REVISÃO Pré-eclâmpsia: o que há de anômalo na placentação? Preeclampsia: what is wrong with placentation? Patrícia Nessralla Alpoim1 Melina de Barros Pinheiro1 Sandra Cristina Armond2 Augusto Henriques Fulgêncio Brandão3 Antônio Carlos Vieira Cabral4 Karina Braga Gomes5 Luci Maria Sant’Ana Dusse5 Palavras-chave Pré-eclâmpsia Placentação Invasão trofoblástica Keywords Preeclampsia Placentation Trophoblastic invasion Resumo A pré-eclâmpsia (PE) constitui a principal causa de morte materna em diversos países do mundo e contribui significativamente para a prematuridade, o baixo peso fetal e o aumento da mortalidade neonatal. A placenta constitui o substrato anatômico etiopatogênico principal para a doença, inclusive em ambiente extra-uterino ou na ausência de embrião. O único tratamento efetivo para a PE consiste na interrupção da gravidez e remoção completa da placenta. Em muitos casos, esta medida precisa ser tomada prematuramente, visando garantir a vida da mãe, do bebê ou de ambos. Estudos clínicos, histológicos e laboratoriais demonstram alterações hemodinâmicas, histológicas, imunológicas e bioquímicas na placentação de mulheres portadoras de PE. Entender como essas alterações assumem proporções sistêmicas no organismo materno pode ser a chave para impedir a progressão abrupta e violenta da doença. Certamente, o entendimento de todo o processo fisiopatológico é necessário para qualquer proposta de predição, prevenção ou terapia que possa diminuir as altíssimas taxas de mortalidade atribuídas à PE. Abstract Preeclampsia (PE) is the leading cause of maternal death in many countries worldwide and contributes significantly to prematurity, low fetal weight and increased neonatal mortality. The placenta seems to be the main etiopathogenic anatomical substrate for the disease even in extra-uterine environment or in the absence of the embryo. The only effective treatment for PE is the pregnancy interruption and complete placenta removal. In many cases, this action needs to be taken prematurely in order to ensure the life of the mother, baby or both. Clinical, histological and laboratory have shown hemodynamic, histological, immunological and biochemical abnormalities in placentation in women with PE. Understanding how these changes take on systemic proportions in the mother may be the key to prevent the abrupt progression of the disease. Indeed, an understanding of all physiological and the alterations in PE process is required for any action of prediction, prevention or therapy that can reduce the extremely high rates of mortality associated to PE. Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG), Brasil. Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas da UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil. Doutor em Medicina; Professor convidado no Programa de Pós-graduação Saúde da Mulher na UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil. 4 Doutor em Medicina; Professor titular Departamento de Ginecologia e Obstetrícia na UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil. 5 Doutora professora do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Farmácia na Universidade Federal de Minas Gerais UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil. Endereço para correspondência: Luci Maria SantAna Dusse – Avenida Antonio Carlos, 6627, Bloco 3, Sala 4104 – CEP: 31270-901 – Belo Horizonte (MG), Brasil – Email: [email protected] 1 2 3 Alpoim PN, Pinheiro MB, Armond SC, Brandão AHF, Cabral ACV, Gomes KB, Dusse LMS Pré-eclâmpsia A pré-eclâmpsia (PE) constitui a principal causa de morte materna em diversos países do mundo e contribui significativamente para a prematuridade, o baixo peso fetal e o aumento da mortalidade perinatal. Caracteriza-se, em sua forma pura, pelo aparecimento de hipertensão e proteinúria em gestantes normotensas, após a vigésima semana de gestação, na grande maioria das vezes. Clinicamente é importante distinguir a forma grave da doença, que evolui com maior comprometimento sistêmico. A doença pode ser complicada por condições clínicas ainda mais graves como a eclâmpsia, a síndrome HELLP (Haemolysis, elevated liver enzyme activity, low platelets) e coagulação intravascular disseminada (CIVD)1 (C). A PE está associada a elevado custo social, uma vez que, frequentemente, resulta na internação prolongada da gestante e do recém-nascido, podendo gerar sequelas em ambos1 (C). A etiologia dessa doença é ainda desconhecida e sua ocorrência natural se dá apenas em seres