sobretudo, neste século,
5
Livro publicado em 1959 pela editora Logos.
144
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
que talvez esteja cognominado pelos vindouros “século da
técnica e da ignorância”, porque se há nele um aspecto positivo,
que é o progresso da técnica, que chega até as raias da
destruição, a ignorância aumenta desesperadamente,
alcançando limites que a imaginação humana nem de leve
poderia prever. Mas o que é mais assombroso é a autosuficiência do ignorante, o pedantismo da falsa cultura, a
erudição sem profundidade, a valorização da memória mecânica,
do saber de requintes superficiais, a improvisação das soluções
já refutadas, a revivescência de velhos erros rebatidos e
apresentados com novas roupagens. Tudo isso é de espantar
(SANTOS, 1959, prefácio)
Em suas obras, o filósofo brasileiro realizava confrontos dialéticos,
debatendo com múltiplas correntes de pensamento – inclusive divergindo
essencialmente nos pontos fundamentais de outras perspectivas históricas
como, por exemplo, o materialismo histórico. Definia os princípios básicos
dessas correntes para depois promover um debate que demonstrasse suas
contradições e deficiências ou suas representações convergentes com a
realidade, e a partir daí articulava quais delas mais se aproximam da realidade e
deveriam servir de inspiração para o pensamento e compreensão da sociedade.
A base de seu pensamento é uma curiosa síntese de filosofia
pitagórica, tomismo-aristotélico6 e, em política, de moderadas tendências
anarquistas.
Mário publicou três livros que são caros à historiografia brasileira, nos
quais define o conceito de História e sua importância, fazendo-o não somente
para as ciências humanas como também para outras áreas do saber.
HISTÓRIA
CONCRETA:
PRINCIPAIS
INTERPRETAÇÕES
CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO HISTORIOGRÁFICO.
E
Após um de seus cursos realizado em 1950, com o nome de “Filosofia
e História da Cultura”, Mário Ferreira resolveu publicar as aulas
datilografadas para que servissem de introdução ao estudo da História. O
livro, que foi lançado em três volumes, foi um dos grandes responsáveis no
Brasil em esclarecer o conceito de História e de Cultura com a finalidade de
analisar os fatos e interpretar seus significados; sendo que é a partir dessa
perspectiva que se desdobrarão as suas próximas considerações acerca da
6
O pitagorismo dele não é matemático, mas sim uma síntese de vários estudos feitos dos
pitagóricos, com uma série de doutrinas epistemológicas. Aristotelismo-tomismo é a
corrente de Santo Tomás que usava da filosofia aristotélica em bases cristãs da
doutrina católica, principalmente de Santos Agostinho, Boécio e Santo Abelardo.
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145
História e da sua orientação para novos estudos do mesmo gênero. Em
linhas gerais, sua pretensão ao escrever o livro era “um estudo sistemático e
cuidadoso da História, no intuito de permitir captar-se o significado dos fatos,
e não apenas ater-se à descrição dos aconteci-mentos.” (SANTOS, 1950,
p.13).
Seu objetivo é proporcionar embasamento para uma visão mais nítida,
positiva e construtiva do conceito de História. Segundo o autor, para um fato
ser considerado histórico, ele precisa ultrapassar o campo do pessoal e ter
resultados sobre um grupo ou coletividade - já que não é possível
individualizar a análise diante de tamanha complexidade. Dentro dessa
análise, Santos compara, por exemplo, a visão de História entre gregos e
egípcios para demonstrar que a visão de História varia conforme a visão de
tempo de cada sociedade, uma vez que este é o campo dos fenômenos
históricos.
Nesse caso, os gregos tinham uma visão prática da História,
considerando aquilo que estava relacionado às suas próprias experiências e
as heranças de seus antepassados através do mito, não sabiam diferenciar
com total argúcia o mito da realidade e a influência dos processos históricos
na formação de sua sociedade. Dessa maneira, não há como existir uma
noção profunda de tempo e, conseqüentemente, não a desenvolveram.
Assim, as deficiências gregas notam-se especialmente sobre a História (a
qual não era percebida por eles como uma totalidade); diferentemente dos
egípcios que entendiam o tempo com mais profundidade - o que refletiu
diretamente nos escritos deixados pelos mesmos, possuindo especificidades
de datas, dinastias e características de cada um dos seus tempos.
Na tentativa de buscar uma resposta e encontrar uma essência para a
História, o autor diz:
O histórico não se repete, porque a perspectiva histórica é
conseqüência da posição que tomamos, de cujo ângulo
visualizamos apenas o aspecto irreversível dos fatos. Cada fato
que se dá, é novo e único em si mesmo. Mas, cada fato também
repete algo novo dos fatos passados, porque, do contrário, todo
o existir seria de uma diferença absoluta, e não nos permitiria o
conhecimento. Conhecemos porque há aspectos que se
repetem, e é sobre o repetível que construímos a ciência,
construímos um saber. Mas o fato histórico, como tempo, é
irrepetível, porque o minuto que passa, não retorna; é sucedido,
é substituído. Sabemos que Napoleão Bonaparte não será
repetido, não retorna, mas sabemos, no entanto, que as
condições que geram um Bonaparte, o bonapartismo, sob certos
aspectos, se repetem. (SANTOS, 1950, p.17)
146
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Portanto, o que se repete é o que permite conhecer o fato que já se deu,
é a imagem que se tem deles. O que retorna são as notas, as reproduções
que retratam os acontecimentos e permitem investigações e interpretações
futuras. Assim, é possível distinguir entre a História e a Sociologia, uma vez
que esta permanece mais ligada às imagens, às reproduções e às
características que se repetem e aquela aos fatos como ocorreram, seu
contexto e suas principais conseqüências.
A História é o produzir-se, porque é dinâmica, é tempo. O que
produziu, o que ficou, monumentos, arte realizada, obras em
geral, são o produto, os quais nos permitem, através deles,
captar algo daquele produzir-se. (SANTOS, 1950, p.18)
A linguagem que o autor utiliza para tratar do produto e do produzir-se
são os conceitos de intensidade e extensidade. O produto seria o resultado
de ações de determinado período e que foram projetados de acordo com a
memória e/ou o material do homem em seu tempo. Neste caso, tem-se a
extensidade, “que traz a marca da histórica, o que pertence ao estudo da
História, à historiografia, à descrição dos fatos.” (SANTOS, 1950, p.18)
A intensidade seria o fato em si mesmo, aquele que se realizou, que
em determinada época aconteceu e, como na própria definição de fato
histórico dado por Mário Ferreira, foi significativo a uma coletividade, grupo,
sociedade influenciando seu desenvolvimento e sua caracterização e o de
épocas procedentes.
Já a extensidade, sucintamente, é o que está externado, está "para
fora", o que se pode medir, quantificar, o que é produzido dentro de um
espaço. Intensidade é o que está interiorizado, está voltado "para dentro",
que não é possível medir, mas apenas apresentar em graus, qualitativos e
temporais, dentro do que se sucede. Percebe-se aí a semelhança entre o
extenso e o espaço (o produto) e o intenso e o tempo (o produzir-se).
Quem vê a História apenas extensivamente, como objetivação
do produto, tende a ver mecanicamente os fatos históricos, a
atualizar a causalidade rígida, a sistematizar o acontecido. Quem
vê apenas como produzir-se, aponta-lhe a direção, como se
fosse uma vida, como se fosse uma estrutura biológica,
atualizando apenas o lado temporal. O estudo da História, para
ser um estudo proveitoso, e de frutos benéficos, não pode
afastar-se de uma concepção que englobe ambos os aspectos,
que permita a formação de uma visão concreta, conexionando os
aspectos meramente históricos, como irrepetíveis, com as
realizações, as obras feitas, as quais servem para indicar um
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
147
novo caminho capaz de permitir o vislumbrar dos aspectos
sociológicos, para uma visão filosófica e histórica da cultura
humana em geral, e da História em particular. [...] Entretanto,
não se pense que aconselhamos uma posição intermediária. Tal
não seria aproveitável, como raramente é aproveitável todo o
meio termo teórico. É preciso distinguir os extremos, para pô-los
um em face do outro e tornaram-se, assim, produtivos de algo
superior, pela constatação das diferenças, ou pela superação
dos extremos, por uma concepção superior analogante.
(SANTOS, 1950, p.19)
Nesse mesmo trecho, percebem-se muitos aspectos refentes aos
princípios do autor. Além desses instrumentos – de extensidade e
intensidade – alguns outros são fundamentais, através de uma análise
concreta, para encontrar nexos na História, interpretando os interesses,
pensamentos e pretensões dos homens que moldaram suas atitudes e suas
interferências no processo histórico.
Dentre outros instrumentos que Mário Ferreira dos Santos utiliza para
desvendar os comportamentos humanos, encontram-se especialmente três:
Ato e Potência (conceitos complementares emprestados da filosofia
tomístico-aristotélica) que serviriam para apreensão da História e das
possibilidades humanas de um povo e de uma era, para entender aquilo que
foram e aquilo que poderiam ter sido. Em segundo lugar, Variante e
Invariante, no que se refere aos princípios básicos que não variam (como,
por exemplo, o espaço) e os que variam conforme as características de cada
sociedade e, por fim, Juízo de Existência e Juízo de Valor, motor do
pensamento e das atitudes dos homens, que ainda devem ser avaliados para
entender, por exemplo, porque uma sociedade se desinteressa por um tema,
enquanto outra o considera como importantíssimo e fundamental. Esses são
apenas alguns exemplos dos vários mecanismos que o autor apresenta para
orientar o estudo da História.
Por meio destes, Mário faz uma classificação da História no intuito de
abarcar suas principais vertentes, para isso esclarece a “Filosofia da
História”, ou seja, a base e a essência da História, seus fundamentos teóricos
e suas representações. Dessa forma, utiliza os conceitos de “Historiologia”
(analogias patentes dos fatos históricos), “Historicismo” (estabelecimento de
nexo teórico sobre o desenvolver dos acontecimentos) “História cronológica”
(narração dos fatos históricos desenrolados no passado, evitando impor
valores e interpretações) entre outros. 7
7
SANTOS, Mário Ferreira dos. “Filosofia e História da Cultura”, p.47
148
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Não há dúvida que a análise e o desdobrar do pensamento de Mário
em relação a essas definições está muito além da exposição dessas páginas.
Tenciona-se aqui apresentar uma breve introdução às principais perspectivas
de sua obra em relação à importância da História, longe de conseguir
abranger toda a complexidade, argúcia e multiplicidade dos estudos e
conclusões do autor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mário demonstra a importância do estudo da História, sua relação entre
presente, passado e futuro e sua totalidade como um saber que engloba todas
as outras áreas do conhecimento, apresentando a análise ontológica do
histórico e sua fenomenologia para depois concluir em que bases se constrói a
historiografia e como sua dinâmica deve ser compreendida e estudada.
Assim se pode afirmar que é possível a constituição de uma
ciência da História. Não uma ciência do campo meramente
repetível, mas na qual o produto e as notas correspondentes
[...]nos permitam estabelecer um estudo corrente da História.
(SANTOS, 1950, p.52)
Com mais de um milhão de obras vendidas, deixou como herança à
intelectualidade brasileira. Alguns filósofos e pesquisadores ainda procuram
estudar o pensamento e as produções deixadas em obras publicadas, mas
essas abordagens ainda estão longe de ser suficientes para a difusão na
academia, literatura e sociedade brasileira de tamanho talento, criatividade e
inteligência.
Mário Ferreira dos Santos morreu em 11 de abril de 1968, “o filósofo
pediu que os familiares o erguessem. Morrer deitado, afirmou, era indigno de
um homem. Morreu de pé, recitando as palavras do Pai-Nosso8.”
