O PODER DA NARRATIVA NA CRIAÇÃO DE UMA CULTURA DA

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O PODER DA NARRATIVA NA CRIAÇÃO DE UMA CULTURA DA ESCRITA
HISTORIADORA NO MUNDO ANTIGO: ESTUDOS DE HERODOTO E TITO
LIVIO
Marinalva Vilar de Lima
RESUMO
É a narrativa em seu fazer-se o foco da problematização que articulamos para a leitura das
tramas historiadoras em seu nascedouro. Na vontade de “preparar a terra”, tal qual fazem os
bons lavradores de todos os tempos, pelo exercício da adubagem, é que temos nos proposto a
ir às obras e às experiências culturais de Heródoto e de Tito Lívio. Escolhemos para a análise
aqui desenvolvida as Histórias de Heródoto e a História de Roma de Tito Lívio com objetivo
de demonstrar o poder da narrativa entre os antigos na criação de uma tradição cultural que
está na base de constituição da escrita historiadora. Tradição que, com Heródoto, é marcada
pela preocupação com o narrar historias que acessou a partir de suas viagens e que são
articuladas aos acontecimentos transcorridos nas guerras médicas e, com Tito Lívio, pela
vontade daquele de trazer aos seus contemporâneos exemplos edificantes a que tem acesso
nos anais imperiais e na tradição, visando contribuir para a restauração augustana. Práticas
escriturísticas que se associam a dois perfis arcaicos de narradores, um que fala a partir do
olhar do viajante, que traz consigo historias acumuladas em suas andanças; e outro que o faz
como provinciano que se manteve ligado à sua terra e cultivou memórias de gerações de que
participou pela vivência ou pelo registro da tradição; sendo estas experiências fundacionais do
gênero narrativo da historia entre os antigos e produtoras de linhagens epistemológicas que
embasam o exercício do historiador antigo, mas, também, contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: HISTORIOGRAFIA ANTIGA. EPISTEMOLOGIA DA HISTORIA.
CULTURA ESCRITA. HERODOTO. TITO LIVIO.
No início da História Ocidental, a distinção entre a mortalidade dos homens e a imortalidade da
natureza, entre as coisas feitas pelo homem e as coisas que existem em si mesmas, era o
pressuposto tácito da Historiografia. Todas as coisas que devem sua existência aos homens, tais
como obras, feitos e palavras, são perecíveis, como que contaminadas com a mortalidade de seus
autores. Contudo, se os mortais conseguissem dotar suas obras, feitos e palavras de alguma
permanência, e impedir sua perecibilidade, então essas coisas ao menos em certa medida entrariam
no mundo da eternidade e aí estariam em casa, e os próprios mortais encontrariam seu lugar no
cosmo, onde todas as coisas são imortais, exceto os homens 1.

Professora de História Antiga e Medieval da UAHis/UFCG; Membro do Programa de Pós-graduação em
História da UFCG; Membro do LEIR Nacional; Lider do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais Plataforma
Lattes-CNPq.
1
ARENDT, Hannah. “O conceito de História – antigo e moderno”. In: ______. Entre o passado e o futuro, 3ª
ed., trad.: Mauro W. Barbosa de Almeida, São Paulo: Perspectiva, 1992 (Coleção Debates), p.72.
2
No debate que estabelece entre História, Natureza, Mortalidade e Imortalidade,
Hannah Arendt constrói sua argumentação sobre a forma como o homem antigo e o homem
moderno percebiam sua situação no mundo e como procuravam com ele construir relações a
partir da produção de sentidos.
Para Arendt, a elaboração de compreensões da produção de sentidos de mundo para os
antigos, bem como, para os modernos passa, necessariamente, pela análise da forma como
esses concebem a natureza e com ela se relacionam. A autora considera, como é possível
visualizar na citação anterior, que há entre os antigos - referindo-se aos gregos, a quem toma
como principiadores da narrativa historiográfica no Ocidente - uma compreensão que
distingue visivelmente as coisas “fabricadas” pelo homem daquelas que existem em si
mesmas. Tendo a compreensão de que a História pertencia ao primeiro bloco, os antigos
faziam uso do efeito mimético para dotar os feitos humanos de perenidade. Nas reflexões de
Arendt: “A capacidade humana para realizá-lo era a recordação, Mnemósine, considerada,
portanto, como mãe de todas as demais musas”2.
Nessa perspectiva, Arendt observa que Heródoto já demarca sua obra de uma
percepção de História que visa a imortalizar os feitos humanos através da confecção da
memória que os fará sobreviver à ação do esquecimento. Compreensão que, segundo ela, tem
a ver com a concepção e a experiência grega de natureza, “(...) que compreendia todas as
coisas que vêm a existir por si mesmas, sem assistência de homens ou deuses (...)” . Coisas
que são imortais e que, por serem sempre presentes, costumam não ser esquecidas e, portanto,
“(...) não necessitam da recordação humana para sua existência futura”3.
Disso depreende-se que o efeito de esquecimento se apresenta em consonância com a
condição humana: mortal, antagonicamente ao que ocorre com as coisas que existem em si e
que estão na condição da natureza: imortal.
Na continuação de seu raciocínio, Arendt coloca que havia uma leitura de que “todas
as criaturas vivas, inclusive o homem, acham-se compreendidos neste âmbito do ser-parasempre”. Entretanto, essa compreensão não coloca o homem na condição de imortalizar-se
individualmente; ele apenas imortaliza-se enquanto ser que faz parte do “ciclo repetitivo da
vida”. São os homens, mesmo, os únicos mortais em convívio constante com a imortalidade
de todas as demais coisas, até mesmo dos animais que “existem tão-somente enquanto
membros de espécies e não como indivíduos”4.
2
ARENDT, Hannah. Op.cit. p.72.
Idem, ibidem, p. 70.
4
ARENDT, Hannah. Op.cit. p. 70-71.
3
3
Lógica que implica dizer que a ação humana individual representa um ato fora de uma dimensão
de quietude em que se encontra o mundo e todas as coisas nele presentes, até mesmo a existência
humana, pensada enquanto espécie. A ação humana soa como aquilo que foge ao ordinário, que
violenta a calmaria do “ser-para-sempre”. Consoante com essa reflexão e objetivando demonstrar a
leitura que os antigos tinham de História, Arendt argumenta que os feitos humanos, tema das
narrativas históricas, constituem interrupções isoladas que atuam sobre o movimento circular da
vida diária5. Interrupções que sinalizam o caráter mortal do homem.
É, pois, sob uma condição de mortalidade que o homem vai fabricar seu maior feito:
imortalizar-se enquanto individuação, através, dentre outros lugares narrativos6, da História.
Nova condição a que migra a partir do efeito da recordação.
A reflexão anterior possibilita-nos perceber que a produção da memória histórica, de
certa forma, dota a humanidade de imortalidade7. Imortalidade alcançada em dois níveis:
individual e coletivo, na medida em que, por um lado, eram os feitos grandiosos, realizados
pelos homens, que mereciam ser lembrados e, por outro, que do conjunto das narrativas destes
feitos se constituía a tradição de um povo, aquilo de que deveriam recordar e que passava a
fazer parte do “saber compartilhado”8.