humanos e primatas superiores. O único tratamento efetivo consiste na interrupção da gravidez e remoção completa da placenta. Em muitos casos, esta medida precisa ser tomada prematuramente, visando garantir a vida da mãe, do bebê ou de ambos. A placenta parece constituir o substrato anatômico etiopatogênico principal para a doença e não há conexão com o ambiente uterino, uma vez que pode se manifestar na ausência de embrião e em casos de gestação tubária ou mesmo abdominal2 (D). Embora alguns exames auxiliares façam parte da monitoração da gestante com suspeita de PE, o diagnóstico é feito efetivamente pela medida da pressão arterial e determinação da proteinúria1 (C). Apesar dos sintomas da PE manifestarem após a vigésima semana de gestação, atualmente tem sido aceito que a patogênese da doença é estabelecida precocemente na fase da placentação2,3 (D,C). Esta revisão teve por objetivo abordar aspectos da placentação fisiológica e fazer uma revisão da literatura relativa às alterações que ocorrem na PE no que se refere à placentação. Placentação Placenta A placenta consiste em uma estrutura de vilosidades ramificadas. Cada vilosidade contém vasos sanguíneos fetais e macrófagos em um centro de tecido conjuntivo mesenquimal cercado por duas camadas de células especializadas (trofoblastos). A camada interna é composta por células-tronco de citotrofoblasto, mononucleares e a externa por sinciciotrofoblastos multinucleados, que cobre 100 FEMINA | Março/Abril 2013 | vol 41 | nº 2 toda a superfície das vilosidades da placenta, constituindo uma barreira ao sangue materno. Os citotrofoblastos se fundem aos sinciciotrofoblastos sobrejacentes para apoiar sua expansão e funcionar como local de troca de nutrientes e síntese de esteróides e hormônios. Os citotrofoblastos localizados nas extremidades das vilosidades também se diferenciam em trofoblastos extravilosos que crescem para fora da placenta em colunas que se fundem às vilosidades vizinhas para formar uma camada celular, que invade a decídua e remodelam as artérias em espiraladas4 (D). O desenvolvimento da placenta é importante desde o início da gestação, com diferenciação e invasão dos trofoblastos na decídua e, consequente remodelamento das artérias espiraladas, processo crucial para o sucesso da gestação4 (D). Implantação e formação dos trofoblastos O processo de implantação, após a fecundação do óvulo e formação do zigoto, inclui a aposição, adesão ao epitélio uterino e a implantação propriamente dita ou penetração e, finalmente, a decidualização. O primeiro evento de diferenciação celular dá origem a duas células distintas, a célula precursora da massa celular interna, a qual originará ao embrião e a célula precursora do trofectoderma, tecido responsável pela formação do citotrofoblasto viloso e extra viloso que darão origem, respectivamente, ao sinciotrofoblasto e trofoblasto invasivo. Esse, posteriormente, dará origem ao trofoblasto endovascular e multinucleado5 (D). A unidade originada após cada segmentação celular corresponde ao blastômero e, a partir de 16 blastômeros, denomina-se blastocisto. O blastocisto estabelece contato com o epitélio endometrial, por aposição e adesão, que envolve modificações moleculares da superfície, tanto das células trofoblásticas, quanto das células epiteliais uterinas. Em seguida, ocorre a morfogênese do trofoblasto viloso, com proliferação rápida e crescimento distal das células citotrofoblásticas, formando o vilo primário. Quando o vilo primário sofre invasão pelas células mesenquimais fetais, esse passa a ser denominado vilo secundário e quando há formação de capilares é denominado vilo terciário6 (D). As células citotrofoblásticas sofrem divisões assimétricas responsáveis pela formação de dois tipos celulares, células progenitoras, com a finalidade de manter o pool de células do citotrofoblasto, e células intermediárias, as quais se fundirão posteriormente para dar origem ao sinciciotrofoblasto. As células do pool aumentam em número durante o crescimento placentário, no entanto, se tornam espaçadas e com volume menor à medida que a área do sincício aumenta6 (D). Diversas moléculas de adesão são expressas na superfície das células intermediárias (caderinas, proteínas de junção estreita e outras). Além disso, produtos de genes capazes de mediar a Pré-eclâmpsia: o que há de anômalo na placentação? fusão de células, como ADAM 12 e proteínas do envoltório do envelope de retrovírus (syncytin 1 e 2), também são formadas proporcionando, dessa