SCALABRIN, Olinda Cristina Pacheco. RESCUING MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS:
life, work and contribution to the Brazilian Histotiography and Philosophy
ABSTRACT: Mário Ferreira dos Santos was one of the most brilliant Brazilian
philosophers and he left valuable contributions to the national philosophy and
historiography, but was not fully recognized during his lifetime and nor after his death in
1968. The aim of this work is basically to draw some fundamental biographical aspects of
the author and mainly to demonstrate his interpretation of History and to appreciate his
historiography. Highlight the importance of having larger studies of his intellectual
productions, considering that the author develops fundamental analysis that can help a lot
8
SANTOS, Mário Ferreira. Prefácio em “Sabedoria das Leis eternas”, 2001, p.16
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
149
the improvement of the historiography, sociology and philosophy not only national and
international.
KEYWORDS: Mário Ferreira dos Santos; philosophers; Brazilian historiography; concret
history.
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150
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
BIPARTITE: A PRESERVAÇÃO DO RELACIONAMENTO ENTRE A
IGREJA E O ESTADO BRASILEIRO NA DITADURA MILITAR
Ricardo Augusto Aidar ABIB1
RESUMO: A Bipartite foi uma série de encontros secretos realizados entre a Igreja
Católica e o Governo Militar brasileiro, entre os anos de 1970 a 1974. A finalidade dessas
reuniões era garantir o relacionamento político entre a Igreja e o Estado, sob um contexto
de iminente ruptura entre ambas marcado pela divergência ideológica. Este artigo tem
como objetivo analisar a Bipartite, principalmente no que se refere à sua formação e aos
principais assuntos e resoluções que apareceram durante as reuniões. O estudo da
Bipartite ajuda não só a entender um período conturbado, marcado pela repressão da
política instituída, mas também contribui para o entendimento da resolução do conflito
entre a Igreja e o Estado e para a reinterpretação do processo de redemocratização
brasileira.
PALAVRAS - CHAVE: Ditadura Militar; Bipartite.
O Brasil, desde sua formação até os dias contemporâneos, contou com
a participação da Igreja Católica. Seja por meio de uma relação
institucionalizada, através do padroado, durante a Colônia e o Império, seja
através da concordata moral iniciada com a república. Entendimentos e
crises marcaram o relacionamento entre ambas as instituições durante estes
séculos. Durante este tempo, o relacionamento de cooperação foi
predominante, todavia no período da ditadura militar (1964 – 1985) a situação
foi diferente.
[...] uma grande quantidade de padres, freiras, bispos e
militantes leigos sofreu maus-tratos por parte das forças de
segurança. Sete clérigos foram mortos. Foi a pior crise entre a
Igreja e o Estado na história do país [...] (SERBIN, 2001, p.48).
Esta situação limite entre as duas instituições foi determinada pela
diferença de posicionamento que cada uma adquiriu.
A nova autocompreensão da Igreja se concretizou com a realização do
Concílio Vaticano II (1962-1965). A Santa Sé mudava de posição. Outrora,
priorizava as classes dominantes em detrimento dos setores populares "[...] A
presença da Igreja entre eles [...] quase que apenas uma obra de filantropia
1
Aluno da graduação em História da Unesp – Campus de Franca sob a orientação do
Prof. Dr. Ivan Manoel Aparecido.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
151
[...]" (ALVES, 1979, p.40). Neste período, que se iniciou em 1800 e avançou
praticamente por dois séculos, a autocompreensão que a Igreja tinha de si
mesma fora denominada ultramontantismo e suas principais características
eram a rejeição ao mundo moderno e o desejo de uma aproximação ao
modelo da Idade Média. Com a finalidade de recuperar sua influência a Igreja
fez algumas adaptações.
A revolução da Igreja [...] começou depois da Segunda Guerra
Mundial. As rápidas mudanças socioeconômicas, a ameaça do
comunismo, o crescimento do protestantismo e das religiões
afro-brasileiras e a assimilação de inovações teológicas e
filosóficas européias impulsionaram a mudança (SERBIN, 2001,
p.98).
Se anteriormente preocupava-se sobretudo com o comportamento
moral, gradualmente passava a se pronunciar sobre a questão
social.Pronunciamentos eram feitos através das encíclicas papais, sobre o
mundo do trabalho (LEÃO XIII, 1981), sobre os direitos humanos (JOÃO
XXIII, 1963), sobre a justiça entre os relacionamentos de pessoas e países
como meio de desenvolvimento econômico (JOÃO XXIII,1961). Com a
realização do Vaticano II, esta nova atitude preocupada não só com o
espiritual do homem, mas também com suas necessidades materiais, tornouse a nova diretriz da Igreja Católica. Muitas questões relativas ao homem
foram abordadas: os direitos humanos foram proclamados como universais e
invioláveis, devendo ser acessíveis a todos e respeitados por qualquer
regime político vigente; a justiça precisaria ser desenvolvida; o diálogo não
deveria excluir ninguém, nem aqueles que se opunham à Igreja e a
perseguiam dos mais diversos modos. Questões políticas também
apareceram: o capitalismo foi condenado pela busca desenfreada por lucro,
pelos trustes, pelos latifúndios improdutivos; a autoridade pública deveria ser
voltada para o bem comum, não usada de forma despótica; qualquer governo
que impedisse a liberdade religiosa e civil e que multiplicasse o crime político
deveria ser criticado. Estas e outras mudanças consolidaram a nova
autocompreensão da Santa Sé.
A nova posição da Igreja com o Concílio Vaticano II, porém não foi
unânime e não teve uma total adesão dos religiosos no Brasil, pois se tratou
de um fenômeno de transição de um processo histórico. Contudo uma boa
parcela a aderiu e desempenhou destacada atuação. A ação entre leigos e
eclesiásticos acontecia no campo da educação de base, nos setores urbanos
e rurais, nas universidades, entre outros. Com a instauração da ditadura
152
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
militar, esses religiosos engajados socialmente foram acusados de
subversivos e perseguidos pelos militares, no poder.
A sindicalização rural foi considerada subversiva e os que e a ela
se entregavam passaram a ser perseguidos. O sindicalismo
urbano sofreu a intervenção da policia. A educação de base foi
esquecida. Os que elaboraram suas técnicas e executaram seus
trabalhos passaram a ser fichados pelas delegacias de ordem
política e social. Muitos dos cristãos que norteavam sua
atividade política pelos ensinamentos papais tiveram seus
direitos de cidadania suspensos e seus mandatos cassados.
(ALVES, 1968, p.58)
O governo, encabeçado pelos militares, agiu desta forma devido ao
novo posicionamento que adquiriu. Sob um contexto de guerra fria e dos
perigos que a revolução cubana poderia influenciar no Brasil, os militares
tinham um posicionamento contrario ao socialismo e consideravam qualquer
manifestação social como subversiva e parte da tática comunista
internacional. Destarte, a Igreja era a principal atingida devido ao seu
posicionamento social.
O ano de 1968 representou um aprofundamento das posições
ideológicas realizadas tanto pelo Estado quanto pela Igreja. O regime
endureceu seu governo com o AI (Ato Institucional) 5. Deste modo o
presidente passava a ter o direito de cancelar habeas-corpus, limitar
garantias individuais, decretar o recesso do Congresso, assembléias
estaduais e câmaras municipais, entre outras pesadas medidas.
Posteriormente surgiram a Oban (Operação Bandeirantes) e o DOI-CODI
(Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de
Defesa Interna) objetivando auxiliar o governo na repressão. Com o decreto
lei 898 de 29 de setembro de 69 nasceu a ‘lei de segurança nacional’, com o
intuito de preservar a segurança nacional e a ordem pública. A Igreja, por sua
vez, com o CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano) realizado em
Medellín, impulsionou a aceleração das transformações do Concilio Vaticano
II na América Latina.
Á medida que as leis de segurança tornavam-se mais rígidas, A Igreja
adquiria maior importância. Isso se deu porque "No auge da repressão, a
principal oposição institucional capaz de atuar com alguma independência e
eficácia é a Igreja Católica [...]" (COSTA E COUTO, 1999, p.118). Ela
criticava os abusos do regime nas missas, procissões, panfletos e
declarações à imprensa. O governo por sua vez, prendia, torturava, exilava,
censurava, caluniava e invadia sedes de grupos religiosos. O atrito entre as
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
153
duas instituições aumentava intensificadamente. A Lei de Segurança
Nacional do Governo chocava-se com a doutrina social da Igreja, e a
crescente atuação que esta passou a ter, principalmente depois do Concílio
Vaticano II e do CELAM, em Medellín. Quanto mais os ataques eram feitos à
hierarquia católica, mais ela ganhava coesão. A situação atingiu um ponto
em que os ataques deferidos pelo governo aos religiosos não incidiam
apenas nestes, mas na própria instituição da Igreja Católica.
O estopim do conflito aconteceu devido ao incidente no JOCIBRADES (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social). No final de 1970,
a sede da JOC( Juventude Operária Católica) no Rio de Janeiro, dirigida por
jesuítas e que realizava o treinamento de joscistas e outros militantes de
movimentos populares com a finalidade de implementação do movimento da
Igreja por justiça social, foi invadida pelo Exército. Vários religiosos, entre
eles o padre Pedro Belisário Velloso Rebelo e o padre Ormindo Viveiros de
Castro, foram maltratados. O secretário-geral da CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil), Dom Aloísio Lorscheider ficou detido e
incomunicável por quatro horas. Este ataque direto à hierarquia católica
unificou os protestos e denúncias realizadas pela Igreja Católica. A comissão
central da CNBB denunciou o ataque e os cinco cardeais do país protestaram
através de uma carta ao presidente Médici. No Brasil, poucas pessoas
souberam do incidente devido à censura, mas no exterior os protestos foram
maiores e quase provocaram um desastre diplomático para o regime. Até o
Vaticano, pela Radio Vaticano, criticou as medidas repressivas utilizadas pelo
governo.
A relação entre as duas maiores instituições do país estava
complicada e cada vez mais ameaçada. Nesta situação de instabilidade,
Tarcísio Padilha desempenhou um importante papel de amenização do
conflito. Durante o regime militar, participou do governo como membro do
conselho federal de educação e presidiu a comissão especial para educação
moral e cívica, contudo apresentava uma postura diferente, pois desejava a
abertura do regime. Outra característica significativa era sua notoriedade no
meio religioso, sendo um dos mais importantes educadores católicos e
integrante do relevante centro D. Vital, aonde angariou contatos diversos. Isto
fazia com que fosse contrário ao atrito e afastamento entre as duas
instituições. O incidente IBRADES – JOC fez com que conhecesse duas
respeitáveis figuras: Antônio Carlos da Silva Muricy e Candido Mendes de
Almeida, ambos apesar de divergências ideológicas, compartilhavam a
preocupação do bem estar da Igreja com o Estado. Um encontro foi marcado
entre eles e ainda contou com a presença do diretor do IBRADES e o agente
de segurança que liderou o ataque aos religiosos. Foram propostos outros
154
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
encontro. O general Muricy desejava tais, pois respeitava a Igreja. Para
conseguir esta aprovação aproveitou-se de sua influencia no governo. Não
obstante a resistência de alguns, como Fontoura e Figueiredo, Muricy
conseguiu a aprovação do presidente Médici para futuras reuniões entre
membros do Governo e da Igreja. Os encontros foram denominados Bipartite.
Ambos os grupos tinham um interesse nestes encontros, pois
As duas mais importantes instituições brasileiras precisavam
uma da outra. Os generais queriam a benção dos bispos ao seu
regime, e os prelados queriam a garantia dos privilégios e do
espaço doutrinal concedidos à igreja (SERBIN, 2001, p.35).