É a partir da idéia de que os feitos grandiosos é que deveriam merecer a atenção, que
Tucídides justifica sua escolha em narrar a História da Guerra do Peloponeso, argumentando
nestes termos: “Começou a narração logo a partir da eclosão da guerra, tendo
prognosticado que ela haveria de ganhar grandes proporções e que seria mais digna de
menção do que as já travadas (...)9”. Além disso, de acordo com as evidências (tekmeríon)
dos feitos anteriores e, sobretudo dos mais antigos, é que pôde se convencer de que esses
realmente “(...) não foram importantes, nem quanto às guerras nem quanto ao mais”10.
Com o objetivo de defender quão grandiosa fora a guerra a que dedicou sua atenção,
Tucídides estabelece uma série de comentários à guerra de Tróia com que prima por
demonstrar a importância e, ao mesmo tempo, tomá-la como parâmetro comparativo que
venha a servir ao objetivo para que a cita, qual seja: o convencimento de seu “leitor” sobre a
5
Idem, ibidem, p. 72.
Aqui nos reportamos à poesia, em especial à epopeia.
7
Acerca desse debate, Arendt apresenta a forma como os filósofos antigos vão inquietar-se, percebendo a
questão paradoxalmente, em virtude de que tudo era visto e medido contra o pano de fundo das coisas que
existem para sempre e a verdadeira grandeza humana residia em feitos e palavras, que eram passageiros (cf.:
ARENDT, Hannah. op.cit., p.75). Veja a continuação do debate que a citada autora faz nas páginas 76 e 77.
8
Sobre essa ideia veja: HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro,
trad.: Jacyntho Lins Brandão, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.
9
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, trad.: Anna Lia Amaral de Almeida Prado, São Paulo:
Martins Fontes, 1999, Livro I, Cap. I (Prefácio).
10
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, trad.: Anna Lia Amaral de Almeida Prado, São Paulo:
Martins Fontes, 1999, Livro I, Cap. I (Prefácio).
6
4
luminosidade do conflito entre atenienses e peloponésios11. Exercício que o conduz para a
diminuição da importância das demais guerras que precederam à Guerra do Peloponeso,
apresentando a Grécia como a sociedade merecedora de ter suas historias narradas e Atenas
enquanto farol da experiência politica. Disso resultaria sua completa ogeriza aos
comportamentos dos cidadãos espartanos, na condução de suas ações, responsabilizando-os
pela perda da autonomia politica e administrativa no pós-guerra.
Para Hannah Arendt, este tipo de colocação se liga ao fato de que os historiadores,
bem como os poetas, aceitavam o conceito grego usual de grandeza. Apenas as coisas
“grandes”, distintas das demais por seu brilho e significância, mereciam a fama eterna e, por
isso, se tornavam imortais12. Conforme coloca:
O louvor, do qual provinha a glória e eventualmente a fama eterna somente poderia ser outorgado
às coisas já ‘grandes’ isto é, às coisas que possuíssem uma qualidade emergente e luminosa que as
distinguisse de todas as demais e tornasse possível a glória. Grande era o que merecera
imortalidade, o que deveria ser admitido na companhia das coisas que perduraram para sempre,
envolvendo a futilidade dos mortais com sua majestade insuperável 13.
Anelados pela preocupação com o registro dos feitos humanos em forma de escritura
viabilizadora da recordação, é que - a partir de escolhas de distintas temáticas e de
diferenciados empregos dados às fontes consultadas – os historiadores antigos (refiro-me em
específico aos gregos e romanos) elaboraram suas narrativas, resultando disso que: “Através
da História os homens se tornam quase iguais à natureza, e unicamente os acontecimentos,
feitos e palavras que se ergueram por si mesmos a contínuo desafio do universo natural eram
os que chamaríamos de históricos”14.
A preocupação com a produção de uma memória dos acontecimentos pode ser
visualizada já nas sociedades egípcia, mesopotâmica, chinesa, indu e entre os muitos outros
povos que a arqueologia histórica tem localizado15 e que antecedem as experiências grega e
romana. Registros que, de acordo com o que nos informa Hartog16, eram realizados a partir
de demandas e sob controle daqueles que estavam à frente do governo.
Porém, é dentro de outra perspectiva que vamos ver a História ser constituída no
mundo Ocidental. O contexto de sua elaboração é o da Polis grega, forma política original que
se respaldava no uso da Lei - texto escrito e público – que levou os indivíduos a abandonarem
11
Cf.: TUCÍDIDES. Livro I, cap.X (Prefácio).
ARENDT, Hannah. op. cit., p. 77.
13
Idem, ibidem, p.77.
14
Idem, ibidem, p.77.
15
Ver por exemplo: HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho, trad.: Jacyntho Lins
Brandão, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001; LEVEQUE, Pierre. As primeiras civilizações. Lisboa:
Edições 70 (3 vols.).
16
HARTOG, François. op.cit., 2001.
12
5
regras costumeiras, pautadas em interesses pessoais que implicavam na criação de
privilégios17. Momento em que foi desenvolvido um conjunto de invenções institucionais,
literárias, artísticas, científicas, teóricas e técnicas, nomeado pela historiografia helenista de
“milagre grego”. Contexto sobre o qual, Finley18, apresenta um largo escopo de reflexões,
considerando aspectos concernentes as duas cidades que vão polarizar as atenções e servir de
modelo para as demais cidades helênicas: “Em toda a história têm existido situações
semelhantes; aquilo que, na Grécia, lhe conferiu um giro incomum foi a cidade-estado, com a
sua intimidade, a sua ênfase na comunidade, na liberdade e na dignidade do indivíduo, que
iam a par com a cidadania”.
Atenas prosperou como nenhum dos outros estados gregos clássicos. O maior dos seus encômios,
atribuído a Péricles, foi ser a ‘escola da Hélade’. No espaço de dois séculos, produziu uma
inimaginável plêiade de soberbos escritores e artistas, cientistas e filósofos. Além disso, muitos
que não eram dela oriundos, sentiam-se fortemente atraídos pela cidade, e alguns deles aí se
estabeleceram permanentemente.
O brilho de Atenas não deve esconder o facto de que houve gregos (também outros homens, em
épocas posteriores), para quem Esparta era o ideal. Ela constitui o modelo da sociedade fechada,
admirada por aqueles que rejeitam uma sociedade aberta com a sua política de facções, a sua
aceitação do demos como uma força política, a sua freqüente ‘falta de disciplina’, o seu
reconhecimento da dignidade e das exigências do indivíduo 19.
Em síntese, para Finley: “nesse momento fugaz, os seus membros conseguiram, como
poucas vezes na história humana, captar e fixar a grandeza de que a mente e o espírito
humanos são capazes” 20.
É nesse ambiente que será viabilizada a produção de uma narrativa historiográfica em
que seu produtor assume o lugar de “fabricador” de logoi, se auto-proclamando
responsabilidade e prestígio pela memória que registra. Atitude bastante recorrente nas
narrativas de Heródoto.
