~ . ' FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1149 7. A filosofia natural medieval: Aristotélicos e Aristotelismo I 1 I Jhi Neste livro, a filosofia natural aristotélica: reveste-se de uma enorme importância, por isso, os livros naturais (libri naturales) de Aristóteles, já descritos no capitulo 3, os comentários e as questões medievais a essas obras são fundamentais. Os livros naturais de Aristóteles estavam longe de conter uma descrição e uma análise sistemáticas, coerentes, bem equilibradas e completas do mundo físico. Porém, esses tratados abarcavam uma enorme variedade de tópicos e ideias com notável profundidade de tratamento. Os livros naturais eram os melhores guias disponiveis para o estudo do Universo, motivo pelo qual foram utilizados como textos fundamentais p~ra a filosofia natural nas universidades da Idade Média. Era essa filosofia natural que funcionava como a visão do mundo medieval, uma visão que tomou forma através de um tipo particular de literatura - a literatura das questões - específica da Idade Média Latina e da universidade medieval. Literatura das questões da Baixa Idade Média Os F~4~ ~ C·.é,ww, kodtA~ ~'~ J ~ J .rf11..+o u,~ 2~t)Z ) A questio, ou questão, era o estilo mais usado em filosofia natural. Como vimos no capitulo 3, este estilo teve a sua origem no comentário, mas era estruturalmente próximo do debate oral, um aspecto proeminente da educação universitária medieval. Na realidade, consistia na versão escrita, de um mestre docente, das questões que apresentara oralmente nas lições dadas nas salas de aula. Em função da sua estrutura, configurada como um debate, a forma de literatura e análise que é a questio tornou-se quase sinónima do conceito de "método escolástico" medieval. Embora surgissem variantes ocasionais na disposição das partes constituintes de uma questio, os escolásticos tendiam a apresentar os seus argumentos num formato bastante estandardizado que permaneceu notavelmente constante ao longo dos séculos. Em primeiro lugar aparecia o enunciado do problema, começando na maioria dos casos por uma expressão do género "Perguntemo-nos se" ou, simplesmente, "Se" (utrum, implicando a alternativa sim ou não). Por exemplo, "Se a Terra é esférica", ou "Se a Terra se move", ou "Se é possivel que existam vários mundos." Seguiam-se um ou mais - por vezes até cinco ou seis - raciocínios a favor da posição negativa ou da afirmativa. Se os argumentos em defesa da posição afirmativa apareciam primeiro, , ." 150 I os FUNDAMENTOS DA CIfNClA MODERNA NA IDADE MÉDIA o leitor podia supor que o autor adoptaria provavelmente a posição negativa; em contrapartida, se a posição negativa surgisse primeiro, era de esperar que o autor fosse adoptar e defender mais tarde a posição afirmativa. As opiniões iniciais, que acabariam por ser rejeitadas, eram denominadas "argumentos principais" (rationes principales). Logo a seguir aos argumentos principais, o autor apresentava sumariamente a opinião oposta, em geral introduzida pelo termo oppositum. A utilização tão apropriada do termo "oposto" para introduzir a opinião alternativa eviden- ' cia-se pelo facto de os autores medievais responderam a questões que requeriam um sim ou um não. Assim, se os argumentos principais a abrir uma questão representavam uma posição afirmativa, então a resposta oposta que se lhe seguia devia representar uma posição negativa. O oppositum confinava-se em larga medida à citação de pelo menos uma autoridade na matéria - frequentemente o próprio Aristóteles - que estava em desacordo com a opinião afirmativa inicial. Na realidade, a opinião oposta podia inicialmente ser resumida numa afirmação tão breve como "Aristóteles determina o oposto". Após os argumentos principais e opostos, o autor poderia ainda esclarecer e qualificar o seu entendimento da questão ou explicar alguns termos específicos que nela surgissem. Por exemplo, numa questão que averiguava. "Se é possível que existam vários mundos", Jean Buridan não só explicou que o termo "mundo" podia ser entendido de muitos modos, como também o que pretendia significar por "vários [isto é, uma pluralidade de] mundos": "mundo" (mundus) pode ser entendido de muitos modos. Num, como a totalidade de todos os seres; e assim o mundo é chamado "universo" (Universum). "Mundo" é entendido de um outro modo para as coisas geradas e corruptíveis e, ainda de um outro, para as coisas perpétuas; e é assim que fazemos a distinção de mundo neste mundo inferior e num mundo superior. E, todavia, "mundo" é ainda entendido de muitos outros modos que não são relevantes para o nosso presente debate. Mas "mundo" é ainda entendido de um outro modo que é pertinente, [nomeadamente] como a totalidade dos [corpos] pesados e leves. E é acerca de um tal mundo que a questão - se é possível que existam vários mundos - pergunta. E a este respeito, deve notar-se que uma pluralidade de tais mundos pode ser imaginada de dois modos: existindo simultaneamente, como se fora deste mundo um outro mundo 'semelhante existisse; ou, existindo sucessivamente, quer dizer um após o outro.! FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS EARlSTOTEl.ISMO 1151 Depois de acrescentar tantas qualificações quantas julgasse necessárias, o autor estava pronto a apresentar as SlIas próprias opiniões, geralmente através de uma ou mais conclusões ou proposições pormenorizadas. Para se antecipar a objecções, o mestre podia inclusivamente optar por levantar dúvidas acerca das suas próprias conclusões e, depois, resolvê-las. Para concluir a questão, responderia por ordem a cada um dos argumentos principais enunciados no início. Um tratado típico consistia num número considerável de questões, cada uma estruturada aproximadamente do modo como acabo de descrever. No século XN, Alberto da Saxónia incluiu cento e sete questões na sua obra Questões sobre os Oito Livros da Física de