O sigilo era uma marca das reuniões, já que ninguém poderia saber
que o presidente Médici havia resolvido dialogar com àqueles que apareciam
como uma ameaça à sua política. Por tal motivo, os encontros não tinham
local nem data fixa. Outra característica era que o diálogo substituía o clima
hostil provocado pela guerra fria e pela ditadura. Ambos os grupos
apresentavam suas críticas e tentavam se fazer compreendidos. Havia um
respeito mútuo e ambos os lados tentavam definir novas regras para uma
coexistência pacifica. Apesar da cordialidade, nenhum grupo hesitou em
atacar a posição do outro. As críticas eram permitidas desde que feitas
apenas durante as reuniões.
O grupo governamental era composto por membros do exército e da
marinha, e contava com membros de importantes setores ideológicospolíticos. Alguns nomes importantes, além do general Muricy, foram o
general Paula Couto,o coronel Omar Diógenes de Carvalho e Tarcisio
Padilha.O grupo religioso estava dividido e era heterogêneo,o que refletia a
divisão na Igreja pós-Vaticano II. Contava com bispos ligados a militares,
outros mais progressistas moderados, chegou até a contar com a
participação do núncio papal. Entre outros, faziam parte deste grupo Candido
Mendes, Dom Eugenio Sales, Dom Aloísio Lorscheider e Dom Avelar
Brandão.
Variados assuntos eram tratados durante as reuniões. Uma notável
discussão que marcou os encontros foi quanto ao desenvolvimento
econômico. O grupo religioso acreditava que tal desenvolvimento deveria ser
pautado em uma justiça social, ou seja, a Igreja desejava que
concomitantemente ao desenvolvimento econômico fosse preservado o
direito humano e democrático, pois só desta maneira seria possível uma
sociedade igualitária. Por sua vez os militares se opunham. Aquilo que
representasse perigo ao status quo ou implicasse em criticas ao governo era
denunciado como subversão. Referente a este assunto, as declarações do
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
155
CELAM em Medellín, foram debatidas na tentativa de uma explicação
ideológica por parte de cada grupo. O documento produzido nesta ocasião
não foi apenas religioso, mas político e encorajava a população para uma
conscientização política e para a ação, ademais criticava o
subdesenvolvimento da América Latina e seu modelo nacional
desenvolvimentista, bem como a divida externa e a ação de empresas
multinacionais. O grupo militar acusava muitos dos conceitos utilizados neste
documento de marxistas, pois fomentavam a luta de classes,induzia ao
afastamento dos Estados Unidos e consequentemente à aproximação de
Moscou. O grupo militar criticava os jargões comunistas utilizados, como
burguesia e opressão. Argumentavam que a Igreja desconhecia o processo
revolucionário dos comunistas e seu movimento subversivo. A Bipartite
proporcionava a possibilidade de discutir um tema que causava confrontos
entre as duas instituições.
Outro tema constante na Bipartite era relativo aos direitos humanos. A
Igreja desempenhou um papel notável na batalha pelos direitos do homem.
Esse engajamento era visto na Bipartite, o grupo religioso mostrava suas
preocupações e desejava que casos de violações aos direitos humanos fossem
explicados e resolvidos. Por sua vez,o grupo da situação tentava convencer os
bispos a diminuir o tom das acusações para que estas não manchassem a
imagem brasileira e não incentivassem a oposição generalizada. Muitos casos
foram discutidos e resolvidos. Pessoas ‘desaparecidas’ foram encontradas;
outras libertadas e salvas da tortura e da morte.
Dentre todos os assuntos abordados, o mais importante referia-se aos
conflitos existentes entre Igreja e Estado. Algumas questões foram tratadas e
resolvidas, outras, potencialmente explosivas, evitadas. Um desses exemplos
foi o conflito em torno da comemoração do sesquicentenário da independência
em 1972. O governo desejava aproveitar esta data como plataforma política
para os generais, porém encontrava dificuldade, já que nas últimas
comemorações ocorreram incidentes que prejudicaram a imagem do governo.
A CNBB anunciou sua colaboração ao programa oficial, entretanto logo
divergências surgiram em relação ao lugar e a data do evento. A parte da
Igreja desejava a realização no dia 3 de setembro, pois não ocorreria mistura
de religião com ‘tom festivo’, também queria a volta de seus bispos para a
celebração desta data em suas respectivas localidades, no entanto o Exército
desejava que a celebração ocorresse devidamente no dia comemorativo. A
situação se agravou quando o grupo da situação soube de um documento que
a Igreja fez para o sesquicentenário e de outras publicações que criticavam os
ataques do governo. Outro motivo de apreensão foi o documento de
Celebração litúrgica, o folheto produzido para a festividade, que segundo o
156
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Exército, continha textos ambíguos, perigosos e subversivos, nas mais
variadas partes da missa. A situação se avolumava em criticas e uma reunião
da Bipartite fora pedida por Candido Mendes. No encontro marcado, o governo
se mostrava preocupado com o desenrolar da situação e temia um choque
ainda maior. Já era tarde para uma mudança nas datas da festividade.
Diálogos aconteceram e a intenção de cooperação foi clara. Dom Ivo
Lorscheider confirmou que as cópias produzidas haviam chegado e ele
solicitara para que elas não fossem entregues. A Igreja depois substituiu o
documento por uma mensagem da CNBB. Dom Avelar Brandão controlou as
declarações dos bispos. A missa aconteceu no dia 3 de setembro e as leituras
não possuíam conotação política. A bipartite atingia seu objetivo de evitar
novos conflitos e melhorar a relação de ambos os lados.
Outro acontecimento envolveu Dom Fernando Gomes, que possuía
um passado progressista em seu trabalho social no Nordeste e que cortou
relações com o regime após um incidente envolvendo uma morte em sua
catedral. Nos anos 70, apoiou seus colegas em combates contra o Exército.
Com a prisão de seu amigo Dom Pedro Casaldáliga redigiu uma carta
pastoral, em que criticou a força e a propaganda do regime. Uma outra
reunião convocou Dom Fernando e a situação foi esclarecida. Dom Fernando
demonstrou sua posição anti-comunista e assinalou uma postura favorável a
um regime forte e que auxiliasse desaparecidos e presos políticos.Deste
modo as tensões que surgiam, mais uma vez,eram aliviadas.
Um dos mais importantes casos resolvidos pela Bipartite envolveu a
Barra Mansa, localizada entre Rio de Janeiro e São Paulo, foi palco da ação
violenta do 1 BIB(Batalhão de Infantaria Blindada).Esta perseguia comunistas
e no ano de 1971 foi encarregada de prender acusados de tráfico de drogas.
O batalhão começou a investigar seu próprio quartel, suspeito de uso e
trafico de maconha. No final do mesmo ano já prendia e espancava soldados.
Quatro soldados acabaram sendo mortos por torturas: Geomar Ribeiro da
Silva, Juarez Monção Viorte, Roberto Vicente da Silva e Wanderley de
Oliveira. O grupo religioso denunciou este incidente. Dom Waldyr foi
importante, pois conseguiu provas contra o 1BIB e praticamente eliminou
qualquer possibilidade de que os fatos fossem encobertos, deste modo
forçou uma resposta do governo. O coronel Sampaio foi o responsável pelo
inquérito. Depois de 108 dias descobriu os corpos de Wanderley e Monção.
Prendeu os suspeitos do crime Niebus, Paulo Reynaud Miranda da Silva,
Ivan Etel de Oliveira, Rubens Martins de Souza e Sideni Guedes, depois
ainda José Augusto Cruz e Celso Gomes de Freitas Filho. Foram julgados e
condenados por um conselho especial no dia 22 de janeiro de 1973. Este
provavelmente foi o único julgamento e a única condenação de 1964 até o
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
157
período de anistia em 1979. Além disso, pela primeira vez na história do
Exército fora feita uma publicação em que a instituição se autocriticava, tal
aconteceu no dia 6 de fevereiro de 1972, quando os principais jornais
publicaram um comunicado do Centro de Relações Públicas do Exército,
admitindo que oficiais, em busca de drogas, causaram a morte de soldados e
que esta atitude era repudiada pela instituição.
Com a posse do presidente Ernesto Geisel em 1974, gradualmente a
iniciativa da Bipartite foi freada. Ele desejava realizar uma distensão política,
que seria lenta, gradual e segura. Deste modo, as reuniões entre os dois
grupos tornavam-se menos necessárias à medida que o dialogo
paulatinamente era restabelecido. Geisel preferia lidar diretamente com a
hierarquia tradicional, ou seja, considerava o núncio papal o representante
apropriado da Igreja, depois os cardeais e após destes os bispos. Caso a
CNBB desejasse algo, teria que se pronunciar diretamente à sua pessoa. A
Bipartite realizou sua ultima reunião no dia 26 de agosto de 1974. Ao todo
ocorreram cerca de 24 encontros. Com a abertura política, a Bipartite não
seria mais necessária.
“A Bipartite foi um episódio central na historia do Brasil autoritário"
(SERBIN, 2001, p.413), pois “[...] permitiu que a Igreja e o Estado coexistissem
durante o pior momento de seu longo e complexo relacionamento" (SERBIN ,
2001, p.415). Durante o período que permaneceu em atividade, desempenhou
seu objetivo: conseguiu evitar que uma ruptura entre as duas maiores
instituições do país ocorresse. Através de seus encontros secretos conseguiu
realizar o diálogo entre a Igreja o Estado e discutir temas restringidos por um
governo que se esquecera da liberdade. O estudo da Bipartite ajuda não só a
entender um período conturbado, mas também contribui para reinterpretação do
processo de redemocratização brasileira.
Ricardo Augusto Aidar Abib - Bipartite: the preservation of the relationship between
church ande state in the Brazilian military dictatorship.
ABSTRACT: The Bipartite was a series of secret meetings held between the Catholic
Church and the Military Government of Brazil, between the years 1970 to 1974. The
purpose of these meetings was to ensure the political relationship between church and
state, in a context of imminent rupture between them, marked by ideological
divergence.The study of Bipartite helps not only to understand a dificult period marked by
political repression instituted, but also contributes to understanding the settlement of the
conflict between Church and Stante and for the reinterpretation of the democratization
process in Brazil.
KEYWORDS: Dictatorship; Bipartite
158
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
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159
ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL DURANTE O PERÍODO
DOS HÀN POSTERIORES
Rud Eric PAIXÃO
RESUMO: Com origem na Dinastia Qín, o modelo de administração utilizado durante os
Hàn, com bases nas idéias legistas, possuía um caráter burocrático muito forte, com as
diferentes funções e responsabilidades bem delimitadas, exigindo grande quantidade de
funcionários, tanto para a administração central, localizada no Palácio Imperial, quanto
para o governo provincial, espalhado pelo território chinês. Este artigo tem por intento
realizar uma análise descritiva das principais camadas administrativas existentes no
período Hàn Posterior, demonstrando suas responsabilidades e a complexa rede que
constituíam, com vista ao desenvolvimento do império.
PALAVRAS CHAVE: História antiga; China.
O sistema de governo estabelecido com a primeira dinastia imperial, em
221 AEC, era marcado pela divisão das responsabilidades e organização dos
diferentes membros da administração em hierarquias, visando evitar que muito
poder fosse concentrado em apenas uma pessoa.1 Nesta concepção de governo,
as responsabilidades políticas e as distinções sociais eram inseparáveis; assim, a
sociedade consistia em homens e mulheres “distinguidos pela natureza de suas
obrigações uns com os outros, pelo lugar ocupado na estrutura da autoridade civil
e pelo grau de tratamento privilegiado que podiam esperar em um estado
ordenado de administração” 2.
