Prof. José Benedito de Almeida Júnior Universidade Federal de Uberlândia METODOLOGIA DO ENSINO DE FILOSOFIA Uberlândia 2008 1 INTRODUÇÃO REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE FILOSOFIA As reflexões sobre o ensino de filosofia têm tomado um âmbito teórico extremamente amplo. Em linhas gerais, pode-se dizer que a tendência é a dos autores tratarem esse tema na perspectiva de uma discussão filosófica e não pedagógica. Assim, o que tem ocorrido é uma discussão a partir da interface entre o que os filósofos entendem por filosofia e, conseqüentemente, o que significa ensinar filosofia. A pergunta: o que é a filosofia? traz consigo outras reflexões necessariamente ligadas a ela: o que é , como se ensina, para quê e para quem se ensina filosofia? Não se considera, portanto, que a produção da filosofia esteja desvinculada de sua comunicação, de seu interesse de se fazer ouvir e entender. O que é a filosofia? A estratégia mais utilizada é tomar um filósofo como referência e, a partir do que ele define como filosofia, definir alguns pressupostos sobre o ensino da filosofia. Assim, se fez com Nietzsche, Platão, Deleuze, Guattari e outros. Tais reflexões enriquecem a reflexão do professor sobre seu trabalho e ampliam perspectivas teóricas para a abordagem da filosofia. Como se ensina a filosofia? Essa discussão não tem sido realizada pelos filósofos, a não ser no que se refere à seleção de textos e perspectivas historiográficas. Em geral, não se envolvem nas questões propriamente pedagógicas que debatem os procedimentos de ensino. Para quê se ensina filosofia? Essa pergunta é uma das mais retomadas pelos filósofos e assinalam tendências que se remetem a alguns períodos históricos da filosofia. No iluminismo, esse ensino tem a função de retirar os homens da ignorância; na perspectiva marxista, desalienar o homem, desvelando o discurso ideológico; na perspectiva nietzschiana, preparar para a autonomia. Para quem se ensina filosofia? Duas tendências predominam nesse campo: a primeira aponta para a impossibilidade ou da inutilidade de se ensinar filosofia para o Ensino Médio (e o que dirá para o Ensino Fundamental?); a segunda tendência acredita não somente na possibilidade do ensino de filosofia, mas até 2 mesmo na utilidade de se levar os conteúdos filosóficos aos alunos desses níveis escolares. Há uma linha de análise que aprofunda a segunda tendência. Trata-se da reflexão de teóricos que concebem o ensino de filosofia como uma experiência filosófica, ou seja, ensinar filosofia na Educação Básica é possível, útil e uma atividade filosófica por excelência. Tal é a tese defendida por Gallo e Kohan: “Se tratarmos a problemática do ensino de filosofia exclusivamente no plano pedagógico – o que acabam fazendo quase todos os cursos de licenciatura em filosofia - perdemos o âmbito filosófico da questão e ela fica “manca”. Acabamos caindo nas mãos de uma didática não-filosófica... a atividade filosófica é em si mesma educativa, não faz sentido falar em ensino de filosofia no contexto de uma didática apenas instrumental. Para que aqueles lugares-comuns possam ser de fato superados é preciso que o sentido do ensino de filosofia seja tratado como uma “pedagogia do conceito”, que ele seja tratado de forma estritamente filosófica.”. (2000, p. 191) Contudo, ensinar filosofia, seja em que nível de escolaridade for, é também, ensinar. Não são poucos os profissionais que acreditam precisar apenas dos conhecimentos específicos para serem bons professores e, nesse caso, acabam caindo em outros “lugares comuns” bastante conhecidos. Pode-se aprender muito com aqueles profissionais, cujo objeto de estudo é as implicações do processo de ensino. Ainda que os alunos de filosofia tenham contato com esse material teórico nas disciplinas “pedagógicas”, torna-se útil analisar esse material na perspectiva filosófica demonstrando em que medida os filósofos que ministram aulas na Educação Básica podem se favorecer com essas “ferramentas” ou “metodologias”. Esse debate poderia mesmo influenciar a postura de professores do Ensino Superior, os quais realizam um trabalho tão autocentrado que chegam a excluir qualquer possibilidade de interação entre professor e aluno. DUAS CARREIRAS DISTINTAS Pode-se abordar um tema, de forma direta, quando se trata de um assunto delicado? Talvez. Uma metáfora seria uma boa forma de abordagem, uma 3 parábola que permitisse uma aproximação enviesada e, dessa maneira, evitássemos o desgaste de expor uma grande divergência entre dois grupos que coexistem nos departamentos de filosofia. Um primeiro grupo acredita que preparar os alunos para serem professores no Ensino Médio e Fundamental não é um projeto que realmente tenha valor para a filosofia. O outro grupo acredita que esse é um fim nobre e que deve ser levado a sério. O verdadeiro problema, porém, está mais oculto do que aparece na superfície dos argumentos: trata-se de uma visão preconceituosa quanto ao professor da educação básica. A dicotomia existe porque, velada ou abertamente, muitos acadêmicos consideram a atividade de professor de filosofia, na Educação Básica, como um abandono da vida acadêmica e, portanto, um afastamento do mundo intelectual. Nessa perspectiva, fica completamente sem sentido preparar os alunos da graduação de filosofia para serem professores da Educação Básica, pois significaria prepará-los para abandonarem o curso que fizeram. O professor do ensino básico desenvolve determinadas técnicas de aula e de avaliação, que tornam seu trabalho bastante específico. O professor do nível superior desenvolve outras técnicas, especialmente, as da pesquisa acadêmica. Ora, diremos então que o professor de universidade é intelectualmente superior ao do Ensino Médio? A resposta é: não, necessariamente. É claro que a carreira daquela está essencialmente ligada à pesquisa (especialmente nas universidades públicas) e por isso, o professor está em um constante processo de desenvolvimento pessoal e profissional. Ao passo que a carreira desse, está mais ligada ao exercício do magistério e seu trabalho de pesquisa é sensivelmente reduzido, seja em função da quantidade de trabalho, seja em função das dificuldades estruturais para continuar se desenvolvendo. Assim, em essência, o trabalho do docente de educação básica não deve ser visto como intelectualmente inferior ao do docente da educação de nível superior, porque ambos desenvolvem suas técnicas e conhecimentos. Escrever artigos, mestrados e doutorados não é ser superior aos outros professores, mas é também uma técnica que se aprende e que pode ser desenvolvida. Os docentes de educação básica não desenvolvem essas técnicas, mas aprendem outras 4 tantas as quais não são conhecidas pelos professores do nível superior. Se há uma diferença entre essas duas carreiras, como dissemos, não é em essência, mas em condições reais: uma direcionada para o desenvolvimento pessoal e profissional e outra que não oferece as mesmas condições. Apesar de todos os preconceitos que envolvem a visão de que os professores da educação básica não são tão intelectuais quanto os acadêmicos, ela não deixa de ter certa razão quando se constata que os professores que estabelecem suas carreiras no nível da educação básica acabam se afastando, via de regra, da continuidade dos estudos e permanecem anos a fio somente no papel de professores o que, evidentemente, se torna um fator de limitação para o desenvolvimento pessoal e profissional dos docentes. As razões desse afastamento são bastante conhecidas: o excesso de aulas e de alunos, os baixos salários, as distâncias entre os locais de trabalho e moradia dos docentes e as universidades, os custos elevados dos cursos de pósgraduação e extensão. Sem dúvida, tais fatores contribuíram e contribuem para que os profissionais que tomaram o ensino de filosofia na educação básica como profissão acabassem afastando-se dos estudos e permanecessem como professores, procurando desenvolver-se, de maneira autônoma. Os governos municipais, estaduais e federal desenvolveram, a partir do final da década de 90, uma série de cursos de capacitação para professores do nível da educação básica tendo em vista a dificuldade que tais professores enfrentavam para realizarem cursos de atualização por conta própria. Do ponto de vista político projetos como o PEC e a Teia do Saber foram duramente criticados pelos sindicatos de professores porque estariam a serviço dos Estados Unidos e dos órgãos que o representavam como o FMI e o Banco Mundial. Do ponto de vista prático, tais projetos enfrentaram inúmeras dificuldades, desde a falta de infra-estrutura para realização dos cursos, como a imposição, aos professores, de realizarem-nos. Além disso, enfrentou-se o desânimo de professores que mal tinham tempo para preparar suas aulas e eram obrigados a freqüentar tais cursos, em período integral, nos sábados. Finalmente, muitas instituições responsáveis pela realização dos cursos, isto é, aquelas que venceram os processos de 5 licitação, não realizaram um trabalho satisfatório variando entre abordagens meramente pedagogizantes do trabalho do professor ou abordagens estritamente acadêmicas, as quais, sem dúvida, contribuíram para a formação do professor, mas de forma alguma atendiam ao interesse dos cursos. É preciso superar esses obstáculos, especialmente dentro dos departamentos de filosofia e começarmos a entender que a formação do licenciado é tão importante quanto a do bacharel. Deve-se exigir das licenciaturas que tenham as mesmas disciplinas e exigências do bacharelado, porque trata-se de um período de formação acadêmica e não há razão para oferecer-se um curso para o licenciando e outro para o bacharelando. Alguns cursos oferecem graduações separadas para o bacharelado e para a licenciatura, mas acredito que essa opção não seja pertinente para o caso da filosofia. Um bom professor de filosofia do ensino médio deve saber pesquisar, ter passado pela experiência de pesquisador, pois desenvolverá técnicas que, mais tarde, lhe serão úteis no trabalho de docência. Evidentemente, os professores que assumem elevadas cargas de trabalho docente têm seu tempo para aprender a elaborar projetos de mestrado e doutorado, será menor do que o tempo de quem se dedica prioritariamente a atingir esses objetivos, mas isso não significa que ele esteja incapacitado para tanto. Muitas vezes, ouvimos colegas dizerem que a maior parte dos professores da educação básica não tem capacidade para desenvolver mestrados e doutorados e por isso mesmo estão nessas carreiras. Isso é uma inverdade. Por que, para muitos, tornar-se professor da Educação Básica foi uma opção e não resultado de uma ausência de opções; tornaram-se professores porque essa profissão lhes oferecia o desafio que estavam dispostos a enfrentar e superar. Aqueles que tornaram-se professores alegando falta de opção repetem uma atitude típica de qualquer mal profissional que não se identifica com a atividade realizada. Sendo assim, não passarão de profissionais medianos, sem motivação para desenvolverem-se pessoal e profissionalmente. Estes não nos servem de motivo para reflexões neste momento. 6 Por outro lado, se muitos que procuram os cursos de mestrado e doutorado em universidades públicas não conseguem elaborar projetos satisfatórios isso se dá por outros fatores, os quais são conseqüência de um grande motivo: o afastamento da vida acadêmica leva à perda da intimidade com sua linguagem, seus procedimentos de pesquisa bibliográfica, elaboração de projetos etc. Quanto a falta de contato com a linguagem acadêmica, podemos dizer que o docente da Educação Básica dirige suas leituras para obras que não o mesmo objetivo, o mesmo público alvo, o mesmo grau de fundamentação, dentre outras diferenças, daquelas utilizadas para um mestrado, por exemplo, assim aprende a avaliar e selecionar livros didáticos; materiais didáticos a partir dos meios de comunicação, com jornais, revistas, filmes etc. e, especialmente, não precisa preocupar-se tanto com os “comentadores”, pois isto tornaria sua linguagem extremamente pesada para o seu aluno, ainda que possa apresentar, a esses, alguns princípios da linguagem acadêmica, não deve pretender fazer de uma sala de ensino médio uma sala de universidade. Quanto à falta de técnica para elaborar o projeto podemos dizer que o mesmo se dá no sentido inverso: se pedirmos para um aluno, cuja meta é o bacharelado e o mestrado, o qual não se preocupa com a licenciatura, elaborar um programa de curso, avaliação, selecionar uma obra didática ou para-didática e outras atividades da rotina de um professor da educação básica, observaremos o mesmo embaraço. Esses conhecimentos são técnicos, aprendidos nos estudos universitários, nos cursos de especialização, capacitação e na prática cotidiana do professor. Muitas vezes, observamos filósofos que acreditam serem esses conhecimentos do nível do senso comum, cujo domínio pertence a qualquer ser humano de raciocínio moderado. Outra inverdade. 