COLÓQUIO: A FILOSOFIA NO ENSINO SECUNDÁRIO O novo programa de 12.° Ano Nos dias 22 , 23 e 24 de Março de 1995 realizou - se, em Coimbra, na Faculdade de Letras, o V Encontro de Formação Educacional . As sessões sectoriais na área da filosofia estruturaram - se em torno de duas preocupações centrais : reflectir criticamente sobre o actual modelo de formação educacional e abordar algumas questões ( quer ao nível dos conteúdos quer das metodologias) dos novos programas de Introdução à Filosofia e Filosofia. A Revista Filosófica de Coimbra, na sua qualidade de órgão da investigação e de ensino do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra, não podia ignorar uma iniciativa em que participaram activamente muitos dos seus docentes e o próprio Grupo de Filosofia . Regista igualmente com agrado a participação de colegas de outras Universidades , alguns com responsabilidade directa na elaboração dos novos programas . O Programa de Filosofia (12.° Ano) é, sem dúvida , aquele que representa um corte mais radical com todos os programas anteriores de Filosofia no ensino secundário ao organizar- se em torno da leitura integral de textos filosóficos . A Revista Filosófica de Coimbra, sem deixar de ser órgão de investigação , não se quer alhear dos problemas mais directamente ligados à actividade profissional dos professores de filosofia, sem paternalismos . Aproveitando a ocasião deste V Encontro de Formação Educacional e a disponibilidade do Prof. Doutor José Enes e do Mestre Alfredo Reis em fornecer, em tempo útil, o texto escrito das suas intervenções no Colóquio sobre o Programa de Filosofia (12.° Ano), a Revista Filosófica de Coimbra, dá o seu modesto contributo para o debate publicando estes textos de uma oportunidade indiscutível. ANTÓNIO MANUEL MARTINS Revista Filosófica de Coimbra - ti.' 7 - vol. 4 (1995 ) pp. 163-163 LEITURA INTEGRAL: PORQUÊ? COMO? JOSÉ ENES O título 1 questiona, de uma forma sucinta, clara e certeira, o Programa da Filosofia do XII Ano. Pergunta pelas razões que fundaram a sua proposta, e pelos princípios, regras e práticas que o definem e fecundam. São duas perguntas capitais que nascem do espanto, suscitado pela novidade estrutural e metodológica na perspectiva da tradição e do passado próximo do ensino secundário da filosofia. Era previsível que uma inovação, aparentemente tão radical e inesperada numa curta retrospectiva, provocasse uma incómoda perplexidade que o texto do Programa só por sí não estaria apto a elucidar. Os problemas surgidos na sua aplicação experimental viriam naturalmente não só acumular obstáculos a uma correcta compreensão, mas também pôr a descoberto lacunas e incorrecções. Na sequência destas suposições, aquelas duas perguntas trarão, assolapada na sua formalidade breve e incisiva, uma numerosa e complexa questionação. A elaboração do meu discurso almejou contribuir para o seu esclarecimento. As duas perguntas incidem expressamente sobre a leitura integral. E, na verdade, o parágrafo 4.5 do Programa apresenta, sob este título, o método de leitura a empregar na utilização da obra filosófica como texto escolar, considerando-o como núcleo essencial do processo didático do programa. O método, aliás, deve entender-se como a globalidade deste processo didático, ou seja, a funcionalidade estrutural das operações e meios do ensino e da aprendizagem, enquanto produtivos da acquisição do saber. Para além do método, o programa inclui a definição de objecFoi o título, proposto pela Comissão Organizadora do V Encontro de Formação Educacional, para a exposição do colóquio sobre o Programa de Filosofia do 12° ano, efectuado no dia 24 de Março de 1995, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 7 - vol. 4 (1995) pp. 165-183 José Enes 166 tivos e conteudos didáticos, tendo em vista as metas de educação e de formação profissional estabelecidas pelos sistemas de ensino, a ordenação no espaço e no tempo das fases e actividades da organização lectiva, e bem assim as normas referentes à utilização de textos, de tecnologias e de práticas. A leitura integral, portanto, constitui uma parte, a mais importante e efectiva, do método, e este, por sua vez, é uma parte do programa, como projecto ou plano escrito do ensino da disciplina, a Filosofia do 12° ano. Posso entendê-la como sinédoque; mas vejo também que, na sua accepção própria, ela pode expressar a intenção de se propor como tema exclusivo de aprofundamento. Todavia, mesmo neste sentido, para que me inclino, a via para uma compreensão aprofundada não se descobrirá senão a partir das razões que determinaram a decisão de adoptar a leitura integral como matriz metodológica. Ora tais razões não se encontram só, nem principalmente, nas virtualidades desta matriz, mas sobretudo, e em primeira instância, nos pressupostos e regras formulados pelos outros parágrafos do texto programático. 1. Razões decisórias da opção metodológica A primeira fonte de razões brota das funções de continuidade e de complemento que liga o ensino da Filosofia do 12° ano ao da Introdução à Filosofia dos 10° e 11 °, no quadro jurídico e pedagógico do sistema do ensino secundário. Com efeito, ambas as disciplinas constituem um mesmo e único plano de ensino da filosofia, que as une e ordena para a prossecução do mesmo objectivo global: prestar, à educação humana e à formação intelectual das gerações portuguesas, o contributo próprio do saber filosófico, em coordenação integrante com os das outras disciplinas. O novo programa da Introdução à Filosofia assumiu, como fundamento da ordenação pedagógico-didática, o estatuto de componente de formação geral em parceria com a língua materna. Foi uma decisão histórica da legislação portuguesa, na qual resplandece a sábia compreensão da natureza do saber filosófico e da sua íntima e originária ligação à língua materna, na medida em que é através desta que o homem recebe e assimila o património cultural e a memória existencial da comunidade a que pertence. É através da língua que o homem tem discurso da sua própria consciência e do mundo e é através das estruturas linguísticas que os discursos ganham a virtuosidade conceptiva e expressiva dos actos cônscios e do que neles e por meio deles o homem percebe e entende. Mas nenhum discurso carece tanto da língua materna como o filosófico. Pois é só pp. 165-183 Revista Filosófica de Coimbra - n." 7- vol. 4 (1995) Leitura Integral : Porquê? Como? 167 através dela que o filósofo alcança o mais alto acume da reflexão interpretativa e analítica do próprio pensamento e da diferença mundividencial que ela mesma comporta como o acréscimo de realidade que é pertença e identificação da personalidade de um povo. Por sua vez, em virtude desta dependência, a Introdução à