Aristóteles e trinta e cinco em Questões sobre os Dois Livros de sobre Geração e Corrupção; Jean Buridan considerou cinquenta e nove questões em Questões sobre os Quatro Livros de Sobre os Céus de Aristóteles e quarenta e duas em Questões sobre os Três Livros de sobre a Alma de Aristóteles; e Themon Judaeus tratou sessenta e cinco questões no seu Questões sobre os Quatro Livros da Meteorologia de Aristóteles. Nestes cinco tratados diferentes, os três autores consideraram trezéntas e oito questões distintas. Cada um dos tratados de Aristóteles era pois dividido numa série de questões. Regra geral, as questões seguiam o tema central desse tratado. Mas dado que os próprios tratados de Aristóteles estavam mal organizados e muitas vezes não havia uma inter-relação entre as suas partes, as questões que decorreram desses tratados durante a Baixa Idade Média estavam igualmente marcadas por falta de coesão. Embora, como veremos, tenham sido feitos esforços esporádicos para ligar entre si as questões, era mais comum que estas fossem tratadas independentemente, como se não tivessem relação com quaisquer outras questões ou tópicos. Na filosofia natural medieval escolástica, o ponto fulcral era a questão independente e as diferentes opiniões a que dava origem. O objectivo era resolver, ou determinar, cada questão. Nas numerosas questões que um tratado típico abrangia, os autores escolásticos faziam referências frequentes aos argumentos e às opiniões de Aristóteles, quer estas dissessem respeito a diferentes partes da obra sobre a qual estavam a redigir as questões, quer a outra das obras de Aristóteles. Contudo, não era habitual relacionar os temas referidos numa questão com debates semelhantes a propósito de outra questão surgida quer no mesmo quer noutro tratado. Essas ligações não se deixavam no entanto de fazer de duas formas básicas. Por vezes, os autores de questões escolásticas podiam referir-se a outras questões do mesmo tratado. Por exemplo, podiam dizer: "como é suficientemente óbvio de acordo com outra questão", ou "o oposto foi afirmado numa outra questão", ou ainda "como se viu numa outra questão" e outras alusões do género. É evidente a dificuldade de localizar referências tão vagas. Mais comum, todavia, era um outro tipo de referência ainda mais vago, em que um autor podia referir-se 152[ OS l'UNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA a pensamentos relevantes enunciados mais atrás ou mais à frente no tratado. Nesta categoria encontramos expressôes como: "tal como foi dito antes", ou "como se referiu", ou "como se verá mais adiante", ou outras frases do género. A maioria dos filósofos naturais escolásticos fazia poucas referências textuais, mas alguns demonstravam diligência nos seus esforços para estabelecer a relação com os argumentos apresentados ou a apresentar. Autores eminentes, como Jean Buridan e Alberto da Saxónia, faziam relativamente poucas referências remissivas. Mas já Nicole Oresme era uma notável excepção. No seu prolixo Questões acerca do sobre a Alma (De anima) de Aristóteles, Oresme apresentou quarenta e cinco questões sobre pontos dos três livros. Nessas questões, Oresme referiu-se cerca de vinte e cinco vezes a outras questões (com expressões do género: "numa outra questão", ou "como se viu numa outra questão", ou "como é óbvio na questão precedente", etc.). Em aproximadamente setenta ocasiões Oresme recorreu ao tipo mais vago de referência atrás mencionado, como ao declarar "como se disse", ou "como se viu", ou "do mesmo modo como foi antes afirmado", ou "como veremos mais adiante", entre outras expressões. Que revelam estas referências remissivas acerca de Nicole Oresme e do seu tratado? No minimo, que Oresme era um autor que pretendia informar os seus leitores da existência de matéria relevante noutras questões formuladas noutros pontos do seu tratado. Sugerirá isso que Oresme pretendeu seriamente integrar as suas Questões acerca do sobre a Alma de Aristóteles num todo coerente? O exame feito às suas referências não consegue revelar esse objectivo mais vasto. Não só a maioria das cerca de noventa e cinco referências é difícil de localizar, como não é sempre certo que essas referências digam respeito a teses do mesmo tratado, ou inclusive que existam. O editor do texto de Oresme, Peter Marshall, observou a determinada altura que nenhuma discussão se seguia à afirmação de Oresme de que "isto será discutido noutro lado". Numa outra ocasião, Oresme utilizou a frase "tal como foi referido previamente" e o editor citou quatro questões isoladas em que Oresme parece ter "referido" o assunto em questão. A dificuldade mais evidente que as referências feitas por Nicole Oresme apresentam é a imprecisão. Quantos leitores seriam suficientemente dedicados ou enérgicos para procurarem referências que proclamam "como se disse noutra questão" ou "como ficou dito acima"? Mas, ainda que um leitor conseguisse localizar uma determinada referência, o que poderia advir dai? Oresme raramente explicava a relação entre uma dada passagem e os textos com ela relacionados. Eram os próprios leitores que tinham de encontrar as passagens relevantes que pudessem tornar mais claro um determinado texto e depois determinar a sua relação. FILOSOHA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTBLICOs E ARISTOTELISMO [ 153 Porque dariam Oresme e os seus colegas escolásticos referências tão vagas? Ao fim e ao cabo, as questões vêm numeradas no texto. Por exemplo, no terceiro livro das Questões acerca do sobre a Alma de Aristóteles, Oresme poderia ter feito referência a uma ou mais questões numeradas. E, no entanto, em todas as suas noventa e cinco referências remissivas, nem uma única refere uma questão numerada. Oresme não faz referência em lado nenhum, por exemplo, à quarta questão do terceiro livro, ou à oitava questão do livro dois, etc. Parece extraordinário que