7 UNIDADE 1 – O ENSINO DE FILOSOFIA COMO UM PROBLEMA FILOSÓFICO OS SENTIDOS DE SE ENSINAR FILOSOFIA Gontijo e Valadão (CEDES, 2004, P. 296) realizaram uma pesquisa sobre o ensino de filosofia nas escolas de ensino médio do Distrito Federal e constataram que os professores de filosofia atribuem, em geral, três sentidos diferentes para o ensino de filosofia: 1. O ensino de filosofia como um espaço nos quais se fornecem aos alunos instrumentos e métodos do aprender a pensar, estudar e escrever. 2. O ensino de filosofia como instrumento de doutrinação política e ideológica, partindo-se do pressuposto de que os alunos são alienados politicamente e a filosofia teria o papel de libertá-los dessa alienação. 3. O ensino de filosofia como instrumento para o doutrinamento moral. Parece que seria papel da filosofia ajudar os alunos à “encontrarem o caminho”, levá-los a perceber como devem se portar moralmente. Esses três sentidos podem ser classificados como epistemológico, político e moral. Aparecem, como se vê mais adiante, nas obras dos filósofos, com a diferença que a respeito do sentido epistemológico não se trata de instrumentalizar o aluno para qualquer atividade intelectual, mas especificamente a atividade filosófica, como a leitura e interpretação de textos filosóficos, a compreensão do processo de criação dos conceitos, o sentido propriamente dito do filosofar. 8 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Uma das mais consistentes posturas teórico-metodológica é a do estruturalismo, cuja contribuição – para nosso tema – é a de estabelecer critérios para abordar a obra de um autor e como apresentá-la ao leitor. Victor Goldschmidt nos apresenta uma síntese deste debate em seu livro A Religião de Platão1, mais especificamente num anexo ao final do livro, intitulado Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. Para Goldschmidt, haveria dois métodos de investigação: o método genético ou histórico que nos permite compreender o tempo histórico de um sistema filosófico; e o método dogmático ou conceitual que nos permite compreender o tempo lógico de um sistema filosófico. Entendendo como sistema filosófico o conjunto de obras ou conceitos de um filósofo. Os dois métodos apresentam suas vantagens e suas desvantagens, cabendo ao intérprete utilizálos da melhor maneira evitando as armadilhas que ambos os métodos carregam. O método genético O método genético “considera os conceitos como efeitos, sintomas, de que o historiador deverá escrever a etiologia (fatos econômicos e políticos, constituição fisiológica do autor, suas leituras, sua biografia, sua biografia intelectual etc.)”2. Trata-se, portanto, de verificar as circunstâncias nas quais o autor escreveu uma obra ou elaborou uma tese. Analisemos exemplos de cada um dos fenômenos que podem influenciar o pensamento de um autor. Fatos econômicos: quando nos remetemos à obra de Karl Marx e Adam Smith, devemos sempre lembrar da Revolução Industrial e o desenvolvimento urbano pelo qual passavam a Europa ocidental, especialmente a Inglaterra dos séculos XVIII e XIX. 1 2 Goldschmidt, V. A Religião de Platão. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963. Idem, p. 193 (adaptado) 9 Fatos culturais: a influência de fatores culturais é determinante na elaboração da filosofia, como por exemplo, a elaboração de textos em latim, a influência do cristianismo no pensamento filosófico, fenômenos como o humanismo. Fatos Políticos: autores como Kant e Hegel, ao escreverem suas obras políticas, têm em vista o fenômeno da Revolução Francesa. Suas reflexões são profundamente marcadas pelas mudanças que ocorreram no mundo a partir de então, diferindo-se daquela dos contratualistas que escreveram no período anterior a Revolução e sequer chegaram a contemplá-la. Um outro exemplo é o pensamento político de Sócrates, Platão e Aristóteles. Esses filósofos apresentam um desprezo pela democracia em virtude da experiência que viviam: a decadência de Atenas e a ascensão política de Esparta. Assim, não caberia ao leitor julgar se estão certos ou errados, mas compreender a origem política dos seus pensamentos. Constituição fisiológica do autor: muitas vezes os historiadores da filosofia acreditam que a constituição fisiológica de um autor influencia seu pensamento. Lembra-se, sempre, da robustez de Sócrates que participou da Guerra do Peloponeso contra Esparta; da fragilidade fisiológica de Rousseau e Nietzsche, este último, aposentou-se ainda jovem por causa de sua doença. Suas leituras: evidentemente, aquilo que lemos nos influencia. Ou em nossos pensamentos ou em nossas concepções sobre o mundo. Assim, por exemplo, Kant toma Rousseau como referência para reflexão; assim como Rousseau, Platão e Hobbes; Michel Foucault, Nietzsche. Sua biografia. Neste ponto, podemos antever dois aspectos. O primeiro é sua origem nacional, por exemplo, Maquiavel era Florentino, e viveu um ambiente fortemente politizado, não apenas pelas instabilidades políticas da Itália, mas também por ânsia de unificá-la. O segundo, relativo aos lugares onde o filósofo morou, as realidades com as quais tomou contato: é o caso de Rousseau, 10 genebrino que viveu muito tempo na França; Voltaire, que foi conhecer a realidade da Inglaterra; Tocquevile que conheceu os Estados Unidos. Um outro aspecto interessante é a relação com a religião. Muitos filósofos têm sua obra profundamente relacionada com a experiência religiosa, por exemplo, Santo Agostinho e sua conversão ao cristianismo. Sócrates e Platão como seguidores dos Mistérios de Elêusis; Rousseau com suas idas e voltas religiosas que acabam levando-o ao teísmo. Sua biografia intelectual. Considera-se, aqui, a formação de um autor: onde estudou, quais livros leu em suas pesquisas, por exemplo, Descartes estudou em um colégio jesuíta; Santo Agostinho estudou Platão e, Santo Tomás de Aquino, as obras de Aristóteles; Karl Marx estudou os economistas clássicos ingleses; Heidegger estudou Heráclito e assim por diante. Tratar-se-ia de identificar em que medida estas leituras influenciaram o pensamento de determinado autor. No caso de um livro didático, não é preciso aprofundar estas relações que o método histórico nos traz, apenas fazer as indicações e mostrar a influência de algum fenômeno da etiologia sobre o pensamento do autor. Havendo o interesse da turma, o aprofundamento de uma pesquisa neste sentido é extremamente produtivo. Originais. Muitas vezes, estudam-se os originais, primeiras versões, cartas endereçadas a amigos e editores, para se reconstruir a história de livros que se tornam referências nas obras de um autor. Um exemplo interessante, é o descobrimento dos originais do Contrato Social de Rousseau, que indicam uma série de intenções abandonadas, outras mantidas e outras desenvolvidas destes volumes intitulados Manuscrito de Genebra. As desvantagens do método genético ou histórico 11 A grande desvantagem deste método é “ir além das intenções do autor”. Muitas vezes o intérprete, julgando que encontrou as fontes, afirma vinculações entre o autor e seus contemporâneos ou à classe social na qual estaria vinculado. De fato, encontrar elementos que nos dão noção da origem de um conceito não significa que podemos afirmar qualquer coisa sobre o autor além de sua “obra assumida”, isto é, aquela que ele mesmo autorizou a publicação. Um exemplo marcante desta atitude é a afirmação de Karl Marx de que os iluministas seriam autores influenciados pelas idéias da burguesia nascente. Afirmação que é desautorizada, imediatamente, se feita uma análise simples das obras de iluministas como Rousseau, Diderot e Voltaire. Outro exemplo, o nazismo atribuído a Heidegger, que em 1933 assumiu a reitoria da Universidade de Friburgo. Há uma polêmica se sua atitude foi ou não uma vinculação com os ideais nazistas, de qualquer forma, sua atitude política nada tem a ver com sua obra filosófica, tomemos como exemplo, Ser e Tempo (1927). O método conceitual “O primeiro método, que se pode chamar de dogmático, aceita, sob ressalva, a pretensão dos dogmas a serem verdadeiros, e não separa a lexis (A. Lalande) da crença.”3 Em primeiro lugar, é importante destacar que, neste caso, o sentido de dogma é o mesmo de conceito e não o de dogma religioso, por isso, chamamos este método de conceitual. Também, e neste mesmo sentido, quando Goldschmidt fala em crença não se trata de crença religiosa, mas de que o filósofo acredita que seu sistema nos fala verdades. E, quanto ao sentido de lexis, citado no dicionário filosófico de André Lalande, tem o mesmo sentido de conceito. Esse método trata da análise da obra de um autor tomando como referência apenas aquilo que está escrito no livro, sem se importar com qualquer fator da etiologia do autor. Estuda o encadeamento das razões e procura verificar se seu sistema, nesta mesma obra, está coerente. Depois, prosseguindo a análise, compara os conceitos formulados pelo filósofo em suas outras obras e verifica3 Idem, ibidem. 12 lhes a consistência. Por conta desse método, muitas vezes identifica-se mudanças na formulação de conceitos em um mesmo filósofo; ou ainda, observa-se se o filósofo, ao renunciar aos seus conceitos em obras anteriores, de fato, rompe completamente com eles ou se mantém algum elo apesar de sua declarada ruptura. As desvantagens do método conceitual Esse método apresenta como maior desvantagem o fato de não considerar a perspectiva das transformações dos conceitos filosóficos dentro do conjunto da obra de um autor. Por exemplo, ao exigir coerência entre os conceitos acaba desconsiderando que um conceito concebido aos 30 anos pode e deve sofrer mudanças quando o autor chegar aos seus 60 anos, pois novas leituras, novos contatos intelectuais, com certeza, mudam sua forma de pensamento. Além disto, o método conceitual pode ser incorretamente realizado se não captar a intenção de uma obra, por exemplo, muitas vezes acusam Rousseau de incoerência se comparam o Do Contrato Social e as Considerações sobre o Governo da Polônia. Estes intérpretes não consideram que o primeiro livro é uma obra teórica e o segundo é uma obra de circunstância: obra escrita para orientar a Legislação da Polônia. Também se distingue em Karl Marx estas diferenças, por exemplo, em escritos que são considerados do jovem Marx como o Manifesto do Partido Comunista e o Marx maduro como no caso de O Capital. O professor observará que neste livro, por vezes, o método genético é utilizado para permitir a inserção do filósofo em seu tempo e sua formação. O método conceitual é utilizado para apresentar alguns dos principais conceitos da obra de um autor. Evitando, o máximo possível, os riscos de ambos os métodos, procuramos analisar a história da filosofia tanto pelo tempo lógico como pelo tempo histórico. TEMA OU HISTÓRIA DA FILOSOFIA? 13 Como apresentar a História da Filosofia em um livro didático? Optamos por uma apresentação que contempla ambas perspectivas, mas que deixa de lado algumas abordagens. Uma perspectiva seria escrever um livro que tem como meta a História da Filosofia em seus períodos clássicos: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Nesta perspectiva, ganha-se a idéia de tempo cronológico, na qual vamos acompanhando os acontecimentos históricos-políticos e as correntes e períodos do pensamento filosófico. Nessa perspectiva analisamos a obra de um autor em sua completude, por exemplo, em Aristóteles estuda-se sua lógica, sua física, metafísica, cosmologia e outros temas que o estagirita abordou. A outra perspectiva seria escrever um livro tendo como referência os temas da filosofia e acompanhar seu desenvolvimento cronológico, como fez-se com Filosofia Política que é estudada nos períodos antigo, medieval, moderno e contemporâneo. Esta perspectiva permite contemplar tanto os desenvolvimentos históricos e políticos, como também da própria história da filosofia. Uma desvantagem que apresenta é a de não permitir uma visão da completude da obra de inúmeros filósofos, por exemplo, Aristóteles cuja obra aparece fragmentada na lógica, na filosofia política, na metafísica e outras; Kant, cuja obra aparecerá nos temas Metafísica, Conhecimento e outros. Contudo, acreditamos que este problema pode ser resolvido com auxílio do Sumário e do Índice Onomástico, com os quais o professor pode realizar uma pesquisa sobre os diversos temas pesquisados por um filósofo e tomá-los em seu conjunto. Uma boa forma de aplicar esta perspectiva é a atribuição de atividades para os alunos tendo como perspectiva fazer um levantamento dos diversos temas abordados por um filósofo e, até mesmo, quais são suas principais idéias sobre estes temas. Desta maneira, os alunos terão uma perspectiva diferente da História da Filosofia e das possibilidades de uso dos livros didáticos e paradidáticos. DIVISÃO DOS CONTEÚDOS 14 As listas oferecidas abaixo não têm pretensão de esgotar o universo filosófico, mas apresentar algumas das principais áreas e temas da filosofia. 