De forma ampla, podemos classificar a sociedade chinesa como dividida
em três camadas: Imperador, oficiais e o povo. Estas usualmente são
representadas em forma piramidal e, com exceção do topo, as restantes são
interdependentes, sustentando e sendo sustentada.
No ápice da estrutura encontra-se o Imperador, fonte única da
autoridade e liderança temporais. “Sua posição provém em parte de seus
próprios méritos e caráter e, em teoria, da confiança e responsabilidade
implantados nele por uma autoridade não-terrena, que é designada no
pensamento chinês como ‘Céu’” (LOEWE, 1968, p.29-30); sendo
considerado “Filho do Céu”, era o elo entre este e a terra. O direito para
TWITCHETT, Denis; LOEWE, Michael (Org.). The Cambridge history of China: Volume I:
the Ch'in and Han empires, 221 B.C. – A.D. 220. Cambridge: Cambridge University Press,
1995, p. 463.
2 LOEWE, Michael. Everyday life in imperial China. Londres: B. T. Batsford LTD, 1968, p. 29.
1
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
161
exercer tal função provinha do “Mandato do Céu”, o qual, assim como lhe
assegurava a autoridade sobre o povo e garantia sua lealdade, incluía
responsabilidades para com ele, devendo o governante prezar pelo seu bemestar. Caso deixasse de cumprir com suas obrigações e o governo se
tornasse corrupto, o equilíbrio natural era rompido, demonstrando o Céu seu
desagrado através de manifestações da natureza, como terremotos, secas e
enchentes; quando estas ocorressem com freqüência, significaria que o reino
não se corrigiu, e que o povo tinha o direito de se rebelar para derrubar a
dinastia atual, de onde surgiria outra, receptora do novo Mandato e
responsável por restabelecer o equilíbrio rompido.
Entendendo-se por ‘povo’ a parcela populacional que não fazia parte
da administração imperial, esta era a grande maioria na sociedade chinesa.
Sendo basicamente seus membros produtivos, a maior parte habitava e
trabalhava nos campos, abastecendo os celeiros do Estado através do
pagamento de impostos em espécie. Havia também aqueles que exerciam
outros ofícios como artesãos, sapateiros e ferreiros, habitando normalmente
nas cidades ou vilas. Inseridos nesta camada, estavam ainda os
comerciantes; embora nem todos fossem ricos, os que o eram tinham a
possibilidade de comprar postos no governo e, desta forma obter os
privilégios por sua nova posição. Os oficiais eram a camada que exercia o
governo de fato, derivando sua autoridade do Imperador. Eram organizados
em uma rede hierárquica com diversas categorias, cujo número aumentou ao
longo do desenvolvimento da administração imperial.
A burocracia regular e o serviço civil eram comandados pelas Três
Excelências, postos reservados a oficiais seniores e com os mais altos
salários3, que supervisionavam o governo imperial como um todo. Logo
abaixo destes na hierarquia, encontravam-se os Nove Ministros, os quais
dirigiam ministérios especializados; embora supervisionados por seus
superiores, não eram diretamente subordinados a seus gabinetes. Estes
eram organizados sob a direção de um único oficial, assistido por numerosos
subordinados, ficando os deveres específicos divididos entre diversas seções
e escritórios.
Existiam ainda outros cargos não tão elevados no governo central, para
cujo exercício não era necessária tão longa carreira; na maioria das vezes,
estes correspondiam à execução de trabalho escriturário, não precisando o
oficial lidar com a administração em si. Havia também cargos de categoria
sênior disponíveis para militares, como os de General da Esquerda ou da
3
Além dos títulos e respectivos postos na burocracia, o salário recebido pelo oficial
também configurava uma distinção social, embora nem sempre caracterizasse a
importância ou poder do posto.
162
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Direita e General da Vanguarda ou Retaguarda, cujas posições hierárquicas
correspondiam aos Nove Ministros. Estes, entretanto, não eram ocupados
com freqüência, pois manter tais órgãos militares com plena força,
aumentando o prestígio e poder dos generais, raramente era necessário ou
desejoso.4
ESTRUTURA ADMINISTRATIVA CENTRAL
A estrutura básica do governo compreende duas partes, a
administração central, situada na capital, e os órgãos provinciais, espalhados
pelo império. A relação entre estas duas partes através de redes de
comunicação era organizada de tal forma que mesmo que alguma província
específica sofresse abalos em razão de revoltas, desastres naturais ou
guerras, os impactos não eram sentidos no restante do território.5
Como dito anteriormente, o Imperador era formalmente o líder do
Estado, sendo o elo que ligava o Céu com a terra; em teoria, todo o poder do
império estava em suas mãos. O governo de fato, porém, estava nas mãos
das Três Excelências, as quais correspondiam aos postos6 de Grande
Comandante, Ministro Sobre as Massas e Ministro dos Trabalhos, sendo sua
categoria expressa em um salário de Dez Mil shí7.
O primeiro, apesar de possuir o mesmo salário-categoria que as outras
duas Excelências e fosse nominalmente igual a elas, era considerado o cargo
mais elevado em razão de ser reservado ao mais antigo entre os oficiais
seniores. Os vários departamentos sob seu comando lidavam com
nomeação, promoção e rebaixamento de funcionários, registro populacionais,
agricultura, manutenção das instalações de transportes e correspondência,
armazenagem nos celeiros e assuntos militares. Também, era responsável
pela supervisão de três dos ministros inferiores: o Ministro de Cerimônias, o
LOEWE, Michael. Everyday life in imperial China. Londres: B. T. Batsford LTD, 1968, p.
32-34.
5 Ibid, p. 32.
6 Os títulos aqui explicitados são traduções baseados na adaptação realizada por Rafe
de Crespigny no artigo entitulado ‘An outline of the civil administration of the Later Han’
a partir do sistema estabelecido por Homer H. Dubs e posteriomente seguido por Hans
Bielenstein em ‘The bureaucracy of Han times’, tentando-se manter a tradução para o
português próxima a estas. Também, deve ser levado em conta que os títulos sofreram
alterações ao longo das duas dinastias; os aqui presentes referem-se apenas ao
período final da Dinastia Hàn Posterior.
7 Trata-se de uma unidade de medida seca utilizada para grãos, equivalente a 100 litros.
Metade do valor pago aos oficiais, entretanto, era em moedas.
4
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
163
Ministro da Casa e o Ministro da Guarda. Embora o nome do cargo remeta à
esfera militar, este se tornou civil no ano 51.8
Proveniente do antigo posto de Primeiro Ministro9, o Ministro Sobre as
Massas era responsável pela elaboração do orçamento anual do reino e pela
conferência de altos funcionários de todo o império. Também, lhe cabiam os
departamentos relativos ao posto que lhe deu origem, os quais eram quase
idênticos àqueles do Grande Comandante. Os ministros que lhe cabia
supervisionar eram o Ministro Cocheiro, o Ministro da Justiça e o Ministro
Arauto.10
O Ministro dos Trabalhos, embora menos poderoso que seu antecessor, o
Secretário Imperial, possuía a tarefa de supervisionar obras públicas ao longo
do império. Portanto, era responsável pela construção de muralhas, canais,
valas de irrigação, diques, barragens e outros projetos estruturais, devendo
enviar relatórios ao imperador sobre as obras e conduta dos administradores
locais quanto a elas. Assim como as outras duas Excelências, devia
supervisionar três dos Nove Ministros, ficando sob sua incumbência o Ministro
do Clã Imperial (Diretor do Clã Imperial), Ministro das Finanças e Ministro
Administrador. Possuindo responsabilidades coincidentes com as outras duas
Excelências, dava forma a um gabinete de organização tripartida.11
Poderíamos ainda incluir aqui uma “quarta excelência”: o Grande Tutor.
Embora não possuísse uma pasta administrativa específica e se encontrasse
à parte da administração oficial, servia como conselheiro do Imperador em
todas suas tarefas e recebia um salário equivalente aos das Três
Excelências, podendo ser considerado superior às outras em virtude de sua
ligação direta com o Imperador.
Os Nove Ministros, possuidores de um salário-categoria de Completos
Dois Mil shí12, eram os segundos na hierarquia burocrática do império sendo,
como indicado anteriormente, supervisionados por seus superiores imediatos
e, conjuntamente a estes, participavam das conferências de corte em
presença do Imperador.13
BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge University
Press, 1980, p. 13.
9 No período Hàn Anterior, as Três Excelências eram: o Primeiro Ministro, ou Chanceler,
o Secretário Imperial e o Grande Comandante.
10 BIELENSTEIN, op. cit., p. 14.
11 Ibid, p. 15-16.
12 Alguns salários-categoria eram descritos em termos de ‘Completo’ e ‘Equivalente’,
correspondendo respectivamente a um valor ligeiramente superior e inferior. Não se
encontrou, entretanto, a medida desta diferença.
13 BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge
University Press, 1980, p. 17.
8
164
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
O Ministro de Cerimônias era o oficial chefe responsável pelos ritos
religiosos, preces e manutenção dos altares e templos ancestrais. Embora
seu principal dever fosse realizar a ligação do imperador com o Céu e o
mundo sobrenatural, também lhe cabia estabelecer os padrões educacionais
para a Universidade Imperial. Um de seus principais subordinados era o
Astrônomo da Corte, responsável pelas observações astronômicas e pela
elaboração anual do calendário.14
O Ministro da Casa era responsável pela segurança do imperador no
palácio, nos parques externos e em qualquer lugar ao qual ele decidisse ir de
carruagem. Porém, para garantir que sua completa segurança não ficasse
sob a supervisão de uma única pessoa, os subordinados do Ministro da
Guarda tinham permissão para patrulhar as entradas e muralhas do palácio,
enquanto os eunucos guardavam os aposentos privados e o harém.
Internúncios, comandados por um Supervisor dos Internúncios, eram seus
principais subordinados, devendo comparecer a cerimônias oficiais e agir
como diplomatas em feudos semi-autônomos e nas regiões de povos nãochineses nas fronteiras.15
O Ministro da Guarda era responsável pela segurança e patrulhamento
das muralhas, torres e portões do palácio imperial; para o controle e
monitoramento do tráfego de pessoas, era utilizado um complexo sistema de
passaportes, utilizando etiquetas de metal ou madeira. Durante uma
emergência, estas eram recolhidas e a ninguém era permitida a entrada no
palácio.16
O Ministro Cocheiro tinha por função a manutenção dos estábulos,
cavalos e carruagens imperiais para uso do Imperador e de seus atendentes
palacianos, além do suprimento de cavalos para o exército. Supervisionava os
oficiais responsáveis pela fabricação de arcos, bestas, espadas e armaduras.
Outros de seus subordinados eram incumbidos da administração de estábulos
fora da capital, especialmente os que cuidavam de cavalos de Fergana,
importados ou recebidos como tributo das regiões da Ásia Central.17
O Ministro da Justiça, possuindo apenas o Imperador como superior em
questões judiciais, era responsável pela interpretação e aplicação das leis,
sendo a autoridade civil máxima para julgar casos provinciais levados à capital.
Ele podia recomendar mudanças no código de leis e garantir anistias àqueles
acusados de crimes. Ainda, seu ministério era responsável pela manutenção
Ibid, p. 19.
Ibid, p. 24-31.