Para François Hartog21, ocorre que a produção historiográfica helênica não se
constitui, portanto, enquanto mero resultado do “dever de memória” – exercício realizado nas
sociedades em que a história era ditada por uma força da realeza que intencionalmente visava
a monumentalizar as memórias de seus feitos - e, muito menos, como fruto de “revelação” –
tal qual a escritura bíblica. A escritura historiográfica grega é por ele pensada como prenhe de
percepção do eu narrador, como se pode observar ao longo da escrita dos historiadores
17
Para maiores reflexões acerca do debate sobre a Polis grega, veja: CHATÊLÉT, François. História das Idéias
Políticas, Rio de Janeiro: Zahar, 1994; FINLEY, Moses. I. Os gregos antigos, trad.: Artur Morão. Lisboa:
Edições 70, 1988; VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, 9ª.ed., Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1996; MOSSÈ, Claude. As instituições gregas, Lisboa: Edições 70, 1985; dentre outros.
18
FINLEY, Moses. I. Os gregos antigos, trad.: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.
19
Idem, ibidem, p.52; 70-71; 75.
20
Idem, ibidem, p. 80.
21
Cf.: HARTOG, François. op.cit., 2001, p. 16.
6
antigos, sendo essa condição marcada, mesmo, nos prefácios. Tomando como exemplificação
dessa caracteristica personalizadora da narrativa as escritas de Heródoto e de Tito Lívio é
possivel observar nos excertos que seguem sua marcante presença:
Os resultados das investigações de Heródoto de Halicarnassos são apresentados aqui, para que a
memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que
feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as
razões pelas quais eles se guerrearam22.
Eu me sentiria feliz em dar minha contribuição pessoal para a celebração dos altos feitos do maior
povo do mundo23.
Apesar das marcas distintivas - desde a metodologia até as fontes utilizadas - das
escrituras historiográficas “fabricadas” pelos dois expoentes antigos, é assumindo o lugar de
narrador responsável pelos acontecimentos que traz a lume, que Heródoto e Tito Lívio
assinam suas Histórias e contribuem, o primeiro, para a perenização dos feitos concernentes
às guerras médica, travadas entre gregos e persas; e, o segundo, para edificar um monumento
mimético sobre Roma que fora projetado com vistas a narrar sua historia desde os inicios até a
época Augustana.
Ambos, também, podem ser distinguidos pela base de que retiram os argumentos que
dão sentidos às suas narrativas. Narrativas que têm em suas experiências pessoais
disemelhantes o frescor com que as tonificam. Resultado que talvez se possa lê a partir do que
argumenta Benjamim24 no tocante às análises que faz sobre o exercício de narrar, o papel do
narrador e da narrativa, estabelecendo distinção de modelos para que retroage até as
sociedades antigas e medievais, consideradas por ele como propícias ao cultivo da narrativa.
Argumentação que forja a partir da análise que faz da sociedade moderna em que percebe o
desaparecimento da prática de narrar e de seu praticante, como coloca:
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua
atualidade viva. Ele é algo distante algo de distante, e que se distancia ainda mais. (...). Uma
experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É
a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas
que sabem narrar devidamente25.
Há para Benjamin um completo distanciamento entre a modernidade e a arte de narrar.
Situação que coloca como base de provocação a perda da possibilidade de “intercambiar
22
Heródoto. Histórias, trad.: Mário da Gama Kury, Brasília: Editora da UNB, 1985. Livro I, cap.1, p.19.
Todas as citações foram retiradas da tradução para a língua portuguesa de Mário da Gama Kury. Para este texto,
também, consultamos outras traduções das Histórias de Heródoto, citadas na bibliografia ao final do texto.
23
TITO LIVIO. Historia de Roma (Ab Urbe Condita Libri), trad.: Paulo Matos Peixoto, São Paulo: Paumape,
1989, Livro I (Prefácio), p.17.
24
BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, trad.; Sergio
Paulo Rouanet, 6ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1993 (obras escolhidas, vol.1).
25
Idem, ibidem, p.197.
7
experiências”, haja vista que, como afirma: “(...) as ações da experiência estão em baixa, e
tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”26. Localizando essa
desvalorização da narrativa ou perda da possibilidade de narrar como tendo se dado no final
da 2ª guerra, evidenciando que: “os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não
mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”27.
A seu ver haveria uma espécie de trauma coletivo que teria atingido a sociedade
contemporânea que lhes inviabilizara a condição de narrar as experiências vivenciadas. Diante
disso, as muitas versões que foram veiculadas sobre a guerra não se ligavam ao que era
transmitido de “boca em boca” e aqueles que haviam estado nos fronts de combate não se
sentiam pertencentes às histórias divulgadas.
Portanto, nessa esteira de compreensão, Benjamin vai dizer que os melhores
narradores são aqueles que mais se aproximam das “histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos”28. Cabendo aos historiadores contemporâneos o papel de se treinarem
na técnica do narrar, buscando artifícios que viabilizem o retorno à narrativa por parte
daqueles que pertencem às sociedades em que essa arte se perdeu. Há para Benjamin uma
fonte a que todos os narradores recorrem, qual seja: “a experiência que passa de pessoa a
pessoa”29. Este, então, é o substrato que alimenta a narrativa.
Mas, a quem Benjamin atribui o lugar de narrador, considerando que esse indivíduo
deva ter a capacidade de intercambiar experiências?
Ao indivíduo que viaja, por um lado, e ao que se mantém sedentário mimetizando
valores e tradições. Eis como Benjamim nos apresenta o que seriam os dois tipos “arcaicos”
de narradores: “Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas
respectivas famílias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas
características próprias”30. Ainda que, Benjamin considere que sejam estes apenas tipos
fundamentais. Agrega a isso o fato de que a arte da narrativa e a identidade do narrador
tenham, com o tempo (após o medievo), vivenciado uma interpenetração de lugares 31. Assim,
nos lembra:
O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetração. O mestre
sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido
um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os
marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No
26
BENJAMIN, Walter. Op.cit., p.198.
Idem, ibidem, p.198.
28
Idem, ibidem, p.198.
29
Idem, ibidem, 198.
30
Idem, ibidem, p.199.
31
Idem, ibidem, p.199.
27
8
sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes,
com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário32.
Donde resulta que às narrativas da tradição serão anexados saberes advindos de
lugares distantes, migrados nas bagagens desses narradores em movimento. Portanto, a
compreensão mais aguçada sobre o que chama de “reino narrativo” só ocorre quando se
considera esse terceiro nível da experiência narrativa.
Em se tratando de se pensar o conteúdo dos saberes veiculados pelo narrador há, no
geral, a presença de um senso prático. Havendo a necessidade de se estabelecer uma
comunicação entre o narrador e aqueles para quem as experiências são narradas que se faz em
um nível, sobretudo, de ensinamento. Assim, a
natureza verdadeira da narrativa (...) tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão
utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática,
seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que
sabe dar conselhos33.