1) HISTÓRIA DA FILOSOFIA a) História da Filosofia Antiga; b) História da Filosofia Medieval; c) História da Filosofia Moderna; d) História da Filosofia Contemporânea. 2) ÁREAS DA FILOSOFIA a) Metafísica (ontologia); b) Ética; c) Política; d) Filosofia Social e) Estética; f) Epistemologia e Teoria do Conhecimento; g) Filosofia da Ciência; h) Filosofia da Linguagem; i) Filosofia da Mente; j) Filosofia da Religião; k) Lógica. 3) TEMAS DE FILOSOFIA a) A verdade; b) O ser; c) A política; d) A Educação; e) O conhecimento; f) A ciência g) A linguagem; h) A arte; 15 Os livros didáticos encontrados no mercado editorial, hoje, divergem quanto ao modo de abordagem da história, área e temas da filosofia. Alguns concentramse no tema, outros nas áreas e outros, em geral os mais antigos, nos períodos históricos da filosofia. De qualquer forma, é preciso que o professor tenha claro qual forma de abordagem dos conteúdos da filosofia que pretende abordar para que possa elaborar seu programa. A adoção de um livro didático não impede que o professor possa priorizar sua forma de trabalhar, ao contrário, como dissemos mais acima, o livro didático deve servir como suporte para o trabalho do professor e não como correntes. A LINGUAGEM DA FILOSOFIA A história da filosofia nos mostra que foram diversas as formas literárias das quais os filósofos se serviram para transmitirem suas idéias. Por isso mesmo, o professor não deve ficar preso a uma dessas formas nem exigir do aluno que faça o mesmo; é preciso que o educando tenha contato com o maior número possível de obras dos filósofos e com seus diferentes estilos para que esse universo se abra diante deles. Em geral, podemos dizer que os estilos mais utilizados em filosofia foram: a) o diálogo: presente em Platão e Santo Agostinho entre outros; b) o tratado: presente em obras como as de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino; c) a poesia: presente em obras como as de Parmênides e Voltaire; d) os romances, contos e novelas: presentes em obras como as de Rousseau e Sartre; e) os ensaios: presentes nas obras de Montaigne e Benjamim. f) obras acadêmicas: como os artigos, dissertações e teses produzidos nas faculdades de filosofia g) aforismos presentes em obras como a de Nietzsche. h) Cartas ou epístolas: há cartas escritas com a intenção de publicar como as Cartas Persas de Montesquieu e as Cartas Inglesas de Voltaire 16 e cartas que eram privadas e acabaram adquirindo um estatuto de texto filosófico, principalmente para os especialistas. Evidentemente, a lista acima não tem a pretensão de esgotar as formas nas quais a filosofia foi escrita, mas servir de referência para uma compreensão da diversidade de formas literárias presentes na história da filosofia. Consideramos fundamental que o professor proporcione ao seu aluno o contato com essas diversas formas. Por outro lado, a relação entre a linguagem e a filosofia pode estar no plano de referência do professor a partir do pressuposto de que o conceito deve ser expresso por uma palavra da língua natural do filósofo. Assim, é preciso demonstrar aos alunos que o conceito é mais específico do que a palavra e que os dicionários do léxico comum podem ser utilizados, mas não são suficientes para nos indicar o significado que um filósofo atribuiu ao conceito por ele criado. A única forma de chegar a esse significado é pela leitura direta da obra do filósofo, pelo apoio dos comentadores e dos dicionários de filosofia. Relacionar a língua natural à criação do conceito é uma tarefa tratada por Cossuta a partir da seguinte perspectiva: “... a língua natural não constitui apenas o veículo, mas também um meio dotado de autonomia, que tem uma vida própria, dentro da qual o filósofo tenta abrir um caminho em direção do conceito. (...) Mas ele não utiliza apenas os recursos da língua natural; ele reelabora conjuntos terminológicos legados por seus predecessores, toma emprestados termos de domínio de saber diversos”. (1994, p. 58). Enfim, se o termo política aparece na obra de um filósofo brasileiro contemporâneo é porque ele fez uso da sua língua natural. Os dicionários comuns da língua não são capazes de dizer o exato significado do termo política para esse filósofo. Por outro lado, muitos filósofos antes dele utilizaram também esse termo, mas isso não significa que ele tenha sido congelado num significado único, cada filósofo tratará o conceito a partir do seu campo nocional. OS FILÓSOFOS 17 Uma grande dificuldade de estudar filosofia é compreender o pensamento de um filósofo sem rotulá-lo, ou seja, ainda que seja necessário encaixar seu pensamento dentro de grandes períodos históricos, áreas ou temas da filosofia, sempre é possível encontrar provas de que tais rótulos não se encaixam a este ou àquele filósofo. Apesar de no conhecimento acadêmico tais rótulos serem evitados, no ensino médio talvez sejam úteis para que os alunos encontrem referenciais mais simplificados para seus estudos. Simplificar conhecimentos sempre implica perda de precisão, contudo não significa necessariamente realizar uma análise simplória. É sempre necessário esclarecer os limites dos rótulos, mas utilizá-los, digamos, didaticamente. A dificuldade de se estabelecer linhas do tempo nos períodos históricos da filosofia é muito mais complexa do que pode parecer a primeira vista; a mesma dificuldade enfrentam nossos colegas da literatura quando delimitam “didaticamente” os grandes períodos literários brasileiros, por exemplo; assim como nossos colegas da história, quando delimitam os períodos históricos da humanidade. Em filosofia as dificuldades são, entre outras: a) Os chamados pré-socráticos são filósofos ou pré-filósofos? Se filósofos, então porque chamá-los de pré-socráticos, qual é o critério de demarcação?; b) A filosofia medieval se inicia com Santo Agostinho ou os filósofos da patrística podem ser incluídos nesse momento? c) Quem é o pai da filosofia moderna: Descartes, Bacon ou Galileu? Se em todos podemos encontrar fortes influenciais do pensamento medieval podem ser classificados apenas de modernos? d) Quando começa a filosofia contemporânea, em Hegel, Marx? Novamente, os livros didáticos e os manuais de filosofia fazem suas opções, apresentam alguns argumentos e seguem em frente em suas análises. O professor também não deve se deter muito nessas questões, pois uma vez 18 problematizada a questão, isto é, apresentados os argumentos prós e contra (quando for o caso) o professor pode continuar seu curso. Sabemos que os debates acadêmicos delimitam com mais precisão o pensamento dos filósofos, por isso, de tempos em tempos novas tendências no mundo acadêmico influenciam a produção de livros didáticos e manuais de filosofia. ABORDAGENS A abordagem pela história da filosofia permite uma visão do período e de alguns dos principais filósofos e também pode se tornar uma interessante forma de estimular, nos alunos, o interesse pela filosofia. Praticamente, todas as faculdades de filosofia, mantêm as disciplinas de História da Filosofia nos cursos de graduação. A diferença é que nessas faculdades, a história não é vista de maneira cronológica e ampla, mas geralmente toma um ou outro filósofo como foco principal fazendo com que outros filósofos gravitem nesse principal. No Ensino Médio, porém, o tratamento cronológico pode ajudar o aluno a encontrar um apoio para a compreensão e registro das informações. As abordagens que priorizam os temas ou áreas da filosofia percorrem o pensamento de vários filósofos nos diferentes períodos históricos. Assim, a análise tende a ser mais superficial, mas por outro lado permite ao aluno a comparação do pensamento dos filósofos em torno de determinados temas. Muitas vezes, para facilitar o trabalho, compara-se os pensamentos dos filósofos em cada período histórico, mas isso nem sempre é interessante, como por exemplo, no caso da política ao perdermos a oportunidade de compararmos Aristóteles com os Modernos como Hobbes e Rousseau; ou os elos entre Platão e Santo Agostinho. A abordagem por temas pode ter como foco dois ou mais filósofos, entendendo-se, contudo, que quanto maior o número de filósofos analisados dessa forma, menor o grau de precisão da análise. Esse problema é inevitável, mas freqüentemente torna-se interessante uma apresentação das idéias dos filósofos sobre um tema para depois realizar uma abordagem mais cuidadosa de 19 seus pensamentos incluindo não somente uma leitura conceitual, mas também uma leitura genética. Por exemplo, Santo Agostinho e Sartre trataram o tema da liberdade, mas com métodos e interesses bem distintos: para um prevalecia a religião cristã, a necessidade de reforçá-la diante das críticas que sofria no período; para outro, o ateísmo, a busca de uma ética não-dogmática, entre outras características. As abordagens pelas áreas apresentam como vantagem a consistência de análise em torno de um aspecto da filosofia, como por exemplo, a lógica ou a filosofia da ciência. Apresenta um recorte semelhante aos temas, pois permite comparar o pensamento de filósofos de diferentes períodos históricos e, como sempre, apesar do interesse que esse método desperta nos alunos, ele sempre corre o risco de tratar de forma superficial os pensamentos dos filósofos e priorizar um em detrimento do outro. Uma outra perspectiva de abordagem é a dos temas transversais que são sugeridos nas propostas oficiais de ensino e que foram inseridos no contexto dos debates sobre educação com o objetivo de aproximar os conteúdos teóricos das diferentes disciplinas à realidade vivida por alunos e professores. Os temas transversais, portanto têm por objetivo integrar os conteúdos acadêmicos à experiência de vida daqueles que orbitam o ambiente escolar. Conforme Araújo: A discussão a respeito dos temas transversais na Educação surge de questionamentos realizados por alguns grupos politicamente organizados em vários países sobre qual deve ser o papel da escola dentro de uma sociedade plural e globalizada e sobre quais devem ser os conteúdos abordados nessa escola. (ARAÚJO apud BUSQUETS, 1999, pp. 11 – 12). Entre os mais conhecidos temas transversais encontram-se: ética, consumo, educação para a saúde e sexual, meio ambiente, pluralidade cultural e outros mais que possam se apresentar conforme a necessidade, por exemplo, a onda de violência que assolou São Paulo em maio de 2006 por ordem de uma organização criminosa ou a Copa do Mundo podem motivar novas abordagens dos temas transversais. O professor de filosofia não deve, nesta perspectiva, tratar exclusivamente dos conteúdos tradicionais de sua disciplina, mas incluir em seu programa os temas 20 transversais para que contemple a realidade escolar, ou seja, que seus alunos estão em processo de formação pessoal e política e que, portanto, a filosofia deve contribuir diretamente para a compreensão da realidade que o cerca. Assim, o professor de filosofia não deve virar às costas aquilo que seu aluno assiste na tevê, aquilo que se discute na escola, mas deve estar atento ao que interessa ao seu público. Por outro lado, abordar os temas transversais, por meio dos projetos de trabalho, por exemplo, não pode significar abandonar os conteúdos filosóficos. Este equívoco tem sido cometido freqüentemente por professores de diferentes áreas que imbuídos de boa vontade dedicam-se a esclarecer todos os assuntos que chamam a atenção de seus alunos e abandonam completamente os conteúdos de suas disciplinas. No caso do professor de filosofia, trata-se especificamente dos conteúdos de história, áreas ou temas de filosofia que não podem deixar de ser ensinados aos alunos em troca de esclarecer – supostamente – a realidade que o cerca. Assim tem sido interpretado o “ensinar a filosofar” de Kant, ou seja, ensinar a pensar a partir da realidade e não a partir dos conteúdos de filosofia seria a tarefa do professor, mas como ensinar a filosofar sem os conteúdos da história da filosofia? Portanto, o ensino de filosofia na Educação Básica parte de um pressuposto para o qual o bacharelado em filosofia não prepara o discente, qual seja, o de associar o aprendizado da história da filosofia (com suas áreas, temas e conceitos) à realidade imediata que cerca o aluno. Nos cursos de graduação aprendemos a estudar filosofia a partir dos clássicos e seus intérpretes. Pesquisar em filosofia é pesquisar os textos originais dos filósofos e as diferentes perspectivas de interpretação desses textos. É muito comum estarmos assistindo uma aula sobre política antiga ou moderna e não tecer nenhum paralelo ou comentário à realidade política, nacional ou internacional, que nos cerca. O país pode estar em guerra, mas não nos perdemos no processo de investigação minuciosa que marca a pesquisa acadêmica em filosofia. Evidentemente, tal postura possui sua lógica e é importante que se proceda dessa maneira para que novas perspectivas de interpretação dos filósofos surjam 21 e venham a enriquecer os debates existentes ou lancem novos debates. O que se percebe é que não é essa a realidade que o professor da Educação Básica irá encontrar, ou seja, não haverá quarenta, vinte ou dez alunos diante dele dispostos a mergulhar nos argumentos e contra-argumentos dos intérpretes de determinado filósofo, mas adolescentes e crianças ansiosos por entender e dar sua opinião sobre o mundo que o cerca. Assim, cabe às disciplinas de licenciatura em filosofia realizarem a ponte entre a formação do bacharel e pesquisador em filosofia e o professor de filosofia da educação básica. Por isso, é preciso que o profissional docente da educação básica, seja de que área do saber vier, deve preparar-se para inserir em seus planos de curso e de aula conteúdos que não derivam diretamente de sua formação como bacharel, mas também os temas transversais e, também, esteja aberto para inserir determinadas discussões que derivam de acontecimentos fortuitos, mas que atraem completamente a atenção dos alunos. O CONCEITO COMO PROBLEMA CENTRAL DA FILOSOFIA OS CONCEITOS COMO FUNDAMENTO DA FILOSOFIA A respeito do ensino de filosofia um dos temas mais candentes e mais estimulantes é o da noção de conceito em filosofia, ou se quisermos ser prolixos, o conceito de conceito. Na perspectiva de Deleuze e Guattari a criação de conceitos é o que caracteriza propriamente o trabalho filosófico e, como vimos mais acima em Goldschmidt, o método dogmático tem por objetivo encontrar o elo entre os conceitos que caracterizam a obra de um filósofo. “O filósofo é o amigo do conceito, é conceito em potência. O que quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou fabricar conceitos, dado que os conceitos não são necessariamente formas descobertas ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos“. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 12). Assim, é preciso que o docente não 22 apenas se limite a apresentar os conceitos de um filósofo aos alunos, mas procure mostrar o elo entre esses conceitos e como formam um todo. Poderíamos tomar os conceitos dos filósofos como correspondentes da realidade, ou seja, será que essas criações dos filósofos têm alguma coisa a ver com a realidade concreta das coisas? Para Deleuze e Guattari, o primeiro princípio da filosofia é justamente compreender que os Universais devem antes ser explicados para depois explicarem as realidades. Assim, recorrem a Nietzsche e ao construtivismo para apresentar fundamentos legítimos do pensar filosófico, ou seja, a criação de conceitos: “Mas não há razões para opor o conhecimento por conceitos, e por construção de conceitos na experiência possível ou na intuição. Pois, segundo o veredicto nietzschiano, não conhecemos nada por conceitos se não os tivermos primeiro criando, isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um campo, um plano, um terreno que não se confunde com eles, mas que abriga os seus germes e as personagens que os cultivam. O construtivismo exige que toda a criação seja uma construção num plano que lhe dê uma existência autônoma”. (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 14). Porém, esta clareza de qual é o fundamento e a tarefa da filosofia é decorrência de uma luta contra as ciências que foram surgindo e tentando, cada uma da sua maneira, desqualificar o trabalho filosófico. Em primeiro lugar, a sociologia que exigiu a apresentação da origem do conceito em elementos como representações coletivas, concepções de mundo criadas pelos povos, forças históricas e espirituais. A epistemologia, a lingüística, a filosofia da ciência também tentaram limitar o conceito filosófico à noção de lei em ciências ou de sintagmas e parasintagmas em lingüística tentando retirar-lhe o que tinha de mais filosófico: o fato de ser criado. Conforme Deleuze, os pós-kantianos abraçaram a idéia da criação de uma enciclopédia universal de conceitos, cujo objetivo não era apresentar suas diversas interpretações pelos filósofos – tal como fazem hoje os dicionários de filosofia – mas de torná-los definitivos. Assim, equivocados tanto quanto os críticos da filosofia oriundos de outras áreas do saber, caberia mais aos pós-kantianos “dedicarem-se a uma tarefa mais 23 modesta, uma pedagogia do conceito, que tivesse de analisar as condições de criação como fatores de momentos que permaneciam singulares.” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 18). A tarefa da docência em filosofia na Educação Básica pode aprender um pouco com essa problemática do conceito. Em primeiro lugar, demonstrando que os conceitos são criações dos filósofos, que podem derivar de uma intuição genial ou de puro raciocínio lógico, mas de qualquer forma são criações, por isso, não deve o docente realizar a tarefa de cristalizar o conceito tentando transformá-lo em um imperativo universal válido sob quaisquer circunstâncias. Em segundo lugar, a docência em filosofia na Educação Básica não se resume a ensinar para os alunos o que os filósofos pensaram, comparar-lhes os pensamentos e dar conta desses conteúdos nas avaliações, mas também de auxiliar o aluno na interpretação da realidade na qual vive – daí a necessidade de aceitar e incentivar as questões dos alunos não somente relativa ao texto tratado, mas também de sua realidade imediata – para tanto, professor e aluno serão partícipes de um processo de criação de conceitos. Nesse sentido é que Aspis (ASPIS, 2005, p. ???) insiste que a docência em filosofia na Educação Básica é uma experiência filosófica. Acrescentaríamos, para o professor e para o aluno. A respeito da pedagogia do conceito, Deleuze e Guattari nos remetem a obra de Frédéric Cossuta que também desenvolve o tema da pedagogia do conceito sob a perspectiva das relações entre linguagem e conceito. Para Cossuta: “Mas ele (o filósofo) não se serve passivamente de um estoque de expressões feitas: uma filosofia depende menos do vocabulário que ela emprega do que da maneira como o pensamento procede para produzir o sentido”. (COSSUTA, 1994, p. 59). Isto quer dizer, que muitas vezes os filósofos recorrem às mesmas expressões, mas elas não estão dependentes do sentido que possuem no vocabulário daquela língua, mas do modo como empregaram, tal como temos, num exemplo elementar, o termo política utilizado por Platão e Aristóteles, contudo seus sentidos são completamente distintos. Para Cossuta aquela noção goldschmidtiana de método genético, ou seja, da análise dos conceitos do pensamento de um filósofo é pertinente porque existe 24 um campo conceitual formado pela totalidade sistemática dos conceitos. E esses conceitos são mesmo o resultado da articulação desse todo sistemático que é o pensamento, assim, não há conceito fora do pensamento. Cossuta diferencia o campo nocional do campo conceitual. O primeiro é: “o conjunto da terminologia preexistente à doutrina” (1994, p. 59), ou seja, são expressões da língua na qual escreve e termos tomados de outras áreas do saber ou mesmo de outras doutrinas filosóficas. Cita como exemplo, a análise de Gueroult a propósito do conceito de “substância” em Espinosa: “Em Descartes e alguns escolásticos, o termo substância não era unívoco, pois se aplicava a Deus ‘que necessita apenas de si para existir’ e às substâncias da natureza ditas ‘criadas’ que, para existir, certamente necessitam outras coisas criadas. Espinosa reestabelece a univocidade do termo, concebendo toda substância como seres divinos que são em si e concebidos por si.” (1994, p. 59). O campo conceitual é formado “pela integração da terminologia numa totalidade sistemática”. (idem). Isto significa que o conceito só encontra seu sentido na totalidade da doutrina – totalidade a qual Cossuta, como Goldschmidt afirmam ser flexível – e que ele não tem qualquer significação fora do pensamento e da linguagem: “Não há portanto, conceito fora de um processo de pensamento que lhe garanta a área de significação; a definição é procedimento sintético, do qual só o contexto verbal permite fixar os limites.” (idem). Ora, em termos mais simples, não existe um hiperurânio onde residem os conceitos que deveram ser “descobertos” pelos filósofos e que, portanto, préexistem ao pensamento. HISTORIA DA FILOSOFIA E FILOSOFAR EM KANT Essas reflexões sobre a importância do conceito em filosofia nos remetem à arquitetônica da razão pura de Kant e, mais especificamente, a sua famosa frase sobre o filosofar: “Dentre todas as ciências racionais (a priori), portanto, só é possível aprender Matemática, mas jamais Filosofia (a não ser historicamente); no que tange à razão, o máximo que se pode fazer é aprender a filosofar”. (KANT, 25 1979, p. 237). Basicamente, Kant define a filosofia como um arquétipo que serve para “julgar todas as tentativas de filosofar; este arquétipo deve servir para julgar toda a filosofia subjetiva, cujo edifício é freqüentemente tão diversificado e tão mutável“. (KANT: 1979, p. 237). Dessa forma, Kant estaria em completo desacordo com o que acabamos de ver em relação à pedagogia do conceito de Deleuze e Guattari, os quais consideraram inúteis, essas tentativas dos pós-kantianos, de estabelecer esse arquétipo que serviria para acabar com toda a “diversificabilidade e mutabilidade” do edifício filosófico. De certa forma, Bacon fez uma crítica semelhante à de Kant ao definir os sistemas filosóficos como “ídolos do teatro” nos quais os filósofos apresentam seus sistemas um depois do outro na mais total diversidade. Essa diversidade dos sistemas filosóficos, contudo, não seria fruto das influências do povo ao qual pertencem nem de sua carga cultural, como querem os sociólogos; nem fruto da falta de lógica dos filósofos em captar o conceito tal como ele é de fato, mas justamente do que a filosofia tem de mais característico que é a capacidade de criar conceitos. Podemos entender a frase de Kant, ao menos, sob outra perspectiva: a de que se pode ensinar filosofia historicamente, isto é, podemos ensinar aos alunos os sistemas dos filósofos e compará-los, Kant, portanto, não nega que se possa ensinar a historia da filosofia, mas somente que isso seja ensinar filosofia. Nessa perspectiva, podemos ver um certo elo entre o pensamento kantiano (e não o dos pós-kantianos) e o deleuzeano, ou seja, ambos concordam que ensinar filosofia não é ensinar os sistemas filosóficos, mas ensinar a pensar filosoficamente. Também não percebemos uma dicotomia entre o ensinar a história da filosofia e o ensinar a pensar filosoficamente ou, simplesmente, filosofar nesses autores. Sob essa perspectiva, trata-se de partir de um conteúdo aceito como tradicional e, de excelente qualidade intelectual, as obras dos filósofos, mas isso não significa limitarmos o trabalho do filósofo a ensinar a história da filosofia. Assim, partir da história da filosofia é sempre um referencial seguro para que possamos desenvolver um pensamento autônomo e criativo. 26 A RESPEITO DO ENSINO DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA E DA FILOSOFIA EM HEGEL Podemos dizer que a concepção hegeliana de ensino de filosofia se encaixa na discussão proposta por Goldschmidt: a do tempo histórico e a do tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. Basicamente, podemos dizer que Hegel não se importa com a análise do tempo histórico, exige que o foco das atenções dos professores esteja centrado no tempo lógico, para usar uma linguagem anacrônica a Hegel, mas que faz sentido para nós. “Do mesmo modo não pode preocupar-nos muito a história da difusão dos sistemas. Nosso objeto é somente o conteúdo dos sistemas filosóficos, não a história exterior dos mesmos. Por exemplo, conhecemos uma multidão de doutrinas do estoicismo que atuaram intensamente em seu tempo e transformaram (aperfeiçoando) os indivíduos”. (HEGEL, 1980, p. 73). Nesse sentido, Hegel insiste que nos atenhamos ao significado dos princípios propostos pelas filosofias, sejam os antigos como Tales ou, os modernos como Descartes. Ora, trata-se de saber selecionar o que de fato tem interesse para entender o “progresso do espírito” e o que não se remete diretamente a esse assunto. Por isso, Hegel afirma: “Logo, temos de ater-nos na filosofia antiga, unicamente ao filosófico, não ao histórico, ao biográfico, à crítica etc. Por conseguinte, não ao que foi escrito sobre estas questões ou ao que é somente secundário”. (HEGEL, 1980, p. 71). Ele tematiza a relação entre a história da filosofia e a própria filosofia sob a perspectiva de se estabelecer uma leitura dos sistemas filosóficos na história da filosofia, tarefa esta a ser orientada por um professor: “Trata-se agora da relação direta da história da filosofia com a própria filosofia. Para encontrar na primeira um sistema, deve-se já ter um conhecimento do sistema da filosofia. Por conseguinte, é dever do professor, que já possui esse conhecimento, mostrar na história da filosofia uma sistematização ou um desenvolvimento lógico”. (HEGEL, 1980, p. 73). Uma vez que o professor tem a clareza dos princípios das filosofias, ainda cabe uma nova tarefa: a de selecionar os sistemas nos quais os princípios foram 27 importantes para provocar um “alargamento” da ciência. Assim, o historiador da filosofia não pode proceder de modo imparcial como o historiador político, se bem que o próprio Hegel reconhece que a história política não é imparcial, como no exemplo de Tito Lívio, no qual importava acima de tudo salientar a soberania romana. Da mesma forma , o historiador da filosofia tem uma finalidade ao escrever essa história: “... a razão no seu desenvolvimento se constitui a si própria como fim; fim que não é qualquer coisa de estranho nela introduzido, mas a própria realidade histórica, que exige por fundamento o universal, e à luz do universal apresentam-se em seu confronto as particulares formações e seus aperfeiçoamentos. Por conseguinte, se também a história da filosofia deve narrar fatos históricos, surge imediatamente à pergunta: que coisa é um fato da filosofia, e se este ou aquele fato, é ou não filosófico. Na história exterior tudo são fatos, embora uns dotados de importância e outros não. Não assim na filosofia; porque o tratar a história da filosofia nem sequer é possível, se o historiador não tiver que julgar”. (HEGEL, 1980, p. 390). Como conclusão, Hegel alerta ao professor de filosofia que o seu objeto, não pode ser registrado em mármore ou papel, que, portanto não pode ser decomposto. Segundo ele a filosofia é o resultado dos “produtos do pensamento” que são: “constituídos em pensamento formam o próprio ser do espírito. Nem por isso estes conhecimentos são coletâneas de noções, ou conhecimentos do que é morto, soterrado e decomposto; a história da filosofia ocupa-se daquilo que não envelhece, daquilo que é o presente vivo”. (1980, p. 346). 