Narrativas do rio... O rio Carioca e a história da cidade do Rio de Janeiro Camile Jantália1 Luciene M. S. Moraes2 Marta Lyrio3 RESUMO Este texto representa o traçar de objetivos, atividades didáticas e resultados alcançados em um projeto desenvolvido na área de Estudos Sociais do Campus Tijuca I em parceria com o Laboratório de Informática Educativa. Neste projeto, o rio Carioca foi tomado como personagem central da narrativa construída, buscando realizar uma articulação entre o universo micro e o macro. Assim, partindo do contexto particular do rio a própria história e a geografia da cidade do Rio de Janeiro é (re)visitada pelos alunos. As atividades desenvolvidas procuraram mostrar para os alunos que tempo e espaço são indissociáveis nas narrativas históricas e que um contexto particular se reflete no global e vice-versa. PALAVRAS-CHAVE Estudos Sociais; Narrativas; Rio de Janeiro INTRODUÇÃO O rio Carioca nasce na base do Corcovado, no bairro do Cosme Velho, e corta outros bairros como, por exemplo, Laranjeiras, Catete e Flamengo, antes de desaguar na Baía de Guanabara passando por uma estação de tratamento de águas. A história deste rio pode nos auxiliar na construção-reconstrução da própria história da cidade do Rio de Janeiro, pois os grupos nativos que habitavam seu entorno já faziam uso de suas águas antes da chegada dos colonizadores no século XVI. A partir da chegada dos portugueses na área da Baía de Guanabara, as águas do rio “testemunharam” diferentes fatos históricos. Ao longo do passar contínuo do tempo, o rio “acompanhou” o processo de fundação da cidade e seus embates, a transferência da mesma e seu processo de expansão. Assim, do século XVI para cá, o rio não apenas alterou decisões humanas, 1 Campus Tijuca I, Departamento de Primeiro Segmento, Contato: [email protected] Campus Tijuca I, Departamento de Primeiro Segmento, Contato: [email protected] 3 Campus Tijuca I, Departamento de Primeiro Segmento, Contato: [email protected] 2 como também viu suas margens serem alteradas, seu curso desviado e suas águas morrerem lentamente. A história de uma cidade como o Rio de Janeiro pode ser contada-recontada no espaço da sala de aula a partir de múltiplos olhares e perspectivas, enfocando diferentes fatos e processos históricos. A partir deste entendimento, neste artigo estamos propondo apenas uma possibilidade de refletir sobre o processo de fundação da cidade e de sua expansão por meio da história do próprio rio Carioca. Problematizando como o homem em alguns momentos tem suas ações determinadas entre outras questões por aspectos naturais e como este mesmo homem altera os espaços de acordo com seus interesses e necessidades ao longo do tempo. Assim, tempo e espaço se conjugam nas intrigas da narrativa histórica. Sendo o recorte possivelmente micro-historiográfico privilegiado neste espaço, passível de “ser conectado aos mais distintos aportes teóricos, e é assim que ele tem aparecido inclusive na historiografia brasileira das últimas décadas”. (BARROS, 2007, p.168) DESENVOLVIMENTO A existência do rio Carioca está intimamente relacionada à história da cidade do Rio de Janeiro. Próximo à foz natural dele, foi construída, possivelmente em 1503, a mando de Gonçalo Coelho, uma feitoria que ficaria marcada na memória da cidade. Existem discussões a respeito das origens do nome Carioca, entretanto, uma das explicações mais difundidas seria a de que os indígenas tamoios que viviam na região passaram a chamar esta feitoria de “akari oka” e, com o passar do tempo, o rio passou a ser identificado pelo nome “Carioca”, termo que daria nome não só ao rio, mas também aos habitantes da cidade. Outra explicação relaciona o nome do rio a uma aldeia tupinambá que existia no aclive do outeiro da Glória. Tal aldeia (Karîoka) foi mencionada pelo francês Jean de Léry em seu relato sobre a França Antártica. O Carioca foi o rio que abasteceu a cidade séculos atrás. As águas desse rio foram canalizadas e desviadas já nos séculos XVII e XVIII, durante a construção do Aqueduto da Carioca. O aqueduto, depois de terminado, alimentava várias fontes e chafarizes do Rio de Janeiro no período colonial. Uma das principais dessas fontes localizava-se num largo no centro da cidade, o que deu origem ao nome do Largo da Carioca. O