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YOGA, ESPIRITUALIDADE E EXISTÊNCIA
João José Borges1
“Nosso corpo, enquanto se move a si mesmo, quer dizer, enquanto é inseparável de uma visão
do mundo e é esta mesma visão realizada, é a condição de possibilidade, não apenas da síntese
geométrica, mas ainda de todas as operações expressivas e de todas as aquisições que
constituem o mundo cultural.”Merleau-Pounty
1. A presença do yoga na cultura contemporânea
Caminho espiritual, disciplina de auto-conhecimento, filosofia de vida, arte corporal
ou uma exótica ginástica de origem hindu, o yoga tem adquirido fama e prestígio na
sociedade de consumo. Nas livrarias da cidade, encontramos livros sobre o tema em
seções de auto-ajuda ou de esoterismo, medicina alternativa, religiões e até nas de
esporte; pratica-se yoga em estúdios, academias, institutos e escolas. Na publicidade,
tem se tornado comum o uso de imagens de posturas que sugerem equilíbrio e bemestar, associando yoga ao produto em destaque.Também no cinema, na música, em
novelas, não é difícil encontrar alguma referência a essa filosofia milenar.
Há várias formas de entender o yoga e de praticá-lo. Um mestre antigo dizia que há
tantas formas de yoga quanto a própria diversidade humana, chegando a haver um tipo
ideal de yoga para cada indivíduo singular.Hipérboles à parte, o fato é que essa tradição
espiritual se adapta bem às várias demandas da vida moderna. Seja como uma proposta
terapêutica ou um modo alternativo de “cuidar do físico cuidando também da mente” , o
yoga assume um lugar de relativo destaque na cultura contemporânea.
2. O que é Yoga, afinal?
Yoga é um termo em sânscrito que significa “união”, “integração”, “disciplina”,
referindo-se a uma tradição espiritual originária da Índia Antiga. Acredita-se que tenha
mais de 5000 anos de existência. Tal tradição consiste em uma das seis escolas
filosóficas que formam o pensamento hindu. Entre as várias definições possíveis, a
definição clássica merece ser citada, porque aceita pela maioria das escolas, em virtude
de ser originada do Yoga Sutra de Patanjali, sábio hindu que escreveu o primeiro tratado
específico do yoga. Especula-se que tenha sido escrito há mais de 2.500 anos. Diz
Patanjali no segundo aforisma de sua obra: Yogash citta vritti nirodhah. Entre as
diversas traduções, temos: “yoga é a extinção dos turbilhões mentais”(YS;I-2). “Quando
isso acontece ”, continua Patanjali no sutra seguinte, “o praticante se encontra em sua
verdadeira natureza”(IS;I-3).
A busca por tal estado de ser tem fascinado os yogis de todos os tempos e lugares. A
despeito de seus contextos culturais diferenciados, relatos de praticantes indicam que há
algo em comum, um motivo que os une: essa aventura pelo reino da consciência, essa
possibilidade de auto-conhecimento através da prática de exercícios físicos e
respiratórios, mas também da adoção de princípios éticos e de uma transformação de
hábitos e atitudes diante de si e do mundo. Mais que auto-conhecimento, o yoga
proporciona uma via formidável de expressão e aprimoramento do estar-no-mundo.
1
João José de Santana Borges é doutorando em Ciências Sociais pela UFBA, professor de Yoga do
Estúdio ViaCorpo e do Espaço Sharanam.
No Ashtanga Yoga de Patañjali, os princípios éticos vão propiciar um terreno
adequado para que a prática espiritual floresça. Dos dez princípios, vamos nos deter em
5 deles: Ahimsa, não-violência; Satya, veracidade; Aparigraha, desapego; Tapas, autosuperação; swadhyaya, auto-estudo. Ahimsa é um princípio de caráter universal que
implica em não causar dano algum por meio de atos, palavras e pensamentos a nenhum
ser vivo. Para muitos, essa atitude justifica o vegetarianismo assumido pelos yogis, mas
também uma conduta que procura fortalecer uma cultura de paz, essencial para os dias
de hoje, na observância e consciência dos efeitos de nossa ação no cotidiano.