Muitas das características apontadas para pensar a natureza da narrativa fabricada
pelos narradores, de quem trata Benjamin, podem ser localizadas na produção da história feita
pelos historiadores antigos. A partir de uma compreensão que os toma enquanto elaboradores
de narrativas exemplares que devam servir para a vida, passo a analisá-los na esteira do que
apresenta Benjamin sobre os tipos fundamentais de narradores.
As Histórias de Heródoto e a História de Roma (Ab Urbe Condita Libri) de Tito Lívio
são focalizadas para melhor demonstrar a condição de narrador nos dois modelos propostos
por Benjamin, compreendendo estas como exemplares da dupla tradição clássica.
Pensamos a condição de Heródoto enquanto aquele que efetiva suas narrativas a partir
das viagens realizadas, e a de Tito Lívio como a de um provinciano que se manteve fixado à
sua terra de que retira os saberes tradicionais narrados. Portanto, o leitor é colocado diante de
duas expressões narrativas que se caracterizam pelo nível aguçado de ensinamento moral e
utilitário.
A Lívio caberia o lugar de narrador que atua enquanto repositório das memórias e
tradições que são acumuladas pela experiência perenizada no fazer cotidiano, que assumem
caráter de ensinamento, na medida em que a recuperação da tradição de narrativas exemplares
se faz com pretensão de ecoar na comunidade para quem narra. Elabora um conjunto de
saberes que se inicia mesmo com o retomar das lendas de fundação e vai até o final do I
32
33
BENJAMIN, Walter. Op.cit., p.199.
Idem, ibidem, p. 200.
9
século a.C. Compreensão que o leva a informar ao leitor dos níveis de facilidade e dificuldade
que se dão nas narrativas que veicula:
Em cinco livros expus os feitos realizados pelo povo romano desde a fundação de Roma até sua
conquista, história que abrange primeiro o domínio dos reis e, em seguida, o dos cônsules, dos
ditadores, dos decênviros e dos tribunos consulares. Relatei as guerras no exterior e as discórdias
civis. É uma história demasiado obscura, em parte por sua antiguidade, que a torna semelhante aos
objetos difíceis de perceber a grande distância, em parte pela insuficiência e raridade de
documentos escritos na época, única testemunha fiel dos feitos passados, uma vez que até os
documentos registrados nos comentários dos pontífices e outros monumentos públicos e privados
foram na maior parte destruídos no incêndio da cidade. A partir desse ponto, relatarei com maior
clareza e segurança os acontecimentos ocorridos após o ressurgimento da cidade que, por assim
dizer, nasceu novamente com mais vigor e fecundidade34.
É como narrador herdeiro e mimetizador das experiências de seus ascendentes que
Lívio visa provocar um diálogo exemplar com seus coetâneos. Escolhe personagens da
legenda romana para estabelecer o “rosário” admoestador de que se faz voz.
Portanto, são procedimentos e feitos de homens como os de Marco Fúrio Camilo que
Lívio localiza e a que outorga o lugar de excelência na história de uma Roma “refundada”.
Resulta disso que, a partir do Livro VI, nomeia cidadãos que tiveram os exemplos de suas
vidas atrelados aos de Roma. Da narrativa sobre a implementação da República sobressaem
perfis de homens e mulheres com que é preciso que seus contemporâneos possam estabelecer
identificação.
É, por exemplo, num momento de turbulência da história da república romana em que
há a ameaça de mais um enfrentamento entre Roma e Véios, que Lívio localiza a atuação de
Camilo. Típico político que representa uma gens tradicional de Roma, Camilo nos é
apresentado por Lívio nesse momento de perturbação cívica como um homem que articula
respeito à tradição e grandeza de liderança. É, portanto, para uma Roma enquanto lugar de
exempla de uirtutes que as representações livianas nos levam a aportar.
Sob o argumento de que a Roma de seu tempo havia reflexionado em modelos
prejudiciais ao bom regimento da coisa pública, Lívio constroi sua historia de Roma. Focaliza
personagens da legenda romana da república que considera úteis, por seus perfis identitários,
para a Roma da época imperial. Assim, o discurso do respeito as instituições, a moral, a
religião, etc, levadas a efeito na república, autoriza as práticas do então governador Otávio.
Sobre a participação, ou identificação, de Tito Lívio com os rumos dados pela política
augustana para a cidade, Grimal considera que: “Tito Lívio, sem dúvida, servia Augusto, mas
apenas na medida em que este servia essa pátria profundamente amada”35. Portanto,
34
35
TITO LÍVIO, LIVRO VI, CAP.I.
GRIMAL, Pierre. O século de Augusto, Trad.: Rui Miguel Oliveira Duarte, Lisboa: edições 70, 1997, p.78.
10
sintonizado com os ideais restauradores da época augustana, Lívio faz vir à tona uma Roma
que se encontra encoberta, guardada em um passado que a tradição conservou. O discurso
liviano apresenta-se sonante com a produção discursiva levada a efeito pelo círculo literário
patrocinado pelo aristocrata Mecenas36.
No entanto, para além de se pensar sobre as influências das ideias e projeto político de
Otávio na escrita de Tito Lívio é preciso considerar o percurso inverso. As análises de Roger
Chartier37 sobre como os textos/produtos afetam os leitores/consumidores e os conduzem a
uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo contribuem para uma melhor
percepção desse exercício feito por Tito Lívio na Ab urbe condita libri, como também, um
maior alcance do que foi o projeto restaurador da ordem do principado de Otávio Augusto.
Situação que pode ser exemplificada se pensarmos que o próprio Augusto possa ter
recepcionado, em seu projeto de restauração da sociedade romana, as idéias livianas,
conforme nos chama a atenção Ronald Mellor38 em sua análise sobre as relações estabelecidas
entre o imperador e o historiador. De outro modo, temos que no processo de recepção há que
se levar em conta os usos dado pelo leitor/imperador à narrativa liviana.
Desse momento da história romana vivido por Tito Lívio, Pierre Grimal39 diz ter ele
tido a particularidade de merecer ser nomeado de “o século de Augusto” pela forma como o
princeps se colocou e foi visualizado. Nas palavras de Grimal:
Octávio, filho de César e adoptado como Júlio César Octaviano, adorado pela arraia miúda como
um deus, era o seu herdeiro, tinha que ser forçosamente um deus. Não diziam os mitos que Eneias,
príncipe troiano, aportara às costas do Lavínio e se estabelecera no Lácio? Não fora Iúlo, filho de
Eneias, o antepassado da gens Iulia? Não descendia também Rômulo, filho de um deus, de Iúlo? E
não fora o próprio Eneias filho de uma deusa, Vênus, amada pelos romanos? E os augúrios e um
cometa do céu não haviam dado o sinal? Não era convicção generalizada entre as forças vivas da
sociedade e da cultura de então que uma nova era estaria por chegar, uma nova Idade de Ouro,
uma era de paz e prosperidade sem igual para o Universo?
A impressão que nos fica de Augusto é de admiração. Político de gênio, grande e meticuloso
estratego e, sobretudo, homem de acção. Ambicioso. Desejava o poder. Mas não para dele se
servir como o príncipe de Maquiavel. Fica-nos a idéia de que acreditava sinceramente ter sido
designado para uma missão civilizadora especial e que era de raça divina 40.