Filosofia deve ser, de entre as disciplinas não linguísticas, aquela que mais criativamente contribua para que o português se torne a disciplina mais atraente e mais formativa das competências e da personalidade dos alunos. Uma outra característica do programa é ordenar o processo didático da Introdução à Filosofia a partir da consciencialização de vivências filosóficas, organizadas tematicamente por unidades programáticas em correspondência às tradicionais partes da Filosofia. Oferece-se, assim, a perspectiva englobante do saber filosófico. Por outro lado, como as vivências filosóficas nascem em todos os domínios das ciências e das artes e algumas são dimensões filosóficas de vivências científicas e artísticas, abre-se também o horizonte transdisciplinar. Destarte, o processo didático da Introdução à Filosofia pode e deve assumir a função integradora na mentalização das competências discursivas induzidas pelas outras disciplinas. A exigência de tal função vem virtualmente formulada na consignação dos objectivos notavelmente exarada no artigo 9° da Lei de Bases do Sistema Educativo. Entenderam-no assim os planificadores das escolas profissionais que para o exercício de tal função idearam precisamente a "disciplina de integração". Em comparação com o seu plano, nos casos que me foram dados a conhecer, o novo programa imprime à Introdução à Filosofia uma superior virtuosidade funcional. Tanto mais que a própria integração pedagógica e didática dos diversos temas, que os respectivos programas incluem, implica funções noéticas de natureza filosófica. Por isso mesmo, a leccionação de tal disciplina tem sido, com muito acerto, confiada de preferência a professores de filosofia. A prossecução de tais objectivos e o exercício de tais funções farão da Introdução à Filosofia a disciplina mais motivadora e formativa, principal responsável pelo sucesso da aprendizagem, pelo desenvolvimento do raciocínio, da reflexão e da curiosidade científica, pela descoberta e assimilação dos valores éticos e estéticos e pela indução das atitudes de abertura de espírito e de adaptação à mudança. O ensino da Filosofia do 12° ano deverá, não só tomar em consideração estes resultados em ordem à sua programação, senão também dar-lhes continuidade e aperfeiçoamento, não com os mesmos meios e finalidades, mas através de um processo didático específico ordenado para um objectivo imediato diferente. Diferença esta que é determinada pelo estatuto de componente de formação específica do ano terminal dos cursos Revista Filo ótica de Coimbra - n." 7- vol. 4 (1995 ) pp. 165-183 168 José Enes do ensino secundário . Como tais cursos conferem habilitações específicas quer para o ingresso na vida activa quer, o que é a opção mais generalizada , para o acesso a cursos do ensino superior , neles se enceta a formação profissional nas áreas científicas que os denominam . Por esta razão , as competências adquiridas em tais áreas nos dois anos devem alcançar , através do processo didático do terceiro , o nível formalmente científico , exigido pela frequência dos cursos do ensino superior. Na verdade, ao preparar- se para o acesso a um curso de graduação em Filosofia na universidade , o aluno do 12° ano começa a proceder como um profissional de Filosofia. A fase inicial deste comportamento consiste, precisamente , na acquisição do saber fazer filosofia, ou seja, elaborar, com a cientificidade que lhe é própria , o discurso filosófico . Neste objectivo didático reside o fundamento para a disciplina filosófica do 12° ano se denominar Filosofia , enquanto que à dos dois anteriores se deu o nome de Introdução à Filosofia. Este contraste, porém , não se há de entender como se o ensino da Introdução à Filosofia não induzisse competências de nível científico. Nenhum conhecimento seria filosófico se não fosse dotado de cientificidade filosófica . A introdução do novo Programa , sob o título de orientações pedagógico -didáticas , salientando a importância do trabalho didático sobre o texto escrito , regista o seguinte aviso : Se é através do discurso escrito que a Filosofia acede à sua cientificidade própria, em consequência, os objectivos propostos no Programa só poderão ser cabalmente conseguidos mediante o contacto directo dos alunos com textos a seleccionar em níveis de especialização e complexidade crescentes: aforismos e sentenças , textos curtos extraídos com pertinência e rigor de obras filosóficas, excertos mais largos e complexos, criteriosamente escolhidos das obras fundamentais do pensamento filosófico, podem representar o escalonamento da especialização e exigência referidas 2. E, após admitir que o que mais importa não é tanto a leitura do texto filosófico, mas sim a leitura filosófica do texto, concede em consequência que o leque de escolhas possíveis de textos não filosóficos , desde a ficção, à poesia , ao jornalismo , à divulgação científica é praticamente inesgotável. E logo de seguida adverte que se não há-de ignorar que a apropriação do discurso filosófico , na aula, apresenta dificuldades e comporta requisitos a que o professor saberá responder, e afirma não parecer demais salientar que, ao participar activamente na análise, exploração e comen- 2 Programa de INTRODUÇÃO À FILOSOFIA (10%11 ° ANOS), ENSINO SECUNDÁRIO, /Programas aprovados pelo Despacho n.° 124/ME/91, de 31 de Julho, publicado no Diário da República, 2.' série, n .° 188, de 17 de Agosto/, p. 8. pp. 165 - 183 Revista Filosófica de Coimbra - n.° 7 -vol . 4 (/995) Leitura Integral : Porquê? Como? 169 tário do texto filosófico, o aluno mergulha no processo originador do pensamento e aí colhe os dados e adquire as performatividades necessárias para a elaboração do seu próprio discurso 3. E por fim formula as competências a induzir : enriquecer o capital linguístico pessoal, dominar o vocabulário especializado da Filosofia, exprimir com coerência e precisão o seu pensamento, apreciar criticamente os pontos de vista e as razões expressas num texto, fruir o prazer intelectual de uma leitura filosófica serão aptidões que, pouco a pouco, o aluno irá desenvolver 4. Estes procedimentos e resultados didáticos perspectivam a decisão nuclear do programa de Filosofia como disciplina específica do 12° ano. Com o da Introdução à Filosofia, ambos constituem um único projecto de ensino pré - universitário da Filosofia . Em ambas as disciplinas , o objectivo didático específico é a cientificidade do discurso filosófico.. Só a configuração e o nível das competências e performatividades diferem, como vimos, em função do estatuto curricular de cada uma. Em ambas, o processo didático fundamental é a leitura do texto filosófico. Só que o género e a estrutura dos textos, os graus de complexidade e de perfeição