entrevista - marcia - Revista Vox Objetiva

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entrevista
EXPERIÊNCIA DA CONVERSAÇÃO
Fazer filosofia pode ser bem mais interessante do que se pensava. Tornar isso apreensível ao
grande público é a “perigosa” missão de Marcia Tiburi
André Martins
Lucas Alvarenga
Ela se aconchegou na poltrona e aos poucos foi se desfazendo dos anéis, grandes e pequenos,
um a um depositados na mesa redonda que suportava uma taça com água e o livro Olho de
vidro, que veio lançar na capital mineira. Marcia Tiburi mal tinha adentrado ao palco do
auditório da Casa Fiat de Cultura para discutir o tema “Felicidade” e já parecia se sentir em
casa, instigando seus muitos espectadores a pensar na formatação do sentimento na plataforma
online.
Gaúcha de Vacaria, 41 anos, mãe, feminista, professora universitária, escritora e filósofa, Tiburi
despontou como um dos grandes nomes da filosofia contemporânea no Brasil não só ao
participar do programa Saia Justa, do canal GNT, por cinco anos. Mas, principalmente, por
propor uma nova forma de pensar e fazer filosofia: pela via do diálogo e dos questionamentos,
aos quais ela deseja mais que as respostas.
Nos minutos que antecederam à abertura do último dos seis encontros promovidos pelo Sempre
um Papo, Tiburi conversou com a Vox Objetiva. A filosofia hoje, a Academia, a arte, os
dilemas humanos e as redes sociais foram assuntos tratados de maneira leve e pontuados ora por
sorrisos contidos, ora por deliciosas gargalhadas.
Defensora de que os questionamentos devem ser colocados em debate sem autoritarismo, ela
não resiste e em alguns momentos pergunta. Não se mostra impaciente diante de pequenos préconceitos. Marcia quer simplesmente entender. Trocar ideias. Opinar, não. Mas perguntar e fazer
pensar.
Vox: Marcia, primeiramente gostaríamos de saber se você se sente um pouco pressionada
em propagar a filosofia, sendo quem é hoje: uma personalidade que tem projeção aqui no
Brasil. Como você se sente nesta posição de ser mulher e de estimular essa descoberta?
Marcia Tiburi: Eu não me sinto nem um pouco pressionada. [risos] Eu gosto muito de
conversar com as pessoas. É o meu habitat natural. É um nomadismo. Acho, inclusive, que a
grande contribuição que a filosofia pode ter no contexto social contemporâneo é de promover a
experiência do diálogo. O diálogo não existe. O que a gente vê por aí são discursos e gente
falando tagarelices, como disse o Harry Frankfurt no seu brilhante e pequeno livro Sobre falar
merda. O diálogo é a preocupação de falar e perguntar algo com sentido, pensando em como o
outro pode compreender o que você está dizendo. Isso inclui dispor o seu ouvido a esse outro
para que ele coloque algo para você e para que busquemos outra coisa para além do meu ponto
de vista inicial e do seu. Nessa busca, penso que o diálogo e a filosofia podem ajudar.
Também não acho que eu esteja propagando filosofia no sentido do bloco histórico, porque ele é
legal de estudar, e, digamos que é relevante e importantíssimo estudá-lo. Mas a história da
filosofia é a história da filosofia e filosofia pode ser qualquer outra coisa. Cada tempo inventa a
sua. Eu acho que eu estou ajudando o meu tempo a inventar a sua filosofia. Entendo que a gente
não tenha de repetir hoje, no desabrochar deste século o que se pensava que era filosofia nos
anos 50, nem no século XIX, nem no século II a.C. Não se trata de refazer o que os outros já
viveram. Trata-se de experimentar do nosso jeito. Isso pra mim é revelador e me comove. É
óbvio que há pessoas que não percebem isso e não acho que tenham pessoas que não concordam
com isso. Penso que tem gente que não alcança o sentido dessa experiência.
Por quê essas não conseguem?
Porque penso que existem pessoas, mesmo no meio acadêmico, que são preconceituosas e
ignorantes, inclusive porque não sabem que isso é possível. Quando eu ando fazendo filosofia
desse jeito com as pessoas, tem gente que curte porque alcança a experiência e outras que não
curtem porque não alcançam. Mas na verdade nem sabem o que eu estou fazendo, porque não
leram meus livros e não participam das minhas conversas.
Você disse que ajuda a inventar a filosofia desse tempo. Como? Que filosofia é essa?
