-1- Aspectos Introdutórios Para a Compreensão da Teologia do Novo Testamento: Jesus Cristo e o seu Tempo Brian Kibuuka www.briankibuuka.com.br A Palestina é uma pequena região, marcada pela pobreza.1 Porém era uma região geopoliticamente estratégica, devido à confluência de interesses políticos sírio-feníciopalestinos.2 Os elementos físicos característicos da região eram o deserto, o rio Jordão e os oásis. E geopoliticamente, era caracterizada pelos interesses comerciais e políticos, contrastados com a consciência religiosa dos judeus e sua compreensão de ser um povo liberto por Deus. A prática religiosa judaica fundamentava as relações sócio-políticas na Palestina do tempo de Jesus. A concepção de ser Jerusalém a cidade escolhida por Deus, e que a terra da Palestina era a terra prometida por Yahweh constituíram os dois legados que marcaram os episódios religiosos do Antigo e do Novo Testamento.3 As práticas rituais dos judeus eram fundamentais na compreensão de sua cultura, já que a concepção preponderante era que o pacto entre os judeus e a Divindade incluía a necessidade de obediência às prescrições da Lei – a Torá.4 Os judeus entendiam ser fundamental o 1 A Palestina foi duramente penalizada no período dos romanos. O empobrecimento progressivo da Palestina foi intensificado devido ao sistema de tributação e dominação romana, que não possibilitava a sobrevivência dos pequenos proprietários. É preciso entender, neste sentido, que “as mudanças econômicas na Palestina desde a supremacia romana podem, pois, ser caracterizadas, conforme Applebaum, como "falta aguda de solo", isto é, “como redução da área de cultivo agrícola per capita da população." Cada vez mais pessoas eram forçadas a sobreviver com cada vez menos terra. Em conseqüência disso, desfízerain-se as formas tradicionais de assentamento. Embora a área do solo cultivado se ampliasse continuamente, um número crescente de pequenos agricultores cultivavam cada vez menos terra. Endividamento e desapropriação dos pequenos agricultores são, pois, a característica desta época romana.” In: STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus, 2004. p. 136. Não havia defesa nem previdência para o povo da palestina. Em caso de doença, má colheita, pragas ou outros desastres, o povo ficava sem ajuda. No sistema anterior havia o clã, a comunidade, que era a proteção das pessoas e das famílias. No sistema implantado pelo governo de Herodes Antipas, isto já não existia mais, ou cada vez menos. Agora, a primeira preocupação do agricultor era esta: juntar o necessário para pagar os impostos ao governo e os dízimos ao Templo, e separar da colheita à parte que devia servir como semente para a próxima colheita. Ao todo, mais da metade da produção. O pouco que sobrava tinha que ser o suficiente para manter a família. A conseqüência disto foi o empobrecimento progressivo da região. 2 A posição geopolítica das cidades e regiões faz delas lugares potencialmente propensos à invasões. Objetivos estratégicos, econômicos e políticos: servem para guardar passagens de grandes vias de comunicação, tornam-se lugares de comércio e atraem os nômades para as suas vizinhanças, fazendo deles camponeses que sustentarão as cidades. Todos estes elementos estavam presentes na Palestina. Um exemplo claro é o período de dominação grega. Sobre este, afirma Sicre: “A Palestina, dada sua excelente posição estratégica e comercial, será vítima das invejas e lutas entre estas famílias que disputam sua posse. Durante o século III dominam os Lágidas- durante o 11, os Selêucidas.” In: SICRE, José Luis, Introdução ao Antigo Testamento. (trad. Wagner de Oliveira Brandão). Petrópolis: Vozes, 1999. p. 316. 3 A partir desta consciência, são estabelecidos os dois tipos de líderes judaítas desde a época de Davi. Há os "anciãos de Judá" (ziqnê y'hûdâh), líderes tribais das várias cidades e aldeias judaítas e os "anciãos da casa" (ziqnê bayit), representantes do poder da corte davídica de Jerusalém. Diferente do norte, onde o poder real se constitui a partir das lideranças tribais, o poder de Jerusalém constrói sua própria base, independente dos líderes tradicionais. BETTENZOLI, G., Gli Anziani in Giuda, em Biblica 64 (1983), pp. 211-224; Gli Anziani di Israele, em Biblica 64 (1983), pp. 47-73. Esta liderança servia para divulgar a ideologia da centralidade do culto e Jesrusalém. 4 A Lei fundamenta a religião judaica, sendo marca da identidade cultural e ideológica na Palestina. Na sua formação, a Lei foi dotada de dinâmica, em conformidade com as necessidades sociais, conforme afirma Claus Westermann: “Do retrospecto sobre a evolução legislativa no Antigo Testamento têm-se compreensão mais www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) -2cumprimento de todos os preceitos da lei, e isto de forma inflexível. Mudar a relação com a Divindade significaria perder-se da dimensão pactual, perder a identidade religiosa e, por consequência, a identidade cultural.5 De 160 a.C. até 63 a.C., ou seja, durante 67 anos, governaram a Palestina dois reinados judeus diferentes: os Macabeus e os Asmoneus. Assim, a conquista da Palestina pelos romanos ocorre em 63 a.C., marcando o fim da dinastia asmoneia, que já padecia devido às crises internas que a assolavam. A dominação romana perpassou todo o período neotestamentário. Hircano, chamado adequada da relação entre preceito e lei. Ligadas à história, as leis estão sujeitas à alteração constante conforme é provado em face dos adendos e complementos a muitas leis. Em momento nenhum existiu em Israel lei transcendental. Nem mesmo a subordinação das leis sob a teofania sinaítica anulou a vinculação com a história concreta na sua evolução até arrematar na comunidade cultual.” WESTERMANN, Claus, Fundamentos da Teologia do Antigo Testamento. (trad. Frederico Dattler). São Paulo: Academia Cristã, 2005. p. 204. A sedimentação da Lei deu-se diante do desafio da cristalização da identidade cultural da Palestina, diante dos desafios do exílio e do pós-exílio. A partir daí, a tradição vetero-testamentária afirma que não obedecer a lei é descrito, em Dt 13.14 ("Por esses dias apareceu em Israel uma geração de perversos (paránomoi) que seduziram a muitos com estas palavras: 'Vamos, façamos aliança com as nações circunvizinhas, pois muitos males caíram sobre nós desde que delas nos separamos'. Agradou-lhes tal modo de falar. E alguns de entre o povo apressaramse em ir ter com o rei, o qual lhes deu autorização para observarem os preceitos (dikaiômata) dos gentios") perder a identidade..O termo paránomoi indica, segundo Dt 13,14, pessoas que fazem propostas de apostasia da Lei. Daí que "fazer aliança com as nações" indica renegar a Lei e seguir costumes gentios. Também o dikaiômata tôn éthnôn (preceitos dos gentios) é significativo. Dikaíôma é usado pelos LXX para traduzir o hebraico derek ou mishpat (caminho, direito) significando obrigações legais. Observar os preceitos dos gentios significa, portanto, abandonar as normas da Lei e seguir leis gentias Cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 110-111. Não obstante isto, a observação estrita da Lei concede aberturas para o entendimento da misericórdia de Deus em caso de iobservância, e também da possibilidade de adoção da Lei por parte dos gentios. Segundo Otto, “mesmo se Israel fracassar no cumprimento da vontade divina (Lv 17-26), a expiação, como dom gratuito de Deus, lhe é acessível (Lv 16), Em Dt 4, como conjugação de Dt com o Tetrateuco (de redação sacerdotal), prepara-se (Dt 4,6) urna identificação entre a Lei e a Sabedoria, que será desenvolvida em Sr 24. A sabedoria de Deus, já ao lado de Deus na Criação, encontra em Sião a sua morada e na Lei de Israel sua mais válida expressão. Com isso colocou-se o fundamento pane ultrapassando o Sirácida, afirmar a validade universal da Lei para todos os povos.” OTTO, E. , Lei (In: BAUER, Johannes B., Dicionário Bíblico-Teológico. (trad. Fredericus Antonius Stein). São Paulo: Loyola, 2000. p. 230. 