forma, a fusão das células intermediárias do citotrofoblasto e, consequentemente, a formação do sinciciotrofoblasto. A síntese de DNA ocorre apenas nas células do citotrofoblasto e essas têm índice mitótico de 1,5 a 2,9%, da sexta a nona semana de gestação. O sinciciotrofoblasto é exclusivamente pós-mitótico e seu índice mitótico é zero7 (C). O sinciciotrofoblasto é constituído por uma camada multinuclear, contínua e ininterrupta de células que envolve o citotrofoblasto e é responsável pela regulação das trocas gasosas, de substratos e outros fatores entre a circulação fetal e materna. Além disso, é responsável pela síntese e secreção de várias proteínas, hormônios esteróides e fatores de crescimento, como a gonadotrofina coriônica (hCG) e lactogênio placentário6 (D). A diferenciação do citotrofoblasto primário em sinciciotrofoblasto ocorre em dois estágios. No primeiro, as células do citotrofoblasto proliferam, agregam e fundem-se para formar o sincício. No segundo, ocorre a diferenciação bioquímica, quando as células expressam genes envolvidos no transporte de substratos, síntese e secreção de hormônios8 (C). Invasão trofoblástica e remodelamento das artérias espiraladas Nos estágios iniciais da gestação, as células trofoblásticas fetais invadem a parede uterina de forma bem organizada. Colunas de células citotrofoblásticas se formam das extremidades das vilosidades de ancoragem e uma camada de células, os trofoblastos extravilosos, invadem a decídua na direção das artérias espiraladas do útero. Dessa forma, os trofoblastos atingem o miométrio superficial na oitava semana de gestação9 (D). O fornecimento de sangue para o útero é feito por meio de uma estrutura de vasos ramificada, que mostra uma diminuição sucessiva no diâmetro dos vasos, à medida que progridem através do miométrio e endométrio, as artérias espiraladas8 (C). Essas suprem de sangue a camada endometrial e, no útero grávido, o miométrio e a decídua. Ao longo da gestação as artérias espiraladas do leito placentário são remodeladas e deixam de apresentar alta resistência e baixo fluxo, passando a ter diâmetro dilatado, com consequente aumento do fluxo sanguíneo e redução da pressão. Essas alterações ocorrem como resultado da perda de células musculares lisas e da lâmina elástica da parede do vaso. O endotélio é temporariamente substituído por uma camada de trofoblasto, embora seja restaurado mais tarde na gestação. A luz do vaso remodelado fica dilatada e há deposição de trofoblasto e de uma matriz fibrinóide na parede do vaso. Acredita-se que praticamente todas as 100–150 artérias do leito placentário são transformadas. As artérias do centro da placenta sofrem um processo de remodelação mais intenso8 (C). A invasão dos trofoblastos extravilosos pode ocorrer via intersticial, através da decídua, ou endovascular, através das extremidades distais das artérias em espiral, onde a invasão ocorre de forma retrógrada ao fluxo sanguíneo. Embora muitos estudos já tenham sido realizados visando um melhor entendimento do processo de remodelamento das artérias, a importância desempenhada pelas diferentes vias de invasão do trofoblasto ainda não foi esclarecida. Alterações vasculares relacionadas à via intersticial, incluindo vacuolização das células endoteliais e edema das células muscular lisa vascular (CMLV), ocorrem antes da invasão do trofoblasto e podem estar sob o controle dos mesmos fatores responsáveis pelas alterações iniciais na decídua, como hormônios esteróides10 (D). Após a invasão dos trofoblastos extravilosos ocorre a invasão dos trofoblastos intersticiais que podem influenciar as células da parede do vaso, preparando-as para a invasão endovascular subsequente11 (D). Acredita-se que ocorra uma interação inicial dos trofoblastos intersticiais com as CMLV, uma vez que essas células são as primeiras a serem perdidas das camadas mais externas dos vasos. Os efeitos sobre a organização medial e proteínas da matriz extracelular parecem ser particularmente importantes. Estudos recentes de imuno-histoquímica sugeriram que as células do sistema imunológico podem desempenhar um papel na invasão trofoblástica12 (D). A invasão do trofoblasto ocorrendo por via endovascular facilita a interação inicial com o endotélio e as células do trofoblasto e células endoteliais coexistem transitoriamente em vasos em remodelação. Após a perda do endotélio os trofoblastos endovasculares são então posicionados para exercer maior influência na CMLV medial6 (D). Ainda não