28 UNIDADE 2 – CONHECIMENTOS DE APOIO AO ENSINO DA FILOSOFIA O ENSINO DE FILOSOFIA ENQUANTO PROCESSO DE ENSINO A motivação do professor A motivação é um fenômeno pessoal, é impossível alguém motivar alguém, seja em que condições forem. Archer (1997, p. 25) “a motivação, portanto, nasce das necessidades humanas e não daquelas coisas que satisfazem estas necessidades”. Isto quer dizer que, a motivação é o movimento em direção à satisfação das necessidades e não exatamente o resultado final, pois este é a satisfação. Conclui Archer: “... a questão que se segue é como pode uma pessoa motivar outra. A resposta é simplesmente que não se pode”. (idem) Herzberg analisou esse problema sob a perspectiva de diferenciar fatores de higiene e fatores de motivação. Os fatores de higiene são aqueles que atendem as necessidades básicas, os quais são necessários, porém incapazes de produzir motivação. Em dado momento das pesquisas sobre o tema da motivação, acreditava-se que o atendimento desses fatores era suficiente para gerar a motivação formando, o que ficou conhecido pelos teóricos como “mitos da motivação”, dentre os quais Herzberg destaca: redução do expediente de trabalho, salário, benefícios previdenciários, preparo em relações humanas, comunicações, comunicações nos dois sentidos, participação no trabalho e outros. Os fatores de motivação são aqueles relacionados ao desenvolvimento do trabalhador como pessoa e profissional, também derivam de determinadas necessidades, mas não exatamente como as anteriores. Herzberg diferencia essas necessidades: “Estão presentes no caso dois conjuntos de necessidades inerentes ao homem. Um deles pode ser considerado originário de sua natureza animal: o impulso natural para evitar sofrimento causado pelo meio ambiente, mais os impulsos adquiridos que se tornam condicionados às necessidades biológicas básicas. A fome, por exemplo, que é um impulso biológico básico, torna necessário ganhar dinheiro e este depois se torna um impulso específico. O outro conjunto de necessidades relaciona-se com aquela característica humana 29 singular, que é a capacidade de realizar e, através da realização desenvolver-se psicologicamente”. (1997, p. 117). Os fatores de higiene não são capazes de motivar, mas sua ausência provoca desmotivação, porque quando as condições materiais atingem níveis críticos o processo de desmotivação é inevitável. Pode-se concluir que os fatores de higiene, portanto, têm uma função somente negativa, porque sua presença não motiva, mas sua ausência desmotiva; ao passo que a presença dos fatores de motivação agem efetivamente. O enriquecimento do cargo é a expressão utilizada por Herzberg para definir a implementação de princípios que proporcionam a motivação. Para cada princípio há os conseqüentes motivadores. São eles: desenvolvimento e progresso; responsabilidade; realização profissional; reconhecimento e aprendizagem Assim: Eliminar alguns controles, mas manter a obrigatoriedade de prestar contas. (responsabilidade e realização profissional); Aumentar a obrigatoriedade de cada empregado prestar contas de seu próprio trabalho. (responsabilidade e reconhecimento); Dar a uma pessoa uma unidade natural completa de trabalho, como módulos, divisões, áreas, etc. (responsabilidade, realização e reconhecimento). Conceder mais autoridade a um empregado em sua atividade; liberdade no cargo. (responsabilidade, realização e reconhecimento); Fornecer relatórios periódicos diretamente ao próprio empregado e não ao supervisor. (reconhecimento interno); Acrescentar novas tarefas e mais difíceis, não executadas anteriormente. (desenvolvimento e aprendizagem); 30 Atribuir tarefas específicas ou especializadas a cada um dos empregados, permitindo-lhes que se tornem peritos. (responsabilidade, desenvolvimento e progresso). Concluindo, ao optar pela carreira do magistério (seja em que nível for) é preciso que o profissional esteja consciente de sua escolha. A motivação não é externa, nenhum fator extrínseco pode gerar o interesse por algo que, de saída, já não agrada nem atrai a atenção. A motivação do aluno Da mesma forma que a motivação do professor é um processo intrínseco a motivação do aluno também o é; conseqüentemente, estamos diante do mesmo problema: não é possível motivar o aluno. É possível, porém, criar condições favoráveis para a motivação. No universo pedagógico as noções de motivação ainda são bastante tradicionais e não dão conta da complexidade que o tema possui. Assim, vemos excelentes livros teóricos confundindo fatores de higiene e fatores de motivação “Freqüentemente, as diversas intenções têm sido relacionadas à motivação intrínseca e extrínseca que, por sua vez, aparecem como algo que o aluno possui, como um elemento que se refere exclusivamente ao seu universo pessoal (o que é traduzido pela prática educacional em exemplos como: ‘não se pode trabalhar com esse grupo; estão completamente desmotivados’ ou ‘sempre é melhor trabalhar com os do primeiro ciclo da Educação Primária, eles têm tanta vontade de aprender’)”. (SOLÉ apud COLL, 1999, p. 38). Não existe motivação extrínseca e toda motivação é intrínseca, pertence exclusivamente ao universo pessoal do aluno. Tal como os alunos, os empregados quando começam um emprego novo, ou estão em situação de primeiro emprego, ficam motivados pela perspectivas de um universo que se descortina diante deles. Infelizmente, tanto o mundo da escola, quanto o mundo 31 do trabalho são, freqüentemente, desestimulantes do ponto de vista da criatividade e do desenvolvimento pessoal, o que leva à desmotivação. Porém, ambientes que estimulem a criatividade e o desenvolvimento pessoal não são, por si mesmos, motivadores é preciso que haja a contrapartida daqueles que se propõe a estudar ou trabalhar, ou seja, que estejam interessados no que fazem. O que o ambiente pode fazer é estimular o interesse e não criá-lo. Sendo múltiplos os interesses dos alunos é possível compreender porque desde cedo se afeiçoam mais a uma área do saber do que a outra; esse processo pode, por vezes, gerar uma imensa motivação nas áreas de afinidade e desmotivação nas áreas com as quais não possuem essa afinidade. Contudo, o período de escolarização é de aprendizado e formação do indivíduo para que se torne bom cidadão, por isso, a multiplicidade de disciplinas é não somente benéfica, como necessária. O professor da Educação Básica deve ser sensível às “inteligências” dos alunos e não exigir que todos apresentem os mesmo níveis de motivação pela sua disciplina. Por isso, no processo de avaliação, há conceitos positivos que flutuam de razoável à excelente: nem todos desejam atingir o nível de excelência em todas as disciplinas. Do ponto de vista externo, algo como os “fatores de higiene” para a escola, determinadas normas escolares, atitudes dos dirigentes e professores, bem como a falta de estímulo para o desenvolvimento profissional podem acarretar na produção de um ambiente desmotivador. Algumas soluções são testadas: mudanças na rotina, atividades interativas, recursos didáticos variados etc. Os motivadores desenvolvimento da aprendizagem, o progresso, a realização e o reconhecimento, devem estar presentes na “sala de aula” de tal forma que, quando aluno tiver certeza de que pode aprender, percebendo seu progresso, realizando-se nas pequenas metas conquistadas hodiernamente e, isto é importante, tiver o reconhecimento externo, pode-se acionar o gerador da motivação. Conforme Solé: “... quando alguém 32 pretende aprender e aprende, a experiência vivida lhe oferece uma imagem positiva de si mesmo, e sua auto-estima é reforçada, o que, sem dúvida, constitui uma bagagem para continuar enfrentando os desafios que se apresentem. O autoconceito, influenciado pelo processo seguido e pelos resultados obtidos na situação de aprendizagem, por sua vez, influencia a forma de enfrentá-la e, em geral, como foi evidenciado por Rogers (1987) e Rogers e Kutnick (1992), a forma de comportar-se, de interagir, de estar no mundo”. (SOLÉ apud COLL, 1999, p. 39). O perfil do aluno da Educação Básica Na teoria piagetiana o desenvolvimento da inteligência ocorre em quatro grandes estágios: a inteligência sensório-motora; a inteligência pré-operatória; operações intelectuais concretas; e operações intelectuais formais. Conforme Parra: (1983): A inteligência sensório-motora ocorre entre zero e dois anos e se desenvolve a partir de quatro etapas: a construção da noção de objeto permanente; a noção de espaço; a noção de causalidade; a construção do tempo. A inteligência pré-operatória (de dois a sete anos) é conhecida também como inteligência simbólica ou pensamento intuitivo; nesse momento a criança passa a representar significantes por meio de significados, libertando-se da dependência do imediato, ou como diz Parra, hic et nunc. Nessa fase se desenvolve a linguagem permitindo ampliar o processo de socialização, a interiorização da palavra e a “interiorização da ação, refletida em termos de imagens e experiências mentais”. (PARRA, 1983, p. 12). As operações intelectuais concretas ocorrem dos sete aos onze anos, aproximadamente. Caracteriza-se pela reversibilidade da lógica, dá mais mobilidade ao pensamento da criança e permite, no plano afetivo, o desenvolvimento dos processos de cooperação. Segundo Parra: “A reversibiidade desse período apresenta-se sob duas formas: a negação, ou inversão, que 33 corresponde a uma anulação de uma operação por sua inversa; e a reciprocidade, expressa da descoberta, pela criança, de operações que compensam a ação original sem anulá-la”. (1983, p.12). As operações intelectuais formais são caracterizadas pela capacidade de subordinar o real ao possível: “A propriedade mais distintiva do pensamento formal é a inversão da direção entre a realidade e a possibilidade; em lugar de derivar um tipo rudimentar de teoria dos dados empíricos, como é feito nas inferências concretas, o pensamento formal começa com uma síntese teórica, concluindo que certas relações são necessárias e, assim, prosseguindo na direção oposta”. (INHELDER & PIAGET, 1958, p. 251 apud PARRA, 1983, p. 15). A respeito do raciocínio duas novas formas começam a surgir: o hipotéticodedutivo e o pensamento proposicional. O primeiro é constituído pelas relações de proposição e não pela verdade ou falsidade dos enunciados, assim é possível construir teorias que até contrariam os dados empíricos. Tal como vemos nos Segundos Analíticos de Aristóteles. O segundo é caracterizado pelo fato de que a realidade deixa de ser o ponto de partida e passa a ser para o adolescente “um motivo para o levantamento de afirmações ou proposições a seu respeito.” (PARRA, p. 16). A integração do adolescente na sociedade dos adultos, isto é, o aspecto prático dessa fase, ocorre em três fases: o adolescente se coloca num plano de igualdade em relação ao adulto; desenvolve um “programa de vida”; e se propõe a ser um reformador da sociedade. Conforme Parra: “O fato de o jovem se apresentar como um ‘construtor’ de teorias, bem como de sistemas, visando à reformulação da sociedade, é indício de seu pensamento formal. O pensamento formal, como vimos, é, por um lado, um pensamento sobre si próprio e, por outro, um raciocínio que coloca o real sob o possível”. (1983, p. 39). O MATERIAL DIDÁTICO DE FILOSOFIA LIVROS DIDÁTICOS E MANUAIS. 