5 Provavelmente o exemplo mais marcante de confronto advindo do risco da perda da identidade cultural tenha sido a repressão à cultura judaica feito por parte de Antíoco Epifanes IV. Este, “não satisfeito com estas medidas repressivas, Antíoco IV construiu ao sul do templo uma cidadela chamada Acra, colônia de pagãos helenizantes e de judeus renegados, com constituição própria; até Jerusalém era considerada provavelmente como território desta 'polis'. Além disso, erigiram-se santuários pagãos por todo o país e se ofereceram neles sacrifícios de animais impuros; os judeus foram obrigados a comer carne de porco sob pena de morte, bem como a participar de ritos idolátricos. Como coroamento de tudo, em dezembro de 167 foi introduzido no templo o culto a Zeus Olímpico. Os judeus piedosos não puderam suportar estas ofensas contínuas à sua religião e se negaram a obedecer estas normas. Antíoco respondeu com uma cruel perseguição. É quando estoura a revolta dos Macabeus. Líder inicial é o ancião Matatias, apoiado pelos 'hassidim' (os 'piedosos', de que descendem os fariseus e os essênios). Quando morre, depois de poucos meses, sucede-lhe o filho Judas (166-160), e mais tarde os irmãos deste, Jônatas (160143) e Simão (143-134). A dinastia se completa com João Hircano 1 (134- 104), Alexandre janeu (103-76, Salomé Alexandra (76-67) e Aristóbulo 11 (67-63).” In: SICRE, José Luis, Introdução ao Antigo Testamento. (trad. Wagner de Oliveira Brandão). Petrópolis: Vozes, 1999. p. 317. A revolta foi motivada porque estas afrontas feitas por Antíoco, é, “aos olhos dos judeus fiéis à lei, um sacrilégio horrendo (1 Mac 1.16-28; 2 Mac 5.15s.).” In: DONNER, Herbert, História de Israel e dos Povos Vizinhos: da época da divisão do reino até Alexandre Magno. (trad. Cláudio Molz e Hans Trein). São Leopoldo: Sinodal, 1997. p. 506. A razão da inserção de Zeus por parte de Antíoco foi motivada pela necessidade de desagregar culturalmente os judeus e manifestar sua autoridade, já que “Zeus representava os valores do poder e da autoridade; o epíteto Olímpico recordava suas prerrogativas sobre as outras divindades e seu aspecto uraniano (isto é, de deus do céu); na Síria ele fora assimilado a Baal Shâmin, deus soberano, senhor das tempestades e da fecundidade. Tais aspectos podiam aparentemente aproximá-lo de Iahweh que, desde a época persa, era designado nos textos judaicos como "o Deus dos céus". Nestas condições, podemos admitir que Antíoco IV quisesse introduzir em Jerusalém uma divindade sincrética, que permitisse a judeus, sírios e gregos reconhecer nela a emanação de um deus soberano" SAULNIER, C., A revolta dos Macabeus, p. 26. A introdução deste culto no Templo foi nominada "abominação da desolação", segundo Dn 11,31. 1Mc1,54-57.64 assim descreve a "abominação da desolação" e fez nascer a revolta contra o sistema político de Antíoco. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) -3Antípatro, natural da Idumeia, descendente de Simão Macabeu, foi nomeado procurador pelo imperador romano Júlio César.6 E foi um dos filhos de Antípatro, Herodes, que acabou por fundar a nova dinastia judia, a dinastia dos Herodianos, mantendo assim a região relativamente independente. O governo de Herodes, o Grande, durou entre 37 e 4 a.C.. Governou sobre os territórios da Judéia, Samaria, Idumeia, Galileia e Pereia. Herodes, o Grande, teve o poder de governar a Palestina delegado por Roma, embora não fosse judeu. Após a morte de Herodes, seu reino foi dividido entre seus filhos. Herodes Arquelau herdou de Herodes, o Grande, a Judéia, Samaria e a Idumeia, que governou até o ano 4 d.C.;7 e Herodes Antipas governou as regiões da Galileia e Pereia, de 4 a.C. até 39 d.C.8 Este último é, dentre os soberanos herodianos, o mais mencionado no Novo Testamento.9 Do ano 6 até 41 d.C, a Judeia, Samaria e a Idumeia passaram a ser administradas diretamente por procuradores romanos. Agripa, descendente de Herodes, governou esta região entre 41 e 44 d.C. 6 Há grande controvérsia quanto à identidade de Antípater. Flávio Josefo, citando Nicolau de Damasco, diz que Antípater seria um dos judeus descendentes dos exilados babilônicos. Mas Josefo mesmo considera falsa esta informação. É a seguinte a informação de Flávio Josefo: "Nicolau de Damasco fá-lo descender de uma das principais famílias de judeus que vieram da Babilônia para a Judéia, mas ele o diz em favor de Herodes, seu filho, que a fortuna elevou depois ao trono de nossos reis, como veremos a seu tempo" JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIV, 9.. Nicolau de Damasco é um historiador nascido, por volta de 64 a.C., em Damasco, de uma família importante, pois sabe-se que seu pai exerce altas funções políticas na cidade. Nicolau torna-se, em 14 a.C., amigo e conselheiro de Herodes Magno. Além de escritor prolífico, Nicolau é também retor e diplomata, representando Herodes em negociações decisivas. A partir desta sua ligação com Herodes Magno, um idumeu que se torna rei dos judeus, compreende-se sua colocação a respeito de Antípater. Cf. STERN, M., Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, pp. 227-260; SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo I, pp. 5662. . Flávio Josefo acredita que Antípater seja mesmo um idumeu, de origem nobre: "Ele era idumeu e o mais poderoso de sua nação, quer pela sua descendência, quer pelas suas riquezas e por seu próprio mérito" JOSEFO, F., Bellum Iudaicum I, 123. . Há outras notícias sobre este personagem. Segundo Eusébio de Cesaréia, citando Júlio Africano, Antípater é da cidade de Ascalon, mas acaba sendo criado entre os idumeus, o que confirma a opinião de Josefo a respeito de sua nacionalidade, embora divirja quanto a outros dados. Diz Eusébio: "Salteadores idumeus chegaram de surpresa a Ascalon, cidade da Palestina, e levaram da capela de Apolo, construída perto da muralha, o pequeno Antípater, filho de um hieródulo, Herodes, com o resto dos despojos, e o mantiveram preso. Como o sacerdote não podia pagar o resgate pelo filho, Antípater foi educado segundo os costumes idumeus e, mais tarde, Hircano, sumo sacerdote da Judéia, interessou-se por ele"[43]. Ainda segundo Flávio Josefo, Antípater é, na época do conflito entre Hircano e Aristóbulo, o estratego (= governador militar) da Iduméia, como o fora seu pai, também de nome Antípater, este nomeado para o posto por Alexandre Janeu. EUSÉBIO, Historia Ecclesiastica I, VII, 11. Eusébio vive entre 263 e 339 d.C. e é bispo de Cesaréia, na Palestina. Escreve uma importante "História Eclesiástica", em 10 livros. Sobre a origem de Antípater, cf. também SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo I, pp. 300-301, nota 3. 7 Arquelau é deposto por Augusto no ano 6 d.C., por causa das numerosas arbitrariedades que comete, entre elas a troca indevida de sumos sacerdotes. Uma delegação de judeus influentes vai a Roma falar com o Imperador e é atendida. A Judéia, a Samaria e a Iduméia passam, então, a ser governadas diretamente por procuradores romanos. A capital da província passa a ser Cesaréia. 8 Herodes Antipas constrói, no ano 17 d.C., a capital de sua tetrarquia às margens do lago de Genezaré e chama-a de Tiberíades, em homenagem ao Imperador Tibério. É muito amigo dos romanos e parecido com o pai. Casado com uma filha do rei nabateu Aretas IV, Herodes Antipas acaba por repudiá-la e casa-se com Herodíades, mulher de seu irmão Felipe. Isto lhe custa uma represália do rei nabateu Aretas IV, que, para vingar a filha, ataca Antipas, derrotando-o em 36 d.C. 9 Cf. Lc. 3:1; 9:7-9; 13: 31-32; 23: 7-12; Mt. 14: 1-12. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) -4- Após a dinastia herodiana, a administração voltou às mãos dos procuradores romanos.10 Os procuradores eram funcionários que respondiam diretamente ao imperador de Roma. Este título era dado a diversos funcionários que possuíam atribuições diferentes. Os procuradores palestinos estavam subordinados ao governador da Síria. Entretanto, como representantes diretos do Imperador, detinham poderes civis, de exército e jurídicos. Os procuradores da Judéia residiam em Cesareia, mas em tempos de festas religiosas se transferiam para Jerusalém, já que nestas ocasiões ocorriam o maior número de conflitos. Na estrutura do império, o procurador respondia diretamente ao imperador romano. O esquema de vinculação entre o procurador romano e o imperador é o seguinte: 10 Herodes Agripa I, amigo de juventude de Calígula (37-41 d.C.), recebe deste a tetrarquia de Felipe, com o título de rei (37-44 d.C.). Dois anos depois, ao ser desterrado Antipas, recebe sua tetrarquia e as terras de Abilene, tetrarquia de Lisânias. Em 41, quando Calígula é feito Imperador, Herodes Agripa I torna-se também rei da Judéia, Samaria e Iduméia. Torna-se, assim, rei de um território tão grande quanto o de seu avô, Herodes Magno. É judeu observante e piedoso, amigo dos fariseus. Começa a construção da terceira muralha de Jerusalém, que tornaria a cidade simplesmente inexpugnável. Contudo, não pôde concluí-la, pois o Imperador, alertado pelo governador da Síria, proíbe-o de continuar a obra. Morre repentinamente no ano 44 d.C., em Cesaréia. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) -5A Palestina tem por característica ser uma região semiárida, e por ser uma região que não é densamente povoada. No tempo de Jesus, parte reduzida das pessoas, e sobremaneira estrangeiros, detinham a posse da maior parte das terras, e havia uma grande quantidade de camponeses pobres.11 Esta polarização econômico-social produzia uma variação no campo ideológico. Não obstante a concepção teocrática de sociedade unificar grande parte das convenções sociais. No tempo de Jesus, a Palestina está imersa numa crise de identidade. De Alexandre, o Grande, e no decorrer dos trezentos anos que se seguiram, a perseguição cultural contra os judeus foi constante. Houve uma forte imigração de judeus que se conformaram com os costumes e hábitos mediterrâneos orientais e egípcios – emigração esta chamada Diáspora. Quase todos os emigrantes judeus eram artesãos e eles voltavam ocasionalmente para Jerusalém, já que o culto sacrificial era restrito ao Templo. Os judeus da Diáspora já não conheciam majoritariamente a língua hebraica, e utilizavam a Septuaginta. Alguns só falavam arameu, que era o idioma corrente, o idioma comum daquela época.12 As duas facções de judeus tiveram disposições distintas no tocante às influências e paradigmas ideológicos. Entre os helenistas, a tradição judaica foi mediada pelo esboço da “A expressão mais clara desse desenvolvimento é a concentração da posse da terra na mão de poucos latifundiários. Ela determinava - talvez com uma exceção parcial na época hasmoneia - a situação econômica da Palestina inclusive no período romano.” STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus, 2004. p. 131. 