rio foi, durante toda a época colonial, a principal fonte de água doce para a população. Para levar a água até o atual Largo da Carioca, foi construído um aqueduto. A construção existe até a atualidade, sendo hoje facilmente percebida por meio dos “Arcos da Lapa”. Na contemporaneidade, o rio que nasce na Floresta da Tijuca, corre em sua maior parte canalizado abaixo das ruas do Cosme Velho e Laranjeiras até encontrar a Baía de Guanabara em sua foz na praia do Flamengo. Um dos poucos lugares onde é possível ver o rio passar a céu aberto é em um local conhecido como Largo do Boticário, no Cosme Velho. As águas do rio que já foram potáveis e abastecerem a cidade, hoje vem sendo poluídas ao longo de seu curso de tal modo que suas águas precisam passar por uma estação de tratamento antes de chegarem a Baía de Guanabara. Assim, trabalhar com o rio Carioca nos pareceu fértil por permitir trabalhar com diferentes aspectos da história e da geografia da cidade do Rio de Janeiro. O que nos propomos durante a realização do projeto aqui retratado, mais especificamente, foi uma redução na escala de observação com a intenção de identificar aspectos sobre a cidade que, de outro modo, poderiam passar despercebidos pelos alunos. Nessa perspectiva, apostamos na relevância de relacionar diferentes fatos históricos, redimensionando espacialidade e temporalidade a partir das águas do rio Carioca. Nesse sentido, traçamos os seguintes objetivos para o trabalho de Estudos Sociais sobre a relação entre a história da cidade do Rio de Janeiro e a história do rio Carioca com o quarto ano de escolaridade do campus Tijuca I: Objetivo Geral: ✓ Construir noções sobre diferentes fatos e processos históricos da cidade do Rio de Janeiro a partir da própria história do Rio Carioca. Objetivos específicos: ✓ Compreender que os espaços se modificam ao longo do tempo. ✓ Refletir sobre como as ações humanas modificam o meio ambiente tendo impactos positivos ou negativos. ✓ Ler diferentes fontes. (Cartografia, imagens, textos...) ✓ Perceber que o próprio nome do rio se confunde com o nome atribuído aos habitantes da cidade, o que revela que os nomes não existem em si e por si a priori, mas são construídos-reconstruídos socialmente. ✓ Observar que as narrativas históricas mobilizam tempo, espaço e personagens na construção-reconstrução de intrigas. Para o desenvolvimento desses objetivos, nos apoiamos nas contribuições de Paul Ricoeur sobre as narrativas históricas, assumindo que qualquer narrativa representa uma “síntese do heterogêneo” (RICOEUR, 2010), não havendo prioritariamente coerência interna ou externa a qualquer narração. Desse modo, tal coerência pode ser percebida aqui como sendo contingencialmente construída pelos alunos ao longo do desenvolvimento do projeto. Tendo em vista o referencial teórico aqui privilegiado, que considera a estrutura narrativa do conhecimento histórico como uma estrutura espaçotemporal; tempo, espaço, personagens e intrigas são inerentes a configuração epistemológica da disciplina Estudos Sociais. Assim, qualquer formulação de atividades que mobilize conteúdos históricos, mobiliza também noções de tempo, que por sua vez articulam passados, presentes e futuros em determinadas espacialidades. Para Ricoeur, a narrativa histórica é o que permite dar sentido à experiência humana no tempo. Uma vez recontextualizada na esfera escolar, a estrutura narrativa fornece interpretações, tornando a relação passado-presente, no espaço, inteligível para os alunos. Sua seleção é feita de acordo com as problemáticas sociais de cada época e lugar, e com os valores que se deseja formar, nos quais se deseja investir, durante o processo de escolarização. A disciplina escolar Estudos Sociais, com suas especificidades, reelabora o conhecimento produzido no campo das pesquisas por especialistas do campo das Ciências Humanas, selecionando e organizando partes de resultados de trabalhos considerados científicos, hibridizando-os de acordo com os sentidos de mundo que mobiliza e as perspectivas de seus objetivos didáticos. No caso do projeto aqui detalhado, fluxos epistemológicos das áreas de referência História e Geografia foram mobilizados para dar sentido à narrativa do Rio Carioca. Como aponta Chevallard (1991), o movimento