Filosofia é diálogo. Então, escrever livros, dar aula, fazer televisão, rádio, jornal, andar por aí
viajando, falando com as pessoas de qualquer contexto sem preconceito, capturando a
experiência vivida da conversação das pessoas e percebendo o desejo, o pensamento e a
reflexão que rola por aí de um jeito selvagem, é, pra mim, participar desse contexto. Eu, claro,
tento viver a experiência e fazer filosofia junto com as pessoas como diálogo coletivo.
É algo natural.
É natural porque o ser humano necessariamente fala um com o outro. Quando a gente começa a
prestar atenção na linguagem, no jogo de linguagem e no processo de fala, e quando você
começa a tentar elaborar e especializar isso, aí começa a surgir filosofia. É uma hiperatenção
que você tem sobre o acontece. Porque pensar todo mundo pensa. Qual é a diferença com a
filosofia? É que você começa a prestar atenção naquilo que você mesmo pensa. Então, cria-se
uma meta teoria da própria teoria, o pensamento do pensamento, uma linguagem atenta à
própria linguagem. Essa consciência que desperta é o filosófico. Estou buscando construir uma
obra e espero viver o tempo suficiente para fazê-la. Já tenho uma meia dúzia de livros que
considero reveladores de certas ideias capazes de criar conceitos e de mudar o modo de pensar.
Livros que ajudam a construir essa atenção essencial para a filosofia.
Filosofia é diálogo. É um encontro, uma coisa que acontece entre nós. Esse entre nós, esse lugar
do “entre nós”, faz surgir um outro negócio que eu não sei, nem você. Isso não está dado. Então,
eu não trabalho com a ideia de filosofia como transmissão de conhecimento estabelecido. Isso é
ciência, é história. Filosofia é experiência. É um acontecimento que se dá agora. Muito diferente
do que o povo ensina por aí nas universidades, que eu também aprendi, sei ensinar e
eventualmente ensino. Acho, porém, que isso é muito pouco.
Você acha que a Academia está muito distante de tratar estas questões de maneira
diferenciada?
A Academia está morta, mas pode ser ressuscitada. Pode usar isso como manchete, tá? [sonora
gargalhada com os pés fora do chão].
Marcia, você já ouviu ou sofreu com o preconceito por ser filósofa?
Esses dias me perguntaram como é esse preconceito dos colegas da filosofia. Sempre escuto
falar desses boatos, mas ninguém vem falar pra mim. Não sei o que fazer com isso. Eu não sinto
esse preconceito na pele. Nem sei se ele existe, porque se os meus colegas tivessem algum,
chegariam pra mim e diriam na minha cara. Não sei.
Você falou uma coisa no início que me deixou preocupada. Você falou “ser mulher”. Por que
disse isso? Acha que existe alguma diferença por eu ser mulher?
Não. Posso estar errado, mas a filosofia talvez esteja ligada à figura do filosofo. Nós temos
muito mais homens que mulheres envolvidas.
Se pensar bem, o grande nome da filosofia no Brasil é a Marilena Chauí. Ela é uma mulher. E
acho que isso não é fundamental no que ela escreve. Para ela isso não vem ao caso. Nem para
mim. Só que resolvi estudar feminismo e fazer alguns livros voltados para isso. Mas não acho
que tenha nenhum tipo de preconceito por eu ser mulher. Ao contrário, penso que tenha até mais
aceitação. Embora eu não me ache mulher, né? Mulher não é uma coisa com a qual eu me
identifique muito. Eu gosto de ser feminista. Mulher não. [gargalhadas]
Você também é formada em artes. Acha que a arte te valeu de alguma coisa, seja para
pensar algo, estruturar um pensamento ou para aplicar à filosofia?
Olha, eu sempre fui das artes, desde a infância. Até hoje eu desenho. O que a faculdade e as
artes me trouxeram foi a noção de processos, liberdade e invenção. E eu tenho plena consciência
que trago isso para a filosofia. Eu sempre prestei atenção no meu processo. Isso é uma noção
que todo o estudante de artes tem que aprender e que o artista vive fazendo. Mas não aprende
isso na formação acadêmica de filosofia. É o que falo para os meus alunos. Um dia eu dizia para
eles da necessidade de interpretarmos a filosofia à nossa maneira e aprendermos a ler estes
textos conversando com outras pessoas, sempre desenvolvendo nosso jeito de ler. Aí um aluno
me fez uma observação muito ingênua, que nunca vou me esquecer. "Mas todo mundo já
escreveu tudo sobre a filosofia". Então eu falei: "Todo mundo já escreveu tudo que podia sobre
a filosofia, mas ninguém vai escrever o que você entende, a sua pesquisa a respeito e o modo
como você a entende". Por isso que eu acho que a faculdade tole a experiência do estudante. Ela
deveria ser um lugar onde ele descobrisse a liberdade de pensar e suas potências. Aí vem
aqueles caras dizendo: "Mas a popularização da filosofia...”, “a vulgarização da filosofia...”.