12 Tassin afirma que as causas da Diáspora são muitas e variadas: “As causas da Dispersão, deportações, superpopulação, perseguições, decorrem das leis habituais da emigração. Entre os motivos, estarísmos errando se insistíssemos no ‘gênio comercial’ do judaísmo; este traço quase não é enfatizado antes da Idade Média. Em contrapartida, evitemos negligenciar o fator militar: numerosas colônias judaicas, semi-soldados, semiagricultores, foram colocadas nas fronteiras dos impérios sucessivos, como a colônia de Elefantina, ao sul do Egito, cuja existência atestam papiros que falam de sua presença ali desde o século VI: Elefantina fala o aramaico, possui seu templo e seu clero, para um culto mais sincretista, e mantém com a Palestina relações de dependência religiosa. É que a Diáspora olha para Jerusalém (Dn 6,11).” In: TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas, 1988. pp. 14-15.A comunidade judaica da Diáspora manteve, em termos gerais, uma identidade com o judaísmo, o que permitiu a existência deles como povo não obstante estarem fora da Palestina. Segundo Volkmann, a unidade entre os judeus da Diáspora e os demais foi preservada por vários elementos de identificação cultural. Diz Volkmann: “O que mantém a unidade desta comunidade tão diversificada e tão dispersa são cinco fatores, que se desenvolveram justamente a partir do exílio e da constituição da comunidade templária, especialmente sob a influência de textos elaborados entre os exilados, com destaque para o grupo sacerdotal: a) tributo e ofertas para o Templo; b) peregrinações para Jerusalém; c) o culto nas sinagogas aos sábados; d) calendário de festas; e) ligação organizada entre Jerusalém e a Diáspora, principalmente através da entrega do tributo e das peregrinações.” VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal, 1992. p. 8. Soma-se a estas vinculações entre os judeus da Diáspora e os da Palestina, elementos de diferenciação do rupo em relação ao ambiente social em que estavam inseridos: “O domínio e a pureza do corpo supõem estreitos limites sociais não só para os judeus que mantinham fidelidades sectárias especiais e que por isso se isolavam dos outros, judeus latitudinários, mas também até certo ponto para todos os judeus que desejam preservar sua identidade em cidades de Diáspora. Filon expõe sucintamente a situação deles em sua interpretação (citada anteriormente no capítulo 1) da profecia de Balaão: Israel não poderá ser prejudicado pelos seus adversários enquanto for "um povo que habita sozinho" (Nm 23,9), "porque, em virtude da distinção decorrente de seus costumes peculiares, eles não se misturam com outros, evitando afastar-se dos caminhos de seus pais”. Os mais importantes Acostumes peculiares" eram a circuncisão, kashrut, a observância do sábado e a proibição de rituais cívicos que implicassem o reconhecimento de deuses gentios.” MEEKS, Wayne A., Os Primeiros Cristãos Urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. (trad. I.F.L. Ferreira). São Paulo: Paulinas, 1992. p. 153. O foco da diferenciação social era a Escritura, que sempre foi “o núcleo principal para a interpretação da própria sobrevivência de Israel na diáspora, a fonte necessária para reler a história à luz dos acontecimentos presentes no mundo.” In: SCARDELAI, Donizete, Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus: Jesus e Outros Messias. São Paulo: Paulus, 1998. p. 43. Esta era lida e compreendida no ambiente sinagogal, que “consolidava particularmente a unidade dos membros da Diáspora, assegurando-lhes lugar público de expressão da sua fé, de educação para a Lei e para as práticas judaicas.” In: TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas, 1988. p. 49. 11 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) -6filosofia neoplatônica.13 A helenização, associada ao desenvolvimento da vida urbana, fez colidir os judeus helenistas com a tradição do mundo hebreu. O efeito mais visível desta influência era a proliferação destes nas cidades, fato que é refletido nos “Atos dos Apóstolos.” A elite instruída dos judeus palestinenses foi substituída por uma minoria intelectual, que tinha representantes como Teodoro, Oenomeu (estóico), Nicolau de Damasco e Flávio Josefo entre outros. O resultado da helenização foi visto na composição do grupo de discípulos após a morte de Jesus, marcada pela tensão cultural entre os helenistas e os judeus, e entre as cidades helenas e os camponeses. A linguagem oficial dos tribunais era o idioma grego, e não o hebreu, por ser considerado o idioma da alta sociedade. No tribunal de Herodes, a aculturação helenística era patente. Josefo afirma nos seus textos que Herodes ostentou ser mais próximo da cultura grega que da cultura judaica. Na Palestina, o grego passou a ser o 2º idioma, sendo gerado por isto um conflito econômico e ideológico entre os mais pobres, que não conheciam o idioma, e a minoria rica. A cultura imposta era oposta àquilo que fazia parte da vida diária dos mais pobres, e estes eram majoritariamente camponeses. Isto trouxe conflito entre a cidade e o campo.14 Esta grande diferença econômica acaba por culminar na tensão social que provocou a guerra judaica entre os anos 66 e 67 d.C. Os camponeses fortemente empobrecidos pararam de cultivar suas terras e emigraram para as cidades à procura de uma oportunidade. O aumento da população, com a falta ascendente de infraestruturas, culminou em grandes problemas socioeconômicos. Tudo isto foi consequência do processo de dominação romano, segundo afirma Pixley: Um dos propósitos do império em seu controle sobre o território e a população da Palestina era obter riquezas através de um complexo sistema de tributos e impostos. Havia impostos sobre a terra, sobre a população, e direitos de alfândega e pedágio para o uso de pontes e vias. Cobrar os impostos era um negócio que se outorgava por contratos a grandes empresários, que por sua vez empreitavam aos coletores locais de impostos. Para a população judaica existiam ainda os impostos do templo, principal- mente o dizimo sobre a produção do campo e o imposto anual da didracma sobre cada varão. A carga para o camponês comum devia ser verdadeiramente espantosa. 15 Este período também foi marcado pela violência, com vários tumultos e confusões no ambiente urbano. Estas tensões entre as pessoas ricas e as pobres tiveram imbricações políticas.16 “Sob tais pressões, muitos judeus abandonaram o apego a uma identidade distinta como povo da aliança, assimilando-se à cultura greco-romana. Esse fato se mostra de maneira superficial já na adoção de nomes gregos - prática que encontramos entre muitos cristãos das origens, inclusive alguns discípulos de Jesus.” In: KEE, H. C., As Origens Cristãs: em perspectiva sociológica. (trad. J. Rezende Costa). São Paulo: Paulinas, 1983, p. 35. 14 “Como as cidades crescessem em número e poder, suas relações com o campo se foram tornando cada vez mais ambivalentes. Uns dependiam dos outros, mas sob todos os aspectos de vantagens físicas e sociais a simbiose era unilateral e sempre favorecia a cidade.” MEEKS, Wayne A., Os Primeiros Cristãos Urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. (trad. I.F.L. Ferreira). São Paulo: Paulinas, 1992, p. 29. 15 PIXLEY, Jorge, A História de Israel a Partir dos Pobres. 6a Ed. (Trad. Ramiro Mincato). Petrópolis: Vozes, 1999, p. 123. 16 Pixley afirma que estes conflitos alcançaram tanto a cidade quanto o campo. Ele afirma: “Nos anos seguintes houve diversos incidentes em que a população, tanto urbana como rural, protestou contra os abusos de poder por parte das autoridades. Tibério Alexandre, procurador de 46 a 48 d.C., sentenciou e crucificou Tiago e Simão, filhos de Judas o Galileu, ainda que Josefo não nos informe sobre suas atividades revolucionárias (Ant XX, 102).” Ver: PIXLEY, Jorge, A História de Israel a Partir dos Pobres. 6 a Ed. (Trad. Ramiro Mincato). Petrópolis: Vozes. 