de “transposição didática” que ocorre tanto no âmbito da noosfera, como da sala de aula, se refere aos processos de reelaboração do saber acadêmico em saberes a serem ensinados nos diferentes contextos escolares. Processos que envolvem os professores quando estes elaboram algumas das configurações discursivas possíveis do seu saber disciplinar, no caso em questão dos Estudos Sociais no Colégio Pedro II, os docentes, ao trabalharem na transposição, não a fazem de forma exclusiva, nem tampouco isolada. Em diálogo com esse autor, Gabriel afirma que: o conceito de transposição didática emerge assim para explicar o processo obrigatório de transformação. Se de um lado, o termo ‘transposição’ não traduz bem a ideia de transformação, que ele pretende nomear, de outro, tem o mérito de pressupor, logo de saída, o reconhecimento de um distanciamento obrigatório entre os diferentes saberes, o que não deve, de forma alguma, ser minimizado. (GABRIEL, 2001, p.6) A assunção da disciplina Estudos Sociais como constituída por uma interdisciplinaridade epistemológica, tradutora de uma configuração específica dos conhecimentos históricos apreendidos como formas narrativas da História ensinada4 conduz a interpretar que os processos de seleção e organização dos conteúdos que validam os conhecimentos a serem ensinados, em meio aos processos de “transposição didática”, pressupõem reelaborações da estrutura narrativa do conhecimento histórico e geográfico. Nessa perspectiva, tomando o rio Carioca, como personagem central da narrativa do projeto, buscamos realizar uma articulação entre o universo micro e o macro, partindo de um contexto particular para (re)visitar a história e a geografia da cidade do Rio de Janeiro. Procurando mostrar para os alunos que um contexto particular se reflete no global e vice-versa, o próprio Carioca passou a contar a História do Rio de Janeiro. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS O início do projeto do qual este artigo é resultado foi desenvolvido por meio de um conjunto de aulas no Laboratório de Informática utilizando apresentações em Power Point. A professora das turmas do quarto ano conduziu as discussões contando alguns detalhes da história do rio Carioca com o apoio de slides e depois passou um vídeo com uma reportagem sobre o rio na contemporaneidade. Ouvindo também o que os alunos tinham a dizer, a professora promoveu algumas discussões, perguntando, por exemplo, quais informações mais chamaram a atenção dos alunos. As turmas conversaram sobre o trajeto do rio ao longo da história e na atualidade, poluição ao longo do passar do tempo, a função da estação de tratamento das águas do Carioca, a importância do rio para o abastecimento da cidade no passado, origem do nome e curiosidades diversas sobre o rio. Para abordar como as características geográficas interferem na ocupação dos espaços, a professora trabalhou com imagens que realizavam a exploração do relevo, ressaltando a presença das águas e os morros. Os alunos fizeram comparações de mapas de diferentes temporalidades, refletindo a 4 Sobre esse tema ver: GABRIEL, C. T. O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de História: tensões e perspectivas. Simpósio Endipe, 2006. ________. Um objeto de ensino chamado História: a disciplina de História nas tramas da didatização. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em educação da PUC-Rio. Rio de Janeiro, 2003. MONTEIRO, A. M. A prática de ensino e a produção de saberes na escola. In: CANDAU, V. M. (Org.) Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. partir de representações da Baía de Guanabara, disposição dos rios do município, presença das lagoas e baías do Rio de Janeiro, trajeto da desembocadura do rio Carioca por satélite... Também foi realizada a análise de diversas imagens, como fotografias e pinturas. Depois, a turma iniciou um conjunto de aulas com base nos textos Os franceses na Guanabara (SIEBERT, 2005) e A transferência da cidade do Rio de Janeiro (SIEBERT, 2005), realizando dinâmicas com base nas informações obtidas. Escreveram, então um texto breve como uma forma de sintetizar os conteúdos trabalhados. Algumas questões sobre o rio Carioca apareceram em várias produções textuais, o que demonstra que os alunos acompanharam as