34 Um livro didático não é um manual de História da filosofia. Os antigos – e os atuais – manuais de história da filosofia são escritos para consulta elementar por pesquisadores e não para serem uma leitura palatável destinada a adolescentes. Somente consultamos manuais quando temos necessidade de encontrarmos uma referência específica: uma data, o título exato de uma obra, seu ano de publicação etc., os manuais podem se constituir numa fonte de pesquisa, material de apoio, mas não em material didático. O livro didático vai para a sala de aula porque também deve ser lido pelo aluno, por isso, sua linguagem não deve ser a mesma de um manual, deve ser mais agradável e simples, contudo não pode perder o rigor conceitual e histórico em favor de um didatismo equivocado. Evidentemente, os textos dos livros didáticos não devem ser os únicos a serem oferecidos aos alunos da Educação Básica, por isso mesmo, muitas dessas edições trazem trechos das principais obras filosóficas e demais materiais de apoio, como poesias, romances, reportagens. LIVROS DIDÁTICOS E TEXTOS DOS COMENTADORES. Os textos dos “comentadores” ou dos “críticos” são específicos do ambiente acadêmico, ligados à pesquisa profunda. O público leitor de um texto dessa natureza é formado pelos pesquisadores que atuam na mesma área sobre a qual foi escrito. Exige o domínio da linguagem filosófica e de competência na busca de informações de apoio. Por exemplo, um texto de comentador, não está preocupado em esclarecer ao leitor noções elementares sobre os conceitos por ele discutidos. Assim, quando cita um filósofo não precisa colocar entre parênteses suas datas de nascimento e morte, quando é o caso; quando cita um livro não precisa dizer sua data de publicação ou fazer um breve resumo de seu conteúdo, porque esses e outros conhecimentos elementares são por pressuposto, conhecidos pelos leitores. Quando um aluno universitário não possui tais conhecimentos ele possui, ao menos, como dizemos, habilidade de pesquisar essas informações fundamentais para a compreensão do texto. 35 Não se espera de alunos de Ensino Médio e de Ensino Fundamental, que possuam tais conhecimentos e nem tal capacidade para buscar informações adequadas para compreendê-lo, por isso, em geral, um texto de comentador está deslocado quando oferecido de maneira integral aos alunos de em um desses níveis uma vez que não foi dirigido a esse público. Pode-se utilizar, no entanto, pequenos parágrafos ou frases desses comentadores que ajudem a esclarecer o texto do filósofo sobre o qual a aula está sendo tratada. É até mesmo instrutivo que os alunos de Ensino Médio leiam a opinião de um pesquisador sobre o filósofo, cuja obra foi seu objeto de estudo. Nesse caso, interpretações dicotômicas sobre a obra de um mesmo autor podem ser apresentadas como um “debate” por escrito. Por exemplo, numa introdução ao pensamento e à obra de Platão podemos apresentar opiniões diferentes por meio de um pesquisador, Werner Jaeger: Para aqueles tempos, Platão era acima de tudo o profeta e o místico religioso; era o Platão de Marsílio Ficino e não o Platão científico e metodológico de Galileu. (Jaeger, 1995, 582) Os dicionários filosóficos e publicações semelhantes podem constituir-se em excelentes fontes de consulta, porque fornecem informações de modo sintético e comparativo, especialmente quando se trata de temas, como a verdade, o ser, a política etc. A IMPORTÂNCIA DOS ORIGINAIS Seja qual for o filósofo ou o tema a serem trabalhados, é muito importante utilizar, diretamente com os alunos, os textos dos próprios filósofos, pois o contato com a literatura original estimula o interesse e permite uma análise direta do pensamento. Contudo, o professor recém-formado ou ainda estudante está acostumado a utilizar uma série de comentadores para interpretar um determinado aspecto do pensamento de um filósofo. Tal atitude é extremamente importante em um ambiente acadêmico, mas é por demais específica para ser aplicada a realidade 36 do Ensino Médio. Ainda que algumas experiências positivas tenham ocorrido, elas não devem servir como regra, porque dependem de circunstâncias muito particulares, como número de alunos na sala de aula, acesso à tecnologia, cópias de textos etc. Além disso, não me parece ser o objetivo do Ensino Médio tornar-se uma cópia do trabalho acadêmico. Alguns professores desejam que isso ocorra por dois motivos: quando são professores universitários acreditam que, se o aluno tivesse as noções de pesquisa e pensamento do nível acadêmico, no Ensino Médio, não chegariam tão defasados à universidade. Em segundo lugar, acreditam que o Ensino Médio que não toma o ensino superior como referência é “menos valioso” ou simplório. Ambas as posturas estão equivocadas. O Ensino Médio atende alunos em situação escolar com características particulares e é a essas características que o ensino deve estar dirigido, por exemplo, aprender a estudar, conviver com diferentes colegas, aprender diversas disciplinas, trabalhar em equipe. Esse aluno não deve ser transformado em uma miniatura do universitário de filosofia, por exemplo, lembremo-nos de que na maioria dos casos o aluno sequer iria a aula se não fosse obrigado por seus responsáveis. O professor possui autoridade para ler trechos dos originais com seus alunos e interpretá-los. Evidentemente, como pesquisador, ele saberá buscar informações para interpretar os filósofos, mas não deve levar esses debates ou análises como principal conteúdo para a sala de aula, porque tornaria os temas de aula extremamente alongados. Como dissemos mais acima, os dicionários filosóficos podem ser excelentes fontes de consulta dos professores, mas seu conteúdo não deve, necessariamente, ser utilizado como material didático. RECURSOS DIDÁTICOS EM FILOSOFIA Há um hábito em nossa área de atuação que leva alguns profissionais a suporem que uma boa aula de filosofia é necessariamente expositiva. Crêem que o discurso bem elaborado pelo professor, ao modo dos retóricos, é o único caminho para a compreensão dos conceitos e suas dinâmicas. 37 De fato, uma boa aula expositiva encanta o ouvinte e o leva à compreensão da mensagem do professor ou palestrante. Contudo, em se tratando de alunos da Educação Básica, não se pode esperar a mesma pré-disposição que encontramos nos alunos de nível superior. Assim, é preciso, por vezes, mudar a “linguagem” com a qual comunicamos as idéias que levam à compreensão do conceito. Não se trata de abandonar as aulas expositivas, mas de inserir novas formas de instrução que tornam a aula mais atraente não somente para os alunos, mas também para o professor. Não há nenhum mistério referente ao uso de recursos didáticos para o ensino de filosofia, afinal de contas, trata-se mais de uma questão de estudar a ferramenta do que saber aonde vamos aplicá-la. Tocar nesse assunto torna-se vital, porque o ensino de filosofia vem sendo significativamente prejudicado pelas constantes alterações nas leis que ora possibilitam o exercício constante dos professores de filosofia, ora os obriga a lecionarem outras disciplinas para completarem sua jornada de trabalho. Por conta disso, as outras disciplinas que mantém uma constante presença nos currículos da Educação Básica oferecem uma grande quantidade de material de apoio para conhecimentos os professores. comuns para Assim, nossos de certa colegas, mas forma, repassaremos infelizmente, ainda desconhecidos pela maior parte dos professores de filosofia da Educação Básica e superior. RECURSOS AUDIOVISUAIS a) O uso do vídeo ou DVD na sala de aula; A utilização de filmes ou documentários em sala de aula contribui, sob diversos aspectos, para o desenvolvimento dos conteúdos de aprendizagem. Deve-se observar, contudo, a necessidade de se fazer um uso criterioso desse material. É possível fazer exposições dirigidas e não dirigidas, ou seja, o mesmo princípio exposto acima: uso criterioso. Assim, elencamos algumas idéias para dirigir a utilização desse tipo de material de apoio: 38 Registrar com o máximo de clareza possível os dados do material: diretor, roteirista, elenco, empresa que produziu, quando foi produzido, público alvo etc. Apresentar uma síntese do material a ser exposto de tal forma que o aluno possa assistir a exposição sabendo a qual assunto se refere e qual problema quer identificar; Em caso de documentários didáticos pode-se utilizar o material todo, porque em geral, são de curta duração, o que está de acordo com o tempo de duração das aulas e, com a quantidade de informações a serem expostas; Em caso de filmes, cujo objetivo não é didático, é preciso apresentar “um trecho” do filme que ajude a problematizar o tema que vinha sendo discutido em aula; Isto é importante! A exposição de um filme inteiro, especialmente na Educação Básica, é contraproducente, pois o filme pode ter uma problemática central, mas as tramas paralelas dispersam a atenção sob o foco que vinha sendo estudado. Não são poucos os relatos de professores que ocupam semanas de aula passando filmes longos como “Freud Além da Alma”, as três partes de “Matrix” e outros exemplos. b) O uso de músicas; A utilização de músicas em sala de aula é um recurso bastante comum, porém, muitas vezes, mal utilizado o que leva a um baixo aproveitamento cultural e epistemológico dos conteúdos ministrados. Por isso, insistimos na necessidade de o professor utilizar determinadas técnicas de aulas que utilizem músicas como recurso didático. Assim, sugerimos: Começar sempre pelo registro técnico: quem são os autores e intérpretes, qual gravadora produziu, em que cidade, país, ano; qual é o público alvo da banda, orquestra ou cantor. 39 A música popular deve ser apresentada não somente como letra de música, mas também como melodia e harmonia, pois esses elementos permitem compreender melhor a “mensagem” que a banda quer passar. Além disso, os encartes e a capa, em geral, também fazem parte da apresentação da banda, por isso, um bom estudo desse material ajuda na compreensão da mensagem; Quando se trata de música erudita, é importante ressaltar a época em que foi escrita, se o compositor estava ligado a algum movimento musical, qual é a orquestra que a executa e, a partir daí, discutir as possíveis “mensagens” que possam estar relacionadas com a problemática filosófica levantada em sala de aula. c) Fotografias, telas de pintura, esculturas etc. Este tipo de recurso é muito escasso nas escolas, mas por vezes, é possível conseguir determinadas imagens que podem ser apreciadas por todos os alunos, como slides ou mesmo em documentários. Quando não for possível expor o conteúdo em slide, retroprojetor, data-show, o professor pode fazer algumas cópias, dividir os alunos em grupos para que todos tenham contato com o material a ser utilizado na aula. RECURSOS GRÁFICOS a) O uso de jornais e revistas; Jornais e revistas podem trazer diferentes tipos de material, desde reportagens de interesse imediato do aluno como assuntos políticos, comportamento, profissão até mesmo materiais de divulgação científica, nos quais os autores são especialistas nas áreas e comentam algum assunto de maneira clara e abrangente. Tal como na exposição de um DVD, jornais e revistas devem ser apresentados cuidadosamente, definindo a casa editorial, a cidade, o ano da publicação, o público para o qual é voltado; o mesmo deve se dar em relação à 40 apresentação do autor da reportagem ou artigo, ou seja, se é jornalista, se é cientista, filósofo, artista. Se o professor possuir mais informações sobre o autor do texto isso pode ser de grande valia para facilitar o trabalho de interpretação dos alunos. Algumas orientações fundamentais para a utilização desse tipo de material podem ser: Utilizar textos pequenos ou, caso seja grande, retirar o conteúdo que se refere diretamente à problemática que deu origem à pesquisa; Em geral, uma lauda é o limite máximo para uma aula de 50 minutos, pois é preciso considerar que mesmo os alunos do terceiro ano do Ensino Médio ainda não são leitores experientes e, além disso, a leitura do artigo ou da reportagem deve ser feita tendo em vista o problema levantado em sala de aula, então não se trata simplesmente de compreender o que o autor diz, mas relacionar o conteúdo do texto ao da aula. Assim, é comum realizar uma leitura do texto primeiro e numa próxima aula fazer sua relação entre os conteúdos de aula. b) O uso de leituras paralelas; Novamente, é preciso apresentar cuidadosamente quem é o autor da obra, seja prosa ou poesia, em que época viveu, quais eram seus ideais e como eles se refletem nesse momento. No mais: Utilização de trechos pequenos ou que possam ser acompanhados dentro do estágio de desenvolvimento dos alunos e na condição temporal da aula; Trechos que estejam claramente ligados à problemática filosófica da aula que motivou sua