que os caracterizam , o método da leitura e a combinação com outros meios e procedimentos dependerão outrossim da configuração e do nível da cientificidade a adquirir. Ao esboçar a caracterização das competências e aptidões a adquirir através do processo didático da Filosofia do 12° ano, afirmei que o aluno ao matricular-se no curso denominado por esta disciplina enceta a sua formação como profissional de Filosofia , na medida em que a habilitação por este conferida é a competência legal de ingresso num curso superior de filosofia . Este é o caso paradigmático em relação ao qual se há de ordenar o programa e os métodos . Consequentemente , os conhecimentos, competências e habilidades a adquirir no curso secundário são precisamente aqueles exigidos pela universidade aos candidatos à matrícula num curso superior de filosofia ; os quais no sistema de ensino vigente em Portugal são avaliados mediante as provas específicas. A definição de tais habilitações científicas é, pois, competência das universidades que já as avaliaram mediante os exames de admissão . Por conseguinte , na situação actual o processo didático da filosofia do 12° ano deve dar continuidade ao da Introdução à Filosofia de tal modo que a eficácia didática dos três anos corresponda à de um curso vestibular ou propedêutico ao ingresso num curso universitário. 3 O.c., p.9. ' Ibidem. Revista Filosófica de Coimbra - a." 7- vol. 4 (1995) pp. 165-183 170 José Enes Partindo da definição do objectivo global, formulada em 3.1, e recolhendo as competências, aptidões e habilidades, conceptivas e discursivas, designadas na textualização do método e da sua aplicação, nos parágrafos 4.5.1 a 4.5.4, podemos caracterizar a formação filosófica que os alunos do 12° ano devem receber do ensino da Filosofia, dizendo que ela os há de investir no poder de elaborar criticamente o discurso filosófico, e de o identificar e situar no universo do saber. Aquele poder situar-se e orientar-se discursivamente no universo filosófico não se compõe somente da competência interpretativa dos discursos: ele jamais será possuido sem o entendimento das matrizes filosóficas e das razões históricas que determinam e configuram o acontecer do pensamento. Ora tal entendimento só nasce na intimidade dos grandes momentos da história da filosofia. Reportando-nos, agora, à orientação didática, que antes referi, do seleccionamento, por níveis de especialização e complexidade crescentes, de textos para os alunos dos 10° e 11° anos, vemos que é precisamentre no escalão mais alto, onde termina a leitura da Introdução à Filosofia, que principia a leitura integral da Filosofia do 12° ano, ou seja, na meditação das obras fundamentais do pensamento filosófico. Tomar como ponto de partida, no processo de aprendizagem da elaboração científica do discurso filosófico, não já excertos progressivamente mais largos e complexos de obras fundamentais, isolados ou organizados em antologias, mas a própria obra filosófica em si mesma na sua perfeita inteireza. Na verdade, como se formula no Programa, sendo a obra o texto organizado numa totalidade discursiva, na qual o saber filosófico se consuma e concretiza, entendê-la no dinamismo discursivo que a estrutura e lhe dá sentido, outra coisa não é senão ter a experiência interpretativa da experiência discursiva que a elaborou . A obra filosófica constitui, assim, o modelo, dotado de vida permanente, das capacidades e competências, para cuja aquisição o ensino-aprendizagem de Filosofia há de conduzir o aluno. (4.1) Fazer da obra filosófica o texto de base a ler, interpretar e comentar foi a alternativa que se ofereceu, tanto perante a falta de idoneidade dos programas anteriores em ordem quer à complementaridade do programa da Introdução à Filosofia quer à nova formulação do objectivo global para o processo didático da Filosofia do 12° ano, como tomando em consideração a escassez de tempo de um só ano lectivo. Seriam três obras, com dimensões adequadas ao tempo lectivo, pertencentes a épocas diferentes, a escolher de uma lista estabelecida no Programa. São estas as razões que determinaram a decisão de proposta do novo programa para a Filosofia do 12° ano. São razões intrínsecas à contextura didática dos dois programas. O desenvolvimento progressivo das capacidades e competências dos alunos dos 10° e 11° anos, através de uma pp. 165- 183 Revista Filosófica de Coimbra-n ." 7-vol. 4 (1995) Leitura Integral : Porquê? Como? 171 aplicação bem sucedida do Programa da Introdução à Filosofia, fará surgir neles a opção e o gosto de terminar a sua aprendizagem pre-universitária da Filosofia mediante a leitura de obras, adequadamente escolhidas, dos grandes filósofos. A análise despreconceituada e crítica dos objectivos e do articulado programático verificará a estruturação funcional desta resultância . A experiência a confirmará. 2. O método da leitura " integral" Na primeira sessão de trabalho para a elaboração do novo programa da Filosofia do 12° ano, ouvi com surpresa emocionada a proposta da "obra filosófica como texto lectivo", apresentada em termos sucintos por uma colega da Comissão. De momento não percebi a continuidade complementar entre os dois programas que depois descobri através da minha participação nos trabalhos da elaboração do programa. A emoção da minha surpresa tinha outra origem: é que a proposta continha a retoma de um método a cuja aplicação sustentada se ficou a dever alguns dos períodos mais criativos e esplendorosos da história da filosofia europeia e, em particular , da filosofia portuguesa. A organização escolar do ensino da filosofia mediante a leitura da obra filosófica era teorizada por Hugo de S. Victor no seu Didascalion, recolhendo já uma longa experiência , nos começos da séc. XII que deram início a um daqueles períodos no qual a obra de São Tomás de Aquino, o "comentador" por antonomásia dos escritos de Aristóteles, representa o apogeu medieval do método, a lectio docentis. Desde jovem tenho sido um leitor assíduo desta lectio , e conduzido por ela tenho lido as obras de Aristóteles, tenho feito a minha lectio discentes. E só assim consegui alcançar o entendimento que hoje possuo do discurso aristotélico. É um ensino-aprendizagem à distância de sete séculos, que mantém a sua eficácia através da vida de pensamento que a obra conserva e transmite no seu discurso escrito. Há, porém, um outro momento cuja evocação vem mais a propósito quer do tema que nos ocupa , quer do lugar em que nos reunimos . Refiro-me ao ensino da filosofia no Colégio das Artes durante a segunda metade do séc. XVI. Condiz mais com o objecto da nossa questionação porque o Colégio foi criado, em 1547, com a finalidade de preparar, nos domínios da latinidade e da filosofia, candidatos para a admissão à Universidade de Coimbra. Era, portanto, uma instituição de ensino médio, correspondente ao nível do curso trienal do nosso ensino secundário . Tanto foi assim que, depois de ter voltado à superintendência disciplinadora e proficiente dos jesuítas por dois fugidiços anos, em 1836 foi extinto para dar lugar Revista Filos6}ica de Coimbra - n." 7 - vol . 