está claro se o trofoblasto endovascular tem uma rota de invasão distinta do trofoblasto intersticial10 (D). Sabe-se que a invasão do trofoblasto pode ser influenciada por uma infinidade de fatores regulatórios, tais como citocinas e fatores de crescimento, moléculas de adesão, metaloproteinases de matriz (MMPs) e tensão de oxigênio13 (C). O ambiente celular local incluindo as células do sistema imunológico materno presentes na decídua (macrófagos e células natural killer deciduais-NKd), interações diretas ou a secreção de fatores solúveis podem, também, influenciar o processo de invasão, bem como o fenótipo do trofoblasto. Dessa forma, estudos imunohistoquímicos têm sugerido que ocorre alteração na expressão de várias moléculas de adesão pelos trofoblastos, à medida que esses vão se aproximam das artérias espiraladas, como preparação para a interação e substituição das células vasculares14 (D). FEMINA | Março/Abril 2013 | vol 41 | nº 2 101 Alpoim PN, Pinheiro MB, Armond SC, Brandão AHF, Cabral ACV, Gomes KB, Dusse LMS Vários mecanismos podem estar envolvidos nas alterações que ocorrem nas células vasculares e seu microambiente, como a reestruturação da matriz extracelular, diferenciação das células vasculares, migração, mudanças na adesão celular e sensibilidade à apoptose. Tais eventos não são mutuamente exclusivos e podem ser interdependentes. Alguns desses mecanismos podem ser mediados, em parte ou totalmente, pelo trofoblasto invasor. Além disso, as células do sistema imunológico materno podem desempenhar um papel importante nesse processo. O destino de cada célula endotelial e CMLV dentro do lúmen do vaso são dependentes do equilíbrio entre estímulos pró e anti-apoptóticos. Na artéria espiralada, a perda de células vasculares não implica na perda da integridade do vaso, sugerindo que os mecanismos envolvidos nesse processo são fortemente regulados15 (D). A integridade estrutural e funcional das artérias espiraladas é mantida pela matriz extracelular, uma estrutura complexa de composição variável sintetizada e mantida em um estado de equilíbrio dinâmico pela atividade estritamente balanceada de enzimas proteolíticas. A parede da artéria espiralada é composta por três camadas distintas com as células do vaso incorporadas na matriz. A íntima consiste de uma única camada de células endoteliais que se encontra no topo da membrana basal constituída predominantemente de colágeno tipo IV e lamininas (elastina e fibronectina) que separam as células endoteliais e as CMLV fornecendo força, resistência e suporte à parede do vaso. A camada média contém fibras elásticas envolve a CMLV e a adventícia é constituída predominantemente por fibras colágenas e fibroblastos. Tanto a camada média quanto a adventícia impedem a invasão trofoblástica intersticial, enquanto a membrana basal e a lâmina elástica interna formam uma barreira à invasão endovascular e ao remodelamento das artérias16 (D). As alterações na estrutura das artérias espiraladas iniciam antes da chegada do trofoblasto e estão associadas à presença de leucócitos maternos12 (D). A chegada subsequente de trofoblasto intersticial resulta na alteração do segmento das artérias espiraladas do miométrio, incluindo a dilatação do lúmen, edema da íntima, rompimento da lâmina elástica e aumento dos espaços intercelulares. A desorganização da íntima e da média ocorre após a chegada dos trofoblastos endovasculares, que invadem o espaço subendotelial e rompem a interação entre as células endoteliais, degradando a elastina17 (C). As enzimas proteolíticas sintetizadas e liberadas pelas células vasculares e pelos trofoblastos invasores parecem exercer um papel central para a remodelação da matriz. As principais são as metaloproteinases de matriz (MMPs), uma família de endopeptidases dependentes de zinco que degradam todos os componentes da matriz extracelular. As MMPs são produzidas pelas células endoteliais (MMP-1 e -9), 102 FEMINA | Março/Abril 2013 | vol 41 | nº 2 CMLV (MMP-2, -9, e elastase MMP-12), células natural killer decidual, macrófagos e trofoblastos extravilosos invasivos (MMP-1, -2, - 9 -12 e MMP tipo membrana). Células NKd também liberam granzima, uma serina protease com atividade tripsina-like que degrada uma série de substratos, incluindo colágeno IV e fibronectina18 (C). A sobrevivência das células endoteliais e das CMLV depende da interação dessas com a matriz extracelular, bem como da geração de sinais intracelulares específicos. A ausência de sinais consequente