seleção. c) O uso de dinâmicas de leitura; Há publicações sobre dinâmicas de leitura em sala de aula. Tais dinâmicas são interessantes para alunos da Educação Básica, por que os leva a – alguns casos pela primeira vez – sensação de compreender o texto lido. Além disso, a dinâmica de aula é fundamental nessa fase de formação, assim, o professor pode 41 ministrar aulas sob diversas formas de tal modo que leve os alunos a terem cada vez mais interesse e atenção à filosofia. Para tanto, é preciso romper com a visão de que a filosofia é por excelência uma disciplina na qual as aulas devem ser expositivas. Nem sempre a disposição linear de carteiras é a melhor forma de abordar um tema ou uma idéia a qual o professor precise trabalhar; romper – ao menos de vez em quando – com a arquitetura linear da sala de aula pode facilitar o trabalho de ensino e compreensão dos conceitos. A esse respeito Rangel afirma: “As Dinâmicas de leitura, são utilizadas para auxiliar e para fixar a aprendizagem, para introduzir elementos que estimulem o trabalho de ler e aprender, para incentivar habilidades necessárias ao estudo (observação, organização e expressão de idéias etc.), para diversificar atividades em todos os graus de ensino e em qualquer Disciplina.” (RANGEL, 1998, 13). AS QUESTÕES DOS ALUNOS Como aproveitar as questões dos alunos para o desenvolvimento do curso? Esse é um tema complexo que merece uma abordagem mais extensa numa próxima ocasião, de qualquer forma, é preciso considerar que há uma relação de mão dupla no desenvolvimento das aulas de uma disciplina. Por vezes, as questões dos alunos suscitam aulas que nos permitem relacionar o cotidiano da turma às questões filosóficas; por vezes, suas dúvidas nos deixam sem muitos recursos para o trabalho filosófico. Assim, um bom planejamento do curso é fundamental para orientar o desenvolvimento do trabalho do professor, contudo, é preciso estar aberto para acrescentar discussões ao longo do ano que sejam suscitadas pelas questões mais prementes que tomam as cabeças dos nossos jovens alunos. Por exemplo, em ocasiões de votações polêmicas no Congresso Nacional que recebam ampla cobertura pela imprensa, como as leis que regulamentaram a produção de grãos transgênicos ou pesquisas com células-tronco; CPIs, eleições; questões diversas como atentados terroristas; insegurança no Brasil, competições esportivas de grande apelo popular, também, questões relativas ao comportamento, tais como o consumo, os conflitos de grupos na escola ou nas salas de aula, o interesse – 42 precoce ou não – por assuntos relativos ao sexo etc. Tais assuntos levaram muitos livros didáticos de filosofia a estabelecer uma interface com a psicologia explorando as temáticas oriundas dessas discussões numa perspectiva, tanto quanto era possível, filosófica. A partir dessa relação, possivelmente, nasceram opções de trabalho filosófico como a Filosofia Clínica, a qual, pelo tipo de abordagem atrai a atenção de professores e alunos da educação básica. A PREPARAÇÃO DA AULA Não existe uma fórmula que seja considerada ideal para a preparação das aulas, existem, sim, formulários que devem ser preenchidos para o registro do trabalho do professor. Nosso assunto, porém, não é o dos formulários, mas um comentário sobre a preparação das aulas. As duas situações elementares são: ou os alunos possuem livros didáticos ou não os possuem. Dessa forma, a preparação das aulas deve contar com uma das duas situações para que ela possa transcorrer com tranqüilidade. Quando os alunos possuem livro didático as aulas devem levar em conta que, de certa forma, há um roteiro a ser seguido. Nesse caso, o professor tem menos liberdade de elaborar seu próprio curso, mas o ganho dessa situação é que os alunos possuem textos para estudarem em situações extra-classe. Além disso, o professor não somente pode, como não deve se prender estritamente ao material didático, pois é necessário, na maioria das vezes, criar recursos didáticos para que os conteúdos sejam melhor apreendidos pelos alunos. Quando os alunos não possuem livros didáticos, o professor enfrenta uma dificuldade material imensa, pois é preciso providenciar material para a leitura comum de todos. Muitas vezes, utiliza-se um recurso simples: o professor tira algumas cópias de um texto e as empresta para os alunos fazerem suas leituras em sala de aula, finda a aula, devolvem o material ao professor que pode utilizá-lo em outras salas. Com paciência e algum investimento pessoal, o professor vai aos poucos preparando seu próprio material didático, mas é preciso considerar que, na 43 rede pública de ensino, um grande número de alunos não consegue recurso para utilizar esse material do professor. A AULA COMO UMA QUESTÃO FILOSÓFICA Há inúmeras teorias sobre o fenômeno da aula, algumas específicas da área de humanidades. Conhecer estas teorias é bom para que o professor tenha conhecimento e transforme sua prática em ciência. No entanto, praticamente, não há material que discuta a aula de filosofia como um problema filosófico. Por isso, recomendamos a leitura do artigo A aula como uma questão filosófica para abordarmos este tema. A AVALIAÇÃO EM FILOSOFIA O tema da avaliação não exige uma abordagem específica da filosofia, pois encaixa-se na área das ciências humanas. Há bastante material teórico escrito sobre a avaliação que pode ser consultado pelo professor. De qualquer forma, parece-nos útil apresentar, ao menos, algum aspecto desse tema. A avaliação pode ser dividida em três aspectos distintos: a avaliação diagnóstica, a avaliação quantitativa e a qualitativa. O primeiro tipo é utilizado para identificar o nível geral dos alunos e possibilitar ao professor reelaborar seu plano de trabalho, se necessário. O segundo tipo se refere à identificação dos resultados alcançados pelo trabalho do professor e pelo empenho dos alunos; para este tipo, é necessário estabelecer os critérios de avaliação da atividade e deixá-los claros aos alunos a fim de que possam preparar-se para o exame. O terceiro tipo considera o processo de avaliação para além da relação conteúdo-resposta, nesse momento é que o professor pode considerar, como válidas, respostas que não estejam exatamente presas ao conteúdo exposto nas aulas. Porém, mais importante que os aspectos técnicos da avaliação, são seus objetivos que, conforme Libâneo, são três: a função pedagógico-didática, a função diagnóstico e a função de controle. Define-as assim: “A função pedagógicodidática se refere ao papel da avaliação no cumprimento dos objetivos gerais e específicos da educação escolar. (...) A função diagnóstico permite identificar 44 progressos e dificuldades dos alunos e a atuação do professor, que por sua vez, determinam modificações do processo de ensino para melhor cumprir exigências dos objetivos. (...) A função de controle se refere aos meios e à freqüência das verificações e de qualificação dos resultados escolares, possibilitando o diagnóstico das situações didáticas.” (LIBÂNEO, 1994, p. 196.) O processo de avaliação também pode levar em consideração dois critérios fundamentais: o conteúdo conceitual e o formal. O primeiro se refere ao domínio, por parte dos alunos, dos conceitos fundamentais da filosofia; o segundo se refere à forma com a qual o aluno apresenta suas idéias, podendo ser escrita, no caso de provas e trabalhos e, oral, no caso de seminários. Uma outra questão relativa à avaliação são seus instrumentos, referimo-nos aos seminários, provas, trabalhos, provas com questões de múltiplas escolhas etc. Tal como no item acima, há uma vasta gama de publicações que discutem a função e estratégias de uso dessas ferramentas. Basta-nos, portanto, fazer algumas considerações gerais sobre o tema. O professor da Educação Básica deve estar consciente de que seu aluno ainda está em processo de aprendizado o que inclui auxiliá-los no processo de domínio da língua portuguesa. Por isso, não devemos exigir dos alunos que tragam determinados conteúdos, a priori, para que os processos de ensino e de aprendizagem se desenvolvam, mas adaptar nossos objetivos aos alunos que temos. É melhor ensinarmos alguns conteúdos mínimos, porém que sejam bem apreendidos (o que significa uma situação de sucesso positivo) do que ensinarmos muitos conteúdos conceituais que não sejam apreendidos pelos alunos (o que significa uma situação de sucesso negativo). A RESPEITO DAS RELAÇÕES ENTRE ENSINO E APRENDIZAGEM CONCEPÇÕES DE APRENDIZAGEM O senso comum costuma utilizar a expressão processo de ensino – aprendizagem – e não percebe que há um imenso abismo entre esses dois 45 processos que são, absolutamente, distintos. O processo de ensino (elaboração do projeto de curso, planos de aula e avaliação, elaboração de atividades na sala de aula etc.) é fundamentalmente concentrado no professor. O processo de aprendizagem, porém, cabe somente ao aluno, por que, tal como a motivação, é impossível aprender por alguém. Assim, pode-se ensinar os conteúdos que se deseja aos alunos, pode-se criar estratégias que facilitem o aprendizado dos alunos, mas não se pode aprender por eles. O conhecimento é resultado de uma construção pessoal do aluno: “Nesse caso, o que nos permite falar de construção de conhecimento e não de cópia é, precisamente, a idéia de que aprender algo equivale a elaborar uma representação pessoal do conteúdo objetivo da aprendizagem. Essa representação não se realiza em uma mente em branco, mas a partir de conhecimentos que lhes servem para enganchar o novo conteúdo e lhes permitem atribuir algum grau de significado”. (COLL, 1999, p. 87). Dois outros conceitos se associam ao de aprendizagem: os conhecimentos e o significado. Esses ganchos aos quais o texto acima se refere são os “conhecimentos prévios” ou subsunçores. Esses são os conhecimentos que o aluno traz para a escola e que, não necessariamente, são conteúdos escolares. Esse aspecto permite retomar o tema do aluno ideal e do aluno real. Para a maioria dos professores o aluno ideal é aquele que traz determinados conhecimentos prévios típicos de sua disciplina. Certa vez um professor de Filosofia do Direito reclamou que os alunos chegam à faculdade sem as noções de lei, norma e regras e que isto dificultava o seu trabalho, ou seja, ele estabelecia um padrão de aluno “ideal”, a partir disso, elaborava sua estratégia e seu plano de curso o que resultava em um choque entre o ideal e o real. O aluno real é todo aquele que se coloca diante do docente, porque todos trazem conhecimentos prévios. O trabalho docente consiste em apresentar os conteúdos de aprendizagem e estabelecer estratégias que permitam aos alunos relacionarem seus conhecimentos prévios aos novos conteúdos apresentados de tal forma que construam seus conhecimentos. Nesse sentido, cai o velho preconceito de que alunos vindos das camadas mais abastadas da sociedade aprendem com mais 46 facilidade, pois têm mais acesso à informação e conteúdos culturais como viagens nacionais e internacionais. Nada mais falso! Sendo que todos possuem conhecimentos prévios, todos têm condições iguais de aprender novos conteúdos, basta o docente ter paciência de elaborar e reelaborar estratégias. A atribuição de significado é o processo pelo qual o aluno transforma um conhecimento que lhe foi apresentado como algo exterior em um conteúdo seu. Seria o equivalente kantiano da passagem da heteronomia para a autonomia em termos morais, para termos epistemológicos. Este seria um processo de aprendizagem significativa, a qual, segundo Masini e Moreira: “O conceito mais importante da teoria de Ausubel é o de aprendizagem significativa. Para Ausubel, aprendizagem significativa é um processo pelo qual uma nova informação se relaciona com um aspecto relevante da estrutura do conhecimento do indivíduo. Ou seja, neste processo a nova informação interage com uma estrutura de conhecimento específica, a qual Ausubel define como conceitos subsunçores ou simplesmente, subsunçores (subsumers) existentes na estrutura cognitiva do indivíduo. A aprendizagem significativa ocorre quando a nova informação ancorase em conceitos relevantes preexistentes na estrutura cognitiva de quem aprende.” (1982, p. 7) CONTEÚDOS DE APRENDIZAGEM: CONCEITUAIS, PROCEDIMENTAIS E ATITUDINAIS. A despeito de todos os debates sobre as novas e antigas teorias sobre aprendizagem, tanto nos campos da psicologia da educação, como no campo da pedagogia propriamente dita, parece-nos interessante observar a noção de “conteúdos de aprendizagem” desenvolvida na perspectiva do construtivismo. A distinção de três conteúdos de aprendizagem não esgota a imensa gama de perspectivas que novos pesquisadores venham a identificar, porém, nesse momento, esses três conteúdos são suficientes para abordar o delicado problema do ensino em filosofia. Em geral, imaginar-se-ia que o ensino de filosofia é um ensino eminentemente dos conteúdos conceituais de aprendizagem, uma vez que o termo “conceito” tem, na filosofia, sua casa