1999, p. 130. Scardelay ainda afirma que a Galiléia era o principal centro de resistência, sendo: “(...) considerado o centro centrífugo de movimentos da resistência judaica, cujas manifestações mais radicais e organizadas ocorriam em Jerusalém durante as festividades do calendário religioso judaico. Entre os focos de movimentos rebeldes mais conhecidos estão situados os zelotas, cujo aparecimento ocorreu durante o início da conquista da Judéia pelos romanos, em 66-67 d.C.” Ver: SCARDELAI, Donizete, Movimentos Messiânicos no Tempo de 13 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) -7O processo final dirigiu-se para a tensão religiosa entre o judaísmo e o paganismo, principalmente entre os paganizantes do judaísmo e os adeptos do judaísmo tradicional. O cristianismo foi influenciado por tradições pagãs, como a afirmação da não necessidade da circuncisão para entrar no grupo de cristãos, e a adoção de um espírito mais universalista. Outros elementos que foram somados ao cristianismo foi a visão cosmológica, ou a identificação da Palavra de Deus, dotada de ação criativa, com o “logos” do platonismo.17 Em um nível mais prático, o contato com o paganismo já significava que os cristãos estavam transgredindo as normas de pureza: Comer com um pagão é um ato sacrílego. Isto pode ser observado nos Atos dos Apóstolos. Esta situação inteira faz parte do contexto em que o cristianismo surge e deve ser analisado. Especialmente importantes são, neste sentido, a percepção teocrática do “self”, de Deus, da religião e da vida cotidiana. O Cristianismo é mais uma resposta aos problemas e dilemas do judaísmo do primeiro século, e consiste na flexibilização das questões mais radicais.18 A sociedade teocrática judaica é tão abrangente que os movimentos de reação e de alternativa têm caráter religioso. Por isto, a primeira reação ante um problema é o desapego (a emigração), elemento muito importante na Palestina e algo frequente em sua história. Outra reação foi a bandidagem cometida pelos movimentos sociais pré-políticos que não apresentavam outra alternativa social por não se alinharem com o poder político-religioso estabelecido, mas ao mesmo tempo terem exigências claras e mobilização, por vezes dotadas Jesus: Jesus e Outros Messias. São Paulo: Paulus. 1998, pp. 240-241. Ou seja: a dominação romana causou desde o princípio descontentamento tanto na cidade quanto no campo, tanto na Galileia quanto em Jerusalém. Porém os mais pobres se mobilizaram mais frequentemente. Esta mobilização é comentada por Theissen: “Quando, porém, uma sociedade se sente ameaçada e insegura, ela geralmente recorre a comportamentos tradicionais. Valores sagrados da nação são enaltecidos de forma provocadora. Intensifica-se a separação de tudo o que é estrangeiro.” Ver: THEISSEN, Gerd, Sociologia do Movimento de Jesus. 2 a ed. (Werner Fuchs e Annemarie Höhn). São Leopoldo: Sinodal. 1997, p. 91. 17 A influência helenista no judaísmo e no cristianismo foi consequência inevitável do contato com a cultura dos dominadores. Tanto os gregos, quanto os romanos, estabeleceram sua influência cultural, numa iniciativa que buscava diminuir as resistências dos povos dominados. O início desta influência cultural não foi pacífica, mas foi realizada através da mudança de paradigmas culturais importantes. Pixley afirma: “A organização secular dos camponeses em aldeias, com seus próprios conselhos de anciãos, foi violada no século III com a fundação de cidades de estilo helenístico no território da Palestina e a introdução da propriedade privada da terra.” Ver: PIXLEY, Jorge, A História de Israel a Partir dos Pobres. 6 a Ed. (Trad. Ramiro Mincato). Petrópolis: Vozes. 1999, p. 119. Além disto, até mesmo a expressão “judaísmo” foi estabelecida a partir do contraste da cultura dos judeus e dos gregos. Segundo Tassin, “o termo judaísmo parece ter sido forjado pelos judeus de língua grega para se definirem em face do helenismo. Encontramos o termo pela primeira vez em 2 Mc 9 por volta de 150 a.C.). Em 2 Mc 2,21 o autor evoca ‘os que generosamente realizaram façanhas pelo judaísmo a ponto de porem em fuga as hordas bárbaras’. Ironia da linguagem! Pois são os judeus que os helenistas qualificam de ‘bárbaros’. Aqui, como em 2 Mc 8,1, o termo ‘judaísmo’ abrange a fé, os costumes e o enraizamento étnico que caracterizam a identidade judaica. 2 Mc 14,37-38 apresenta certo Razis que ‘havia incorrido em condenação por professar o judaísmo e pelo judaísmo se expusera com toda constância já no período precedente à revolta’. Encontram-se aí as mesmas harmonizações. Acrescentemos ainda 4 Mc 4,26 (escrito no século I d.C. ou anterior) onde comer alguma coisa impura equivale a ‘abjurar ao judaísmo’. Em todos estes textos, o contexto é polêmico: ele não evoca apenas a fidelidade à autenticidade judaica, mas também a luta contra aquilo que a ameaçaria.” Ver: TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas, 1988, p. 25. Para mais exemplos do intercâmbio cultural e conflitos entre o judaísmo e o helenismo, ver as seguintes obras: a) Le Goff, J., El Nascimiento del Purgatorio, Madrid, Taurus, 1981, pp.18, 69-80. b) Lévêque, P., O Mundo Helenístico, Lisboa, Ed, 70, 1988, pp.123-148. c) Eliade, op. cit., pp. 42-71. d) Simon e Benoit, Judaísmo e Cristianismo Antigo. São Paulo. Pioneira/Edusp. 1987, pp.237-43. 18 Uma destas questões é a relação ente homens e mulheres. No judaísmo, esta era uma questão por demais drástica. A comunidade cristã, por ser menos restrita, valorizava a figura feminina de forma paralela àquela que era feita nos cultos gregos. Cf. Robin Scroggs, "Entrar na comunidade cristã significa, portanto, filiar-se a uma sociedade na qual funções do tipo homem-mulher, e avaliações baseadas nestas funções, têm sido descartadas" ("Women in the NT" em The Interpreter’s Dictionary of the Bible, volume suplementar [Nashville: Abingdon Press, 1976] 966). www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) -8de conteúdo religioso. Um exemplo é a menção da Palestina, pelas autoridades romanas, a partir de grupos ou movimentos específicos, reconhecidos por causa da sua postura diante do poder central. E estes grupos eram referidos como agentes de bandidagem e como ladrões. Sobre isto, afirma Grelot: “Os bandidos: era esse, sem dúvida, o nome dado pelas autoridades a todos os opositores que lutavam na guerrilha contra os partidários de Roma. Barrabás não era um ladrão, mas um guerrilheiro (cf Mc 15,7). Os sicários: a arma favorita dos resistentes era a sica, punhal curvo, fácil de esconder nas dobras das vestes,- daí o nome sicarii, "homens do punhal". Os galileus: a Galiléia sempre foi um foco de agitação. A designação "galileus" se aplica especialmente aos partidários de Judas. Os zelotas: simples transcrição do grego, esta palavra evoca o zelo ardente que anima o grupo. Flávio Josefo só fala dos zelotas a propósito da guerra judaica (66- 70 de nossa era). Por isso os historiadores díscutem sobre a homogeneidade dos movimentos de resistência que se manifestaram na Palestina.”19 Esta configuração social da Palestina proporcionou a emergência de partidos e movimentos de natureza religiosa e política. Na sociedade judia existiam duas correntes religiosas que expressam maior influência na religião judaica: os saduceus e os fariseus. Junto a elas existem dois movimentos de natureza messiânica com posicionamento oposto ao status quo religioso ou civil: os sicários, os zelotas, e os essênios. Os Saduceus Os saduceus são o grupo mais poderoso do período neotestamentário. Este grupo teve origem na nobreza sacerdotal judaíta, que foi fortalecida na fundação da comunidade pósexílica em 539 a.C.20 Era um grupo conhecido particularmente por reafirmar a centralidade do culto no Templo e por serem os legítimos representantes da ortodoxia judaica conservadora.21 19 GRELOT, P., Jesus. In: VVAA, Libertação dos Homens e Salvação em Jesus Cristo: 1a parte. [trad. Benôni Lemos]. São Paulo: Paulinas. 1981, p. 64. 20 Segundo Stegemann, os saduceus são um grupo influente e ligado ao Sumo-Sacerdote, o que não permite que se afirme com exatidão aqueles que pertencem ao grupo. Sabe-se que fazia parte do grupo dominante da religião judaica, e que membros da elite econômica também eram saduceus, e na elite política também. Steggemann afirma: “O enquadramento dos três grupos principais nos estratos da sociedade judaica é relativamente claro no caso dos saduceus, pois tanto os testemunhos de Josefo como do Novo Testamento sugerem que os saduceus pertenciam ao estrato superior dominante de Jerusalém. Eles são mencionados pela primeira vez por Josefo sob João Hircano, que rompeu com os fariseus e se aliou aos saduceus (Cf. Ant 13,293ss.). Isso, em todo caso, indica que os saduceus estavam próximos do estrato dominante, algo que, ademais, é corroborado pelo fato de que, se- gundo Josefo, eles não encontravam seus adeptos entre o povo, mas entre as pessoas ricas e afamadas (Ant 13,298). Igualmente está claro que alguns membros da alta aristocracia sacerdotal se consideravam integrantes do grupo; Josefo menciona nominalmente, contudo, apenas o sumo sacerdote Ananias (Ant 20,199ss.). Isso, entretanto, não nos permite deduzir que todo sumo sacerdote ou até todos os membros do estrato superior tenham sido saduceus. Mas nada impede a conclusão inversa. Também de acordo com o Novo Testamento, os saduceus, como grupo influente do Sinédrio, fazem parte do estrato superior e são mencionados de um só fôlego com o sumo sacerdote (Cf. apenas Ai 5.17).” Ver: STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus. 2004, p. 185. Particularmente, é aceitável a tese de que “os saduceus se apresentam como descendentes de Sadoc, sumo-sacerdote do período de Davi e Salomão (Ez 40.46, 44.15).” Cf. SCHUBERT, Kurt, Partidos Religiosos Hebraicos da Época Neotestamentária. (trad. Isabel Fontes Leal Ferreira). São Paulo: Paulinas. 1979, p. 15. 21 “Em termos teológicos se evidenciam como conservadores pelo fato de defenderem apenas a validade da Torá, sem aceitar a tradição oral dela derivada, como o fazem os fariseus'. Em conseqüência também não aceitam idéias novas desenvolvidas principalmente em conexão com esta tradição oral: continuidade da vida além da morte, ressurreição dos mortos, participação de Deus na definição do destino.” Ver: VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 119. Ver também: MOULE, C.F.D., As Origens do Novo Testamento. (trad. Josué Xavier). São Paulo: Paulinas. 