à degradação da matriz extracelular, ou a liberação de peptídeos inibitórios após a degradação dos componentes da mesma, pode resultar na indução de uma forma específica de apoptose conhecido como anoikis, onde as células se destacam da matriz. Os efeitos da degradação da matriz resultando em migração ou perda de células são dependentes da extensão e duração desse processo. Dessa forma, para que ocorra o remodelamento das artérias espiraladas é necessário que haja a perda das células vasculares e a destruição da matriz extracelular19 (D). Uma característica das alterações fisiológicas que ocorrem no processo de remodelamento das artérias espiraladas é a secreção de material fibrinóide (fibronectina, colágeno tipo IV e laminina) pelo trofoblasto extraviloso. Embora este material se assemelhe ao da membrana basal, sua secreção não é polarizada e, dessa forma, os trofoblastos são incorporados dentro da matriz. Provavelmente a deposição desse material fibrinóide tem como função manter a integridade do vaso recém remodelado, bem como formar uma membrana basal sobre a qual a re-endotelização possa ocorrer20 (D). O fenótipo e o comportamento das CVLM, em qualquer vaso, resultam da amplitude de diferenciação dessas células. Ao contrário de outras células musculares, as CMLV não são totalmente diferenciadas e podem alternar entre os fenótipos funcionais (contrátil) e sintéticos (proliferativa) dependendo de mudanças na expressão de múltiplos genes21 (D). No remodelamento da artéria espiralada, uma mudança no fenótipo de CMLV pode resultar em aumento da sensibilidade a estímulos apoptóticos ou em aumento da migração dessas células. De fato, a diferenciação de CMLV é conhecida por aumentar o seu potencial migratório. A perda do fenótipo contrátil está associada à alteração da estrutura da parede dos vasos, incluindo a perda da organização em camadas de CMLV, a migração para longe da luz dessas células e perda de marcadores de diferenciação em outros exemplos de remodelação vascular, como aterosclerose22 (C). O fenótipo da CMLV é dependente de uma série de fatores externos, incluindo as células vizinhas e a matriz extracelular. As células endoteliais promovem a diferenciação de CMLV estimulando a expressão de proteínas contráteis e ao mesmo tempo, inibem tanto a deposição de matriz quanto a prolifera- Pré-eclâmpsia: o que há de anômalo na placentação? ção dessas células. Tem sido admitido que a liberação de óxido nítrico (NO) pelas células endoteliais tem um papel importante nesse processo23 (D). Sabe-se que os trofoblastos podem secretar citocinas inflamatórias, incluindo fator de necrose tumoral alfa (TNF-a) e interleucina 1β (IL-1β) que poderiam estimular a expressão da forma induzível da óxido nítrico sintase (iNOS) pelas CMLV e resultar na apoptose dessas células24 (D). Influências hemodinâmicas As interações entre células endoteliais e CMLV são influenciadas por fatores mecânicos, tais como tensão de cisalhamento e pressão e sinais parácrinos e autócrinos. Estes sinais são derivados tanto do interior da parede do vaso quanto de células vizinhas e podem afetar propriedades fundamentais das células, tais como o estado de diferenciação e a sobrevivência. Perturbações dessas interações, seja como resultado das alterações hemodinâmicas que podem acompanhar a gestação, ou pela presença de trofoblasto invasor, podem ter um papel importante no processo de remodelamento arterial25 (D). As alterações hemodinâmicas que ocorrem nas artérias espiraladas em transformação são muito expressivas. A formação de um tampão de trofoblastos endovascular nas primeiras semanas de gestação reduz drasticamente o fluxo de sangue nesses vasos e, ao mesmo tempo aumenta a pressão. Conforme a gestação avança, a pressão dentro dos vasos diminui, devido à perda da integridade desse tampão. Dessa forma, o fluxo de sangue para o espaço interviloso aumenta o que resulta no aumento da tensão de cisalhamento nas paredes dos vasos. No entanto, ainda não está bem esclarecido como as alterações hemodinâmicas poderiam influenciar o processo de remodelamento da artéria espiralada26 (D). Papel do sistema imunológico Considerando que metade dos genes do embrião é de origem paterna e, portanto estranhos ao sistema imunológico materno, a implantação da placenta e do embrião são vistos como um “semi-enxerto”. No entanto, o sistema imunológico da mãe consegue reconhecer a placenta como um “próprio temporário” e, na gestação normal, não desencadeia uma resposta imune