Gente! Também sou contra que exista um sábio que vem falar para as massas, como se ele
soubesse o que elas “não podem” saber. Aí ele explica Platão, Aristóteles e Kant. Isso é uma
besteira. Eu não estou fazendo isso. Estou fazendo uma coisa muito mais perigosa
[gargalhadas].
O processo de reflexão que é a filosofia é capaz de tornar as pessoas muito lúcidas e
emancipadas. É com essa perspectiva que eu converso com as pessoas, pois elas são inteligentes
e capazes de pensar e refletir. Filosofia é uma atenção, em graus variados de pensamento. E só
assim que você consegue, com este tipo de atenção, desmanchar o senso comum, o pensamento
coletivo no mau sentido, aquele com o qual todos estão de acordo. E eu quero criar desacordo,
crítica.
Você entrelaça de maneira clara filosofia a aspectos intrínsecos aos dilemas que nos são
característicos enquanto seres humanos. Grandes teóricos do século passado, como
Lipovetsky e Bauman, propunham uma reflexão da fragmentação, do vazio existencial, de
nossas neuroses. Como você apreende a sociedade atual? Hoje, 2011, temos resposta pra
alguma coisa? Teremos algum dia?
Tem não! O que tem é o aprendizado da angústia. Eu gosto é do aprendizado da angústia [sorri].
Você falou de Lipovestky e Bauman. São filósofos que não me interessam. Aliás, quando mais
eu avanço, menos interesse tenho nessas grandes respostas. Eu fico atrás é dos bons
perguntadores. Existem vários teóricos bons ao longo da história, vale a pena lê-los. Os
problemas que eles tinham são muito parecidos com os nossos. Às vezes, eles responderam e
perguntaram de um jeito diferente sobre questões que continuamos perguntando a nossa
maneira. Mas, filosofia não é resposta. Resposta você encontra na teologia. Filosofia é um jeito
de fazer perguntas e buscar caminhos de respostas. Não que a filosofia não ache solução. Você
pode usá-la para achar esses caminhos. Mas a grande solução que ela dá é sempre a liberdade de
pensar. Quando ela existe, abre-se uma nova estrada, desconstrói-se respostas. Cada pessoa
passa a responder a sua maneira. Pois só assim ela sustenta a ética do mundo, da escolha
individual, de um caminho para si mesmo dentro de um contexto de liberdade. Por isso a
filosofia é o aprendizado da pergunta. E a pergunta sempre é angustiante. E a angústia é boa.
Marcia, você é partidária da solidão. Por que solidão?
Eu gosto de tudo que o povo odeia [risos].
A solidão não é uma coisa negativa. Depende de como a pessoa a encara.
É isso que eu acho. Solidão pode ser uma coisa negativa se você não a deseja. Eu a desejo
muitas vezes. Tanto a desejo que, para mim, ela é uma experiência incrível. Eu encontro com
muitas pessoas todos os dias. E para eu me encontrar comigo, tenho que cavar este espaço.
Então, sobre aquela pessoa que se queixa de solidão, que está sempre sozinha e não encontra
gente, eu fico pensando: “Por que será?” Porque está cheio de gente interessante no mundo. Não
está? Você pode ser amigo de várias pessoas. Mesmo que não se torne amigo de alguém, você
pode ter boas relações, divertidas e interessantes, de conversa, de experiência e de encontro. As
pessoas são fascinantes. Começa a conversar com elas para ver o tanto de coisa que elas têm
para contar e pensam. Mesmo que não tenham respostas, elas têm desejos, curiosidades.
Eu brinco com a história da solidão. Há tempos eu defendo um movimento em prol da solidão, o
MDS, que eu sou a presidente, o único membro e não admito participantes [risos]. Todos os dias
eu faço passeatas silenciosas e solitárias sem bandeira para não dar bandeira [risos].