4 (1995) pp. 165-183 172 José Enes ao Liceu Nacional de Coimbra 5. Ora, no Colégio das Artes, o ensino da filosofia adoptou a organização em vigor nas instituições congéneres europeias e veio a atingir o alto nível filosófico e didático do Curso Conimbríncense , editado com o título Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Jesu seguido do nome das obras de Aristóteles comentadas em cada um dos seus oito grossos volumes, com excepção do que contém a ética que em vez de comentarii usa disputationes . De mais alto e mais amplo prestígio além fronteiras fruíram as obras de Pedro da Fonseca , as quais foram editadas no estrangeiro não integradas no Curso. A teorização e as inovações metodológicas destas obras , em sintonia com as características culturais do Renascimento , prestaram importante contributo à elaboração e enriquecimento da célebre Ratio Studiorum dos colégios e universidades da Companhia de Jesus. Ainda hoje, o seu conhecimento e o seu estudo nos poderão prestar uma preciosa ajuda na procura de soluções para os problemas pedagógicos e didáticos, científicos e práticos que complicam e enervam o nosso projecto didático da Filosofia do XII ano. À nossa disposição tem sido postos estudos valiosos por especialistas , profundos conhecedores da história e da filosofia dos Conimbricenses . 6 Após o momento mais alto do período renascentista, atingido na década de 1580 com a publicação do curso conimbricense, o método da lectio entrou em declínio . Já em 1597 Suarez publica as Disputationes Metaphysicae cuja organização expositiva sistemática prefigura o modelo dos cursos filosóficos, como os de Soares Lusitano e de João de São Tomás, os quais se vão generalizando ao longo da primeira metade do séc. XVII, se bem que as obras de Pedro da Fonseca tenham continuado a ter várias edições tanto em Portugal como no estrangeiro. 5 José Esteves Pereira, Colégio das Artes e Ensino da Filosofia no Colégio das Artes, in Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Verbo, 1, cols. 1042s e 1043-1049. 6 De entre eles quero mencionar , em particular, o Senhor Professor Miguel Baptista Pereira que, no grandioso plano da sua obra sobre Ser e Pessoa (em) Pedro da Fonseca, dedicou o primeiro volume a O método da Filosofa. Obra de pensamento profundo e vasta erudição que interpreta e explana a teoria metodológica e destrinça os procedimentos metódicos , com densa e fecunda discursividade. Frequentemente , aliás, me instruo e deleito com a leitura discente dos seus escritos. Refiro também o Senhor Professor Amândio Augusto Coxito, disserto e erudito historiador da filosofia portuguesa renascentista, pelos seus artigos "Método e ensino em Pedro da Fonseca e nos Conimbricenses " ( Rev. Port.Fil.36, 1980), e "Lógica e metodologia em Francisco de Cristo e seu contexto renascentista", seguido da edição do manuscrito Methodus, hoc est, docendi ratio, (Biblos, 59, 1983). Nas pessoas destes ilustres mestres conimbricenses , a quem junto o Doutor António Manuel Martins por mérito da sua obra sobre Pedro da Fonseca e da sua responsabilidade e actuação neste encontro, presto homenagem à Universidade de Coimbra , glória e matriz das universidades portuguesas , e ao seu próvido magistério institucional. pp. 165 - 183 Revista Filosófica de Coimbra - a.° 7- vol. 4 (1995) Leitura Integral : Porquê? Como? 173 Do modelo dos cursos filosóficos derivaram os manuais e compêndios do ensino secundário , que se difundiram na Europa na primeira metade do séc. XVIII e se introduziram em Portugal na sequência da reforma pombalina. 7 No ensino universitário da filosofia, a lectio tem sido adoptada por razões metodológicas particulares . Heidegger aplicou - a em cursos semestrais e seminários comentando Aristóteles , Platão, Heraclito, Kant e Schelling , e o génio exegético, com que fazia dizer coisas novas e inovadoras a textos antigos, foi um dos factores da celebridade do seu magistério 8. A leitura integral não é um método tão novo como nos parecia de início , nem é tão antiquado que não possua virtualidades actuais, determinantes de validade didática na situação presente . Os constituintes desta validade são, como já referi , a potência discursiva da obra filosófica e a eficácia actuante do método adoptado. Penso que o texto programático expõe, com suficiente precisão e clareza , a essência e os princípios do método e os respectivos procedimentos pedagógicos e didáticos , e os fundamenta com razões teóricas e pragmáticas . Quanto à organização concreta e às práticas e meios da leccionação , usa um discurso meramente alvitrante que intende abrir aos professores e alunos um amplo campo de iniciativas . Atendendo , porém, ao objectivo proposto a esta exposição há que esclarecer e aprofundar alguns aspectos nucleares e suprir algumas lacunas. 2.1 O sentido de "leitura integral" Leitura não assumiu a acepção escolar e o respectivo sentido de lectio. Por sua vez , a partir deste étimo, as línguas românicas formaram o nome da actividade essencial da escola . Em português , ficou lição. O professor dá, o aluno aprende , a lição. Nesta palavra persiste a memória do método escolar do tempo 9 em que era lendo que o professor dava 7 Ferreira - Deusdado , La Philosophie en Portugal, Extrait de Ia Revue Néo-Scolastique, Institut Supérieur de Philosophie , Louvain, 1898, pp . 27-46; J. Pinharanda Gomes, A Renovação Escolástica (1879-1967), / Sep. de ITINERARIUM 1, Braga, 1993, pp. 4ss. " Miguel Baptista Pereira, Tradição e crise no pensamento do jovem Heidegger, Sep. de BIBLOS, LXV(1989),Coimbra, pp.349-354. 