Veracidade, Satya, a busca pela verdade implica em um uso correto da palavra, no
intuito de manifestar uma espécie de coerência entre pensamento e atitude, a difícil e
necessária capacidade de “encarar a vida de frente”.
A pergunta “Quanta verdade és capaz de suportar?”(Nieztsche) cabe bem no
contexto da prática espiritual que o yogi desentranha, no processo de auto-descoberta.
Tapas significa auto-superação e fortalecimento da vontade, uma atitude de constante
lapidar-se, um temerário esforço que, por sua vez, vai se equilibrar com Samtosha, o
contentamento, o permanente estado de alegria com o qual o yogi enfrenta as situações,
extraindo-lhes lições e sinais, sobretudo porque para ele um dos frutos do viver
encontra-se no auto-estudo(Swadhyaya): a determinação para aprender com todas as
experiências da vida. Importante notar que este resgate de si, este resgate do corpo,
implica também no resgate do outro, daí ser o yoga uma potencial prática coletiva, em
que o outro é prolongamento de mim, enquanto seu corpo prolonga meu gesto, em um
estar-junto que é fundamento da existência, teia humana, trama, urdidura.
3..Ásanas (movimentos e posições corporais)e Pranayamas (exercícios respiratórios)
Uma tartaruga, um triângulo, uma cobra, uma árvore e um cachorro olhando
para baixo – o que estes elementos têm em comum? São nomes atribuídos às posturas
do yoga. Há uma infinidade delas, contando suas variações e modos de execução
diferenciados. Como mensurar seus efeitos? Na tradição do Ashtanga Vinyasa Yoga,
um dos estilos do Hatha Yoga tradicional, é dito que os ásanas (as posturas) abrem
espaço no corpo, por onde circula a força vital impulsionada pela respiração ritmada e
profunda. Algumas posturas fazem com que olhemos o mundo por outros ângulos e
pontos-de-vista, como as torções e as invertidas. O interessante é que o yoga traz para o
ocidental a possibilidade de religar o físico ao espiritual. Para a nossa cultura cristã, essa
é uma potencial revolução cultural que incita-nos a superar a dicotomia carne/espírito,
mente/corpo, eu/mundo. Entre tais dualidades, reside uma que é essencialmente
poderosa e originária de concepções fragmentadas: espiritualidade versus existência,
como se estas fossem duas dimensões antagônicas do humano, reproduzidas pelos
antagonismos mais explícitos. O yoga representa essa ponte entre o existencial –as
condições reais de nossa vida individual e coletiva, e o espiritual – o transcendente, o
vir-a-ser, a liberdade radical de ser.
O yogi, ao movimentar os seus membros em conjunção com o fluxo respiratório, inteiro
no ato dessa sincronicidade entre gesto e respiração, exerce uma visão de mundo
incorporada, em que a unidade, a inteireza do ser, torna-se possível. Ao executar
posições que remetem a animais, plantas ou seres arquetípicos, o yogi realiza uma
visão, um modo de ser no mundo. Em sua iniciativa de reproduzir na linguagem do
corpo, o triângulo ou outras formas geométricas, ele incorpora ideais de equilíbrio e
simetria.
4..Manifesto do Buddhi Yoga
Buddhi: inteligência, discernimento. No Samkhya, filosofia hindu, Buddhi
representa o princípio inteligente da manifestação, mais sutil que ahamkara, a noção de
ego, princípio individualizante. O Buddhi2 Yoga lança suas raízes no solo da tradição
milenar, para alimentar-se de preciosa seiva dos ensinamentos yogis (como os descritos
acima), em sua essência cristalina e vivificante. Por outro lado, o Buddhi Yoga se
enriquece de princípios budistas – sobretudo do ideal do Boddhisatva para a tessitura de
um diálogo abrangente com a tradição filosófica ocidental, sobretudo com a dialética
latu senso e com a fenomenologia. Não há qualquer pudor ou vacilação quanto ao
enfrentamento das contradições e paradoxos que permeiam a existência humana e que
se refletem certamente neste empreendimento arriscado. O compromisso deste Yoga é
com o humano e o existencial: é um caminho aberto, em construção. Não é apenas um
pacote de receitas milenares para sanar a dor da existência, tampouco um oráculo de
idéias prontas. O Buddhi Yoga assume sua historicidade e seu movimento imprevisível,
trágico.