tanto ele como os seus colegas tenham deixado escapar a forma mais óbvia e útil de fazer referências remissivas. Mas ainda que essas referências específicas se encontrassem, de pouco valor se revestiriam sem algum esforço no sentido de relacionar as passagens em questão e de explicar a sua relação. Mas nem Oresme nem os seus congéneres escolásticos pensaram em integrar desse modo as suas questões. Num tratado de questões medievál, a primazia era dada à questão individual, destinada a ser tratada exaustivamente e deixada depois como uma afirmação definitiva da posição do autor. A tendência era para tratar cada questão separadamente de outras questões, muito embora pudessem existir numerosos elos de ligação entre questões num dado tratado e questões noutros tratados. Mesmo quando eram indicadas, como Oresme fez noventa e cinco vezes num só tratado, revelavam-se pouco úteis, uma vez que as referências não só eram vagas e incertas, como as suas alegadas ligações não eram especificadas. Os autores de tratados de questões pretendiam analisar cada questão nas suas partes constituintes, e não sintetizar as questões num todo mais vasto. Os filósofos naturais medievais davam ênfase à análise, não à síntese, e preferiam seguir a ordem dos tópicos aristotélicos, em vez de integrarem as questões numa mais vasta e significativa imagem do mundo. Embora a forma das questões fosse útil para tratar problemas específicos, de âmbito estrito, era inadequada para temas mais abrangentes, inter-relacionados, ou para qualquer assunto que exigisse uma apresentação sustentada. Nas suas Questões acerca do sobre a Alma de Aristóteles, Nicole Oresme lamentou (livro 3, questão 3) que, para tratar os vários aspectos do intelecto humano, a forma das questões fosse inadequada, mas logo acrescentou que prosseguiria mesmo assim, porque o costume o impunha. Entre os autores escolásticos, Oresme é notável pelo número de tratados (tradatus) que escreveu sobre uma grande variedade de assuntos, cada um dos quais dedicado ao tratamento sistemático e pormenorizado de um determinado tema, tais como proporcionalidade, intensão e remissão das formas, comensurabilidade ou incomensurabilidade dos movimentos celestes e a esfera. Considerou esses temas inadequados para os tratar sob a forma de questões. 1541 os PUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA Filosofia natural noutras modalidades literárias PILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL, ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO I 155 O tratado adquire maior significado porque o autor declara que muitos eruditos tinham escrito sobre tópicos que Aristóteles mal abordara, ou não Em filosofia natural, as questões não foram unicamente apresentadas em obras a que se dava o nome de "questões", e que eram tratados sobre uma obra chegara sequer a mencionar. Assim, no seu sumário, este autor incluiu não só a interpretação de Aristóteles, mas ainda desvios dos "modernos" face a Aris- particular de Aristóteles, mas surgiram também em comentários às Sentenças de Pedro Lombardo, especialmente no que se referia ao segundo livro, que se tóteles, isto é, incluiu a interpretação de autores que provavelmente terão escrito nos séculos XIII e XIV. Este tratado invulgar abrange um vasto campo debruçava sobre a criação, e incluía questões sobre a estrutura e o funcionamento celestes, bem como sobre a luz. Porque também se referiam à criação, as de filosofia natural. O autor tentou organizar os tópicos de forma sistemática "sumas" teológicas incluíam questões semelhantes às que se encontravam nos e introduzir novas opiniões e desvios relativamente a Aristóteles sempre qu.e estes lhe pareceram relevantes. Daí resultou um texto muito mais informativ() comentários às Sentenças. As sumas teológicas e os comentários às Sentenças eram géneros de litera- do que os textos dos tratados de questões comuns. Tais compêndios, n() entanto, foram relativamente raros na Idade Média e, em comparação com os tura escolástica organizados logicamente (a Summa theologiae de São Tomás de Aquino é disso o supremo exemplo). Seria de esperar que uma suma em filoso- tratados do género questões, desempenharam um papel menor. fia natural fosse sistematizada de modo semelhante. Durante o primeiro quartel do século XV, Paulo de Veneza (ca. 1370-1429) escreveu a Suma da Filosofia Grande parte da filosofia natural aparecia, no entanto, integrada em obras que não eram de questões e que incluíam a palavra tratado (tractatus) nos Natural, onde dividiu a filosofia natural em seis partes, correspondendo às seus títulos. Um dos mais importantes foi o Tratado sobre a Esfera de João de Sacrobosco (John of Holywood), uma obra do século XIII que descrevia bre- obras de Aristóteles, isto é, Física, Sobre os Céus, Sobre Geração e Corrupção, vemente os céus e a Terra e foi usado como livro de texto universitário. Deu Meteorologia, Sobre a Alma e Metafísica, respectivamente. A ordem pela qual organizou os primeiros quatro tratados baseava-se indubitavelmente nas obser- origem a uma série de comentários e tratados independentes, intitulados Sobre a Esfera. Como já antes referi, Nicole Oresme escreveu algumas das vações introdutórias da Meteorologia. Como aristotélico fiel, Paulo de Veneza seguiu essa ordem das obras de Aristóteles. Como filósofo natural escolástico tradicional, tratou também as questões de cada tratado isoladamente das ques- obras mais significativas sobre filosofia natural usando a forma de tratado, nomeadamente nos Tratado sobre Configuração de Qualidades e Movimentos tões dos outros tratados. Deste modo, a Suma da Filosofia Natural de Paulo de Veneza pouco mais é que uma colectânea de seis tratados distintos de Aristóteles, cada um com o seu conjunto próprio de questões. Paulo de Veneza não conseguiu pois maior integração e síntese do que se tivesse publicado separadamente