discussões. Os assuntos que mais se destacaram na produção dos alunos foram: a importância do Rio Carioca para a cidade do RJ, origem do nome, localização (nascente, foz e bairros que atravessa), relação dos indígenas com o rio, poluição e tratamento das águas. A ideia para fechamento do trabalho foi seguir um roteiro do trajeto do rio Carioca em uma aula de campo. Tal roteiro objetivava primeiramente no Largo do Boticário, conversar sobre a história do rio e observar o local. Depois seguir até o Cosme Velho para observar a canalização do rio e compreender que a maior parte do Carioca hoje corre de modo subterrâneo. O roteiro da aula de campo se encerra em uma visita, previamente agendada, na estação de tratamento da Praia do Flamengo (Rioáguas). Por fim, ocorre o desague do rio na Baía de Guanabara a poucos metros da estação. RESULTADOS A história de uma cidade como o Rio de Janeiro pode ser contada-recontada no espaço da sala de aula a partir de múltiplos olhares e perspectivas, enfocando diferentes fatos e processos históricos. A partir deste entendimento, propomos aos nossos alunos uma possibilidade de refletir sobre o processo de fundação da cidade e de sua expansão por meio da história do próprio rio Carioca, realizando um projeto que contou com o suporte da Informática Educativa. Problematizamos como o homem em alguns momentos tem suas ações determinadas entre outras questões por aspectos naturais e como este mesmo homem altera os espaços de acordo com seus interesses e necessidades ao longo do tempo. Assim, tempo e espaço se conjugaram nas intrigas da narrativa histórica que construímos ao longo das aulas de Estudos Sociais do quarto ano de escolaridade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio do projeto Narrativas do rio... buscamos (re)construir a história do Rio de Janeiro a partir da própria história do Rio Carioca. Partindo de uma proposta interdisciplinar abordamos outros temas como, por exemplo, poluição das águas, desenvolvimento urbano, uso da cartografia e outras formas de representação dos espaços. Assim interpretamos imagens e textos de diferentes períodos históricos, assistimos vídeos, realizamos debates, construímos diferentes tipos de produções textuais e refletimos sobre a cartografia, dentre outras atividades realizadas. Partindo da referência do rio Carioca em diferentes períodos históricos, o projeto destacou permanências e modificações, continuidades e descontinuidades; aliando discussões sobre processos históricos e processos de alteração dos espaços. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARROS, José D’ Assunção. Sobre a feitura da micro-história. OPSIS, vol. 7, nº 9, juldez 2007. CHEVALLARD, Y. La Transposición Didáctica: del saber sabio al saber enseñado. Argentina: Editora Aique, 1991. GABRIEL, C. T. O saber histórico escolar: entre o universal e o particular. In: Seminário: A Geografia e a História no Ensino Fundamental, 2001, Rio de Janeiro. Caderno do Seminário. Rio de Janeiro: SME/RJ, 2001. ________. O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de História: tensões e perspectivas. Simpósio Endipe, 2006. ________. Um objeto de ensino chamado História: a disciplina de História nas tramas da didatização. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em educação da PUCRio. Rio de Janeiro, 2003. MONTEIRO, A. M. A prática de ensino e a produção de saberes na escola. In: CANDAU, V. M. (Org.) Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Tomo I, II e III. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF – Martins Fontes, 2010. SIEBERT, Célia. História do Estado do Rio de Janeiro. São Paulo: FTD, 2005. SITES CONSULTADOS: http://www.riodejaneiroaqui.com/portugues/rio-carioca.html http://www.aquafluxus.com.br/o-carioca-esquecido-pelos-cariocas/ http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/48-ageografia-do-rio-antes-de-ser-o-rio/2398-o-rio-carioca https://ama2345decopacabana.wordpress.com/planejamento-urbano/a-historia-doabastecimento-comeca-no-rio-de-janeiro/ http://arte.folha.uol.com.br/tudo-sobre/rio-em-transformacao/rio-carioca/ http://www.bvsde.paho.org/bvsAIDIS/PuertoRico29/pessoa.pdf http://arte.folha.uol.com.br/tudo-sobre/rio-em-transformacao/rio-carioca/ http://diariodorio.com/historia-do-morro-do-castelo/