16 Ibid, p. 31.
17 Ibid, p. 34-35.
14
15
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
165
e administração da Prisão Imperial, onde ocorriam julgamentos e eram
realizadas execuções.18
O Ministro Arauto era o oficial chefe responsável por receber os
convidados de honra no palácio, como membros da nobreza e embaixadores
estrangeiros. Juntamente com o Ministro do Clã Imperial, devia supervisionar
sucessões de títulos e feudos, oferecer pêsames em nome do Imperador
durante funerais e memorizar nomes póstumos de reis e marqueses19. Seu
departamento, no começo de todo ano, recebia os relatórios enviados pelas
províncias antes de repassá-los às Excelências; seus subordinados serviam
como guias para nobres e delegados estrangeiros em cerimônias e sacrifícios
oficias.20
O Ministro do Clã Imperial, único posto entre os Nove Ministros
reservado apenas a membros da família do Imperador, tinha por função
supervisionar as concessões de títulos e feudos e as interações da corte
imperial com a nobreza e com o restante da família imperial. Seu ministério era
responsável pela manutenção de registros referentes a todos os nobres, sendo
estes atualizados anualmente. Seus subordinados eram encarregados de
realizar a ligação entre a nobreza nos feudos e o palácio, ouvindo suas
reclamações e lhes informando sobre novas ordens. Excluindo-se os feudos
de reis e marqueses, todos os outros se encontravam sob sua supervisão
direta.21
O Ministro das Finanças era o tesoureiro da burocracia e das forças
armadas, tendo em suas mãos tanto as rendas do reino quanto as do
imperador. Era responsável pela administração dos impostos recolhidos em
moeda ou em espécie e pelo suprimento público de grãos, podendo ainda
implementar políticas de controle de preços quanto a algumas mercadorias;
também, lhe cabia fixar os padrões para as unidades de medida.22
O Ministro Administrador servia exclusivamente ao Imperador,
provendo-o com diversões e entretenimento, vestimentas e alimentos
apropriados, remédios, cuidados físicos, objetos de valor e equipamento.
Embora não fosse castrado, muitos de seus funcionários o eram em razão de
seu ministério lidar com o harém imperial; ele, no entanto, não tinha
permissão para adentrá-lo. Seus secretários eram dirigidos pelo Mestre de
BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge
University Press, 1980, p. 38-39.
19 Tratava-se do mais alto titulo nobiliárquico conferido a pessoas não pertencentes à
família do Imperador.
20 BIELENSTEIN, op. cit., p. 39-40.
21 Ibid, p. 40-41.
22 Ibid, p. 43-44.
18
166
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
Escrita, responsável pelo Secretariado Imperial, tendo eles a função de
transmitir ao Imperador as mensagens provindas das Excelências, dos
Ministros, das autoridades provinciais, do povo comum e de não-chineses.
Seus vários subordinados incluíam, entre outros, o Médico da Corte, o qual
checava a saúde do imperador diariamente, e o Provedor da Corte,
responsável por sua alimentação.23
Para além desta estrutura oficial, alguns departamentos possuíam
grande importância na administração, como o já citado Secretariado Imperial.
Embora com salário-categoria de Mil shí, seus oficiais tinham uma posição
especial em razão das tarefas com que lidavam, as quais incluíam criar
editos imperiais, recebendo instruções diretamente dos mais altos níveis do
governo, e servir no corpo de investigação em casos de impeachment ou
acusações de lesa-majestade. Da mesma forma, encontrava-se o
departamento dos eunucos, formalmente sob o comando do Ministro
Administrador, mas gozando de grande independência durante os Hàn
Posteriores por servirem no harém imperial. A posição mais alta a que estes
chegavam era de Atendente Regular, com salário-categoria de Mil shí;
enquanto a maior parte dos outros oficiais eunucos servia nos Portões
Amarelos do harém, os oficiais seniores entre eles possuíam acesso total ao
Imperador até em seus momentos íntimos, o que lhes dava grande influência
e até mesmo algum poder24.
ESTRUTURA ADMINISTRATIVA PROVINCIAL
O império chinês, na metade do século II, encontrava-se
hierarquicamente dividido em províncias, em número de treze, capitanias,
somando algumas centenas, e condados, na casa dos milhares. Também,
havia alguns reinos, que eram feudos concedidos a reis e marqueses, e
estados dependentes, os quais se encontravam no nível das capitanias,
somando a elas; principados, cedidos a princesas da família real, entravam
na categoria dos condados.
A província da capital era dirigida pelo Diretor dos Militares, com
salário-categoria de Equivalente a Dois Mil shí, possuindo autoridade não
apenas para investigar a administração de suas capitanias subordinadas,
BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge
University Press, 1980, p. 47-50.
24 CRESPIGNY, Rafe de. An outline of the civil administration of the Later Han empire.
2007. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/asianstudies/decrespigny/HanCivil
Admin_for_Internet.doc>. 2007. Acesso em: 14 out. 2008, p. 2.
23
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
167
mas também para impugnar oficiais do governo central.25 As outras
províncias ficavam a cargo de Inspetores ou de Governadores; este último
cargo, no entanto, foi instituído apenas em 188, como forma de permitir às
lideranças provinciais o combate de forma mais direta aos bandidos
remanescentes da Revolta dos Turbantes Amarelos, sem depender da
burocracia estatal para poderem agir.
Os primeiros, com salário-categoria de Seiscentos shí, tinham
autoridade para investigar o governo das capitanias e reinos no seu território
devendo reportar qualquer transgressão ao trono, mas sem permissão para
agir por conta própria. A esta regra, entretanto, havia duas exceções: na
província de Jiāo, localizada no extremo sul do império, onde possuía
poderes executivos especiais, em razão das dificuldades de comunicação
com o governo central, e em caso de rebeliões suficientemente
problemáticas, onde podia requerer forças militares das capitanias e tomava
controle sobre as operações para suprimir as revoltas. Os Governadores,
embora com funções semelhante, detinham poder executivo de fato.26
No nível inferior à província, e representando o núcleo da
administração local no império, estava a capitania, comandada por um
Grande Administrador com salário-categoria de Dois Mil shí, líder militar e
administrativo do território; não era permitido ao oficial, contudo, a
administração de sua capitania natal. Como subordinados, possuía um
Assistente e, quando nas fronteiras, um Comandante, o qual se
responsabilizava pelas tarefas militares; em alguns casos, mais de um podia
ser apontado para o mesmo território. Várias das capitanias, especialmente
as menores, localizadas na parte oriental do império, eram identificadas
como reinos e administradas por um Chanceler com salário-categoria de Dois
mil shí. A única diferença real entre um reino e uma capitania é que a
primeira trata-se de um feudo cedido a um membro da família do imperador
para ali viver e usufruir de parte de sua captação em impostos; o Rei,
entretanto, não possuía qualquer poder político, ficando o comando do
território a cargo do Chanceler.27
Os condados eram a menor divisão política cujo administrador era
nomeado pelo governo central; dependendo de seu tamanho, eram
governados por Prefeitos ou Chefes, com salário-categoria variando entre
Mil e Seiscentos shí para o primeiro e entre Quinhentos e Trezentos para o
CRESPIGNY, Rafe de. An outline of the civil administration of the Later Han empire.
2007. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/asianstudies/decrespigny/HánCivil
Admin_for_Internet.doc>. 2007. Acesso em: 14 out. 2008, p. 2.
26 Ibid.
27 Ibid, p. 3.
25
168
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
segundo. Cabia a eles manter a lei e ordem, guardar grãos para quando
houvesse escassez, registrar a população para taxação, mobilizar
trabalhadores para obras públicas e supervisioná-las, renovar escolas e
promover rituais. Ainda, possuíam o dever de agir como juízes em caso de
processos serem levados a ele; como sua autoridade judicial concorria com a
do Administrador, acordava-se que o primeiro a prender o suspeito tinha o
direito de julgá-lo.28
PAIXÃO, Rud Eric. Organization of the Imperial Administration During the Later Hàn
Period.
ABSTRACT: With origins in the Qín Dynasty, the administration model used during the
Hàn, with bases on the legalists ideas, had a very strong bureaucratic character, with
different roles and responsibilities clearly defined, requiring a large number of employees,
both for central government, located at the Imperial Palace, and for the provincial
government, spread throughout the Chinese territory. This article has the intention to
perform a descriptive analysis of the main administrative layers that existed during Later
Han, demonstrating their responsibilities and the complex web that constituted, aiming for
the development of the empire.
KEYWORDS: Ancient History, China
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BIELENSTEIN, Hans. The bureaucracy of Han times. Cambridge: Cambridge
University Press, 1980.
CRESPIGNY, Rafe de. An outline of the civil administration of the Later Han
empire. 2007. Disponível em:
<http://www.anu.edu.au/asianstudies/decrespigny/HanCivilAdmin_for_Internet
.doc>. 2007. Acesso em: 14 out. 2008.
LOEWE, Michael. Everyday life in imperial China. Londres: B. T. Batsford
LTD, 1968.
TWITCHETT, Denis; LOEWE, Michael (Org.). The Cambridge history of
China: Volume I: the Ch'in and Han empires, 221 B.C. – A.D. 220.
Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
28
CRESPIGNY, Rafe de. An outline of the civil administration of the Later Han empire.
2007. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/asianstudies/decrespigny/HanCivil
Admin_for_Internet.doc>. 2007. Acesso em: 14 out. 2008, p. 3.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
169
A VISÃO DE TOMÉ APÓSTOLO PELOS GNÓSTICOS E SUA INFLUÊNCIA
SOBRE OS MANIQUEUS
Samuel Cardoso SANTANA*
RESUMO: O presente artigo pretende apresentar a continuidade, as mudanças e
permanências dos escritos gnósticos atribuídos ao apóstolo Tomé e a forma como esses
escritos influenciaram a religião maniquéia. Busca-se assim, criar novas perspectivas de
análise de alguns dos vários textos de grupos gnósticos e refletir sobre a importância que
tiveram na construção das doutrinas maniquéias.
PALAVRAS-CHAVE: Tomé, gnosticismo, maniqueísmo
Os gnósticos tiveram várias temáticas cristãs e muitos de seus escritos,
principalmente os das primeiras seitas, reivindicavam a autoridade de
apóstolos e de membros da Igreja primitiva, assim como os maniqueus
fariam depois. De tais escritos poucos são datados do século I, sendo a
maioria dos séculos II e III. As principais figuras do cristianismo primitivo a
serem utilizadas são Pedro, Paulo, João, Tiago e Tomé, sendo que somente
este último não possui textos considerados ortodoxos nem canônicos.
Remetendo-se a ele, existe um total de seis documentos que possuem
sinais claros de diferentes seitas gnósticas e do maniqueísmo, mesmo que
raras vezes, apareçam trechos que remetem a temáticas ortodoxas. Porém,
foram condenadas pelos concílios, três delas pelo Decreto Gelasiano1. No
entanto, um destes documentos, o Evangelho de Tomé, possui cerca de um
terço do seu conteúdo de citações canônicas, sendo que dos 114 ditos, são
“37 unidades de tradição independentemente presentes em Q2 e em Tomé”.
(CROSSAN, 2006, p.188).
Nos canônicos, Tomé aparece poucas vezes, é um apóstolo pouco
presente. Porém entre os gnósticos aparece não apenas com freqüência,
mas em várias ocasiões como protagonista. Os escritos atribuídos a ele
* Graduando em História na UNESP – Campus de Franca sob a orientação do Prof. Dr.
José Carlos Garcia de Freitas.
1 Decreto papal, oriundo do Concílio regional de Roma de 371, originalmente feito pelo
Papa Damaso (366-384), mas que possuímos a versão redigida pelo papa Gelásio
(492-496). Primeiro documento a delimitar os livros da Bíblia, condenou vários apócrifos.
2 A fonte Q (Quelle) é uma forma de se estudar os evangelhos de Lucas e Mateus,
acoplando suas citações em comum para se remeter a uma hipotética fonte em comum,
paralelamente ao evangelho de Marcos, ou o próprio.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
171
podem ser entendidos de forma cronológica e segundo uma diferenciação de
crenças contidas em cada um, segundo a seita que o escreve.