as questões sobre cada tratado. O mais próximo que os escolásticos medievais estiveram de uma síntese sistemática de um "quadro geral" foi em tratados que não incluíam questões. Esses tratados, conhecidos por o nome genérico de "compêndios", eram tentativas para elucidar as opiniões de Aristóteles acerca dos modos de funcionamento do mundo, fazendo-o de um modo lógico, coerente e relativamente breve. Um dos melhores exemplos deste género encontra-se num tratado anó- (Tractatus de configurationibus qualitatum et motuum), Tratado sobre Razões de Razões (Tractatus de proportionibus proportionum) e Tratado sobre a Comensurabilidade ou Incomensurabilidade dos Movimentos Celestes (Tractatus de commimsurabilitate vel incommensurabilitate motuum coeli). As obras enci- clopédicas de três autores do século XIII, Sobre o Universo (De universo) de Guilherme de Auvergne (ca. 1180-1249), Sobre as Propriedades das Coisas (De rerum proprietatibus) de Bartolomeu, o Inglês (fi. 1220-1250) e O Espelho da Natureza (Speculum naturale) de Vincente de Beauvais (ca. 1190-ca. 1264) continham muita informação sobre filosofia natural e foram obras de referên- cia durante toda a Idade Média. Como se mencionou no capítulo 3, a filosofia natural era frequentemente uma parte significativa de obras sobre medicina, teologia, filosofia moral e metafísica. Aliás, também estava integrada em trata- nimo sobre filosofia natural e metafísica, provavelmente composto na segunda dos de alquimia, onde a natureza dos elementos era considerada dentro do metade do século XN, em Paris.' Em jeito de prefácio, o autor explicava que, por os textos de Aristóteles serem tão prolixos e difíceis de ler para os estudan- quadro mais vasto da teoria da matéria. Embora o presente estudo se debruce tes, considerara apropriado resumir as opiniões de Aristóteles, bem como as de outros filósofos, num breve compêndio (se bem que, com um total de duzentos importante para o estudo da filosofia natural medieval e da visão do mundo que descrevia, outras formas literárias, particularmente os tratados indepen- e trinta e seis fólios, dificilmente se pudesse considerar breve). dentes, desempenharam também um papel importante. principalmente sobre a literatura das questões, por ter sido a fonte mais 1561 os FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÊDIA Cosmo como tema versado pela filosofia natural A finalidade da literatura sobre filosofia natural consistia em descrever e analisar a estrutura e o funcionamento do Cosmo, incluindo todos os seus objectos e criaturas. O capítulo 6, centrou-se nos desvios que os filósofos naturais medievais fizeram relativamente à visão do mundo de Aristóteles, tal como foi descrita no capítulo 4. Nos parágrafos seguintes, descreverei de maneira sucinta, mas suficientemente representativa, uma visão medieval do mundo. Tal como sucede com a maior parte das "visões do mundo", a versão medieval tinha dois aspectos fundamentais, mas relacionados entre si. O primeiro, dizia respeito ao enquadramento estrutural do cosmo - a macroestrutura ou "quadro geral". O segundo concentrava-se nos pormenores das operações cósmicas, e a este aspecto estava associado o grau mais elevado de controvérsia e desacordo. Quadro geral A estrutura cósmica era, no seu conjunto, notavelmente simples. Era um aglomerado constituído em grande medida por materiais cosmológicos recolhidos da filosofia natural de Aristóteles, mas incluindo também ideias dos textos das escrituras, particularmente a narrativa da Criação no Génesis, bem como conceitos e dogmas tradicionais relativos à divindade, aos anjos e às almas, que tinham evoluído no âmbito da teologia cristã. O Cosmo era uma esfera material, finita, única e enorme, preenchida em todas as suas partes por matéria. A própria esfera dividia-se em numerosas subesferas, ou orbes, encaixadas umas nas outras. Dentro desta esfera gigantesca e das suas subesferas, existiam duas regiões radicalmente diferentes: a celeste e a terrestre. A primeira iniciava-se na superfície convexa da esfera lunar e estendia-se até à esfera das estrelas fixas, e mais além até ao céu empíreo, a esfera extrema do mundo, onde se acreditava que os bem-aventurados vivessem em luminoso esplendor. A região celeste estava preenchida por um éter perfeito, incorruptível, que tinha como uma das suas qualidades primordiais a capacidade de se deslocar num movimento circular uniforme, ou tinha a capacidade de ser deslocado por outra coisa, digamos uma inteligência ou anjo. Na medida em que eram constituídos por este éter notável, os orbes concentricamente dispostos - que em geral se considerava serem num número entre oito e onze deslocavam-se ao redor do centro do nosso Universo esférico em movimentos circulares uniformes, levando consigo as estrelas fixas e os sete planetas. Oito FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO 1157 orbes arrastavam corpos celestes: o oitavo levava todas as estrelas fixas e os sete abaixo dele os sete planetas, um em cada esfera. A região terrestre, que começava logo abaixo da superfície côncava da esfera lunar, descia até ao centro geométrico do Universo. Em contraste com a região celeste, a terrestre, ou região sublunar, era caracterizada por incessante mudança, na medida em que os corpos imperfeitos e corruptíveis surgiam e desapareciam de forma contínua no seu interior. Estes corpos terrestres eraIn constituídos por quatro elementos dispostos numa série de quatro orbes concêntricos, cada um dos quais era o lugar natural de um dos elementos. Em ordem descendente a partir da superfície lunar côncava, o primeiro orbe era o lugar natural do fogo; o segundo o do ar; o terceiro o da água; e o quarto o da terra. Cada elemento possuía uma capacidade inata para um movimento natural em direcção ao seu lugar natural. O elemento predominante em qualquer corpo determinava o sentido do movimento