Acho grave o horror que as pessoas têm da solidão. Essa solidão que não se deseja, na verdade,
reflete uma má construção de vida no sentido do coletivo. Eu adoro o coletivo, gosto das
multidões, das massas, dos grupos de todos os tamanhos. Mas eu também gosto de ficar
sozinha. Então, esse povo que se queixa disso, esses malucos desses americanos que fazem
pesquisa para mostrar que a solidão é uma doença, são, pra mim, comandados pela indústria
farmacológica, que tenta patologizar todos os aspectos da nossa vida e ganhar muito dinheiro.
Se as pessoas aprendessem a viver da pura e simples condição humana, que envolve angústia,
tristeza, prazer e infelicidade, as pessoas viveriam de um jeito mais fácil, não é mesmo? Aí o
lado bom da experiência de estar nesta condição humana.
As redes sociais vêm agravando esta situação. As pessoas vêm se sentindo sós, porém pelo
lado negativo da coisa...
As pessoas acham que se elas estiverem ali no Facebook, não estarão sozinhas, né?
É o tal complexo de Roberto Carlos que você citou certa vez na sua coluna na Cult e no seu
blog.
[risos] Esse artigo me divertiu muito. Já pensou o que é o Facebook? Eu tenho, mas nem sei
usar direito.
O Twitter você já usa com mais frequência...
O Twitter eu acho mais simples. Já o Facebook, eu não consigo mascarar. Porque quando eu
entro, chove de gente solicitando amizade. Só que eu não sei fazer nada. E como eu não sei
mexer, eu dou ok pra todo mundo, sem nenhuma discriminação. Não tenho preconceito nenhum.
Todo mundo é meu "amigo". Mas penso que essa amizade não significa nada. Eu já fui xingada
no Facebook porque uma pessoa pediu solicitação de amizade. Tudo porque eu não dei um ok
pra ela. Ficou feio. Um negócio chato. Mas que ilusão, né? Será que é possível que as pessoas
acreditem que por ali haverá amizade?
Parece uma necessidade de aceitação.
É o delírio! É mesmo o Complexo de Roberto Carlos, o cara que quer ter um milhão de amigos.
Gente, amizade mesmo é uma coisa muito rara. A pessoa pode ter muitos contatos na vida, mas
é que nem paixão. Você não vai conseguir ter muitas. É fisicamente impossível ter um milhão de
amigos, assim como ter um milhão de paixões.
Vivemos em uma era em que temos cada vez mais uma maior quantidade de informações a
respeito de nós mesmos na internet. Você consegue dar conta de tudo o que dizem a seu
respeito? Isso é uma coisa relevante para você?
Não me importo, porque seria ilógico e humanamente impossível me importar com "tudo". Não
faço ideia, aliás, do que seja isso. Seria absurdo porque milhões de pessoas no mundo podem
falar sobre nós. É impossível levar em consideração o amor e o ódio que se recebe em grande
escala. Preocupo é com o que meus amigos próximos, minha filha pensam de mim. E, claro, me
preocupo com o que os leitores pensam dos meus livros. Sou muito grata e ligada aos meus
bons leitores.
A pergunta anterior está ligada à visão dos outros em relação à sua figura. E a Marcia
Tiburi? Você consegue se entender? Dar conta de assimilar, refletir, ter consciência do que
diz respeito a você?
Marcia Tiburi, Maria da Silva, Cláudia de Souza? São nomes, não? A gente usa como
referência, mas tanto faz, não é? A minha "figura"? Bom, não sei porque isso seria uma questão.
Eu tenho uma relação mais forte com a minha vergonha de ser um ser humano neste mundo do
que com o que as pessoas chamam de "ego". O sentimento que tenho em relação a mim é de
liberdade, quando não é de vergonha. Embora não pareça, eu sou tímida. Ou parece? Mas não é
de auto-adoração, até porque não teria sentido algum. A gente está na vida pra mais do que isso,
não é?
LEGENDAS E CRÉDITOS:
Foto 1 (Rodrigo, corte, por favor, essa foto pra gente)
Legenda: Tiburi pensa e convida a pensar na filosofia como a prática do diálogo
Crédito: Jackson Romanelli
Foto 2
Legenda: Lucidez e emancipação seriam as potencialidades do exercício do pensamento e da
conversação – “E eu quero criar desacordo, crítica”
Crédito: Jackson Romanelli
Foto 3
Legenda: Para Tiburi, as fórmulas filosóficas têm pouca serventia - “Não se trata de refazer o
que os outros já viveram. Trata-se de experimentar do nosso jeito”
Crédito: Jackson Romanelli
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