O discurso de Lívio ganha força, também, em virtude de sua retórica recorrer ao ethos
da decadência, bastante utilizado pelos historiadores que lhe antecederam, recortando
aspectos que mais interessava-lhe enfatizar: o desrespeito aos costumes e o abandono das
antigas virtudes. Nas palavras de Lívio:
36
Idem, ibidem.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1990.
38
MELLOR, Ronald. The Roman Historians, London and New York: Routledge, 1999, p. 71.
39
GRIMAL, Pierre. Op.cit., 1997.
40
Idem, ibidem, p.10-11.
37
11
A meu ver, o que é preciso estudar com toda a atenção é a vida e os costumes de outrora, é a obra
dos homens que na paz e na guerra ajudaram a construir e engrandecer o império. Em seguida,
observar como o paulatino enfraquecimento da disciplina acarretou, por assim dizer, o
relaxamento dos costumes e como sua decadência cada vez mais acentuada levou-os à queda
brusca de nossos dias, quando a corrupção tanto quanto seus remédios nos parecem
insuportáveis41.
Discurso possível de ser localizado em alguns expoentes da época republicana
(Políbio, Cícero, Salústio) e que, conforme comentários de Mazzarino42 foi pensado a partir
de uma larga soma de variantes advindas das mais distintas experiências históricas. Para ele
teria sido Políbio a projetar a questão idealmente, haja vista ter articulado argumentos internos
e externos que vão nortear os escritores posteres. Nas palavras de Mazzarino “Ainda assim o
problema de Políbio continuará a ser colocado desde os primeiros séculos do império
fundado por Augusto; ou seja, colocar-se-à o problema da morte de Roma antes mesmo que
Roma de fato pereça”43.
O espectro do declínio da sociedade serve de monstro mimético de que Lívio faz uso
para melhor construir o cenário para as narrativas e personagens moralizantes que seleciona
da tradição. Em diálogo direto com o leitor prefacia a obra em tom de lastimação, pelos
dissabores de sua época provocados pela riqueza, afluência de prazeres, luxo e deboche; e de
humildade, por reconhecer que as épocas de que tratará foram prenhes de homens de virtude e
costumes superiores, cultuando a pobreza e a economia dos recursos. A isso articulando
comentários que objetivam poupá-lo de rivalizar com historiadores que lhe antecederam no
assunto. Então vejamos:
(...) eu me sentiria feliz em dar minha contribuição pessoal para a celebração dos altos feitos do
maior povo do mundo. (...)
Quanto a mim (...) uma das recompensas que busco em meu trabalho é encontrar nele, pelo menos
enquanto estiver escrevendo sobre a antiguidade, um esquecimento dos males que durante tantos
anos afligiram nossa época, e não ser obrigado àquelas precauções que costumam perturbar de
certo modo o espírito do escritor, embora não o afastem da verdade 44.
A narrativa de Lívio conduz ao regime republicano enquanto modelo que fora
exercitado a partir do respeito as leis e à experiência dos mais antigos. Situação que o leva a
recorrer constantemente não apenas aos exemplos dos períodos e dos acontecimentos que
narra, mas a estabelecer memórias indefectíveis sempre que considera necessário. Nesse
sentido, por exemplo, vamos vê-lo recorrer à imagem do patrício Marco Fúrio Camilo em
várias cirscunstâncias, tanto enquanto presença que se pode solicitar nos momentos cruciais
41
TITO LIVIO. PREFÁCIO, p.18.
SANTO MAZZARINO. O fim do mundo antigo, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p.13-31.
43
Idem, ibidem, p.28.
42
44
TITO LÍVIO. PREFÁCIO, p. 17.
12
de perturbações políticas internas ou externas, sendo conduzido ao consulado, à ditadura;
quanto enquanto representaçao mimética muito tempo depois de sua morte.
É na campanha contra Véios, de que Marco Fúrio Camilo sai vitorioso, que Lívio nos
apresenta quão virtuoso é esse cidadão romano. Camilo, ao ser nomeado ditador é escolhido
pelo destino para a batalha contra Véios. Momento em que se cumpre antigo presságio
segundo o que a cidade só seria destruida quando as águas do lago Albano escoassem para o
campo. A prudência de Camilo atrai para si os favores da Fortuna. Consulta os auspícios e só
depois ordena a que os soldados tomem as armas. Todas as ordens sociais, em grande
multidão, comemoravam seu esplendoroso triunfo, superior a todos que já se havia visto em
Roma.
Esse mesmo homem, aureolado por vitória tão expressiva, mais tarde, acusado de ter
se apossado dos despojos de Véios parte para o exílio, aceitando com tranquilidade cumprir os
desígnios determinados pelas leis que regiam sua sociedade. Tal qual qualquer outro cidadão
comum é que vemos Lívio dissertar sobre o comportamento de Camilo em momento que
poderia lhe fazer voltar-se contra seus compatriotas e sua pátria. Ainda que consciente de não
ter cometido o crime de que o acusavam. Parte sob súplica aos deuses imortais: “(...) que, se
fosse inocente e vítima de uma injustiça, sua pátria ingrata cedo viesse a sentir-lhe a falta.
Em sua ausência, foi condenado a uma multa de quinze mil asses pesados”45. A narrativa de
Lívio se alonga para bem demonstrar a grandeza de caráter de seu personagem, que retira-se
sem cometer nenhum ato que venha a depor contra a parcimônia de sua personalidade.
Comportamento, que associado a ausência mesma de Camilo, para Lívio vai precipitar
sobre a cidade a desgraça, ocorrendo a invasão gaulesa. Mesmo no exílio em Ardéia, Lívio
diz ter Camilo sofrido mais com a infelicidade de sua pátria do que com a sua própria46.
Dando ao leitor ainda mais elementos para se afeiçoar a Camilo, agora não apenas
responsável por grandes feitos em prol de sua pátria, mas cidadão de patriotismo exemplar
que coloca acima de seus interesses os interesses de Roma.
Dando continuidade ao percurso biográfico de Camilo, Lívio diz que aquele, sabedor
da situação em que se encontrava Roma, participa de uma assembléia em Ardéia, ainda que
“tivesse o hábito de abster-se de tais reuniões”47. Os ardeates deliberariam sobre as
providências a serem tomadas em face aos boatos de que os gauleses se aproximavam de seu
território. Tomando da palavra na Assembléia dos ardeates pondera sobre os fatos que se
45
TITO LÍVIO. LIVRO V, CAPITULO 32.
TITO LIVIO. LIVRO V, CAPITULO 43.
47
TITO LÍVIO, LIVRO V, CAPITULO 43.