1979, p. 25. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) -9Os saduceus eram conservadores em suas propostas, porém conformados com o status quo político.22 Eram membros geralmente da aristocracia laica (grandes proprietários, comerciantes e artesãos) e eclesiástica; e descendentes dos que ostentaram o poder no passado próspero de Judá. Quando perderam a preeminência política sacerdotal, seguiram controlando a estrutura de poder vinculado ao Templo de Jerusalém. Esta foi a causa do seu descenso: entre os anos 60 e 66 o Templo foi destruído por causa da guerra.23 Os saduceus aceitavam o alistamento no exército romano, e por isto obtinham algumas benesses na estrutura econômica do império. Nisto eles não eram conservadores. Porém, no tocante às questões religiosas, os saduceus eram o grupo mais conservador. Por estabelecerem uma dicotomia ideológica entre a religiosidade e a dominação do estado, os saduceus vincularam ao seu corpo de doutrinas a ideia de que o Estado hebreu estava vinculado ao Templo, e seu poder de legislar passava pelo cuidado e supervisão do povo no tocante à observância da Lei. As tentativas de reformas nas crenças religiosas obtinham geralmente a oposição por parte deste grupo. Eles eram os principais mantenedores do patrimônio religioso tradicional.24 Os saduceus não aceitavam a transmissão oral e, ao mesmo tempo, eles eram os únicos, na esfera do Templo, que podiam interpretar os textos. Não reconheciam os livros mais recentes da Torá, pois restringiam a ideia de perfeição e legislação ao Pentateuco.25 Eram contrários também à ideia de promover a conversão de estrangeiros, pois adotavam o conceito de que só os judeus eram o povo eleito. O judaísmo, nesta concepção, era uma religião dos judeus, e não da humanidade. Os judeus não entendiam ser o “logos” uma realidade física. Não acreditavam na alma individual e, por conseguinte, não criam na ressurreição. Para eles, só o presente existia, e a ideia da retribuição imanente: que os benefícios da vida presente são consequência da fidelidade à Lei. Neste sistema teológico, Yahweh era o castigador, ou doador de bens aos justos. Os saduceus negavam a possibilidade de inovação na teologia, e por isto não produziram textos literários, nem teológicos. Não acreditavam em interpretações, contextualizações ou profecias. Por isto, o que se conhece dos saduceus é relatado pelos “historiadores” da Antiguidade e pelos seus detratores. A razão dos saduceus terem acumulado adversários foi esse posicionamento hostil diante dos adversários e sua visão estrita da Lei, conforme afirma Tassin: “Diferentemente desses dois grupos [fariseus e essênios], que haviam se originado do protesto contra a restauração nacional-territorial sob os asmoneus e especialmente contra a realeza sacerdotal destes, os saduceus surgiram dos círculos sacerdotais que "eram favoráveis e apoiavam explicitamente a dinastia asmonéia", pois viam nesta uma garantia de seus ideais nacionalistas-particularistas, no centro dos quais deve ter estado o templo com o seu culto.” Ver: ROLOFF, Jürgen, A Igreja do Novo Testamento. (trad. Nélio Schneider). São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 22. 23 O grupo dos saduceus, que era conformado com o status quo político e vinculado principalmente ao Templo, desapareceu após a ruína das relações dos judeus com os romanos após as Guerras Judaicas, e após a destruição do templo, que era seu contexto vital. Neste caso, as suas tradições desapareceram e a supremacia farisaica se estabeleceu, já que o contexto da existência farisaica não era restrita ao templo, mas alcançava também a sinagoga. Sobre isto, ver: VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, pp. 119,120. 24 Não obstante serem os defensores do patrimônio religioso tradicional, os saduceus paradoxalmente assumiram uma mentalidade secularizada, associado ao ritual sacrificial promovido e defendido pelo grupo, provocando a dissociação entre a vida religiosa e a práxis. Ver: MOULE, C. F. D., As Origens do Novo Testamento. (Trad. Josué Xavier). São Paulo: Paulinas. 1979, p. 141. 25 Este conservadorismo foi a causa do posicionamento dos fariseus diante de Jesus. Afirma Goppelt: “Também os sumo-sacerdotes e os saduceus têm que insistir na eliminação de Jesus; pois todo o movimento messiânico põe em perigo a sua posição. A revolta messiânica do ano 66 trouxe o fim tanto para o templo quanto para eles.” Ver: GOPPELT, Leonhard, Teologia do Novo Testamento. 3a ed. (Trad. Martin Dreher e Ilson Kayser). São Paulo: Teológica. 2002, p. 233. 22 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 10 Eram muito conservadores em matéria de religião. Na doutrina (Mt 16,12), admitiam apenas a Torá ou Lei de Moisés, que está exclusivamente nos cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. O conjunto desses livros se chama Pentateuco). Eles se atêm estritamente à letra do que esses livros dizem. São, portanto, fundamentalistas. Por isso rejeitam qualquer desenvolvimento posterior dessa doutrina; opõemse principalmente àquilo que os fariseus ensinam como 'doutrina oral", que interpretava essa Lei. Conforme os saduceus, os sacerdotes são os únicos intérpretes da Lei. Não querem que os fariseus 'leigos" a interpretem. Também suspeitam dos profetas. Todos eles são fanáticos da observância do sábado. 26 Os Fariseus Os fariseus são um grupo fundamental para se compreender o que se tornou o judaísmo após a derrota de Jerusalém no ano 70 d.C.27 Este grupo é geralmente tratado no testemunho dos evangelhos como sendo a encarnação de todos os males, devido ao fato dos fariseus serem os mais constantes perseguidores dos cristãos. São tachados de falsos (sepulcros caiados). Pelos essênios, eles eram chamados de “segregados”, já que a comunidade também se posicionava diametralmente oposta aos costumes farisaicos. Os fariseus constituem o grupo majoritário, dentre os grupos conhecidos pela sua religiosidade. Não eram dirigidos pelos sacerdotes, ainda que existissem sacerdotes fariseus servindo no Templo de Jerusalém. O grupo dirigente dos fariseus eram os chamados “Doutores da Lei”. Os fariseus não provocaram a ruptura com o Templo e com o sacerdócio (distintamente dos essênios). Não exerciam papel determinante na regência do culto do Templo e nem se colocavam em oposição à dominação romana. Suas propostas religiosas estavam baseadas em esperanças dadas aos piedosos da época, o que fazia deste grupo um partido bastante atraente. Havia entre os fariseus um consenso maior que os saduceus sobre questões teológicas, o que tornava suas ideias mais claras.28 26 MORACHO, Félix, Como Ler os Evangelhos: para entender o que Jesus fazia e dizia. (trad. Iv Storniolo e José Bortolini). São Paulo: Paulus. 1994, p. 61. 27 Afirma Michaud: “A origem dos fariseus também é obscura. Após duas décadas de novas pesquisas, os especialistas são cada vez menos categóricos sobre tudo o que diz respeito aos fariseus. Geralmente eles são relacionados com os hassidim, aqueles piedosos" ou "devotados à Lei", que se reuniram a Matatias, seus filhos e seus companheiros, por ocasião da insurreição dos Macabeus em -167 (I Mc 2,42). Seu nome significa "separados", sem que se possa dizer com certeza de que eles se separaram. De certos judeus muito pouco escrupulosos na observância da Lei, especialmente do povo simples ou "povo do país: 'am-ha-arets" cuja fidelidade às leis sobre os dízimos e as purificações continuava duvidosa? Ou simplesmente dos pagãos? Sob João Hircano (-1341-104), eles aparecem como um grupo solidamente organizado e politicamente influente. Mas foram rapidamente suplantados pelos saduceus e, se excetuarmos o breve intervalo favorável do reino de Salomé-Alexandra (-76/67), seu papel político sofrerá um declínio constante a partir da intervenção romana em -63. Entretanto, após 70, essênios e saduceus, corno grupos, tendo sido levados até a tormenta, eles continuarão sozinhos na arena e reconstruirão o judaísmo em torno da Lei e de sua interpretação. Portanto, antes de 70, esses leigos piedosos não faziam parte da classe governante que se reunia em torno dos sumos sacerdotes e do grupo dos saduceus, e não tinham muita influência política. Pelo contrário, o zelo piedoso de que davam prova, a integridade de sua vida e o ideal religioso...”. Ver: MICHAUD, Jean-Paul, A Palestina do Primeiro Século. (In: MAINVILLE, Odette (Org.), Escritos e Ambiente do Novo Testamento. (trad. Lúcia Mathilde). Petrópolis: Vozes. 2002, p. 46. 28 Segundo Michaud, os fariseus tinham “um crédito considerável junto à população. Josefo sublinha diversas vezes essa popularidade W 13, 288; 18, 1 5; 18, 17).”(Ver: MICHAUD, Jean-Paul, A Palestina do Primeiro Século. (In: MAINVILLE, Odette (Org.), Escritos e Ambiente do Novo Testamento. (trad. Lúcia Mathilde). Petrópolis: Vozes. 2002, p. 47. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 11 O Templo era um centro econômico.29 Os sacrifícios, em grande parte, eram entregues ao Templo, e a produção de velas e demais utensílios cúlticos dava trabalho a 6 mil empregados e suas famílias. Era muito grande a afluência de peregrinos, já que as sinagogas não são um lugar de culto, mas de leitura e discussão dos livros sagrados. Os fariseus tinham seu foco de atuação neste momento secundário da religiosidade judaica: sua influência principal estava localizada na sinagoga.30 Os saduceus, por sua vez, dominavam no Templo - nos períodos em que o povo atendia às convocações (festas, datas especiais) para ir ao Templo. O segredo para tamanha influência foi a adoção pelos fariseus da tradição oral. Esta era dotada de grande importância, pois a crença farisaica afirmava ter sido a tradição recolhida desde os dias de Moisés e passada de geração em geração, até eles. Os fariseus entendiam ser os fiéis depositários da tradição, e foram incrementando-a com o tempo.31 Por não existir um organismo que ditasse as leis ao povo, eles estabeleceram os doutores da lei. Dentre os chamados doutores da Lei, existiam alguns que adicionavam textos à Torá, sendo estes os mais eruditos, pois criavam doutrinas e as transmitiam por meio de parábolas para fazer entender os conceitos teológicos contidos nestas formulações, que eram complexas e abstratas à população. Para os fariseus, Moisés tinha entregado as tábuas da lei, mas junto com elas deixou as normas para a sua aplicação, e estas convertiam aqueles que eram conhecedores destes conceitos em intérpretes da lei. Esta função assumiu maior relevância, em determinadas ocasiões, até que o próprio culto.32 29 Na Judéia, o centro da vida litúrgica é o templo: a pregação de Jeremias e de Ezequiel, a última formulação do Deuteronômio desenvolveram uma teologia da unicidade do lugar do culto, exigida por Deus. Na época macabaica, trata-se do que chamam de o segundo templo, que fora reconstruído, depois de muitas vicissitudes, durante o período pós-exílico. Os trabalhos tinham começado desde a volta, conforme o edito de Ciro: primeiro reconstruiuse o altar, em seguida, limpou-se e nivelou-se o terreno (Esd 3,3.10); a despeito do projeto de restauração. SAULNIER, C., A Revolta dos Macabeus. (trad. I. F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas. 1987, p. 44. 30 As sinagogas podem ser comprovadas na época de Jesus na Galileia e na Judéia com base em “(...) inscrições gregas na diáspora da segunda metade do século 3 a. C." Na terra de Israel, os testemunhos mais antigos são a inscrição de Teódoto de Jerusalém, assim como os achados arqueológicos de Garffla, do Herodeion e da fortaleza de Massada, da metade do século 1 d. C." Supôs-se, por isso, que, na terra de Israel, as sinagogas surgiram mais tarde, talvez apenas no período pós-macabeu. 11 Em Josefo, no Novo Testamento, bem como por fim também na Mishnah, encontram-se numerosas menções a sinagogas em Jerusalém e na terra de Israel, ou seja, em Tibérias, Dor, Cesaréia (maritima), Nazaré e Cafarnaum. Diferentemente da diáspora, entretanto, o número de sinagogas na Palestina antes de 70 d. C. deve ter sido pequeno. Mas as raízes das sinagogas não devem se encontrar, como se presume amplamente, no exílio babilônico, mas numa instituição pós-exilica "que estava encarregada de realizar tarefas públicas, entre as quais se incluíam também funções religiosas. Só por volta do final do segundo templo e sobretudo após a sua destruição, cresce sempre mais a importância das funções cultuais.” (Cf. STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus. 2004, p. 168. As sinagogas são chamadas por vários termos. Na Diáspora, “a palavra grega mais comum para a sinagoga é, em contrapartida, proseuché (lugar de oração).” (Cf. STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus. 2004, p. 168. “Porém, os vocábulos que serviam para designar a sinagoga evocam lugar de oração (proseuché), de reunião (sunagogé) e também o sábado (uma vez sabbateion na pena de Flávio josefo), porque a sinagoga devia influir muito na regularidade da observância deste dia santo. A leitura da Torá era o elemento central da reunião; a pregação explicava, exortava, sendo o primeiro elemento de interpretação da Torá a leitura de uma passagem dos Profetas, uma leitura comparada: desta imantação mútua dos textos nascia uma espécie de tradição bíblico litúrgica em que a Bíblia comentava a Bíblia.” In: TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas. 1988, p. 49. A sinagoga consolidava particularmente a unidade dos membros da Diáspora, assegurando-lhes lugar público de expressão da sua fé, de educação para a Lei e para as práticas judaicas.” In: TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas. 1988, p. 49. 31 VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 121. 32 Por isto, o povo simples, que não podia compreender ou até mesmo não era instruída no sem-número de prescrições, era desprezado pelos fariseus, e Jesus também o era, já que ele “...negligencia as purificações rituais e os jejuns de devoção, e frequenta cobradores de impostos e pecadores (Mc 2,15-17; Lc 15,2), devia provocar www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 12 Quando o Templo foi destruído - o arco do triunfo de Tito comemora esta queda, e nele estão representados a chegada do grande candelabro e o arca da aliança depois da revolução judia - o culto se desenvolveu na sinagoga. Os fariseus mantiveram a tradição através das fórmulas rituais com 248 mandatos e 366 proibições derivados dos Dez Mandamentos. Os saduceus desapareceram com a destruição do Templo e foi estabelecida a hegemonia farisaica na determinação das marcas do judaísmo a partir de então. Encontramos assim, a seguinte afirmação: Pode-se dizer que depois da catástrofe do ano 70, três dos partidos religiosos mencionados por Josefo desapareceram. Os zelotes revolucionários, com certeza, no último combate de Massada, e os essênios de Qumran, estabelecidos na vizinhança. Mas também os saduceus, cuja organização estava toda ligada ao Templo. Restavam os fariseus. Apesar da impossibilidade de estabelecer uma clara continuidade entre os fariseus de antes de 70 e os primeiros rabinosso, a tendência farisaica acabará, entretanto, por prevalecer no nascente judaísmo rabínico. O movimento se formou em Jâmnia, na costa mediterrânea a cerca de vinte quilômetros da atual Tel-Aviv, sob a direção de Joanan ben Zakkai (entre 70 e 80) e, depois dele, de Gamaliel 11 (8090). Empreendeu-se, então, o que pouco depois será percebido como uma redefinição completa do judaísmo, em torno dos três pilares fundamentais que subsistiam: o monoteísmo, a eleição expressa pela aliança e a Lei. De fato, o Templo e seu culto não foram esquecidos e os rabinos continuaram a legislar a este respeito, como atestam grandes partes da Mishna, na esperança de que o Templo seria restabelecido como fora outrora depois do exílio da Babilônia. Entretanto, foi a Lei e suas aplicações práticas que se tornaram a preocupação central dos rabinos da escola de Jâmnia. Eles desenvolveram assim uma forma de judaísmo capaz de manter sua identidade, até mesmo fora do Templo e de um culto central. É claro que a unidade deste judaísmo não se conseguiu de um dia para o outro. Foi preciso esperar o fim do período talmúdico no Século V, para que as comunidades de judeus do mundo... 33 A pregação de Jesus era diametralmente oposta às exigências farisaicas em relação ao comportamento cotidiano não relacional, como as tradições referentes aos alimentos etc. Muitas de suas propostas são tomadas deles. Só os doutores podiam discernir entre o bem e o mal de qualquer fato ou coisa, por que as regras geralmente eram desconhecidas. Cumprir a lei se traduzia no farisaísmo a um esforço positivo. As boas ou más ações eram premiadas ou castigadas pela divindade. No farisaísmo cada indivíduo era mensurado no tocante à sua honradez, segundo as suas obras. Os pecados podiam ser expiados mediante o amor (a caridade), a contrição (jejum) ou a punição individual ou coletiva. Yahweh era, segundo os fariseus, um Deus vingativo. Para eles era melhor ser uma sociedade baseada em rituais de pureza e denúncia dos pecados alheios - e expiação dos próprios – do que estar sujeito à fúria de Deus.34 Os fariseus criam também na misericórdia de Deus e no advento do Messias, responsável por estabelecer na terra o Reino de Deus, tendo fim toda a opressão, porém, num futuro longínquo – conceito muito similar ao de outros movimentos messiânicos da época. No entanto, não há um sentimento unânime sobre este tema. Outra questão aberta para os fariseus era a questão da vida após a morte. A condição para esta vida, se os justos a gozariam restritamente ou se esta era universal, se a alma dos injustos cessaria ou seria condenada eternamente: são todas estas questões abertas no período de Jesus para os fariseus.35 Além disto, uma oposição feroz de sua parte.” MICHAUD, Jean-Paul, A Palestina do Primeiro Século. In: MAINVILLE, Odette (Org.), Escritos e Ambiente do Novo Testamento. (trad. Lúcia Mathilde). Petrópolis: Vozes. 2002, p. 49. 33 MICHAUD, Jean-Paul, A Palestina do Primeiro Século. In: MAINVILLE, Odette (Org.), Escritos e Ambiente do Novo Testamento. (trad. Lúcia Mathilde). Petrópolis: Vozes. 2002, p. 61. 34 VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 122. 