natural do corpo, que era sempre dirigido para o lugar natural do elemento predominante. Quando não encontravam nenhum impedimento, os corpos terrenos, pesados por natureza, caíam sempre naturalmente para o centro do Universo, ao passo que os corpos ígneos, considerados absolutamente leves, ascendiam em direcção à concavidade lunar. Os elementos intermédios, água e ar, produziam um de dois efeitos, dependendo da sua localização: os corpos aquosos erguiam-se quando estivessem no lugar natural da terra e caíam quando estivessem nos lugares naturais do fogo e do ar, ao passo que os corpos aéreos se erguiam nos lugares naturais da terra e da água e caíam quando localizados na região do fogo. Uma vez que a região celeste era considerada incorruptível, era também tida como sendo mais perfeita e, por conseguinte, mais nobre do que a região terrestre. Com base no princípio, quase unanimemente aceite, de que um corpo mais nobre pode influenciar e afectar um corpo menos nobre, não sendo o inverso possível, pensou-se que os corpos celestes incorruptíveis regiam o comportamento dos corpos corruptíveis, orgânicos e inorgânicos, da região terrestre. Esta governação era conseguida através da radiação contínua de uma variada série de influências fluindo unidireccionalmente dos céus para a Terra. O quadro estrutural do mundo, acabado de descrever, era muitas vezes representado graficamente nas primitivas edições impressas, do século XV ao XVII. Pela simplicidade da sua estrutura fundamental - representada por uma série de orbes concêntricos encaixados uns nos outros e abarcando as regiões terrestre e celeste - este esquema cósmico satisfez psicológica e intelectualmente os estudiosos europeus durante cerca de quatrocentos e cinquenta anos. 1581 os FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA Pormenores de funcionamento Na Europa Ocidental partilhava-se um assentimento geral no que diz respeito à macroestrutura do mundo, contudo não havia um consenso quanto ao modo como a grande diversidade de actividades cósmicas específicas tinha lugar. Os filósofos naturais estavam em desacordo acerca de muitos pormenores de funcionamento, como se torna evidente pela variedade de respostas às questões regularmente postas sobre os mecanismos do mundo físico. A filosofia natural medieval foi constituída a partir das centenas de questões que tentavam abordar com êxito esses pormenores de funcionamento. Mas tornou-se também algo que acabou por transcender a soma das questões que a compunham. Para caracterizarmos a filosofia natural, tal como era compreendida e praticada na Idade Média, é essencial explicar o lugar que ocupava no esquema de conhecimento desse mesmo período. Que é filosofia natural? A divisão das ciências levada a cabo por Aristóteles proporcionou o contexto para a identificação do lugar da filosofia natural na organização do conhecimento humano. Na Metafísica, Aristóteles divide as ciências em teóricas, que têm a ver com conhecimento; práticas, que se referem à conduta; e produtivas, que tratam da feitura de objectos úteis. Aristóteles subdivide ainda a ciência teórica em três partes: (1) teologia, ou metafísica, como em geral era designada, a qual considera as coisas que existem separadamente da matéria ou corpo e são imutáveis - isto é, substâncias espirituais e Deus; (2) matemática, que trata também de coisas que são imutáveis, mas que são abstraídas de corpos físicos e, por conseguinte, não têm existência independente, tais como números e figuras geométricas; e (3) física, que trata de coisas que não só têm existência independente como também são mutáveis e possuem uma fonte inata de movimento e repouso. A física era igualmente aplicável a corpos animados e inanimados. A ideia geral de física de Aristóteles é praticamente equivalente ao que se pretende significar por filosofia natural, ou ciência natural, como por vezes era designada. No parágrafo de abertura da Meteorologia, Aristóteles explica o que entende por estudo da natureza, ou filosofia natu- ral. No âmbito desta disciplina teórica, inclui o estudo das prímeiras causas da natureza, a mudança e o movimento em geral, os movimentos dos corpos celestes, os movimentos e as transformações dos elementos, a geração e a corrupção, FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO I 159 os fenómenos na região superior da atmosfera logo abaixo da esfera lunar, e o estudo dos animais e das plantas. Assim, no seu sentido mais lato, a filosofia natural dedicava-se, na Idade Média, ao estudo dos corpos que sofriam qualquer tipo de mudança. Como o exprimiu com toda a razão um autor anónimo do século XIV: "todo o ser móvel é tema próprio da filosofia natural."3 O domínio da fIlosofia natural era, pois, nada mais nada menos do que todo o mundo físico, dado que o movimento e as coisas móveis surgem em toda a parte, tanto na região celeste como na região terrestre, as duas regiões principais em que Aristóteles dividiu o Cosmo. Para Aristóteles, a natureza era constituída por corpos que são compostos de matéria, um princípio passivo, e de forma, um princípio activo. Os fIlósofos naturais estudavam os movimentos e as mudanças desses corpos. Sendo uma união de matéria e forma, cada corpo é afectado por quatro causas básicas: material, formal, eficiente e final. Actuando simultaneamente sobre todos os corpos, estas quatro causas produzem a incessante sequência de efeitos cósmicos. Os matemáticos estudavam os mesmos corpos que os fIlósofos naturais, mas sob um ponto de vista radicalmente diferente. Tentavam abstrair e estudar as propriedades geométricas e as características dos corpos materiais, pelo que estavam acima de tudo interessados nos aspectos mensuráveis e quantificáveis dos corpos, e não nos corpos em si próprios. As ciências que acarretavam a aplicação da matemática aos fenómenos naturais, tais como a óptica, a astronomia