O Evangelho de Tomé, como já vimos, é o primeiro nesta lista, e o que
possui mais características em comum com os canônicos. Têm-se duas
versões, uma em grego, o Oxyrhynchus Papyri 1, 654 e 655, incompleto, e
uma em copta, da Biblioteca de Nag Hammadi. 3 “Pelo menos um destes
fragmentos é em grego originário de um manuscrito que foi escrito antes de
200” (KOESTER, 2006, p.114). Mas devido à semelhança de tantos trechos
com os evangelhos canônicos, inclusive a fonte Quelle, é provável que ele
tenha sido escrito entre 70 e 140, partindo destes trechos em comum com Q,
e ganhando acréscimos de escritores posteriores até chegar à versão que
possuímos.
Os sinais que possui de gnose, são poucos em comparação com os
demais escritos atribuídos a Tomé. Nesses trechos vemos exemplos:
2-Jesus disse, “Deixai aquele que busca continuar buscando até que
encontre. Quando encontrar, se tornará aflito. Quando se tornar aflito,
será surpreendido e reinará acima de tudo”. (LAMBDIN, 2006, p.116).
67-Jesus disse, “Se aquele que souber de tudo ainda se sentir como
uma pessoa imperfeita, é porque é completamente imperfeito”.
(LAMBDIN, 2006, p.122).
80-Jesus disse, “Aquele que tenha reconhecido o mundo encontrou um
corpo, contudo aquele que tenha encontrado o corpo é superior ao
mundo”. (LAMBDIN, 2006, p.123).
Estes trechos demonstram as características gnósticas principais: a
oposição entre o corpo, mundo material, e a alma, mundo espiritual, busca
pelo conhecimento (gnosis), de forma a se libertar desta condição de simples
homem imperfeito. Estes possíveis acréscimos podem ter sido acrescentados
pelos judeu-cristãos da síria, que já eram apontados por Paulo como
perigosos: “Ó Timóteo, guarda o bem que recebeste; foge do mundano e vão
palavreado, e das questões sobre o que falsamente chamam conhecimento”.
(2 Timóteo, 6, 20-21).
Contemporaneamente a este documento, mas um pouco mais
recente, meados do século II, foi escrito um outro, os Atos de Tomé. Em
treze atos, narra como Tomé sai da Judéia após o dia de Pentecostes e vai
3
Série de 52 escritos, sendo 46 textos diferentes entre si, encontrados em Nag Hammadi
no Egito. A maior parte dos documentos é gnóstica.
172
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
até a Índia, onde converte muitos. Possui ainda várias características de
ortodoxismo como: batismo, unção com óleo, eucaristia em pão e vinho,
exorcismo. No entanto compartilha com idéias de gnose como: busca
extrema por sabedoria, terror ao sexo mesmo entre casados, estranhamento
ao corpo, desejo de morrer na luz. Um trecho em especial, o Hino da Pérola,
influenciou muito a corrente gnóstica dos mandeus, no Império Sassânida, e
o maniqueísmo, que trataremos adiante.
Outro escrito atribuído a Tomé é um evangelho sobre a infância de
Jesus, um período da vida de Jesus pouco comentado nos canônicos,
apenas em Mateus e Lucas e com poucos detalhes, mas muito explorado
pelos gnósticos, em pelo menos cinco evangelhos apenas sobre este período
da vida de Jesus. Um deles é o de Tomé, do qual hoje possuímos três
versões, bastante divergentes entre si. “... o Evangelho de Tomé é de
indatável antigüidade. É mencionado por nome por Orígenes, citado por
Irineu e o autor do Philosophumena diz que ele foi usado pelos
Nachashenes...”. (SCHAFF, 2005, p.624). O fato de ser citado por Orígenes
e Irineu4 o coloca no início do século II.
O texto narra como Jesus possuía vários poderes desde quando era
criança, que possuía grande conhecimento ao ponto de ensinar os próprios
professores. São escassas as citações em comum com os canônicos, sendo
que apenas uma das versões possui trechos paralelos com o Evangelho de
Lucas. A busca pelo entendimento do ser das letras do alfabeto e a
simbologia do a-o, princípio e fim do conhecimento, aparecem nas três
versões. Jesus possui um caráter vingativo e tenta abolir o corpo das
pessoas e salvá-las dele. Influenciou os maniqueus profundamente, a ponto
de que para “Cirilo de Jerusalém a autoria não ao apóstolo, mas ao Tomé
que era um dos três discípulos de Manes”. (SCHAFF, 2005, p.625). O que é
impossível já que Manes começa a pregar vinte anos após a citação de
Irineu, mas compreensível a partir do ponto que este texto aparece nas
fontes maniquéias.
A partir de meados do século II, a ortodoxia5 parece estar mais
definida, de forma que esta designação começa a ter menos vínculos com o
judeu-cristianismo e a se definir como unicamente cristã, abolindo todos os
vínculos com aquelas seitas. Dessa forma os gnósticos também se afastam
da ortodoxia, fundando escolas gnósticas e uma rede de doutrinas
fundamentadas em princípios próprios.
4
5
Apologistas cristãos que viveram na virada do século II para o III.
O conceito de ortodoxia é falho, pois dentro de próprio cristianismo havia dissidências,
mas é o termo usado pela maior parte dos estudiosos.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
173
A Consumação de Tomé é um texto curto, provavelmente um trecho
dos Atos de Tomé, mas é incerto. Após ficar preso, Tomé é executado por
um grupo de soldados depois de realizar uma longa oração, elogiando a
sabedoria. Demonstra uma despreocupação com a morte diferenciada do
martírio, pois a aceita como libertação, e não como prova de fé. Após alguns
anos, a filha de um dos soldados fica doente, ele vai até o lugar onde
enterrara Tomé para pegar uma relíquia para curar a filha. O apóstolo
aparece para ele e diz que apenas Jesus poderia curá-la. Mesmo que
apareça a citação da relíquia, é gnóstico, pois no cristianismo ortodoxo os
mortos não aparecem, mesmo que ressuscitados6. Não possui paralelos com
os textos do Novo Testamento, sendo totalmente gnóstico.
Antes de tratarmos dos últimos dois livros referentes exclusivamente a
Tomé, falaremos um pouco de um livro que o coloca em importante posição,
juntamente com Mateus e Felipe de forma diferente dos canônicos, que
destacam Pedro, Tiago e João. A Sophia de Jesus, é uma obra de princípios
gnósticos, provavelmente da última década do século I, no Egito, que foi
muito influente. Este documento foi encontrado em Nag Hammadi, onde
também estavam o Evangelho de Tomé e Tomé Contendor, além de possuir
outras obras da seita dos valentinos, dos zostrianos e outros grupos
gnósticos. Isto demonstra a fundamentação gnóstica da obra, cujo conteúdo
é profundamente hermético. Trata da sabedoria como um eon7 proveniente
do Pleroma8, o que faz com que aquele que a alcança através do
conhecimento possa chegar a Deus, ao eterno, vencendo o corpo e a morte.
Seguindo estas doutrinas, os próximos escritos sobre Tomé tratam de
um homem que recebe conhecimentos diretamente de Jesus. O Apocalipse
de Tomé é um deles. Possuímos três versões que se complementam, datado
do século III. Traz uma série de diferenças em relação ao texto canônico.
Trata de uma revelação direta com traços de diálogo em um dos
documentos, em que Jesus relata a Tomé como será o fim. Serão sete dias,
nos quais haverá uma série de desastres que matarão muitos. Mas há
pouquíssima simbologia, se compararmos com o canônico. Há ainda a
presença dos anjos, que serão os responsáveis por levar os mortos para os
Vide Carta para o Cuidado com os Mortos de Santo Agostinho de Hipona.
Os eons são emanações, entes saídos do próprio Deus. Dentro do gnosticismo estes
eons são divididos em vários grupos, sendo a Sabedoria um deles.
8 O Pleroma é o Grupo de eons mais próximos de Deus, que participam das pessoas
dele, entre os quais está a Sabedoria, a Fé e a Grande Espírito (o Espírito Santo para
eles é um ente feminino, o que caracterizará, no maniqueísmo uma criação de um
homem andrógeno).
6
7
174
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
céus ou deixa-los sofrendo na Terra, sendo um ecletismo de idéias cristãs,
anjos e Juízo, e gnósticas, a Terra permanecer na Terra como punição.
O último dos livros atribuídos a Tomé também está em Nag Hammadi.
É o Tomé Contendor, um dos textos mais gnósticos do Ciclo de Tomé9. É o
mais recente de todos os textos, sendo da segunda metade do século III.
Escrito por Mathaias (Mateus em aramaico). Trata-se de um diálogo entre o
Jesus ressuscitado e Tomé, ainda antes da ascensão. O apóstolo, que é
irmão gêmeo de Jesus, faz perguntas profundamente herméticas para o
Mestre, este as responde. Diferente dos diálogos filosóficos platônicos, não
se trata de uma cosmologia separada entre Mundo das Idéias e de Mundo
Sensível, traz um antagonismo interno do homem, corpo e alma em um
conflito antropológico, no qual a alma deve alcançar o conhecimento
profundo para chegar à luz que ilumina o corpo, uma deformação material.
Demonstra uma aversão ao sexo típica das seitas gnósticas do século
III, demonstra a morte e conhecimento como formas de se libertar da carne,
uma aversão à ingestão de carne, que seria viver pela matéria. Todos os que
não vivem segundo estas regras são ignorantes (não gnósticos), portanto
desconhecem a salvação e serão jogados no abismo do Hades (inferno). A
vida só vale enquanto espírito, portanto tudo o que é corporal é mal, sendo
este o porquê de se apoiar a morte e evitar filhos: seria criar mais espíritos
prisioneiros da carne.
Estes contrastes antropológicos são as bases doutrinais do
mandeísmo, religião de origem parta que adquiriu, através de complexo
ecletismo, doutrinas mitráicas, zoroastrianas e gnósticas. Há ainda dúvidas a
respeito das origens do mandeísmo, se ele antecede, é contemporâneo ou
posterior ao maniqueísmo, mas sabe-se que ambos estão em um patamar de
similaridades muito grandes. Alguns textos maniqueus como a Kephalaia, a
autobiografia10 de Manes, traz uma série de citações das raízes religiosas de
Manes e seu pai, muito similares às mandeístas.
Há um problema central em saber qual a ordem dos fatores, pois, o tipo
de gnose batista que Manes relata é tão extremista como a doutrina
apresentada no Tomé Contendor, mas o mandeísmo não era tão radical, já
que aceitava e até proclamava o casamento. Segundo Puech, “... creio que
os primeiros fermentos de seu pensamento religioso os deve Manes a uma
Utiliza-se o termo Ciclo para designar-se uma série de documentos a respeito de um
mesmo tema, no caso aqui apresentado, os textos sobre Tomé.
10 Esta palavra, no seu sentido moderno, não é a ideal para expressar o gênero literário
do Kephalaia, pois não discorre de forma histórica a vida de Manes, mas segundo uma
narrativa simbólica, mítica e muitas vezes, fabulosa. No entanto é o termo usado por
vários estudiosos do assunto, e pelo próprio Puech.
9
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
175
gnose batista análoga ao mandeísmo, ou a uma forma primitiva do
mandeísmo propriamente dito”. (PUECH, 1957, p.30).