46
13
aproximam, estabelecendo ligação entre Ardéia e Roma, ainda que reconheça o quão
favorável é a situação dessa em face a um inimigo em desordem. Oferece seus serviços e
compromete-se em dar-lhes a vitória48. Os gauleses são massacrados pelos ardeates sob
comando de Camilo. Nesse ponto da narrativa, Lívio passa a tratar dos acontecimentos e
batalhas de que se ocupam os romanos, deixando ao leitor o exercicio articulador entre os
movimentos de Camilo e as decisões que vão ser tomadas pelo senado romano sobre o destino
daquele. Discussão que vai ter como ponto de deflagação os males que os inimigos têm
causado a cidade, muito mais por não se ter um comandante a altura de Camilo do que por
mérito dos adversários. Eis a forma como Lívio nos narra a questão: “Foi decidido por
unanimidade mandar chamar Camilo em Ardéia, não sem antes consultar o Senado em Roma,
de tal modo o respeito ainda reinava acima de tudo, e que mesmo em situação quase
desesperadora observavam-se as leis”49.
Não se trata de simplesmente reconhecer as qualidades militares de Marco Fúrio
Camilo, mas fazê-lo considerando e respeitando as instituições romanas. Ênfase narrativa que
acompanha todo o texto de Lívio. Tanto assim que, ainda sobre o retorno de Camilo à Roma,
ou melhor, ao campo de batalha na defesa de sua pátria, acrescenta:
Os emissários enviados a Camilo o trouxeram de Ardéia para Véios. Ou então, o que é mais
provável, ele só teria partido de Ardéia após a certeza de que a lei fora votada, pois não podia
mudar de residência sem o consentimento do povo nem tomar os auspícios à frente do exército
sem ter sido nomeado ditador. A lei curiata foi aprovada e Camilo nomeado ditador, embora
ausente50.
Enquanto isso, nos diz Lívio que os gauleses mantinham o cerco a Roma, estando os
romanos resumidos a defender a cidadela. Uns e outros extenuados pela fome. Os defensores
do capitólio resistiam a tão demorado cerco na expectativa da chegada do auxílio do ditador,
mas o retardo da ajuda fez com que os soldados se rendessem. O Senado confia aos tribunos
militares a negociação da paz com os gauleses. Ambientação em que Lívio apresenta a
intervenção de Camilo:
Mas os deuses e os homens impediram que os romanos vivessem como um povo resgatado. Por
um feliz acaso, antes que a infame transação fosse concluída e devido àquela discussão o ouro
fosse totalmente pesado, o ditador chegou.
Camilo mandou levar o ouro e ordenou aos gauleses que se retirassem. Como estes resistissem
alegando o tratado, Camilo declarou que o considerava nulo por ter sido concluído por um
magistrado inferior, a sua revelia, depois que fora nomeado ditador. Avisou aos gauleses que se
preparassem para a luta. Deu ordem aos romanos para que amontoassem as bagagens e
preparassem as armas para recuperar sua pátria com a espada e não com o ouro, diante dos olhos
48
TITO LÍVIO. LIVRO V, CAPITULO 44.
TITO LÍVIO. LIVRO V, CAPITULO 46.
50
TITO LÍVIO. LIVRO V, CAPITULO 46.
49
14
os templos dos deuses, suas mulheres, seus filhos, o solo da pátria castigado pelos males da guerra,
tudo enfim que tinham o dever sagrado de defender, reconquistar e vingar.
(...)
Tendo recuperado sua pátria aos inimigos, o ditador entrou em Roma triunfalmente. Em meio aos
ditos jocosos dos soldados, normais nessas circunstâncias, foi chamadao de Rômulo, pai da pátria,
segundo fundador de Roma, elogias que bem merecera 51.
Camilo é identificado como sujeito em que se articulam as virtudes necessárias ao
romano conhecedor de seu papel na defesa da coisa pública, respeitador da ordem que a
disciplina e a que devem se submeter virtuosa e incontestavelmente. Ordem que vemos Lívio
apresentar a cada acontecimento que narra da história romana da época republicana. Tendo
Camilo espaço privilegiado em sua narrativa por ser identificado em consonância com os
propósitos formadores de Lívio. A exemplo disso, Lívio destina os capítulos 51 ao 54 ao
discurso que teria Camilo feito após a retomada de Roma aos gauleses. Estando a cidade
destruída havia opiniões de que os romanos deveriam abandonar a cidade e habitar Véios,
então florescente. Sendo Camilo de opinião contrária seu discurso será uma longa digressão
de Lívio sobre o civismo e as qualidades necessárias ao individuo para cultivá-lo52.
Compreensão que faz de Camilo, na narrativa de Lívio, o segundo fundador de Roma.
À nobreza de caráter público de Marco Fúrio Camilo corresponde, na narrativa de
Lívio a conduta que adota no contexto privado. Nesse sentido, após realizar as ações para que
as nomeações institucionais exigem retira-se da cena pública e acalma-se envolto em práticas
ordinárias de sua vida privada. Sua individualidade é construida enquanto sujeito desprovido
de orgulho ou exigências fúteis. Homem de hábitos ordinários afastado do luxo ou exageros
de comportamento. Sua morte se dá em meio a uma epidemia que grassou Roma alguns anos
após a refundação.
Exemplum que é retomado por Lívio ao narrar as acusações de Papirio Cursor a Quinto
Fábio, quando esse último sendo comandante da cavalaria travou batalha com o inimigo na
ausência do ditador. Sendo citado pelo ditador, mesmo tendo vencido a batalha, para que seja
respeitada a lei e que o acusado seja punido. Na circunstância narrativa Lívio rememora – no
discurso que atribui ao pai de Quinto Fábio, Marco Fábio - um fato semelhante que se passara
com Marco Fúrio Camilo e Lúcio Fúrio, tendo desfecho diferente, tanto na batalha quanto na
atitude do então ditador:
Quando Lúcio Fúrio travou um combate, que perdeu de maneira desonrosa, desprezando a velhice
e autoridade de Marco Fúrio Camilo, este, na ocasião, controlou sua cólera e não escreveu ao
Senado ou ao povo contra seu colega. E ainda mais: após seu regresso, quando o Senado o deixou
51
52
TITO LÍVIO. LIVRO V, CAPITULO 49.
TITO LÍVIO. LIVRO V, CAPITULOS 51-54.
15
livre para escolher entre seus colegas, preferiu-o aos demais tribunos consulares, associando-o ao
seu comando53.
Assim, vamos encontrar a referência a Camilo em outros momentos da história de
Roma, agora na condição de integrante do panteão dos ancestrais romanos dignos de
memória. Ideal personalístico que Lívio objetiva incutir em seus leitores, mesmo que
consideremos que pratica uma historia mimetizadora de modelos e contra-modelos. No que
tange aos exempla de que lança mão pelo desrespeito com que se apresentam face ao ideal de
uirtus percebemos que Lívio os apresenta dentro de uma estrutura narrativa que parece ter
como objetivo maior ensinar o leitor/romano da época augustana, alvo a que endereça sua
escritura. No tocante a força que os desviantes da ordem têm enquanto argumento narrativo
para as pretensões enfeixadas por Lívio, acompanhemos, a título de ilustração, a forma como
constrói sua narrativa sobre a denúncia pública e punição do traidor, da batalha contra
Fidenas, Métio Fufécio. Passagem em que Lívio articula, antagonicamente, os exemplos de
Tulo Hostílio e Métio Fufécio.