e a estática, eram caracterizadas como "ciências médias" (scientiae mediae) porque se considerava que ocupavam o lugar entre a filosofia natural e a matemática pura. Durante a Idade Média, a relação entre filosofia natural e matemática foi encarada em muitas ocasiões de modo muito diferente. Por volta de 1230, um autor anónimo escreveu um livro para estudantes de artes na Universidade de Paris e dividiu a filosofia natural em metafísica, matemática e física, incluindo assim a matemática na filosofia natural. Em função desta forma de a encarar, a filosofia natural tornou-se equivalente à totalidade do conhecimento teórico que Aristóteles dividira em três. Nada ilustra melhor a crescente autoridade da filosofia natural. Alguns daqueles que não aceitaram esta combinação excluíram as ciências médias da filosofia natural, mas continuaram a debater se essas ciências se encontravam mais próximo desta última ou da matemática, havendo partidários de ambos os pontos de vista. Quando a matemática era aplicada à filosofia natural, essa combinação era considerada independente das ciências médias e olhada como parte da filosofia natural, como, por exemplo, na intensão e remissão das formas (capítulo 6). 160 I os FUNDAMENTOS DA C1ENCIA MODERNA NA IDADE MEDIA Na forma que tomou nas universidades medievais, a filosofia natural era uma disciplina teórica estudada através da razão, da análise e da metafísica. Tal como fora concebida por Aristóteles e por aqueles que escreveram sobre a classificação das ciências, a magia estava excluída. A astrologia desempenhava um papel, mas apenas porque fizera parte integrante da astronomia e também porque cumpria uma função nos estudos médicos. Se a alquimia era considerada, tal devia-se apenas ao facto de estar ligada à teoria da matéria de Aristóteles. Independentemente do significado que têm para a história da ciência, a magia, a astrologia (especialmente quando relacionada com o destino e a prosperidade humanos), a alquimia e outras ciências ocultas não eram oficialmente ensinadas no currículo de fIlosofia natural das universidades medievais, embora isso pouco nos diga sobre se mestres e estudantes, individualmente, prosseguiram em privado tais actividades. Questões em filosofia natural Para obtermos uma percepção concreta da filosofia natural medieval, devemos conhecer o tipo de questões que os filósofos naturais da Idade Média colocavam sobre o mundo descrito por Aristóteles e analisado nos seus livros naturais. Quando, neste mesmo capítulo, analisámos questões sobre cinco dos livros naturais de Aristóteles, colocadas por três autores diferentes, chegámos a um total de trezentos e oito questões. Se as questões sobre Metafísica e os Pequenos Livros Naturais, também de Aristóteles, forem adicionadas àquele total, o conjunto de questões pode atingir seiscentas ou mais. Independentemente do número aproximado, a totalidade das questões sobre esses tratados de Aristóteles constitui o núcleo da filosofia natural medieval. Por conseguinte, é essencial dar a conhecer o teor dessas questões.. Por conveniência, procederei por ordem cósmica, citando primeiro questões relacionadas com as partes mais extremas da região celeste, e do que poderia existir para além delas, continuando depois em ordem descendente até ao orbe lunar e depois à região terrestre superior e, finalmente, à própria Terra. 4 A história inicia-se realmente com questões acerca do estatuto do mundo enquanto entidade criada ou como algo que não tinha princípio e nem teria fim. As questões sobre esse assunto podem ser resumidas numa questão FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTELICOS E ARISTOTELISMO 1161 por toda a eternidade, e se o mundo era algo que era gerado e corruptível, ou se não era gerado e incorruptível. A existência possível de um movimento eterno era uma outra versão da questão básica. Ao perguntarem "se o mundo fora .criado," os fIlósofos naturais medievais estavam na realidade a inquirir sobre a eternidade do mundo, dado que uma resposta negativa teria implicado um compromisso com a eternidade. No entanto, a questão era geralmente colocada mais do ponto de vista da eternidade que do da criação, porque essas questões coadunavam-se com o contexto de um ou outro dos livros naturais de Aristóteles. Pelo contrário, quando os teólogos teciam comentários às Sentenças de Pedro Lombarda, incluíam habitualmente questões relativas à criação, porque o segundo livro lhe era dedicado. Partindo da hipótese de que Deus criara o mundo, tornou-se natural inquirir - sobretudo depois da Condenação de 1277 - sobre o que poderia existir para além dele. Ao considerarem a existência extracósmica, osfilósofos naturais interrogavam-se sobre a existência possível de outros mundos, sobre a existência possível de um espaço vazio infinito que se estendesse para além do nosso mundo e sobre a omnipresença de Deus nesse espaço vazio infinito - se a omnipresença de Deus era na verdade coextensiva com esse espaço vazio infinito. Na pressuposição de que existiam realmente outros mundos idênticos ao nosso, os filósofos naturais perguntaram-se se a Terra de um mundo se moveria naturalmente para o centro de outro mundo. De acordo com a fé que professavam, os autores escolásticos dedicaram a maior parte das suas análises a um mundo que acreditavam ser o único a ter sido criado. Uma das maiores preocupações quanto a esse mundo era o seu estado de perfeição: tê-lo-ia Deus criado perfeito? Que significa caracterizar o mundo como "perfeito"? E, se fosse perfeito, poderia Deus tê-lo feito mais perfeito ainda? Se bem que a dimensão propriamente dita do nosso mundo não chegasse a materializar-se sob a forma de questão, a sua finitude ou infinitude atraíram grande atenção. Como que a testar a possibilidade de um mundo infinito, alguns autores escolásticos perguntaram-se se um corpo infinito podia ser objecto de