9 Este tempo remonta aos primórdios da escolarização e, por isso mesmo, aos começos da Civilização Ocidental, quando a escola surge para a formação dos escribas , os primeiros quadros especializados em ler, escrever e contar. Esta alusão aponta para a função cientificadora que à leitura e à escrita coube no processo civilizacional . Tem sido o desenvolvimento sustentado daquela função que ao longo dos milénios vem fazendo progredir as ciências , a filosofia e as tecnologias mediante a investigação , a invenção e a formação dos respectivos quadros especializados. Revista Filosófica de Coimbra - n." 7- vol. 4 (1995) pp. 165-183 José Enes 174 a lição e o aluno a aprendia , mas perdeu - se a vigência da significação nominal da acção do verbo ler. O novo Programa da Filosofia do 12° ano, retomando a leitura da obra filosófica como método de ensino, confere-lhe enquanto nome verbal a acepção e o sentido de lectio . Em tal acepção, a leitura não se há-de entender como a simples acção de ler. Tal como a lectio, a leitura integral , entendida como método de ensino da filosofia, há de ser constituida pelos procedimentos interpretativos e analíticos do texto da obra filosófica , idóneos para a indução da aprendizagem do aluno. O adjectivo integral denota uma característica determinante desta idoneidade . Trata- se de uma qualidade perfectiva daqueles procedimentos, cada um de per si e no seu conjunto, tanto na dimensão em que por eles é feita a abordagem da obra filosófica , como na eficácia e no nível do seu exercício operacional . O sentido de integral, aqui , é avocado a partir da linguagem hermenêutica do discurso jurídico . íntegra é o contexto completo da lei ou a sua totalidade contextual . Daí se formou a locução adverbial na íntegra, ao dizer que a lei se há-de ler na íntegra. A leitura integral da obra filosófica, como método de ensino, é aquela que a lê na íntegra , na totalidade do seu contexto ou na sua inteireza contextual . Como está exarado no Programa , " legere é ler em plenitude , é intelligere , é ler dentro até ao mais íntimo do texto , é penetrar integralmente no seu sentido ."(4.5.1) Uma tal leitura , porém, tão plena , tão profunda e tão compreensiva não se poderá alcançar, senão na medida em que os múltiplos procedimentos lectivos , que a constituem, se integrem também , com reciprocidade interactiva , numa totalidade operacional , dotada de eficácia didática . O Programa conclui formulando : " Leitura integral da obra filosófica denomina, portanto , a integridade operacional e processual do método que o Programa propõe." (Ibidem) 2.2 Intencionalidade lectiva da leitura integral Entendendo intencionalidade como a estrutura cônscia do acto cognitivo, lectiva designa a configuração discursiva que molda e dinamicamente unifica as operações específicas da leitura. Esta fórmula coloca-nos perante o momento fulcral da minha exposição. Será na explicitação clara e completa da intencionalidade da leitura integral que encontraremos a compreensão da sua funcionalidade metodológica. O Didaskalion de Hugo de S. Victor oferece-nos uma matriz metodológica, fecunda como ponto de partida para a nossa pesquisa analítica. Tratando, no cap. VIII do livro III, do aperfeiçoamento da inteligência e da memória (de ingenio et memoria) começa por afirmar que duas são as pp. 165 - 183 Revista Filosófica de Coimbra - n .° 7- vol. 4 (1995) Leitura Integral : Porquê? Como? 175 operações que exercitam o a inteligência ou engenho, a saber, a lectio e a meditatio. E tomando a lectio lhe divide os géneros: Trimodum est lectionis genus docentis, discentis, vel per se inspicientis. Dicimus enim lego libram illi, et lego librum ab illo, et lego librum. 10 "Tríplice é o género da leitura: de quem ensina, de quem aprende, ou de quem por si mesmo examina. Pois dizemos: leio o livro a ele, leio o livro a partir dele (aprendendo dele), e leio o livro." A lectio docentis é a leitura do professor enquanto este a faz ao aluno com a finalidade de o ensinar a ler. A lectio discentis é a leitura do discípulo enquanto a faz instruido, inspirado e iluminado pela leitura do professor, com a finalidade de aprender a ler por si mesmo , e poder vir, ele próprio , a tornar- se competente para ensinar outros a ler. Ambas estas leituras dependem uma da outra numa reciprocidade interactiva. A leitura do professor toda se há de dirigir para a leitura do aluno . O sentido desta direcção vem vectorizado em docere, verbo causativo que significa o processo accional de fazer alguém saber algo. Este é o mesmo sentido do grego didásko, do alemão lehren , do inglês teach e do nosso ensinar. Todos os procedimentos lectivos, que constituem aquele processo accional, devem ser ordenados para a produção do saber do aluno . Por seu lado, o verbo disco significa o processo, ao mesmo tempo passivo e activo, de recepção e assimilação do saber enquanto resultado da acção docente do professor , ou seja , do tornar- se douto, ciente, sabedor. Doctus, por isso mesmo, é particípio passado dos dois verbos . Esta relação de verbo causativo e verbo passivo dá-se também entre lehren e lernen. Nestes dois casos , a própria relação de génese linguística expressa a unidade processual da reciprocidade dinâmica existente entre o ensinar e o aprender . É esta relação que vigora entre a lectio docentis e a lectio discentis. Aplicando estas duas leituras à obra filosófica obtém - se um método, estrutural e dinamicamente uno, para o ensino-aprendizagem da filosofia. Para o novo Programa da Filosofia do 12° ano, porém, o objectivo global não se atinge somente com a aprendizagem da leitura da obra filosófica adoptada como texto . A aprendizagem da leitura há de ser feita de tal modo que através dela se aprenda também a escrever filosofia. Por este motivo o programa reconhece e põem em relevo a íntima relação que 10 Eruditionis Didascalicae Libri Septem , III, 8, in "Patrologia Latina ", CLXXVI, col.766. Revista Filosófica de Coimbra -ti." 7- vol. 4 (1995) pp. 165-183 José Enes 176 existe entre ler e escrever. Ler só se dá sobre o que foi ou está sendo escrito. Escrever implica em si a leitura não apenas como destino mas também como feitura , pois ninguém escreve senão enquanto lê o que está escrevendo . É lendo a obra filosófica que se penetra na inteligência do discurso filosófico, mas só escrevendo se adquire e se manifesta a capacidade de elaborar cientificamente o discurso filosófico. A importância da escrita , portanto , duplamente se verifica : na aquisição e na avaliação das competências. Aprendendo a ler a obra filosófica- texto, e aprendendo, através desta leitura , a escrever correctamente o discurso filosófico, o aluno será conduzido à aquisição de um conhecimento da filosofia com a amplitude e o nível requeridos pelos objectivos escolares do 12° ano do ensino secundário , como acima expusemos. A medida daquela amplitude e daquele nível só poderá perspectivar-se a partir da relação de continuidade e de complementaridade com o programa da Introdução à Filosofia. Nesse sentido, o novo Programa prescreve : " Na verdade , o ensino-aprendizagem de Filosofia , embora se oriente, directa e especialmente para a cientificidade do discurso filosófico, não deve restringir a perspectiva de universalidade, impressa ao horizonte das unidades temáticas do programa da Introdução à Filosofia . No entanto, a idoneidade e a eficácia do presente programa requerem que tanto a informação como a abertura à universalidade se processem através da obra filosófica ."