Neste ponto começamos a compreender melhor o percurso da figura
de Tomé como o portador da gnose, do conhecimento, e como a visão que
projetam dele acompanha a dinâmica religiosa do gnosticismo até chegar ao
maniqueísmo. Nos primeiros relatos de sua pessoa, ou seja, nos evangelhos
canônicos, aparece como um apóstolo incrédulo, empirista, sensitivo. Após a
ressurreição precisa tocar as feridas de Jesus para crer nele. (JOÃO 20, 2429). No Evangelho de Tomé adquire saberes únicos, diretamente de Jesus,
que lhe impossibilitarão de morrer. Nos Atos de Tomé, ele adquire poderes,
ganha massas convertendo-as, apresenta um profundo conhecimento de si
mesmo e do Ser em si no Hino da Pérola. No Evangelho da Infância de
Jesus, é o portador da história de vida e de crescimento de Jesus. Em A
Consumação de Tomé, demonstra seu desprezo pelo corpo e a doutrina da
metempsicose. 11 A Sophia de Jesus, coloca Tomé entre os maiores
apóstolos, aprendendo o que há de mais profundo na gnose. No Apocalipse
de Tomé, ele recebe de Jesus a sabedoria para se salvar da destruição do
mundo material e, por fim, no Tomé Contendor, o apóstolo é o irmão gêmeo
de Jesus que em diálogo com ele, aprende o que há de mais profundo na
alma do homem, a forma de se libertar do corpo12.
As representações foram criadas à medida em que as doutrinas
adquiriam mais consolidação de suas idéias fundamentais. A pergunta que
prevalece é: como elas chegaram até a Pártia de Manes se estas seitas
estavam localizadas, principalmente, na Síria, no Egito, Penínsulas da
Anatólia e Itálica? Aqui que se compreende o papel dos gnósticos batistas
pré-mandeus e do documento mais citado pelos maniqueus: o Hino da
Pérola. “No glossário do simbolismo gnóstico, “pérola” é uma das metáforas
para “ser” 13 no sentido supranatural”. (JONAS, 2001, p.125). Esta é a razão,
fundamental para ele ser tão usado pelos maniqueus, pois entre suas
doutrinas de fundamento zoroastriano14 não possuía esta interioridade.
O maniqueísmo adotou o hino como a alegoria máxima do Ser. Tomé é
o apóstolo de Jesus, responsável por transmitir tal conhecimento aos
Doutrina órfica do retorno dos espíritos, também existente entre os gnósticos.
Devemos lembrar que estes dois últimos escritos não foram conhecidos por Manes,
pois são posteriores a ele, mas influenciaram o maniqueísmo após a morte de Manes.
Em A Moral dos Maniqueus, Santo Agostinho descreve três doutrinas dos Selos, que
se assemelham muito a estas doutrinas.
13 Trata-se da alma, do ser, da essência metafísica.
14 O zoroastrismo admitia a dualidade de substâncias, bem e mal, mas não possuía
doutrinas de antagonismo antropológico entre espírito e matéria.
11
12
176
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
discípulos. A religião ainda adotou a prática de produzir hinos no mesmo
molde, ou seja, a busca da exaltação da luz interior. No “Hino do Ser Vivente”
temos:
Esta alma redimida veio,
E veio para a Igreja da Iluminação.
Peça para sempre, você que é eleito,
Até que maravilhosamente me purifique
E me deixe vivo.
Abençoado você é, oh Ser, com sua forma divina! 15
Assim temos as semelhanças, em forma alegórica, como esta
passagem do Hino da Pérola:
Eles tiraram de mim a veste da glória, do qual o amor deles feito
para mim, e o meu manto roxo que estava servindo
perfeitamente na minha figura, e fez um acordo comigo, e
escreveu no meu coração que eu não esqueceria isso: Quando
você for para o Egito e trouxer uma Pérola que está deitada no
meio do oceano, a qual está envolvida por uma serpente, você
deverá colocar de novo a veste da glória e o manto sobre ela e
com seu irmão estará entre o nosso Reino. (JONAS, 2001,
p.113).
Neste trecho Tomé narra como foi orientado pelo seu senhor e irmão16,
para descobrir seu interior, despojando-se do que é material, buscando o
íntimo de seu ser, que está envolto no mal da matéria, 17 a forma de
encontrar a entrada para o Reino18. Explica Hans Jonas:
A “pérola” é essencialmente a “pérola” perdida, e tem que ser
encontrada. O fato de a pérola estar presa dentro de uma
concha e escondida no fundo, deve ter estado entre as
associações que originalmente sugeriram a imagem. (JONAS,
2001, p.125).
Disponível em: http://www.gnosis.org/library/hymntlivs.htm
Jesus é tido pelos gnósticos como irmão de Jesus. Dídimo, como Tomé é conhecido,
quer dizer gêmeo em grego.
17 A serpente que tenta Eva no paraíso é tida pelos gnósticos como a matéria que
enganou o homem e a mulher, fazendo-os perder o conhecimento.
18 Reino de Deus, a salvação.
15
16
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
177
O maniqueísmo apresenta sua dicotomia do bem e do mal presentes
em cada ser dessa forma, sendo Tomé, o principal guardião destas
doutrinas. 19 Este antagonismo tem sua origem na criação do mundo, na
versão maniquéia. Na criação Deus criou tudo perfeito, mas o Mal,
representado pela serpente, toma posse do espírito da humanidade. Deus
criara o homem andrógeno, retirando a mulher de dentro dele, mas com a
entrada do Mal20 no mundo, os homens se tornaram impuros, transmitindo a
prisão da alma através do corpo. O filho de Adão, Seth, 21 foi o primeiro
Iluminado22 a conseguir se libertar pela gnose, seguido de Enoch, Budha,
Zoroastro e Jesus, sendo que este último previra a volta do Paráclito 23 que
era o próprio Manes. Este era, portanto, o portador máximo das verdades da
luz, o único que seria capaz de unir todas as religiões com seus iluminados
em uma única, de forma a criar uma religião universal que abarcasse todos
os homens e nações sobre a Terra.
O ecletismo religioso fundamentou uma doutrina que permitiu ao seu
fundador expandir sua doutrina da Índia até o Império Romano. No Kephalaia
lemos:
As Escrituras, as Sabedorias, os Apocalipses, as parábolas e os
salmos das Igrejas anteriores têm vindo de todas as partes a
reunirem-se em minha Igreja à Sabedoria que eu tenho revelado.
Como um rio se une a outro para formar uma corrente poderosa,
assim têm confluído os velhos livros em minhas Escrituras; e tem
construído uma grande Sabedoria como nunca houve nas
gerações precedentes. (PUECH, 1957, p.50).
Desta forma tornou-se compatível para o maniqueísmo adotar
diferentes crenças sem se preocupar com uma ortodoxia. O fato de os vários
textos que retomam Tomé terem doutrinas diversas, pode ser um dos
motivos pelo atrativo que Manes e seus discípulos tiveram deles. O fato de
Tomé ter pregado na Índia, local onde Manes também pregou, facilitou a
assimilação das práticas cristãs associadas com as práticas locais em um
19Deve-se
lembrar que Tomé não foi o único a transmitir essas doutrinas, mas o mais
influente. João também aparece muito. Os demais apóstolos e discípulos de Jesus
aparecem poucas vezes.
20 Para Manes o Mal era substancial, tinha existência própria, não necessitava de prática
para existir.
21 No Gênesis canônico Seth é o terceiro filho de Adão e Eva, mas estes não são
andrógenos.
22 Designação que Manes utiliza, vinda do budismo, Budha significa iluminado.
23 Várias vezes diz Manes em seus escritos que é o Paráclito, Espírito Santo que Jesus
anunciou a volta.
178
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
hibridismo que impulsionou a conversão de muitos entre a Pártia e a Índia.
Após a morte de Manes, sua religião chega até a China, onde ainda hoje
existe em grupos minoritários, mas com diferenças fundamentais com a
doutrina desta época. Na Índia ainda existem tradições que relembram os
Atos de Tomé. O apóstolo incrédulo torna-se assim o mais crente e eclético
de todos.
SANTANA, Samuel Cardoso. The vision of Thomas apostle by gnostics and its influence
against manichaeans. Revista Ensaios de História, Franca
ABSTRACT: This article pretends to present the continuity, the changes and
permanences from the gnostics scripts attributed to Thomas and the form how this scripts
have influenced the Manichaean religion. We pretend this way create new perspectives of
analyses about some various texts of gnostics groups and reflect about importance that
they had on the construction form the Manichaean doctrines.
KEY WORDS: Thomas, Gnosticism, Manichaeism
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180
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
O INDIVIDUAL E COLETIVO NAS INTERPRETAÇÕES DO PASSADO:
UMA PERSPECTIVA INTEGRADA ATRAVÉS DE TALCOTT PARSONS
Francisco de Assis SABADINI*
Tatiana Rodrigues MILANELLO**
RESUMO: O presente trabalho visa expor e ilustrar a importância do diálogo da História
com as demais ciências sociais - principalmente com a sociologia – apresentando os
estudos do sociólogo americano Talcott Parsons acerca do indivíduo e suas formas de
ação dentro de um sistema social, bem como o papel da cultura neste processo. Sua
extensa obra, atualmente pouco trabalhada no Brasil, pode colaborar significativamente
para variados estudos na área das ciências sociais, inclusive a História.
PALAVRAS CHAVE: Ciências Sociais, Talcott Parsons, teoria da ação.
Ao aceitar algumas definições bastante sintéticas e básicas acerca do que
constitui a História enquanto ciência e ao que esta se refere e aborda através das
análises dos que dela se ocupam, tem-se algumas semelhanças entre os
significados que lhe são atribuídos. “[...] deva ela [a história] voltar-se de
preferência para o indivíduo ou para a sociedade, para a descrição das crises
momentâneas ou a busca dos elementos mais duradouros.” (BLOCH, 2001, p.51)
História se refere tanto ao conjunto da produção humana, ações
e/ou práticas humanas concretas, quanto à obra histórica, ou seja,
a História – Conhecimento. [...] Neste sentido, o historiador tenta
compreender as ações práticas dos homens, os móveis que os
animam, os fins que os norteiam, o seu universo simbólico e as
significações que para esses homens tinham seus comportamentos
e ações. O historiador opera diante de ações realizadas, cuja
significação procura desvendar (JOBSON, 1998, p.175)
A partir destas considerações, pode-se depreender que a História
busca, entre outros objetivos, não só descrever, mas também refletir e
compreender variados questionamentos sobre o homem e suas ações tanto
de forma individual quanto coletiva. Assim sendo, tem-se que a História,
como qualquer outra ciência inserida na área das humanidades, também
busca o auxílio de diferentes campos do conhecimento a fim de tornar cada
Graduando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
sob orientação da Profª. Msª. Maria Celeste Facchin. Bolsista PET/MEC/SESu.
** Graduanda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
sob orientação do Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi. Bolsista PET/MEC/SESu.
*
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
181
vez mais completa sua análise. A interação, a troca de informações e as
novas reflexões originadas por este intercâmbio, tornam possíveis maiores
questionamentos que contribuem de modo significativo, complementando o
estudo da História.
Uma das primeiras e principais disciplinas a se relacionar com a
História, a Filosofia, por longo tempo exerceu grande influência sobre a
seleção dos métodos utilizados, as abordagens designadas e,
principalmente, a escolha dos objetos que seriam estudados. No entanto,
como retrata François Dosse, as profundas mudanças que ocorrem na
contemporaneidade – a título de exemplificação, as grandes guerras
mundiais, a ascensão e queda de novos regimes totalitários, a instalação dos
“valores de uma sociedade técnica e moderna” (DOSSE, 1992, p. 61) acabam por tornar necessária a contribuição de outras ciências humanas, as
quais permitiriam uma melhor compreensão acerca do homem e de suas
evidentes transformações. A História e as outras ciências humanas ganham
novo campo de estudo e espera-se repostas delas acerca das drásticas
mudanças que ocorriam no mundo.