movimento circular ou de movimento rectilíneo. Na medida em que a física e a cosmologia de Aristóteles teriam sido impossíveis se o mundo fosse fisicamente infinito, as respostas negativas a tais questões conduziram de forma inevitável à hipótese de um mundo finito, o que constituiu de facto um princípio importante da filosofia natural medieval. muito popular: "Será que o Universo existiu desde a eternidade?" As numero- A composição material do nosso mundo finito era um tema central. Exis- sas questões não eram mais do que variantes deste tema potencialmente peri- tiria um número fixo de elementos a partir do qual tudo era feito? Haveria cinco corpos elementares, ou simples -, os quatro elementos tradicionais goso. Nelas se questionava, por exemplo, se Deus podia preservar o mundo l' II I, I I i 1621 os FUNDAMENTOS DA CIÉNCIA MODERNA NA I I, ! IDADE MÉDIA (terra, água, ar e fogo) e ainda um quinto elemento, um éter de que eram formados os corpos celestes? Numerosas questões foram colocadas sobre alegadas diferenças entre as matérias celeste e terrestre. Na realidade, uma questão permanentemente colocada perguntava se a região celeste, ou supralunar, que se pensava ser incorruptível, possuía matéria no mesmo sentido em que a região terrestre, onde a mudança ocorria incessantemente, a possuía. Outra forma de colocar essa questão consistia em inquirir se as matérias celeste e terrestre eram da mesma espécie, isto é, se eram essencialmente idênticas. Foram também formuladas questões sobre a semelhança ou a diferença dos orbes celestes e dos planetas. Os filósofos naturais perguntavam frequentemente se todos os corpos celestes - orbes, estrelas fIXas e planetas - pertenciam à mesma espécie ou se cada corpo celeste constituía uma espécie única. Admitia-se como axioma que a região celeste estava preenchida com esferas concêntricas, ou camadas esféricas, cada uma por sua vez subdividida em orbes excêntricos. A questão cosmológica mais popular na Idade Média dizia respeito ao número de esferas concêntricas que se encaixavam para cima a partir da Lua até à esfera das estrelas fixas, e mesmo para além desta. A ordem que Ptolomeu, o grande astrónomo grego do século II d. c., dera aos planetas no Almagesto era geralmente a ordem aceite na Idade Média: Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e a esfera das estrelas fixas. Contudo, não havia consenso quanto à disposição dos orbes móveis que alegadamente existiriam para além das estrelas fixas, alguns dos quais desenpenhavam funções astronómicas. Estariam todos os orbes celestes em movimento como acreditava Aristóteles? Os escolásticos perguntavam-se frequentemente se existiria uma esfera imóvel para além das esferas móveis, encerrando-as no papel de contentor do Universo. Regra geral, pressupunha-se a existência desse orbe, conhecido como o céu empíreo, onde os bem-aventurados e os eleitos de Deus viviam em eterna beatitude, imersos numa luz ofuscante, perante a qual todas as nossas luzes mundanas empalideceriam. Se bem que a existência do empíreo fosse aceite por quase todos os filósofos naturais, colocavam-se questões a seu respeito. Será um corpo? Deverá ser chamado céu? Como o comparar com outros céus? Ao referir as águas acima do firmamento, a Bíblia proporcionou a base para a concepção de dois orbes celestes: o firmamento e o céu cristalino. As questões acerca dessas águas e do firmamento em que repousavam eram habitualmente colocadas pelos teólogos nos comentários às Sentenças de Pedro Lombarda. Porque existem águas acima do firmamento e qual a sua finalidade? Terão as águas uma forma orbicular? Terá o céu cristalino a natureza da FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: ARISTOTÉLICOS E ARISTOTELISMO I 163 água ou será duro como o gelo? Que é o firmamento? Será de natureza ígnea? Muitas foram as questões colocadas acerca das propriedades associadas às esferas celestes e aos planetas. Seriam incorruptiveis? Os planetas e as estrelas fixas são de forma esférica? Poderão os céus, no seu conjunto, ser caracterizados como pesados ou leves, ou como rarefeitos ou densos? Aliás, se tais propriedades existissem nos céus, difeririam do pesado e do leve, do rarefeito e do denso em acção na região terrestre? Ou seja, seria a densidade dos corpos celestes diferente da densidade dos corpos terrestres? Uma questão importante e difícil inquiria se os orbes eram diferentes uns dos outros e descontínuos, ou se a região celeste era um corpo contínuo. Um problema tradicional, para o qual Aristóteles não dera indicações claras, dizia respeito à animação dos céus. Estariam vivos, em algum sentido do termo? Surpreendentemente, nem os doutores da Igreja nem a própria Igreja tomaram posição oficial em relação a esta importante questão, embora o bispo de Paris encarasse a atribuição de vida a corpos celestes uma ideia perigosa e a tivesse condenado em 1277 . Os movimentos celestes e as suas causas eram uma preocupação fundamental. Os movimentos celestes eram encarados, sem excepção, como circulares, uniformes e naturais. Vários argumentos em favor destas crenças eram apresentados em questões que inquiriam "se o movimento circular é natural para os céus" e "se o céu é sempre movido regularmente". Também eram consideradas diferenças de velocidade entre os orbes, assim como a possibilidade de o . mesmo orbe se deslocar com vários movimentos simultâneos. Quanto às causas dos movimentos celestes, os filósofos naturais sugeriam possibilidades externas e internas ao perguntarem: "os céus [isto é, os orbes dos céus] são movidos por inteligências, ou intrinsecamente por uma forma ou natureza própria?" Fosse qual fosse a causa, esses mesmos estudiosos inquiriam também se as causas motoras poderiam fatigar-se e cessar de produzir movimentos uniformes. Em virtude do seu papel na narrativa da Criação e da sua dramática manifestação nos céus, a