(4.2) Na verdade , como já referimos , o conjunto das unidades programáticas da Introdução à Filosofia abrange todos os domínios do saber filosófico e, em cada uma delas, a formulação dos temas nucleares abre-se, no horizonte da contemporaneidade , à totalidade do respectivo domínio temático . A consideração histórica , por seu lado , na Unidade histórico-problemática - a Filosofia no tempo, rejeitando embora "qualquer leitura historicizante ", tematiza " as matrizes do pensamento ocidental e a Filosofia como reflexo, crítica e interpretação do seu tempo ", e propõe "a exploração de um tema , através de autores diversamente situados no tempo" a fim de que os alunos possam " adquirir os marcos de referência histórico - cultural , que se considerem pertinentes ". 11 A formação filosófica recebida no 12° ano deve completar e aprofundar esta perspectivação histórica , aquela informação temática e a consideração teórica dos discursos e sistemas filosóficos . A obrigatoriedade de utilização de três obras, cada uma delas pertencente a uma época histórica diferente, teve em vista tal objectivo. 11 Programa cit. na nota 2, p.17s. pp. 165 - 183 Revista Filosófi ca de Coimbra - a." 7 -vol . 4 (/995) Leitura Integral : Porquê? Como? 177 A argumentação , que objecta a impossibilidade de o alcançar através da leitura integral da obra filosófica , resulta de uma dupla incompreensão. A primeira diz respeito à própria essência discursiva da obra filosófica enquanto não toma em consideração o nível e a densidade de pensamento e a importância histórica , exigidos como fundamento para a sua escolha como texto de leccionação . Somente a obras, que possuam tais características, se aplica a justificação formulada nos seguintes termos do Programa: Em si mesma , por virtude da natureza do seu discurso filosófico, a obra possui uma potencialidade de informação temática e de abertura à universalidade do saber filosófico, a qual ultrapassa os limites formais do seu texto . Com efeito, a obra situa - se na plúrima contextualidade do conjunto das obras do seu autor e das obras tanto da sua como de outras épocas, que nela se reflectem ou dela apresentam reflexos, mediante múltiplas formas de transmissão discursiva . A interpretação hermenêutica explorará as dimensões relacionais de tais contextualidades , ao mesmo tempo que coopera com a análise dialética na revelação da estrutura lógica , linguística e argumentativa da escrita do discurso filosófico. (Ibidem ) A segunda incompreensão reporta - se à essência do método denominado por leitura integral . Será, por conseguinte , este o momento de pormenorizar e ordenar a exposição dos procedimentos lectivos que a estruturam. Vou continuar a servir- me da teoria e pragmática de Hugo de S. Victor precisamente pela vantagem que a sua primitiva simplicidade oferece como ponto de partida . Segundo a sua doutrina , a lectio como processo didascálico tem a estrutura da expositio . Ler é pôr, diante do olhar do outro leitor e a partir do texto lido, o que nele está escrito, é ex -pôr. Mas esta configuração operacional explicitamente exprime a prolação expositiva ao olhar e ao ouvido inquiridores do leitor- aprendiz . O tratamento lectivo do próprio texto , o qual tira de dentro dele o que nele está escrito, possui outra estrutura : é a interpretatio . Estamos perante uma metáfora noética de matriz comercial : interpres era o intermediário entre comprador e vendedor para o estabelecimento negocial do pretium - preço. O procedimento interpretativo é o trato dialogal entre dois interlocutores mediatizado por um terceiro cuja função é estabelecer o entendimento entre eles . Falando ao vendedor, o intérprete faz as vezes do comprador e defende a pretensão dele; falando ao comprador, representa o vendedor e valoriza os interesses dele. A sua estratégia negociai será proceder por aproximações sucessivas até conseguir o acordo entre os dois. Nesta dupla representação surge o fundamento da transferência para a linguagem teatral , interpretar uma personagem ou um papel. O intérprete de línguas exerce a função na situação mais simples que entretanto as circunstâncias podem diversamente complicar. Revista Filosófica de Coimbra - n." 7 -vai. 4 (1995 ) pp. 165-183 José Enes 178 No caso da leitura da obra escrita, a interpretatio é, por natureza, complexa. A obra escrita não é um interlocutor, nem mesmo no caso em que o autor participasse na conversação sobre ela. Depois da obra escrita, o seu autor, ao pronunciar-se a respeito dela, não assume senão o papel de leitor ou de intérprete. Nem se pode dizer que o intérprete de uma obra escrita a represente ou faça as vezes dela. Em sentido impróprio se diz que a leitura da obra é uma interpretação dela; no sentido próprio, só o é quando feita a outrem para o ensinar a ler, ou seja, enquanto lectio docentis. Ora esta leitura, que ensina a ler, é um discurso expositivo do que a obra tem para ser lido e de como deve ser lido, é a expositio, no grego exégesis. É, portanto, um metadiscurso ou uma metalinguagem do discurso e da linguagem da obra. Segundo o Disdakalikon de Hugo de S. Victor, a exposição contém três procedimentos: litteram, sensum, sententiam. Littera, a letra, é uma sinédoque derivada de uma metonímia. Primeiro designou a tabuinha, em que se escrevia, depois os caracteres da escrita, as letras do alfabeto, finalmente a própria escrita, a composição literária, a obra escrita e o conjunto de todas as obras escritas, as letras, daí o literato, a literatura. Na linguagem rectórica denomina a fase inicial da "exposição" que descreve e analisa as partes da obra escrita de modo a fazer ressaltar a conexão discursiva que lhes dá sentido, a cada uma delas e ao seu conjunto. Hugo de S. Victor define-a como congrua ordinatio dictionum, quam etiam constructionem vocamus - a côngrua ordenação das dicções (palavras e proposições), à qual chamamos também construcção. A segunda fase é a explanação do sentido daquela fácil e aberta significação, que a littera traz à superfície - prima fronte praefert. A terceira e a terminal chama-se sententia que é a inteligência mais profunda e se não encontra senão mediante a exposição e a interpretação, ou seja, através da inquirição hermenêutica, referenciando as contextualidades, confrontando as intrepretações contrastantes e decidindo argumentativamente as questões. "Aqui a ordem é que primeiro se investigue a letra, em seguida o sentido, por fim a sentença: o que feito, perfeita está a exposição." - In his ordo est, ut primum littera, deinde sensus, deinde sententia inquiratur: quo facto, perfecta est expositio. 