Tulo então proferiu as seguintes palavras: ‘romanos, se algum dia houve uma guerra em que
tivestes razões especiais para primeiro render graças aos deuses imortais e depois a vossa própria
coragem, esta foi sem dúvida a batalha de ontem. Tivestes de lutar não só contra o inimigo, mas
também - combate ainda maior e mais perigoso - contra a traição e a perfídia de nossos aliados.
Não vos enganeis. Foi sem minha ordem que os albanos subiram às montanhas. Não dei
semelhante ordem mas julguei prudente fingi-lo para que, ignorando a traição, não perdêsseis o
ardor do combate, e também para que o inimigo ao julgar-se batido pela retaguarda fosse tomado
de pânico e debandasse. Reconheço que a culpa não é de todo dos albanos. Eles seguiram seu
chefe como vós também teríeis feito se eu próprio vos ordenasse qualquer manobra. Métio foi o
responsável por este movimento, o próprio Métio que maquinou esta guerra, Métio que rompeu a
aliança entre Alba e Roma. Que alguém ouse reproduzir a façanha se eu não fizer deste homem um
exemplo edificante para todos os mortais’.
Os centuriões armados cercaram Métio. (...) Tulo então prosseguiu: Métio Fufécio, se pudesses
aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados, eu te pouparia a vida e seria eu próprio teu
instrutor. Mas, como teu caráter é irrecuperável, que ao menos teu suplício ensine os homens a
considerarem sagrados os compromissos que violasse. Assim como ontem dividias tua alma entre
Fidenas e Roma, hoje é a vez de teu corpo ser também dividido54.
Tulo decide por um suplício que provoca um horrível espetáculo, mandando amarrar
os membros do traidor a duas quadrigas para em seguida serem distendidos e arrastados pelos
cavalos que foram conduzidos em direção oposta. Supliciamento que Lívio narra em detalhe,
para em seguida arremeter uma observação que contribui para a compreensão do nível
terrificante provocado pelo espetáculo: “Foi a primeira e última vez que os romanos
empregaram esse suplício que desprezava as leis da humanidade”55. Pois mesmo os castigos
53
TITO LÍVIO. LIVRO VIII, CAPITULO 33.
TITO LÍVIO, LIVRO I, CAPITULO 28.
55
TITO LÍVIO, LIVRO I, CAPITULO 28.
54
16
são apresentados por Lívio como devendo respeitar limites, evitando assim, via punição o
embrutecimento dos espíritos, de que pretende ser formador.
Temos, pois, na longa passagem recortada da obra de Lívio, o uso dos dois
movimentos fundamentais de sua construção narrativa exemplar, apresentados pelos perfis de
Tulo Hostílio e Métio Fufécio, um e outro, ideais miméticos conservados pela tradição
romana que interessam a Lívio focalizar. Lívio constrói um grandioso escopo de
representações visando libertar seus contemporâneos dos erros em que têm incorrido.
Os exempla livianos podem ser compreendidos como imagens discursivas que
mimetizam atitudes, comportamentos, relações político-sociais das gentes romanas em uma
época, apresentada por Tito Lívio, como áurea. Estes são utilizados por Tito Lívio enquanto
instrumentos que permitem colocar a questão da uirtus, sobretudo, dos tempos republicanos.
Mimese que visa a modelar os comportamentos dos cidadãos romanos de seu tempo. Sua
narrativa do passado apresenta-se em clara conexão com o presente, articulação que
reconhece e reivindica56.
Tito Lívio dedica a maior parte de sua atenção às façanhas dos homens pertencentes às
gentes que foram responsáveis pela elaboração e pelo fortalecimento das instituições romanas;
pela expansão de Roma dentro e fora do Lácio; pelo cultivo da religiosidade pública e privada
e demais costumes. Tito Lívio visava contribuir na formação de novas posturas a partir de um
exercício de identificação entre os romanos de sua época e seus antepassados. Fabrica a
memória do ausente para (re)vivificar seu presente, tempo sobre o que é possível rastrear as
marcas em sua escrita da história.
Sobre essa questão, Michel de Certeau57 chama a atenção para a necessidade de se
observar a particularidade do lugar de onde o historiador fala:
(...) o gesto que liga as ‘idéias’ aos lugares é, precisamente, um gesto de historiador.
Compreender, para ele, é analisar em termos de produções localizáveis o material que cada método
instaurou inicialmente segundo seus métodos de pertinência. Quando a história se torna, para o
prático, o próprio objeto de sua reflexão, pode ele inverter o processo de compreensão que refere
um produto a um lugar? Ele seria neste caso, um fujão (...)58.
Na seqüência, argumenta que conceber a história enquanto uma “operação” implica
em analisar “(...) a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc),
procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura)”
56
HARTOG, François. Op.cit., 2001, p.18.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da Historia, Rio de Janeiro: Forense, 2000.
58
Idem, ibidem, p.65.
59
Idem, ibidem, p. 66.
57
59
.
17
Elementos que por se encontrarem “não ditos” nos discursos, necessitam ser analisados a fim
de possibilitar “(...) dar contornos precisos às leis silenciosas que organizam o espaço
produzido como texto”60.
Assim, considerar Lívio no exercicio de intercambiar experiências enquanto narrador
em uma sociedade como a Roma imperial, em que as ações da experiência estavam em alta é,
aprioristicamente, observar que nesta há um largo substrato material de onde vai retirar seus
conteúdos narrativos. Lívio fala considerando suas experiências em uma Roma que, a época,
passava pela restauração augustuna que se respaldou nas obras de poetas, historiadores e
memorialistas para ser legitimada discursivamente.
Na perspectiva do nos diz Benjamim sobre o narrador e, conseqüentemente, a
narrativa seria possível indagar sobre a possibilidade de se pensar o campo a partir de
elementos fixos? Uma “Ars narratoria”? Em sendo isso possível, haveria como articular os
emblemas próprios para sua enunciação?
E Clio, que nomeia o primeiro livro de Heródoto, servirá de locus para apresentar as
“Origens da discórdia entre a Grécia e a Ásia” que julga terem relação com os raptos de
mulheres; a História do Rei Croisos (ou Creso) e de seus antepassados, inclusive a forma
como essa família chegou ao poder; a passagem de Sólon pela Lídia e a demonstração dos
costumes próprios desse povo, bem como, a formação de um reino tão respeitável que vai
fazer frente ao já consolidado poder dos Persas, sob governo de Ciros. Somos informados de
que esse rei tem grande respeito pelos oráculos da Grécia, em especial o de Delfos. Tomamos
conhecimento das árvores genealógicas de Croisos e de Ciros e dos muitos aspectos que
possibilitaram a que ambos atingissem o governo de seus povos. Dentre as muitas outras
informações que nos são repassadas da Assíria e da Babilônia, dos povos massagetas...
Nesse Livro o que se coloca como eixo articulador é, especialmente, a vontade de
Heródoto em trazer ao leitor suas noções de felicidade. Compreensão que articula ao território
Lídio para que “solicita” a autoridade de Sólon para bem fazê-lo. É, pois, um ateniense
exilado que vai ensinar ao rei Croisos, em sua própria casa, a não querer se colocar de forma a
afrontar a divindade em seu lampejo de felicidade.