luz celeste era um tema fundamental. Os teólogos estavam muito interessados em saber se Deus criara a luz no primeiro dia e, assim sendo, qual poderia ser a sua natureza. De grande interesse para todos os filósofos naturais era a fonte da luz planetária e estelar. Seria cada corpo celeste a fonte da sua própria luz ou seriam os planetas essencialmente privados de luz e dependentes do Sol para toda a luz que recebiam? Partindo do pressuposto de que "o mais poderoso e superior deve influenciar o menos poderoso e inferior",s como São Boaventura o exprimiu, os estudiosos perguntavam frequentemente se a região celeste influenciava as 1641 os fUNDAMENTOS DA CIÊNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA HLOSOFIA NATURAL MEDIEVAL: A1USTOTÉLlCOS E ARISTOTELISMO I 165 cOisas no mundo inferior, abaixo da esfera da Lua. Inquiriram sobre a influência dos vários componentes da região celeste - ou seja, qual era a influência dos planetas? Exerceria cada planeta uma influência diferente? Qual era a influência da luz? E do movimento? Na verdade, a partir do pres- dinâmica do movimento, muitas das questões propostas na Idade Média fazem parte integrante da história dessas soluções. Por exemplo, era comun1 suposto de que os movimentos celestes exerciam uma influência penetrante sobre os corpos inferiores, os escolásticos perguntaram por vezes "se todos os movimentos e as acções dos corpos inferiores cessariam, caso cessassem os movimentos celestes". momento de repouso; e ainda, sendo esta uma das questões mais importantes, se, depois de abandonar a mão de quem o lança, o projéctil é movido pelo perguntar se o motor e a coisa movida estavam conjugados; se, entre as trajectórias ascendente e descendente de um movimento violento, se interpõe um ar circundante ou por uma força impressa, ou impetus. O impetus era invocado para explicar a aceleração natural de corpos em queda em questões que Questões sobre actividades na região terrestre e acerca dos quatro elemen- perguntavam: "se o movimento natural é mais rápido no fim do que no tos surgem sobretudo em tratados de questões sobre a obra de Aristóteles Sobre Geração e Corrupção e, em menor número, nas que dizem respeito à Meteorologia e a Sobre os Céus. Os filósofos naturais questionaram-se sobre a localização dos elementos, bem como sobre a sua magnitude e forma. Preocupavam-se também em saber se os elementos mantinham a sua identidade num composto; se um elemento podia ser gerado directamente a partir de princípio" ou "se depois de se destacar de quem a lança, uma pedra que é projectada, ou uma flecha que é disparada de um arco, ou assim por diante outro; e se um elemento podia existir na natureza em estado puro. Levantavam-se igualmente questões acerca dos elementos individuais. Será o fogo quente e seco? Deslocar-se-á num movimento circular na região logo abaixo da Lua? Será a luz a forma do fogo? Inquiriam se o ar seria naturalmente quente e húmido e depois, surpreendentemente, se a região média do ar seria sempre fria. Dado que os cometas, os meteoros e a Via Láctea eram considerados fenómenos sublunares, eram colocadas muitas vezes questões a seu respeito. Por exemplo, terão os cometas uma natureza celeste, préssagiando guerras, epidemias e a morte de governantes? Os movimentos dos elementos e dos compostos originaram numerosas questões. Os filósofos naturais determinaram que havia um elemento predominante num corpo composto e averiguaram depois se esse elemento predominante determinaria a direcção do movimento do corpo. Os modos como os corpos pesados se deslocam com movimentos naturais ou violentos sob variadas condições eram geralmente discutidos em questões sobre a Física e, em menor grau, nas questões relativas a Sobre os Céus. Por exemplo, os filósofos naturais perguntavam se os corpos que se movem em sentido ascendente ou descendente teriam resistências internas; se um meio resistente, como o ar em casos semelhantes, é movida por um princípio interno ou por um princípio externo." Os filósofos naturais medievais 'costumavam considerar uma série de questões relacionadas com a Terra como um todo. Uma delas dizia respeito à sua esfericidade, particularmente ao modo como as montanhas e as irregularidades da Terra se podiam conciliar com essa esfericidade. Colocavam também questões relacionadas com o tamanho relativo da Terra. Por exemplo, será a Terra como um ponto em comparação com os céus? E será a magnitude, ou tamanho, da Terra inferior à de certos planetas? Outras questões dignas de menção dizem respeito à localização da Terra (estaria fixa no centro do mundo?); à distribuição da sua matéria (teria a Terra o mesmo centro de gravidade e de magnitude?); e à sua condição no centro do Universo (estaria toda a Terra em repouso no centro do Universo ou giraria sobre o seu eixo?). Os filósofos naturais também se perguntavam com regularidade se toda a Terra seria habitável. Técnicas e metodologias da filosofia natural A fJ.losofia natural da Idade Média consistia nos tipos de questões e tópicos acabados de descrever. Ocupava-se de centenas de questões que abarcavam todo o mundo, desde o orbe celeste exterior, até às entranhas da Terra. ou a água, era essencial para que o movimento se verificasse. Pareceu-lhes depois natural inquirir se poderia existir um vácuo extenso, isolado, e, se assim fosse, poderiam os corpos deslocar-se através dele com velocidades fini- A metodologia para tratar questões de filosofia natural apresentava pelo tas? Embora Galileu, Descartes e Newton tenham depois dado algumas das suas maiores contribuições para a ciência nos campos da cinemática e da reza das relações causais. O outro envolvia técnicas que eram utilizadas para menos dois aspectos. Um deles dizia respeito à análise abstracta da ciência e procurava determinar o que é uma demonstração em ciência e qual a natuapoiar ou reforçar argumentos.