12 Como acima aludi, este modelo de lectio atingiu o nível mais alto de discursividade interpretativa em São Tomás de Aquino, que por isso mesmo era também chamado o expositor. Na verdade, a excelência da leitura tomista consistia tanto na erudição e perícia com que restituia aos textos aristotélicos, traduzidos para latim, a legibilidade do seu sentido 12 O.c., co1.771 s. pp. 165- 183 Revisto Filosófica de Coimbra - n.° 7 -val . 4 (1995) Leitura Integral : Porquê? Como? 179 original, como também na poderosa e criativa inteligência com que através do seu discurso expositivo desenvolvia e actualizava, no enquadramento cultural da Idade Média, as virtualidades de inteligibilização do discurso aristotélico. É bem de ver que sendo a exposição dirigida ao aluno, como metalinguagem didática, a fim de o orientar na aprendizagem ou aquisição de competência idêntica, cada passo dado pelo mestre, na elaboração de cada uma das três fases, é um convite a fazer o mesmo. Assim se esboça a participação activa do aluno através de práticas de leitura e de escrita, de aconselhamento e cooperação com o professor e colegas. A leitura integral, também, se desenvolve através de duas "exposições", a do professor e a do aluno. Todavia, os procedimentos que as compõem não podem ser totalmente iguais àqueles utilizados, na Idade Média, pela lectio docentis e pela lectio discentis. As razões desta desigualdade derivam, em primeira instância, da diferença estrutural dos sistemas de ensino em que respectivamante se enquadram. Na Idade Média a lectio era usada a todos os níveis do ensino e em todas as disciplinas, cujos respectivos números eram muito inferiores aos de agora. É impensável que hoje se ensinasse Física aos alunos do 12° ano através do comentário de uma obra de Bohr, ou de Heisenberg ou de Einstein, como era possível fazê-lo, no séc. XIII, comentando obras de Aristóteles; nem se pode leccionar gramática por um livro de Chomsky, como então se fazia com as Institutiones de Prisciano. Ocorre a mesma impossibilidade didática em relação à Introdução à Filosofia dos 10° e 11° anos. E a última instância em que se funda esta discrepância é a diferença estrutural da nossa sociedade em relação à medieval, a qual também fundamentalmente resulta do estádio, em que nos encontramos, na evolução das ciências, das artes e das tecnologias. A multiplicação e o aprofundamento das especialidades, a aceleração do ritmo de inovação e de crescimento em todos os domínios do saber exigem o aumento da duração da escolaridade e da multiplicidade disciplinar dos planos de estudo, forçando assim o recurso aos manuais e compêndios e ao aperfeiçoamento científico e tecnológico das didáticas. O mesmo se passa em relação à leitura integral. Desde os princípios do séc. XIX, a linguística e a hermenêutica tanto se desenvolveram que se dividiram em especialidades, algumas das quais se transformaram em disciplinas filosóficas, como a filosofia da linguagem e a hermenêutica filosófica. Ressurgiram, mais recentemente, as retóricas seja como teorias da obra literária, ou como teorias da argumentação. A grandiosa tradição aristotélica e escolástica da lógica formal recebeu um inovador acréscimo de virtuosismo analítico e discursivo, sobretudo através da matematização operada por Frege e Russell e da analítica de Quine. Esta evolução criou Revista Filosófica de Coimbra - a." 7- vol. 4 (1995) pp. 165-183 180 José Enes novas competências de penetração cognoscitiva na estrutura e no funcionamento das línguas, dos discursos e das obras escritas nos mais variados domínios do saber, mas em especial nas obras literárias e filosóficas. Os planos de estudo das licenciaturas têm incluido a hermenêutica filosófica, e outras disciplinas, como a Introdução à Filosofia, a Ontologia e a História da Filosofia Contemporânea, a compreendem nos seus programas, e a Filosofia da Linguagem é também apresentada como opção com frequência escolhida. Nos estágios, os futuros professores de Filosofia no secundário, de há anos, vêm recebendo a formação teórica e prática nos métodos e técnicas do ensino, numa didática por objectivos, pela participação activa dos alunos, pela utilização de textos para desenvolver neles a capacidade de interpretação e de elaboração do discurso escrito. Nos cursos de licenciatura em Filosofia é prática corrente a leitura e o comentário a obras e a textos na leccionação de quase todas as cadeiras. Prática esta que mais se intensifica e metodicamente se orienta para a cientificação das competências nos mestrados de Filosofia, cuja frequência felizmente, desde os começos, tem sido procurada e mantida por numerosos professores do ensino secundário. As dissertações para a obtenção do grau são programaticamente elaboradas mediante a interpretação e a questionação de obras de filósofos. Um número significativo de professores do secundário se tem distinguido pela autoria de manuais e de outros textos didáticos, uma notável actividade editorial a que a entrada em vigor do novo Programa de Introdução à Filosofia proporcionou a manifestação de uma impressionante produtividade. Em face deste conjunto de índices de formação e cultura filosóficas não deixarão de ter valor positivo as numerosas publicações de obras filosóficas, em grande parte traduzidas, a que os editores portugueses se vêm dedicando, uma vez que para a quase totalidade delas os possíveis compradores só poderão ser professores e estudantes de filosofia. Se atendermos, ainda, ao costume escolar de os professores, antes de acederem à leccionação da Filosofia do 12° ano, leccionarem os programas dos dois anos anteriores, prática esta que exercita e completa as competências, adquiridas pela formação universitária, e funciona como preparação para as tarefas lectivas do último ano do curso secundário, ficamos perante um conspecto conjuntural positivamente favorável ao sucesso da aplicação da leitura integral como método de ensino para a Filosofia do 12° ano. As experiências de experimentação do Programa, já cumpridas, confirmam tal previsão. Com efeito, há indícios suficientes para se pensar que os actuais professores de Filosofia, na sua generalidade, possuem a competência requerida pelo novo Programa. Em relação aos procedimentos lectivos, pp. 165 - 183 Revista Filosófica de Coimbra-ta ." 