contra essa. Vários fatores contribuem para essa tolerabilidade incluindo o fato do trofoblasto não expressar moléculas de MHC das classes I (HLA-A e B) e II. Além disso, o trofoblasto expressa uma combinação única de moléculas MHC, HLA-C (classe Ia), HLA-G e HLA-E (classe Ib), que previnem a resposta imune materna à placenta e embrião. O HLA-G pode interagir com receptores de linfócitos T citotóxicos e células natural killer (NK) e inibir sua capacidade de induzir a lise celular, permitindo que o trofoblasto coexista com um grande número de células do sis- tema imunológico materno nas proximidades. Estudos sugerem que as células deciduais imunológicas desempenham funções vitais para garantir o sucesso da gravidez. Uma população de células natural killer especializadas, denominadas células natural killer deciduais (NKd), infiltram o útero antes da implantação e permanecem em grande número (aproximadamente 70% dos leucócitos deciduais) durante todo o primeiro trimestre da gestação. As células NKd têm propriedades bastante distintas das células NK do sangue periférico e exibem um fenótipo CD56bright e CD16negativo. Apenas um pequeno percentual de células NKd expressam o receptor de ativação CD160, comum a maioria das células NK periféricas. Assim, as células NKd não parecem ser naturalmente citotóxicas e podem ter uma função completamente diferente no ambiente uterino. Estas células parecem estar associadas aos vasos endometriais e glândulas endometriais e influenciam uma série de processos que são essenciais para o processo de implantação, como a invasão do trofoblasto e remodelamento da artéria espiralada e a tolerância imune à placenta e ao feto alogênico. Além disso, expressam citocinas que normalmente não são produzidas por células NK periféricas, incluindo citocinas angiogênicas, como fator de crescimento vascular endotelial (VEGF), fator de crescimento placentário (PlGF) e angiopoietina-227 (C). A infiltração de NKd e macrófagos nas camadas de CMLV em torno das artérias espiraladas tem o propósito de destruir essas camadas e preparar para a fase seguinte de remodelamento das artérias induzido pelos trofoblastos. Interações entre as células NKd e o trofoblasto invasor também têm sido observadas in vitro, resulta na produção de uma série de citocinas, incluindo TNF-α, interferon-γ (IFNγ) e fator estimulador de colônia de monócitos (M-CSF), que podem afetar a apoptose do trofoblasto, invasão e remodelação27 (C). Os macrófagos representam cerca de 20-25% dos leucócitos deciduais no primeiro trimestre de gestação e é ainda controverso se esse percentual permanece constante ou diminui ao longo da gestação. Macrófagos deciduais podem desempenhar um papel importante na promoção da tolerância imunológica por meio da produção de citocinas e substâncias antiinflamatórias, como IL-10 e indolamina 2,3-dioxigenase (IDO), bem como de interações com células NKd que determina a produção de IL-15. Os trofoblastos também podem interagir com os macrófagos e outros componentes do sistema imunológico por meio da expressão de receptores do tipo Toll (Toll-like), uma família de receptores de reconhecimento de padrões que são essenciais para a resposta imune inata. Admite-se que esses receptores são capazes de proporcionar à placenta a capacidade de reconhecer antígenos, incluindo moléculas maternas e agentes não infec- FEMINA | Março/Abril 2013 | vol 41 | nº 2 103 Alpoim PN, Pinheiro MB, Armond SC, Brandão AHF, Cabral ACV, Gomes KB, Dusse LMS ciosas e desencadear a ativação das células imunes. Além disso, os macrófagos podem avançar pelas células de músculo liso das artérias espiraladas, antes da invasão dos trofoblastos extravilosos, e inibir essa invasão28 (D). Placentação na pré-eclâmpsia Em 1967, Brosens, Robertson e Dixon relataram pela primeira vez que a PE estava associada ao comprometimento das alterações fisiológicas das artérias espiraladas. Estes pesquisadores demonstraram que as artérias espiraladas nessa doença eram mais tortuosas, possuíam paredes espessas e estreitas e mantinham a musculatura lisa e a lâmina elástica29 (D). Estudos recentes têm demonstrado anormalidades no processo de diferenciação do citotrofoblasto em mulheres pré-eclâmpticas. A diferenciação incompleta das células do citotrofoblasto durante a formação do trofoblasto viloso e invasivo resulta na invasão estreita no útero e no comprometimento da fusão dessas células para formação do sincício30 (D). Além disso, a fusão celular comprometida é responsável