35 A escatologia farisaica tinha elementos particulares. “Os fariseus mudaram da política para a piedade, como sucintamente o expressou Jacob Neusner, ao passo que os essênios emigraram para o deserto. Apesar deste distanciamento, ambos os grupos persistiram no senso de inelutável obrigação de alcançar e manter a integridade do povo da aliança. Embora variassem nos detalhes de suas expectativas, estavam unidos na confiança de que www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 13 os fariseus recusavam o messianismo (não obstante crerem no advento de um Messias), consideravam-se a si mesmos o verdadeiro Israel ou intérpretes da lei de Deus, e não aceitavam outras interpretações teológicas opostas as deles, pois as consideravam distorções da verdade. Os fariseus não entendiam, como os saduceus, ser a salvação exclusiva aos judeus de Israel e não aberta também para os judeus estrangeiros. Alguns fariseus chegaram a propor que alguns gentios justos também podiam desfrutá-lo, porém estes constituíam um grupo minoritário. Podiam-se incorporar os gentios à religião judaica e alguns conversos, depois de aceitar o batismo – a travessia do mar Vermelho – deveriam praticar a circuncisão, e este era um grande obstáculo para os estrangeiros. As mulheres gentias não podiam se agregar à comunidade.36 Os movimentos religiosos messiânicos apresentam maior complexidade, já que suas expectativas são complexas e difusas, e as interpretações apresentadas às suas doutrinas são diversas, e suas características são mutáveis com o tempo. Distinguem-se dois grupos principais: os zelotes e os essênios. Os Zelotes Os zelotes são grupos messiânicos caracterizados por ter uma intencionalidade política devido à interpretação que apresentam de que a chegada do Messias é iminente. Os zelotes associam esta chegada a uma mudança política (a expulsão dos romanos). Estes movimentos são acompanhados de uma atividade militar e desejo de controle de territórios.37 Os zelotes – que têm representantes no grupo de Jesus – compartilhavam das idéias dos fariseus e essênios, cujo ponto central é a interpretação do primeiro mandamento do decálogo: “o Reino de Deus é Israel” ou “nada que seja temporal e mundano é compatível com o Reino de Deus.” Estes discípulos são os seguintes: “Os evangelhos mencionam, inadvertidamente talvez, o nome de quatro discípulos que têm ligações coma ideologia revolucionária dos nacionalistas: Simão, um zelota confesso, e Judas Iscariotes (Mt 10,4; Lc 6.15); Pedro, cujo caráter nos é apresentado como sendo impetuoso e dominado por explosões emotivas (Lc 22.33. 49-50); e Tiago e João, que são denominados eufemisticamente ‘Boanerges’, ou seja, ‘filhos do trovão’ (Mc 3.17).” 38 Deus haveria de se manifestar por íntermédio do seu Agente eleito para estabelecer a sua soberania no mundo e vingar o seu povo fiel. Diferiam sobretudo quanto às fases e ao clímax do drama escatológico. Os essênios e outros grupos de tendência semelhante mantiveram-se confiantes de que Deus lhes revelara os passos pormenorizados, pelos quais iria cumprir o seu desígnio para com o seu povo.” Cf. KEE, H. C., As Origens Cristãs: em perspectiva sociológica. (trad. J. Rezende Costa). São Paulo: Paulinas. 1983, p. 33. 36 Alguns têm sugerido que Jesus não escolheu mulheres para o colégio apostólico por que estava restrito pela cultura da sua época: mulheres apóstolas não seriam aceitáveis para os judeus da época, e colocariam em perigo a missão de Jesus (Cf. G. Bilezikian, Beyond Sex Roles [Grand Rapids: Baker, 1985] 236). Mas este argumento é somente especulativo, e ao final, coloca Jesus numa situação difícil. Veja sua refutação em Piper e Grudem, Recovering, 221-222. Outros exemplos: Paul K. Jewett, Man as Male and Female (Grand Rapids: Eerdmans, 1975) 142. Cf. Robin Scroggs, "Entrar na comunidade cristã significa, portanto, filiar-se a uma sociedade na qual funções do tipo homem-mulher, e avaliações baseadas nestas funções, têm sido descartadas" ("Women in the NT" em The Interpreter’s Dictionary of the Bible, volume suplementar [Nashville: Abingdon Press, 1976] 966). 37 “Os sicários, portanto, diferentemente do banditismo social, não eram um movimento restrito ao estrato inferior, mas se recrutavam justamente também do grupo do séquito do estrato superior. A isto corresponderia tanto o seu programa político-religioso como o fato de que o seu terror se voltava contra a elite sumo-sacerdotal em Jerusalém.” STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus. 2004, p. 210. 38 SCARDELAI, Donizete. Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus: Jesus e Outros Messias. São Paulo: Paulus. 1998, p. 243. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 14 Quando falam de liberdade, os zelotes estavam fazendo referência à liberdade religiosa – e esta, na visão zelote, dependia da intervenção divina. Mas os zelotes também defendiam a necessidade de liberdade política em relação aos romanos. Mas esta última só podia ser obtida a partir do sacrifício e do martírio voluntário.39 Este martírio, ideia existente no judaísmo primitivo, que foi legada ao cristianismo, traz como recompensa a salvação da alma. Não era uma ideia restrita aos zelotes, já que os fariseus adotavam a mesma ideia no tocante à guarda dos rituais. Este fanatismo religioso, ligado à sincera crença nos valores defendidos pelos grupos, explica em parte a sublevação judaica contra os romanos e a posterior capitulação dos mesmos.40 Da parte dos fariseus, a entrada na cidade santa com imagens ou estátuas era proibida, sob risco de morte. A ideia contida na necessidade vista pelos zelotes de liberdade política é a crença na imposição, por parte do Senhor, da redistribuição da propriedade, pois os pobres eram os eleitos por Deus. A situação de miséria na Palestina era interpretada como um sinal de que o fim era iminente.41 A crucificação era o destino dos inimigos políticos dos romanos. Os zelotes, quando eram presos e ordenada a sua execução, eram equiparados aos ladrões. Jesus foi considerado um zelote ao ser crucificado ao lado dos ladrões.42 Em suma, são zelotes aqueles que respondem à situação de crise que se vivia no século I a.C. Vão-se a distinguir por serem constituídos por setores marginalizados que consideram a salvação como algo iminente, e que é equiparado com a liberdade, por intervenção divina. Isto é, uma transformação imediata da situação de Palestina e a libertação do domínio romano. Serão os instigadores da revolta dos anos 60 d.C.43 Estes se agregam em torno de um líder carismático que canaliza as opiniões do grupo e influi fortemente neles. Remontam-se ao Êxodo e o elegem como a etapa mais perfeita do contato entre Deus e o povo eleito.44 39 In: MAINVILLE, Odette (Org.). Escritos e Ambiente do Novo Testamento. (trad. Lúcia Mathilde). Petrópolis: Vozes. 2002, p. 50. 40 O movimento zelota, ao procurar a promoção da renovação do Templo e conserto do mesmo. Volkmann afirma que nesta intenção, os zelotas “ (...) habitam de preferência os povoados e evitam as cidades por causa da licenciosidade inerente às cidades. Uns cultivam a terra, os outros se ocupam em diferentes ofícios pacíficos. Os zelotas, no início do levante contra os romanos, promovem uma reforma no Templo, elegendo, por sorteio, um novo sumo sacerdote, originário do campo, em substituição à aristocracia sacerdotal. Também os zelotas têm sua origem no interior, especialmente na Galiléia; Josefo os chama de `salteadores vindos do campo`.” VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 98. Esta atuação periférica possibilitou o crescimento do movimento, exceto alguns levantes ocorridos de tempos em tempos, conforme afirma Ladd: “O Novo Testamento fala da revolta de ludas e Teudas (Atos 5:36,37), e uma outra revolta sob o comando de uni egípcio incógnito (Atos 21:38). Josefo fala de um outro movimento revolucionário não mencionado no Novo Testamento. Ele não dá nomes a esses revolucionários, mas na última rebelião acontecia no ano 132 A.D., o líder, Bar Kokhba, foi denominado de Messias por Akiba, o rabino mais famoso da época." Os zelotes foram líderes judaicos radicais, que não se contentavam em esperar calmamente pela vinda do Reino de Deus, mas desejavam a sua vinda através da espada." É possível, e até mesmo provável, que toda a série de revolta contra Roma fosse messiânica, isto é, que eles não tenham sido motivados pela consecução de objetivos puramente políticos ou nacionalistas, mas, sim, religiosamente, para apressar a vinda do Reino de Deus." LADD, George Eldon, Teologia do Novo Testamento. (trad. Darci Dusilek e Jussara Marindir Pinto Simões). São Paulo: Exodus. 1997, p. 60. 41 MAINVILLE, Odette (Org.), Escritos e Ambiente do Novo Testamento. (trad. Lúcia Mathilde). Petrópolis: Vozes. 2002, p. 49. 42 A crucificação de Jesus não deixa dúvidas de que ele é tratado pelos romanos como zelota. GOURGUES, M., Jesus Diante de Sua Paixão e Morte. (Trad. Monjas Dominicanas). São Paulo: Paulinas. 1984, p. 28. 43 VOLKMANN, Martin. Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 123. Ver também: STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus. 2004, p. 204. 44 GRELOT, P., Jesus. In: VVAA, Libertação dos Homens e Salvação em Jesus Cristo: 1 a parte. [trad. Benôni Lemos]. São Paulo: Paulinas. 