Quanto à tradição mestre-discípulo, sua ruptura é radical: não há aquele
sentimento de fidelidade a um mestre exclusivo e único. Há uma comunidade de
mestres, em agudo politeísmo que se faz presente, de alguma forma,no cotidiano da
prática. Ao mesmo tempo, há um único Mestre que se manifesta em cada um deles, nas
mais diversas tradições. Aurobindo, Sivananda, Ananda Murti, Buda, Milarepa, A Mãe,
mas também: Hannah Arendt, Heidegger, Nieszcthe, Karl Marx, Marcuse, MerleauPounty, Spinoza, São Francisco de Assis, Jesus Cristo... não há fronteiras nem limites
prévios a esse manancial de tudo o que se pode abarcar da sabedoria humana. O Mestre
é a própria Vida Ùnica em uma pluralidade infinita de formas e manifestações. Aqui,
todo politeísmo aparentemente anárquico e incoerente é expressão da Unidade latente
em todos os seres e suas criações.
O Buddhi Yoga é profundamente ecológico e não poderia deixar de sê-lo. Sua
proposta é a integração, é a afirmação da plenitude da vida e consagração à Mãe Terra.
Se é necessária alguma ação política, seus praticantes a assumem. A consciência
testemunha do Yogi não contradiz seu engajamento no mundo, serve-lhe de fundamento
para a prática. A meditação não conduz a uma alienação ou alheamento das
circunstâncias históricas, mas é base para o tomar parte, o enxarcar das mãos, o
assumir-se agente de transformação em transformação (naquele que se É). Por mais
paradoxal que pareça, é a própria Paz agindo, lutando para afirmar a Justiça, a
Fraternidade, e a Liberdade enquanto ideais que tomam forma e querem ganhar
concretude. Pois que ganhem, também pelas mãos e pela fala daqueles que praticam o
Buddhi Yoga, o Yoga da Inteligência Superior.
HISTÓRIA DO YOGA
2
I O CONTRIBUTO DAS UPANISHADS
Esse conjunto de escrituras que surge por volta do ano 1900 aC pertence a herança da
tradição cultural que se convencionou chamar de hinduísmo, que, por sua vez, é um
conjunto de saberes, ritos, práticas, visões de mundo, englobando deuses e números, e
que, como religião, possui praticamente resposta para todas as questões existenciais do
homem, tal a sua amplitude e capacidade de assimilação.
Upanishads significa “sentar aos pés do mestre”, mas também “derrotar a ignorância
através da revelação do conhecimento do Supremo Espírito.” (Kupfer, 1998). Seu
contexto de origem remonta à transição da civilização hindu, do rio Sarasvati aos vales
do rio Ganges. Segundo Feurstein, para muitos autores, tal época, semelhante à idade
medieval na Europa, é considerada com a idade das trevas na Índia. As Upanishads
marcam, portanto, o alvorescer de uma abordagem espiritual alternativa, a princípio
marginal em relação ao forte ritualismo formal do Brahmanismo. A tradição yogue pósvédica, vai dizer Feurstein, configurou-se sobretudo no contexto desses grupos
marginais.
As Upanishads prometiam uma união mística com o Supremo. Mais que isso, acenavam
para a rationale essencial do yoga em todos os tempos: o domínio de si mesmo, o
domínio do seu próprio destino. Seus versos, de inspiração poética, eram memorizados
e recitados, seu significado e vivência eram transmitidos de mestre a discípulo ao longo
das gerações.
Originalmente, as Upanishads estão contidas em um dos quatro Vedas (Rig, Sama,
Yajur e Atharva Veda) que por sua vez contém quatro coleções
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