pela formação de uma estrutura vilosa instável e pelo aumento da liberação de células trofoblásticas no sangue materno31 (D). Admite-se que o sucesso do remodelamento das artérias espiraladas é dependente do recrutamento adequado de leucócitos e da invasão dos trofoblastos extravilosos, bem como da expressão de um repertório específico de proteases e moléculas pró e anti-apoptóticas. Um processo bem regulado de perda celular e degradação da matriz extracelular é necessário para que se atinja o delicado equilíbrio entre a vasodilatação ideal e a manutenção da integridade vascular. Assim, a transformação vascular representa uma série coordenada de alterações fisiológicas que são implementadas ao longo das primeiras vinte semanas de gestação, o que parece não ocorrer na PE30 (D). À luz do conhecimento atual admite-se que a PE ocorra em duas fases. A primeira se instala nas primeiras 12 semanas de gestação, quando há diferenciação dos trofoblastos, invasão da decídua e remodelamento das artérias espiraladas de forma defeituosa. Isto resulta na entrada abrupta do sangue materno no espaço interviloso, danificando mecanicamente os sinciciotrofoblastos, comprometendo a perfusão dos tecidos fetais. A segunda fase ocorre no segundo ou terceiro trimestres, como resultado da hipoperfusão e isquemia placentária. A placenta isquêmica libera citocinas e radicais livres do oxigênio que 104 FEMINA | Março/Abril 2013 | vol 41 | nº 2 induzem a disfunção endotelial materna sistêmica e a resposta inflamatória excessiva, aflorando a sintomatologia identificada clinicamente2,3 (D, C). Kam et al.11 (D) discordaram que a placenta sofra cronicamente de hipóxia na PE e postularam que o suprimento irregular de sangue, com eventos de hipoperfusão e reperfusão constitui o dano placentário de maior importância. Estes pesquisadores verificaram que a vasodilatação reduzida no final das artérias espiraladas resulta em uma maior velocidade do sangue no espaço interviloso, mas não reduz o volume de sangue. Propuseram, ainda, que os trofoblastos lisados liberam micropartículas na circulação materna, contribuindo para induzir a disfunção endotelial generalizada e a ativação da coagulação. Além disso, as artérias espiraladas não remodeladas que mantiveram as células musculares lisas contribuem para aumentar o risco de vasoconstrição espontânea e perfusão intermitente do espaço interviloso, resultando em isquemia e reperfusão. A perfusão placentária irregular pode acarretar uma resposta ao estresse oxidativo crônico, induzindo a produção de substâncias que alcançam a circulação materna desencadeando uma resposta inflamatória generalizada e disfunção endotelial11 (D). Conclusão Apesar da etiologia da PE não ter sido ainda elucidada, as evidências científicas acumuladas apontam a placenta como sítio de origem da doença. Estudos clínicos, histológicos e laboratoriais demonstram alterações hemodinâmicas, histológicas, imunológicas e bioquímicas na placentação de mulheres portadoras de PE. Entender como essas alterações assumem proporções sistêmicas no organismo materno pode ser a chave para impedir a progressão abrupta e violenta da doença. Certamente, o entendimento de todo o processo fisiopatológico é necessário para qualquer proposta de predição, prevenção ou terapia que possa diminuir as altíssimas taxas de mortalidade atribuídas à PE. Agradecimentos Os autores agradecem o apoio financeiro concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/ CNPq e Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais/FAPEMIG. Pré-eclâmpsia: o que há de anômalo na placentação? Leituras suplementares 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. Report of the National High Blood Pressure Education Program Working Group on High Blood Pressure in Pregnancy. Am J Obstet Gynecol. 2000;183(1):S1-S22. Silasi M, Cohen B, Karumanchi SA, Rana S. Abnormal placentation, angiogenic factors, and the pathogenesis of preeclampsia. Obstet Gynecol Clin North Am. 2010;37(2):239-53. Roberts JM, Hubel CA. The two stage model of preeclampsia: variations on the theme. Placenta. 2009;30 Suppl A:S32-7. Mihu CM, Susman S, Rus Ciuca D, Mihu D, Costin N. Aspects of placental morphogenesis and angiogenesis. Rom J Morphol Embryol. 2009;50(4):549-57. Senner CE, Hemberger M. Regulation of early trophoblast differentiation - lessons from the mouse. Placenta. 2010;31(11):944-50. Handwerger S. New insights into the regulation of human cytotrophoblast cell differentiation. Mol Cell Endocrinol. 