Conheço todo o poder dos deuses, Croisos, e seu ânimo vingativo, e o quanto eles gostam de
desconcertar-nos. E me interrogas sobre a sorte dos homens! No curso de uma longa vida podemos
ver muitas coisas de que não gostamos, e também podemos sofrer muito. (...) Ninguém que seja
apenas homem pode ter todas essas coisas juntas, da mesma forma que terra nenhuma é totalmente
auto-suficiente quanto aos seus produtos; algumas dão uma coisa, mas carecem de outra, e a
melhor terra é a que produz mais coisas; de maneira idêntica, pessoa alguma é auto-suficiente;
algumas têm uma coisa, mas carecem de outra, mas o homem que se mantém na posse de mais
60
Idem, ibidem, 2000, p.66.
18
coisas e afinal chega suavemente ao termo de sua vida, tal homem, rei, eu julgo digno desse título.
Devemos olhar para o termo de cada coisa, e ver como ela findará, pois a muitas pessoas a
divindade dá um lampejo de ventura para depois aniquila-la totalmente61.
Diante do que expõe o hóspede ateniense, o rei, ofendido em sua vaidade o expulsa.
Heródoto, continuando seu exercício de “ensinar” sobre a efemeridade da felicidade e a
condição de fragilidade com que o homem se apresenta diante da divindade, prenuncia ao
leitor as desgraças que se aproximam da casa do rei, aprendiz não aplicado: “Mas depois da
partida de Sólon a vingança divina caiu pesadamente sobre Croisos (...)”62.
A personalidade que Heródoto elabora para o rei Croisos tem grande utilidade para os
ensinamentos narrativos que desenvolve ao longo do Livro I. É um acumulo de equívocos, de
tomadas de decisões precipitadas e de desrespeito aos sinais oraculares que o vão precipitar
para perder os beneplácitos da Fortuna. Ainda que o leitor acompanhe a tudo consciente de
que Croisos está fadado ao Azar, haja vista ser herdeiro de um destino que deverá cumprir-se.
Interessante nesse exercício feito por Heródoto é a demonstração do quão o próprio individuo,
uma vez nascendo sob maus desígnios só mais e mais segue em busca dos desfechos trágicos
a ele destinados. Mesmo sendo o homem artífice de suas ações, seguirá no caminho a ele
preteritamente destinado.
Em uma obra composta de nove livros, que tem como justificativa temática para a
narrativa o tratar da guerra entre “bárbaros” e gregos, sobressaem temáticas coadjuvantes que
levam o leitor a um aprendizado de ampla abrangência sobre territórios, povos e costumes que
estão (in)diretamente ligados ao centro narrativo. Heródoto utiliza seus cinco primeiros livros
para tratar de um mundo de valores, costumes, práticas, crenças, compreensões de mundo que
nos permitem sensações de grande proximidade com os logoi de sociedades e indivíduos
quase que completamente ausentes do cômputo memorialístico que integra a historiografia
antiga. Quanto ao conflito entre gregos e bárbaros, dedica atenção apenas a partir do livro VI.
E ainda assim destinando um largo espaço para o narrar das formações dos exércitos de um e
outro grupos envolvidos no combate.
Portanto, caberia, a essa altura da elaboração desses comentários genéricos sobre tão
portentosa obra, problematizar o tipo de narrador que se tem diante dos olhos. Seriam as
narrativas de Heródoto coladas nas situações históricas a que teria tido acesso quando de suas
viagens? Caberia colocá-lo nesse lugar de narrador benjaminiano? Heródoto assume o lugar
de narrador daquilo que viu e experienciou em suas viagens, mas se coloca para além do
61
62
HERÓDOTO. LIVRO I, CAP.32.
HERÓDOTO. LIVRO I, CAP.34.
19
modelo de narrador “viajante” de Benjamin contemplando o agente ativo no outro lado da
narrativa: o destinatário63.
Portanto, enxergar Heródoto como um narrador que viria a intercambiar experiências
passa por considerar que este também careceu de um conhecimento singular das tradições da
sociedade para onde dirigiu aquilo de que fala, atuando a partir de um movimento de
mediação de saberes, o que implica dizer que, também, lemos as Histórias a partir de
preocupações com as possibilidades de recepção da obra pelos atenienses do século V a.C.
Então, para isso é preciso que se perscrute na narrativa herodotiana os substratos materiais
advindos do que viu e ouviu em suas viagens e as tradições que constituíam o “saber
compartilhado”64 destes leitores em especifico.
Mas, o substrato narrativo maior que enfeixa as Histórias de Heródoto é, a meu ver, o
constante exercício comparativo entre territórios e costumes distintos que entram em contato a
partir do narrar seletivo de saberes. Seleção que passa pelo crivo de um narrador que lança
mão de uma base filosófica helenística como se esta lhe servisse de esteira rolante em que
sobrepõe objetos que são rolados pelo manejo atento do maquinista. É com esse movimento
que insere, no contexto dos bárbaros, preocupações com as noções de felicidade, morte, vida,
divindade, respeito aos ritos, etc, que são de grande relevância para o homem grego de sua
época.
No entanto, lembrando aqui as observações feitas por Robert Darnton65 acerca das
análises do historiador da leitura que se volte para épocas que não a dele própria, sei ser esse
um esforço que quase nunca logra êxito. Estou bem certa que o produzir de uma história do
leitor e da leitura está cercado de dificuldades próprias de um campo que se constitui por uma
dinâmica do fluir incessante de ideias que se elaboram a partir das sensibilidades despertadas
pelos “textos”; pela a forma material com que estes se apresentam ao leitor; e pelas maneiras
de ler adotadas pelos leitores66. Ainda retomando as observações de Darnton há que se
considerar que as épocas constroem atmosferas próprias em que “caem” os “textos”. Donde
cabe sumariar que as narrativas de Heródoto trazem histórias que ele acessou em cidades e
regiões, por onde diz ter viajado, que são dirigidas para aqueles que ficaram/permaneceram
em seus redutos; enquanto que as narrativas de Lívio projetam seus contemporâneos para o
63
Para maior aprofundamento do debate veja: HARTOG, François. O Espelho de Heródoto: Ensaio sobre a
representação do outro, Belo Horizonte-MG: Editora da UFMG, 1999 (PARTE II).
64
Idem, ibidem.
65
DARTON, Robert. Os best-sellers proibidos
66
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações
20
aprendizado com os saberes tradicionais, que busca trazer à lume a partir da consulta aos
anais e aos registros legados pelos escritores que lhe antecederam.
Heródoto e Tito Livio lançam mão da narrativa principiando a escrita historiadora no
mundo antigo, permitindo-nos contemporaneamente ter essa como referência reminiscente do
metier do historiador.
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TITO LÍVIO. História de Roma (AB URB CONDITA LIBRI), Trad.: Paulo Matos Peixoto, São Paulo:
Paumape, 1989. (v. 2).
TITE-LIVE - Histoire Romaine. Paris, “Les Belles Lettres”, texte établi par J. Bayet et traduit par G. Baillet,
tome I, livre I.
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