7-vol. 4 (J995) Leitura Integral: Porquê? Como? 181 formulados nos cap. 5 e 6 como integrantes da leitura integral, penso que as seguintes considerações podem contribuir para um esclarecimento útil. O princípio fundamental é que o professor organize e oriente as actividades, com que ele e os alunos participam na elaboração da leitura da obra, de tal arte que estes sejam conduzidos à compreensão do pensamento filosófico e à apreciação da expressividade discursiva da linguagem. Cumpre ao professor introduzir os alunos no conhecimento do conjunto das obras filosóficas do autor, da sua importância na história da filosofia, e do lugar e papel que naquele conjunto cabem à obra-texto. É evidente que esta introdução pode ser também participada pelos alunos com pequenos estudos escritos usando bibliografia adequada. É didática e pedagogicamente importante que os alunos adquiram admiração pelo filósofo e pela sua obra. As competências de análise textual, linguística, lógica e argumentativa, de interpretação dos sentidos do discurso, de questionação crítica e de descoberta das vivências filosóficas, formal e virtualmente expressas na obra, deverão ser procuradas e desenvolvidas através de frequentes exercícios escritos e orais, individuais e de grupo, de tal modo orientados que através deles, também, se cultivem as virtudes hermenêuticas do respeito pela integridade textual e da valorização da riqueza polissémica do discurso. Um cuidado que se há de sempre ter, tratando-se de obras traduzidas para português, é verificar a fidelidade ao sentido do original. O resultado final, que satisfatoriamente corresponderia à expectativa programática, seria a composição, pela junção ordenada dos trabalhos escritos, de uma "exposição" colectiva de cada uma das três obras. A participação dos alunos na elaboração de cada uma delas teria permitido a avaliação contínua individual; e as três exposições formariam um documento de grande importância para o professor, que poderia, através dele, avaliar e aperfeiçoar progressivamente a sua docência. 3. Algumas limitações O texto do Programa apresenta formulações não suficientemente amadurecidas e é omisso de aspectos didaticamente impreteríveis. Por causa da sua particular importância, darei o meu parecer apenas sobre dois casos. O primeiro diz respeito à seguinte norma, exarada no cap. da Organização Lectiva, em 6.1: O professor não deverá encetar a leitura integral da obra sem se certificar de que os alunos possuem e dominam no essencial as técnicas de leitura e de interpretação, a um nível que dê Revista Filosófica de Coimbra - n." 7 -vol. 4 (1995) pp. 165-183 182 José Enes garantia de sucesso no ensino-aprendizagem. O professor utilizará os meios adequados a suprir as lacunas verificadas, nomeadamente através de algumas lições ou pequenos cursos. Julgo estas prescrições erradas. As deficiências categoriais, teóricas e práticas, que os alunos manifestem, irão sendo supridas nas ocorrências oportunas ao longo do exercício das actividades lectivas. É este mesmo exercício, orientado e corrigido, o processo mais eficaz de aprendizagem. No segundo trata-se de uma omissão, cometida no capítulo dos Princípios Programáticos, tio parágrafo 4.4 que expõe os critérios para a selecção das obras. O processo selectivo não tomou em consideração a idoneidade de obras em ordem à integração da Filosofia como componente curricular dos cursos que dão acesso ao ensino superior de outras disciplinas. Consequentemente, o articulado programático também a não mencionou. E destas omissões pode resultar a diminuição do número dos cursos que têm integrado nos seus currículos a Filosofia, numa altura em que o interesse recíproco postulava, antes, o seu aumento. Para a filosofia, que desta cooperação receberia a intensificação e o alargamento do seu estudo e para as outras ciências cuja aprendizagem se tornaria mais proficiente, na presente conjuntura cultural que exige a inter- e a transdisciplinaridade na investigação e na formação dos quadros. Mesmo com respeito à própria formação filosófica, no enquadramento da situação actual, outras obras, quer dos autores contemplados quer de outros, poderiam apresentar maior idoneidade pedagógica e didática. A escolha feita foi grandemente condicionada pela falta de obras filosóficas em língua portuguesa, adequadas aos objectivos do método e à organização escolar programada. Este problema foi consciencializado e discutido durante os tabalhos de elaboração do programa e alguns passos se deram para encontrar uma solução, mas foram esforços baldados. 13 13 A Comissão, criada para a elaboração das propostas dos dois programas, teve uma actuação, em relação ao da Filosofia do 12° ano, assaz diversa daquela que usou com o primeiro programa. Os trabalhos da Comissão foram suspensos sem que a proposta do Programa da Filosofia do 12° ano houvesse sido apresentada às escolas a fim de receber a crítica e as sugestões dos professores, como havia sido feito com o programa da Introdução à Filosofia, em relação ao qual a Comissão pode ainda apreciar os resultados da experimentação do Programa nas escolas que a fizeram. Fui encarregado de elaborar propostas de redacção do texto programático, a fim de serem apreciadas e corrigidas pela Comissão. Aceitei ainda o encargo de preparar a tradução das obras de S. Tomás de Aquino e de M. Heidegger, seleccionadas para servirem de texto escolar. As doenças e os trabalhos, que imprevistamente me afligiram durante os dois anos seguintes, não me consentiram a execução dessas tarefas. Nunca recebi um exemplar da proposta de programa entregue pp. 16S - 183 Revista Filosófi ca de Coimbra - a." 7 -vol . 4 (/995) Leitura Integral : Porquê? Como? 183 A leccionação da Filosofia no ensino secundário , tanto em Portugal como em outros países europeus , é profundamente afectada por factores de diversa ordem e natureza . Na verdade , a nossa experiência do ensino testifica o efeito inibitório de certos complexos e atitudes comportamentais dos estudantes , os quais resultam das características culturais, sociais e económicas dos grupos populacionais a que eles pertencem. As ideologias e os interesses políticos das forças , que influenciam a actuação governamental , têm-se reflectido no ensino da Filosofia nas escolas, por medidas que ou o favorecem ou o prejudicam ou, até, o proibem . Por exemplo, a via de acesso , só pelas humanidades , a cursos universitários de Filosofia prejudica , de diversos modos, o seu ensino quer secundário quer superior. Aquela exclusividade legal não é de todo alheia ao complexo inibitivo da abertura às hodiernas ciências e tecnologias , o qual é inerente aos discursos das chamadas filosofias da subjectividade. São problemas que interessam ao tema do meu discurso , mas excedem os seus limites. Espero que ele tenha correspondido aos objectivos e às expectativas de quem me conferiu a honra de o haver proferido. ao Ministério da Educação pelo Instituto de Inovação Educacional que teve a seu cargo o apoio logístico à Comissão. Fiquei, apenas , com a última versão de texto que apresentei e foi assumida na generalidade . No essencial , corresponderá ao texto programático aprovado pelo Ministério. Revista Filosófica de Coimbra - e." 7 - vol. 4 (1995) pp. 165-183