2010;323(1):94-104. Aplin JD. Developmental cell biology of human villous trophoblast: current research problems. Int J Dev Biol. 2010;54(2-3):323-9. Burton GJ, Woods AW, Jauniaux E, Kingdom JC. Rheological and physiological consequences of conversion of the maternal spiral arteries for uteroplacental blood flow during human pregnancy. Placenta. 2009;30(6):473-82. Pijnenborg R, Bland JM, Robertson WB, Dixon G, Brosens I. The pattern of interstitial trophoblastic invasion of the myometrium in early human pregnancy. Placenta. 1981;2(4):303-16. Pijnenborg R, Vercruysse L, Hanssens M. The uterine spiral arteries in human pregnancy: facts and controversies. Placenta. 2006;27(9-10):939-58. Kam EP, Gardner L, Loke YW, King A. The role of trophoblast in the physiological change in decidual spiral arteries. Hum Reprod. 1999;14(8):2131-8. Smith SD, Dunk CE, Aplin JD, Harris LK, Jones RL. Evidence for immune cell involvement in decidual spiral arteriole remodeling in early human pregnancy. Am J Pathol. 2009;174(5):1959-71. Lunghi L, Ferretti ME, Medici S, Biondi C, Vesce F. Control of human trophoblast function. Reprod Biol Endocrinol. 2007;5:6. Zhou Y, Genbacev O, Fisher SJ. The human placenta remodels the uterus by using a combination of molecules that govern vasculogenesis or leukocyte extravasation. Ann N Y Acad Sci. 2003;995:73-83. Harris LK. Review: Trophoblast-vascular cell interactions in early pregnancy: how to remodel a vessel. Placenta. 2010;31 Suppl:S93-8. Harris LK, Aplin JD. Vascular remodeling and extracellular matrix breakdown in the uterine spiral arteries during pregnancy. Reprod Sci. 2007;14(8 Suppl):28-34. Khong TY, Adema ED, Erwich JJ. On an anatomical basis for the increase in birth weight in second and subsequent born children. Placenta. 2003;24(4):348-53. 18. Bischof P, Meisser A, Campana A. Involvement of trophoblast in embryo implantation: regulation by paracrine factors. J Reprod Immunol. 1998;39(12):167-77. 19. Amabile PG, Wong H, Uy M, Boroumand S, Elkins CJ, Yuksel E, et al. In vivo vascular engineering of vein grafts: directed migration of smooth muscle cells by perivascular release of elastase limits neointimal proliferation. J Vasc Interv Radiol. 2002;13(7):709-15. 20. Frank HG, Malekzadeh F, Kertschanska S, Crescimanno C, Castellucci M, Lang I, et al. Immunohistochemistry of two different types of placental fibrinoid. Acta Anat. 1994;150(1):55-68. 21. Kaplan-Albuquerque N, Bogaert YE, Van Putten V, Weiser-Evans MC, Nemenoff RA. Patterns of gene expression differentially regulated by platelet-derived growth factor and hypertrophic stimuli in vascular smooth muscle cells: markers for phenotypic modulation and response to injury. J Biol Chem. 2005;280(20):19966-76. 22. Halka AT, Turner NJ, Carter A, Ghosh J, Murphy MO, Kirton JP, et al. The effects of stretch on vascular smooth muscle cell phenotype in vitro. Cardiovasc Pathol. 2008;17(2):98-102. 23. Powell RJ, Hydowski J, Frank O, Bhargava J, Sumpio BE. Endothelial cell effect on smooth muscle cell collagen synthesis. J Surg Res. 1997;69(1):113-8. 24. Geng YJ, Wu Q, Muszynski M, Hansson GK, Libby P. Apoptosis of vascular smooth muscle cells induced by in vitro stimulation with interferon-gamma, tumor necrosis factor-alpha, and interleukin-1 beta. Arterioscler Thromb Vasc Biol. 1996;16(1):19-27. 25. Whitley GS, Cartwright JE. Cellular and molecular regulation of spiral artery remodelling: lessons from the cardiovascular field. Placenta. 2010;31(6):465-74. 26. Pijnenborg R, Bland JM, Robertson WB, Brosens I. Uteroplacental arterial changes related to interstitial trophoblast migration in early human pregnancy. Placenta. 1983;4(4):397-413. 27. Trowsdale J, Betz AG. Mother’s little helpers: mechanisms of maternal-fetal tolerance. Nat Immunol. 2006;7(3):241-6. 28. Renaud SJ, Postovit LM, Macdonald-Goodfellow SK, McDonald GT, Caldwell JD, Graham CH. Activated macrophages inhibit human cytotrophoblast invasiveness in vitro. Biol Reprod. 2005;73(2):237-43. 29. Brosens I, Robertson WB, Dixon HG. The physiological response of the vessels of the placental bed to normal pregnancy. J Pathol Bacteriol. 1967;93(2):569-79. 30. James JL, Whitley GS, Cartwright JE. Pre-eclampsia: fitting together the placental, immune and cardiovascular pieces. J Pathol. 2010;221(4):363-78. 31. Chua S, Wilkins T, Sargent I, Redman C. Trophoblast deportation in pre-eclamptic pregnancy. Br J Obstet Gynaecol. 1991;98(10):973-9. FEMINA | Março/Abril 2013 | vol 41 | nº 2 105