privilegiada. Porém, até mesmo os 47 professores de filosofia ao definirem os objetivos do ensino dessa disciplina, se aproximam bastante das noções do construtivismo. Os conteúdos conceituais são aqueles, cuja função é definir algum objeto por meio da linguagem, por exemplo, os conceitos de povo, nação, estado, lugar, para a geografia; os conceitos de antiguidade tardia e clássica em história; todas as definições axiomáticas da geometria e da matemática; a classificação gramatical em língua portuguesa etc. Conforme Coll “Os professores podem apresentar o novo conceito ou informação já elaborado, tal como se quer que os alunos o aprendam, em um texto escrito ou em uma explicação oral, ou podem apresentar o conceito como resultado de uma série de atividades de exploração ou descoberta dos alunos.” (1999, p. 108). O ensino dos conceitos, contudo, não pode ser isolado de outros conteúdos, ou então, corremos o risco de transformarmos o ensino em mera memorização da definição dos conceitos. Tal postura era bastante comum em instituições de ensino tradicionais que não pautavam a avaliação pela capacidade do aluno apreender e elaborar idéias, mas de memorizar as definições dadas pelos professores e livros didáticos. Por conceitos em filosofia podemos entender “a concepção de política em Aristóteles” ou “a concepção de idéia em Locke” e as próprias definições dos períodos históricos da filosofia e das diferentes áreas, como por exemplo, a definição do que é metafísica, ontologia, ética, entre outras. Os conteúdos procedimentais referem-se às habilidades que o aluno desenvolve nas atividades escolares. Conforme Coll: “é ser capaz de realizar e executar, em algum grau, as operações de procedimento necessárias para lograr a meta proposta e, também, possuir uma representação ou idéia de procedimento em si mesmo“ (1999, p. 111). Dentre essas habilidades podemos citar a leitura, o senso estético em artes e mapas de geografia, a pesquisa, a preparação de trabalhos, painéis, desenvolvimento de habilidades motoras em educação física etc. No caso da filosofia, essas habilidades se referem a aspectos como a leitura e a interpretação de textos, a pesquisa, a elaboração de trabalhos, apresentação de seminários entre outros. Como se vê, conteúdos procedimentais e conceituais caminham em conjunto, não é possível separá-los, pois na medida em que o 48 professor varia as estratégias de atividade – de um trabalho escrito, para um painel ou seminário – permite que o aluno tenha várias oportunidades de reelaborar os conceitos apresentados. Os conteúdos atitudinais referem-se ao campo da moral e é inegável que permeia toda a atividade do docente. Ensinamos valores aos alunos, seja de maneira intencional, seja de maneira não-intencional, isto é, por vezes os docentes, conscientemente, apresentam e discutem seus valores morais aos alunos, por vezes, esses valores são apresentados de forma subliminar em expressões e comportamentos que evidenciam suas concepções de ser humano, profissional, instituição, nação etc. Conforme Coll, é importante que a instituição tenha clara os critérios de valores pelos quais é regida, porém, as normas devem ser compartilhadas com os alunos, isto é, não se deve exigir que obedeçam cegamente, mas sejam esclarecidos de sua importância. Além disso, no espaço interno da classe há experiências bem sucedidas de discussão de normas. Assim, “É função dos docentes ajudar os alunos a relacionarem significativamente as normas a determinadas atitudes que se pretende que desenvolvam em situações concretas (no laboratório, no trabalho em grupo, nos espaços comuns da escola, em uma excursão, em uma exposição dos professores etc.). Nesse sentido, pode ser útil apresentar as normas e atitudes vinculando-as a situações concretas e familiares para os alunos, a fim de que possam apreender claramente os argumentos que as sustentam e alguns dos comportamentos que as exemplificam em realidades concretas”. (COLL, 1999, p. 119) 49 BIBLIOGRAFIA ARCHER, E. O Mito da Motivação. BERGAMINI, C. W. e CODA, R. (organizadores). Psicodinâmica da Vida Organizacional. São Paulo: Atlas, 1997. BUSQUETS, M. D. (org.) Temas Transversais em Educação. São Paulo: Ática: 1999. CEDES. ............................................. São Paulo: Cortez; Campinas: UNICAMP. v. 24, n° 64, set./dez. 2004. COLL, C. (org.) O Construtivismo na Sala de Aula. São Paulo: Ática, 1999. COSSUTA, F. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. CUNHA, J. A. Filosofia na Educação Infantil: fundamentos, métodos e propostas. Campinas; Alínea, 2002. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Lisboa: Presença, 1992. GOLDSCHMIDT, V. A Religião de Platão. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963 HEGEL, G. W.: A Fenomenologia do Espírito. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. LIBÂNEO, J.C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994. PARRA, N. O Adolescente Segundo Piaget. Série Cadernos de Educação. São Paulo: Pioneira, 1983. RANGEL, M. Dinâmicas de leitura para a sala de aula. Petrópolis: R. J.: Vozes, 1990. PALAVRAS E CONCEITOS Objetivo geral: Essas aulas são complementares à aula de história da filosofia que teve como filósofo estudado Platão. 50 Objetivo específico: estudar a diferença entre palavras e conceitos bem como a formação dos conceitos em filosofia. Interdisciplinaridade: Língua Portuguesa, Literatura e história da religião. Número de aulas: aproximadamente cinco aulas. Atividades: a) apresentação do objetivo dos estudos; b) apresentação (audição) da canção de Renato Russo; c) aula sobre Camões e leitura do poema; d) aula sobre São Paulo e leitura do trecho; e) aula sobre Platão e leitura do trecho. O pensamento filosófico se diferencia de outras formas de pensamento justamente porque é capaz de produzir conceitos. Como vimos, esta é a característica do nascimento da filosofia na Grécia e, em especial, com Sócrates, que afirmava a necessidade de conhecermos exatamente o significado de uma palavra antes de a utilizarmos para explanar idéias. Palavras são meios de expressão oral ou escrita que expressam idéias ou sentimentos; para sabermos os significados das palavras podemos recorrer aos dicionários de língua portuguesa. Os conceitos são palavras, mas cujo significado só pode ser compreendido a partir da obra de um de um filósofo, se nos atermos à proposição de Deleuze e Guattari que, como vimos na primeira parte deste trabalho, afirmam que somente a filosofia produz conceitos. Por exemplo, a justiça em Platão, a ética em Habermas. Se você recorrer a um dicionário da língua portuguesa encontrará vários significados para justiça e ética, mas nenhum deles nos ajudará a compreender o significado, ou os significados de justiça para Platão ou de ética para Habermas. 51 Quando uma pessoa escreve vários livros, canções, poemas ou qualquer outra forma de expressão, utiliza palavras para definir suas idéias. Assim, é possível identificar quais idéias quer expressar quando recorre a uma ou outra palavra mais importante em seu vocabulário próprio. Vamos tomar como exemplo a palavra Amor a partir da canção de Renato Russo intitulada “Monte Castelo” na qual ele mescla duas das concepções de amor acima citadas. Renato Russo foi um compositor do gênero rock e na maior parte de sua carreira fez letras com forte conotação de crítica social (Faroeste Caboclo, Geração Coca – Cola e outras), mas sempre compôs canções românticas. Ao final da carreira inclinou-se para a religião e a auto-reflexão. Monte Castelo – Renato Russo “Ainda que eu falasse a língua dos homens, E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. É só o amor, é só o amor, Que conhece o que é verdade, O amor é bom, não quer o mal, Não sente inveja ou se envaidece. Amor é fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente É contentamento descontente É dor que desatina sem doer. Ainda que eu falasse a língua dos homens, E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. É um não querer mais que bem querer, É solitário andar por entre a gente, É um não contentar-se de contente, 52 É cuidar que se ganha em se perder. É um estar-se preso por vontade, É servir a quem vence, o vencedor; É ter com que nos mata lealdade, Tão contrário a si é o mesmo amor. Estou acordado e todos dormem, todos dormem, Agora vejo em parte, mas então veremos face a face. É só o amor, é só o amor, Que conhece o que é verdade, Ainda que eu falasse a língua dos homens, E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. O trecho abaixo é do apóstolo Paulo, Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 13 versículos de 1 a 7. Paulo nasceu em Tarso com o nome Saulo, entre 5 e 10 d.C. e faleceu em 68 d. C.. Judeu criado na diáspora era conservador e assumiu a tarefa de perseguir os cristãos até que se converteu ao cristianismo, no famoso episódio da viagem a Damasco e tornou-se o mais importante responsável pela expansão da religião cristão para fora dos círculos judaicos. “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver amor, não sou nada. Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada valeria! 53 O amor é paciente, o amor é bondoso. Não tem inveja. O amor não é orgulhoso. Não é arrogante. Nem escandaloso. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Abaixo temos o soneto completo de Luís de Camões (1524/25 – 1579/80), um dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa. Não se sabe ao certo em que cidade nasceu, mas sabe-se que faleceu, pobre, em Lisboa. Teve uma vida agitada por viagens, prisões, guerras (numa das quais perdeu um olho) e amores. Amor é fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente É contentamento descontente É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer, É solitário andar por entre a gente, É um não contentar-se de contente, É cuidar que se ganha em se perder. É um estar-se preso por vontade, É servir a quem vence, o vencedor; É ter com que nos mata lealdade, Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo amor? 54 O trecho abaixo é de Platão (427 a.C. até 347 a. C.) no diálogo denominado Banquete ou Simpósio. Quem vai a esses mistérios pelo caminho certo – explicou – tem de começar saindo, na juventude, em busca da formosura física e, primeiramente, se o guia o dirigir com acerto amar um só corpo, produzindo, nessa altura, belos discursos; depois, aprender que a beleza de todo corpo é irmã da de outro corpo e que, se o dever é buscar a beleza da forma, grande tolice é não considerar a beleza de todos os corpos como uma só e a mesma: compreendido isso, tornar-se apaixonado da beleza corpórea em geral e afrouxar o forte apego a um corpo só, desdenhando-o, menosprezando-o. O estágio seguinte é considerar mais preciosa a beleza das almas que a do corpo e, em conseqüência, se uma pessoa de alma bem dotada for provida de poucos atrativos, dar-se por satisfeito, ama-la, cuidar dela, dar à luz discursos daquele gênero, procurando os que possam melhorar a mocidade”. Questões: Sobre o texto do Apóstolo: 1) Quais são os elementos inferiores ao amor e porque são assim? Quais são as características do amor? Sobre o texto de Camões: 2) O que o poeta quis dizer ao apresentar as contradições do amor (por exemplo, fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente etc?). Sobre o texto de Platão: 3) Quais são os três estágios do amor? Sobre os textos em geral: 55 4) Quais são as diferenças do significado de Amor em São Paulo, Camões e Platão? 5) Como você compreendeu a fusão de duas diferentes noções de amor na canção de Renato Russo. Respostas: 1) Esses elementos são: o dom da profecia, os mistérios, a ciência, a fé, a doação dos bens, ou o sacrifício pessoal, pois de nada adianta tudo isso se o motivo que levou a praticar o bem ou ter os dons não for o amor. 2) O poeta sintetiza, nas ambigüidades do amor, o que todos experimentam ao começar a amar: ao mesmo tempo que vive-se uma felicidade extrema, também sofre-se por medo de perder o amor. 3) O primeiro estágio é o de amar a beleza de um só corpo, ou seja, uma só pessoa; depois amar a beleza de todos os corpos irmãos, ou seja, todas as pessoas; por fim, amar a beleza da alma, pois aí está o verdadeiro ser do homem. 4) Em São Paulo, trata-se do amor a Deus, isto é, um amor proveniente da fé e dirigido à religião; em Camões trata-se do amor romântico, de um amante a uma amada ou vice-versa; e em Platão, o conceito de amor é obtido por meio da reflexão e não por inspiração. 5) Esta é uma pergunta propositadamente aberta, não podemos precisar um único sentido para a intenção do cantor, mas podemos admitir interpretações que conduzam a uma reflexão sobre as relações humanas, sejam coletivas, sejam românticas. BIBLIOGRAFIA BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Ave Maria, 1982. PLATÃO. O Banquete. Diálogos. Tradução: Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, s/d. CAMÕES, L. V. Sonetos. www.vidaslusofonas.org. 56 57