Fala-se em “novos problemas que obrigam a repensar a própria
História; novas aproximações que modificam, enriquecem,
revolucionam os setores tradicionais da história; novos objetos,
enfim, aparecem no campo epistemológico da história”. (LE
GOFF, 1974, p. 211, citado por JOBSON, 1998, p.177).
É nesta perspectiva em que a Escola dos Annales se mostra
fundamental na transformação do estudo histórico1. Ao defender o intenso
diálogo entre as ciências, a História vai se aproximar de diversas disciplinas
inseridas nas Ciências Sociais, tais como a Geografia, Antropologia,
Psicanálise, Etnologia, Ciências Econômicas e Sociologia, que podem
fornecer à história o auxílio que esta necessita para compreender as
1
A Escola dos Annales acaba por romper com determinadas formas de se escrever a
história que eram muito comuns. Como demonstra José Carlos Reis, “[...] esse
rompimento com a tradição pode ser descrito assim: abandonou o pressuposto da
história produzida pelo sujeito consciente através do Estado - Nação, recusando a
história política, [...] abandonou o pressuposto do estudo do singular, do específico, do
irrepetível, recuperando o ‘evento’; abandonou o pressuposto do fim que justifica todo o
passado, o presente e o futuro, recusando a forma narrativa do discurso histórico; [...]
abandonou o pressuposto da história partidária, parcial, a serviço de poderes religiosos
e políticos, recusando a ideologização do discurso histórico; abandonou o pressuposto
do tempo cronológico, linear, irreversível, recusando o evolucionismo progressista;
abandonou o pressuposto da história conhecimento do passado, recusando a ‘história
museu’.” (REIS, 2004, p.66)
182
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
modificações sofridas por seu principal objeto de estudo, o homem. 2 Seus
temas e enfoques diferenciados acabam por complementar variados estudos,
tornando-os cada vez mais interdisciplinarizados.
Cada uma destas áreas do conhecimento pode contribuir de forma
significativa às outras, sugerindo novos caminhos, abordagens e métodos
diferenciados: “A história uniu-se às ciências sociais: ela constrói seu objeto,
põe problemas e levanta hipóteses, usa conceitos e técnicas das ciências
sociais [...].” (FEBVRE, 1965, p.14 citado por REIS, 2004, p.81). “Assim,
apesar das omissões, das oposições, das tranqüilas ignorâncias, esboça-se
a construção de um mercado “comum” [entre as diversas ciências].”
(BRAUDEL, 1965, p. 262).
Mesmo questionados por muitos historiadores, os novos métodos
sugeridos pela Escola dos Annales se difundem na pesquisa histórica. Ao se
restringir um pouco mais essa influência abordando somente as interações
entre História e Sociologia, é perceptível que serão absorvidos modelos
teóricos das ciências sociais que constroem uma explicação a respeito da
dinâmica social e das respectivas mudanças que podem ocorrer nos
sistemas sociais: são teorias que buscam generalizações e criam modelos
para a compreensão do convívio organizado humano. A incorporação deste
discurso pela História acontece de forma delicada, uma vez que pressupõe o
apagamento do indivíduo e considera a cultura como manifestação estrutural,
gerando um embate sobre a validade da História como disciplina autônoma.
No entanto, pode-se perceber a existência de determinadas teorias
que não abrandam a importância individual, mas sim a analisam de forma
igualmente determinante como a ação coletiva. Um exemplo deste modo de
estudo é realizado pelo sociólogo norte americano Talcott Parsosns.
Inserido numa tradição sistêmica da sociologia, Parsons difere de
muitos outros sociólogos de sua época: ao iniciar alguns de seus principais
estudos no período entre guerras e estendendo-os até o fim da década de
1970, Parsons se preocupa com a teorização da sociologia americana que,
naquele período, era dominada pelo empirismo. Portanto, vai contribuir de
forma singular à sociologia americana ao fornecer o aparato teórico que
julgava ser necessário a qualquer ciência.
Parsons acredita que a ciência não se satisfaz somente com a
pesquisa empírica; ela precisa ser enquadrada por um
pensamento teórico que fornece as intuições, as hipóteses, as
relações lógicas, as interpretações explicativas e, finalmente, os
fundamentos da previsão crítica. (ROCHER, 1976, p. 25)
2
Ver DOSSE, A História em migalhas: dos annales à nova história (1992)
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
183
O maior expoente da sociologia parsoniana é a Teoria Geral da Ação
que, por ser uma convergência e unificação de conceitos e teorias de outros
autores (podem ser citados Weber, Durkheim, Freud), torna-se uma
importante ferramenta capaz de evitar a armadilha da leitura unidirecional da
História através de modelos ou de grandes homens e/ou fatos. Através desta
teoria, Parsons propôs uma análise do sistema social juntamente com a
personalidade do indivíduo, dando enfoque, na formação e construção de
ambos, bem como a cultura, as instituições e as interações sociais.
A característica do sistema social é ligar entre si uma pluralidade
de atores, é ser antes de mais nada uma rede de relações
interindividuais e intergrupais. Em outras palavras, no sistema
social considera-se a ação dos atores do ângulo específico de
sua relação com os “objetos sociais” de seu meio, isto é, do
ângulo de sua interação com os outros atores. Nesta
perspectiva, os objetos físicos ou objetos simbólicos ou culturais
não pertencem propriamente ao sistema social: tornam-se
fatores exteriores que condicionam ou determinam a interação
dos atores. (ROCHER, 1976, p. 63)
Diferindo de outras abordagens, Talcott Parsons concebe o indivíduo
dentro de um sistema social, como um ator que age tanto individualmente
quanto em grupo. Algumas disciplinas como a Psicanálise e a História - na
interpretação da escola Metódica - focam o indivíduo ou a sua personalidade.
Outras como a Sociologia, a História analisada através da corrente Marxista
de pensamento e a própria Escola dos Annales, possuem como centro de
suas análises a conduta de vários indivíduos que constituem um sistema
social e que, neste caso, é o “motor” da História.
Neste sentido, Parsons dialoga com ambas as vertentes, individual e
coletiva, ao conceber que um ator social pode agir de algum modo sozinho
ou em grupo. Este teria sua personalidade moldada pela cultura na qual está
inserido e, em movimento sincrônico e recíproco, as variáveis culturais
também seriam amplamente moldadas pela interação com outros sujeitos
(pela articulação dos indivíduos). Ou seja, apesar de haver um padrão
comum relativo às características locais garantidas pelas normas morais e
culturais que vão moldar a personalidade, esta também será submetida, em
maior ou menor escala, a condicionantes gerados pelas interações entre os
indivíduos. Portanto o indivíduo pode agir estando dentro do sistema social,
ou pode agir “isoladamente”.
Aqui cabem algumas ressalvas, pois a personalidade do indivíduo já
entrou em contato e foi moldada por toda uma espécie de Cultura Comum. Esta
é uma forma regulativa da ação individual, uma vez que estabelece normas e
184
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
variáveis pelas quais os indivíduos irão agir. Convenções de linguagem, valores,
vestuário, normas, etc, orientam a interação entre as diversas pessoas (os
atores) que estão no interior do campo de uma dada cultura.
Por outro lado, há sempre uma parcela da personalidade que é
proveniente de uma cultura distinta ou de pequenas mudanças ocorridas pela
transgressão às normas culturais locais. Nos múltiplos processos de
interação de personalidade, que se entrecruzam no interior de uma
sociedade, acontecem as variações nos sistemas sociais. Este fenômeno
deve ser perceptível no tempo, hora acontece bruscamente, sendo chamado
de revolução, outras vezes é um processo paulatino perceptível apenas na
longa duração.
Un sistema social es, pues, una función de la cultura común, que
no solo forma la base de la intercomunicación de sus miembros,
sino que define – y así en cierto sentido determina – los status
relativos de esos miembros. Dentro de limites
sorprendentemente amplios, no hay significación intrínseca
alguna de las personas entre sí independiente de su interacción
real. En la medida que estos status relativos están definidos y
regulados em términos de uma cultura común, es válida la
siguiente afirmación, en apariencia paradójica: solo puede
entenderse lo que son las personas en términos de um conjunto
de creencias y sentimientos que definen lo que ellas deberían
ser. Aun cuando esta proposición es verdadera solo de un modo
muy general, resulta crucial para el entendimiento de los
sistemas sociales. (PARSONS, 1953, p.16)
Os ambientes culturais, físicos, biológicos, psicológicos e sociais, variam
muito de uma para outra sociedade, deixando claro que estas são
interdependentes desses fatores ambientais. A análise teórica leva a crer que
dentro da sociedade ocorrem processos interligados entre estas diferentes
partes que a constitui, e são responsáveis pela mudança estrutural da mesma.
Se tomarmos por base uma sociedade, logo estaremos adentrando
nos diversos campos em seu interior. Instituições como universidades, igreja,
órgãos públicos são campos culturais com seus próprios valores que
destoam muito ou pouco da cultura comum. Paralelo a esta constatação,
ocorre que a cultura da maioria é permeada por diversos nichos culturais
menores que participam do processo de interação com a cultura da maioria
ou a cultura institucionalizada, quer a nível individual ou grupal. Portanto uma
cultura nunca é pura e está sempre em processo de diálogo com outras
formas de interpretação do mundo.
Revista Ensaios de História, v. 14, n.1/2, 2009
185
Retomando a importância do indivíduo dentro do sistema social,
percebe-se que a possibilidade de trabalhar o papel do indivíduo na
sociedade permanece aberta na teoria de Parsons. Esta considera um
sistema como algo a ser compreendido a partir de um ponto de vista que
pode alternar entre um indivíduo, um grupo ou uma sociedade. Assim sendo,
um ator social pode influenciar toda uma mudança na orientação cultural de
um dado lugar; ao mesmo tempo em que ele recebe deste, cultura, religião,
língua, etc., através das relações que ocorreram no tempo e no espaço. A
partir do momento em que age, podendo ser de forma física ou
verbal/gestual, proporciona sua contribuição no processo histórico, que por
sua vez agrega outras ações e o retroalimenta com uma nova carga de
componentes sociais e culturais. Torna-se, portanto, primordial não excluir
nem o sujeito, nem o contexto sócio-cultural: ambos devem ser vistos em
relação. O ator deve ser visto dentro de seu meio social, porém deve ser
lembrado que a transposição dos limites postulados por este também ocorre.
Visto dessa forma, Parsons propõe uma teoria estrutural, um modelo
generalizante em contexto historicamente construído.
Explorando-se a obra de Talcott Parsons juntamente com o estudo de
História, é possível analisar no processo histórico a influência mútua do
indivíduo e do corpo social no qual este está inserido. As análises de
Parsons, ao apresentar certas divergências da maior parte da historiografia
usual, podem contribuir significativamente para a ampliação de novos
horizontes e reflexões no campo da História.
MILANELLO, Tatiana Rodrigues e SABADINI, Francisco de Assis. The individual and
colletive in the analysis of the past: an integrated approach by Talcott Parsons
ABSTRACT: The present work aims to expose and illustrate the importance of dialogue
in history with the other social sciences - especially sociology - presenting findings of the
American sociologist Talcott Parsons about the individual and their forms of action within
a social system as well as the role of culture in this process. His extensive work currently
little attention in Brazil, may contribute significantly to many studies in social sciences,
including history.
KEY WORDS: Social Sciences, Talcott Parsons, theory of action.
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EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Diagramação de textos
Tarcísio Rodrigues da Silva
Produção gráfica
Alcione Morais de Oliveira
Luis Carlos Mendonça
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