1981, p. 64. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 15 É importante analisar, portanto, a proximidade e identificação do grupo de Jesus com os zelotes. Por serem movimentos contemporâneos, existem analogias entre estes e o grupo de Jesus, como podemos ver nos textos de Flavio Josefo, que ainda não distingue entre os diversos movimentos e suas diferenças. Os cristãos se consideram os portadores da segunda aliança com Deus e enfocam a salvação individual. O grupo de Jesus, por sua vez, é similar ao movimento de João Batista, que se assemelha aos profetas escatológicos do tempo do exílio. Estes estão convictos de que o juízo está próximo, a novidade é que Batista oferece o batismo como sacramento de salvação. Era de se supor que Jesus era seu seguidor, e seu batismo seria a prova de sua ligação com este grupo. Na tradição cristã, João é o precursor que anuncia a chegada do “Filho do Homem” profetizado no livro de Daniel e que Jesus é o cumprimento da profecia. 45 O mesmo livro será interpretado como testemunha da pessoa e obra de Jesus, mas não mais com uma explicação política como muitos criam, mas espiritual. Não se refere à luta entre hebreus e romanos, mas entre o bem e o mau. Com esta ideia, vai se delineando, pouco a pouco, uma teologia que terminará por conformar uma religião diferente. Os Essênios Os essênios surgiram dois séculos antes de Jesus, e estão incluídos entre os movimentos messiânicos de natureza sacerdotal, já que grande parte do grupo é formado por membros do baixo clero.46 O grupo foi formado em torno de um líder carismático (o Mestre da Justiça), e seus membros gozam de certo bem-estar (mantém boas relações comerciais e econômicas), e têm obsessão pela pureza ritual. Acreditam radicalmente na predestinação, tendo tendências fatalistas, o que os faz permanecerem afastados do convívio de outros grupos. Sobre isto afirma Michaud: “Os qumranianos teriam seguido um sacerdote de alta categoria chamado Mestre de Justiça que teria recebido por revelação divina a correta interpretação dos textos bíblicos. Com a força desta inspiração, ele apresentava essas idéias novas sobre a prática da Lei, a irninência dos últimos dias, o antigo calendário bíblico solar (oposto ao calendário lunar adotado à época helenística), a imperfeição do Templo atual e do culto que nele se celebrava. Esta teoria, que é sem dúvida a última palavra sobre o assunto, resolve a maioria das dificuldades levantadas contra a hipótese essênia. Deste ponto de vista, se os sectários de Qumran constituíam urna das formas do essenismo, não se pode dizer que todos os essênios viviam em Qumran ou em comunidades semelhantes. Josefo (GJ 2, 124) e Filon de Alexandria (Hypothetica ou Apologia pro Judaeis 1 1, 1) já haviam notado a presença de essênios fora de Qumran. Presença até mesmo em Jerusalém, onde Josefo (Gf 5, 145) menciona a existência de uma Porta dos Essênios, indicando que essênios ocupavam talvez todo um bairro da cidade. Mas também num bom número de aglomerações do país. O número de quatro mil membros aventado por Filon (Quod omnis probus, 75) e Josefo W 18,20), e que se aproxima dos seis n-úl fariseus mencionados por Josefo no tempo de Herodes, ultrapassa evidentemente as capacidades do próprio local de Qumran e de seus arredores. O fato de terem sido encontrados esqueletos de mulheres e de crianças em cemitérios de Qumran (na verdade, foram encontrados três cemitérios em Qumran: um grande, de mais de mil túmulos, contendo somente restos masculinos, e dois pequenos, onde também foram encontrados restos de mulheres 45 Na perspectiva histórica, porém, a realidade é uma vinculação entre o movimento de Jesus e do Batista. Stegemann afirma: “João Batista deu origem a um movimento profético-escatológico de penitência suigeneris. Diferentemente dos movimentos carismático-proféticos que acabamos de tratar, destruidos pouco tempo após o seu surgimento e cujo impulso carismático "entrou em colapso", João Batista, pelo visto, não só atuou por um tempo maior, como tampouco o fogo carismático se extinguiu com seu martírio. Pois, aparentemente, o carismatismojoanino continuou a existir, por um lado, em grupos batistas e, por outro, sobretudo através de seu adepto Jesus de Nazaré.” STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus. 2004, p. 196. 46 LAPERROUSAS, E. M., Os Manuscritos do Mar Morto, São Paulo. Ed. Cultrix. 1983, pp. 166-168. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 16 e de crianças), quando os essênios, segundo Fílon, Plínio e Josefo, viviam num completo celibato, também pode ser explicado por este desvio do movimento (...).47 Os essênios denominam a si mesmos de “pobres de espírito”, acreditam na imortalidade (junto a Deus), mas não acreditam na ressurreição do corpo.48 Para eles, a alma é uma parte de Yahweh. Acreditam no valor precioso para a salvação da morte por meio do martírio em nome de Deus.49 O messianismo essênio cultivou relações com o movimento de Jesus de forma mais íntima num período posterior à morte do mesmo, e a ressurreição passou a ser um elemento essencial da crença essênia. Os essênios criam que o novo mundo emergeria, trazido pelo próprio Deus, e surgido através da luta e vitória dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas.50 Ainda que as diferenças entre os essênios e o grupo de Jesus sejam numerosas, existem analogias entre os grupos, devido ao contexto em que se inserem e porque procedem de um tronco comum. Alguns essênios, ao ser destruída Qumram e o Templo nos anos 60 d.C., uniramse ao movimento de Jesus; é por isso que alguns autores explicam as similitudes em expressões e rituais, mas é difícil delimitar quais são as influências essênias e quais as judaicas no cristianismo. Depois da queda do Templo, o judaísmo tornou-se mais dogmático e, a partir do ano 70, os judeus foram mal vistos pelos romanos devido à revolução. A concepção romana de que os judeus eram traidores fez os cristãos começarem a querer se diferenciar dos grupos judaicos, inclusive dos essênios. Além das influências dos grupos religiosos, o Cristianismo também tem, em seus elementos ortopráticos e ideológicos, pontos de contato com o judaísmo normativo, e isto porque o próprio Jesus não rompeu definitivamente com o judaísmo.51 No princípio, o cristianismo foi um fenômeno intrajudeu, mas depois se tornou independente, devido às diversas tendências que se criaram entre os cristãos. É um fenômeno sócio-religioso que deve ser analisar não apenas pelo desenvolvimento da teologia cristã, mas também pelos caminhos sociológicos e antropológicos do cristianismo. Jesus é um judeu observante da Lei, que se comporta como um doutor da lei ou um profeta itinerante, cujo fim era fazer chegar os textos sagrados aos pobres (bem-aventurados) com propostas radicais dentro de seu círculo. Não recusa aos impuros, pois entende que não estava dentro das suas possibilidades econômicas ascender socialmente. Não tratava questões meramente rituais com rigor, como a questão dos alimentos, e a forma como a lei exigia que 47 MICHAUD, Jean-Paul. A Palestina do Primeiro Século. In: MAINVILLE, Odette (Org.), Escritos e Ambiente do Novo Testamento. (trad. Lúcia Mathilde). Petrópolis: Vozes. 2002, p. 54. 48 VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 98. 49 KEE, H. C., As Origens Cristãs: em perspectiva sociológica. (trad. J. Rezende Costa). São Paulo: Paulinas. 1983, p. 33. 50 “No fundo trata-se de uma rivalidade entre grupos sacerdotais. Em última análise, a comunidade se mantém cffltualmente pura e preparada para a batalha final entre os filhos da luz e os filhos das trevas e para, após a vitória, reassumir o culto no Templo'. A isso está associado o outro aspecto: a expectativa messiânica. Os "homens da aliança" se encontram no meio do combate entre a luz e as trevas "até que venham o profeta e os messias de Arão e de Israel"'. Essa tripla esperança messiânica - também o profeta é uma figura messiânica, porque os profetas, como os reis, são considerados "ungidos" - é um aspecto peculiar dos essênio (s...).” VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 125. 51 O próprio Jesus foi, portanto, “(...) judeu e, como tal, manteve relações diretas de obediência à Lei de Moisés, ao Templo, além de estar essencialmente ligado ao povo e à Terra de Israel, os quais Jesus amou tanto e no meio do qual ele exerceu toda sua atividade.” In: SCARDELAI, Donizete, Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus: Jesus e Outros Messias. São Paulo: Paulus. 1998, p. 238. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 17 fossem tratados. Não foi herético, nem rebelde, mas zeloso com algumas normas de pureza judaica. Jesus também pode ser visto como um polemista judeu por sua alta compressão da Torá, que está no nível da compreensão dos fariseus sob o ponto de vista dos seus contemporâneos, com a diferença que ele podia ter optado por mover-se num espaço privilegiado, mas preferiu dedicar-se aos marginalizados.52 Os evangelhos apresentam Jesus introduzindo nenhuma teologia distinta da que já existia no judaísmo, nem em sua vida pública, até sua morte. Por isto, o cristianismo não consistia num novo culto, nem um atentado contra a lei estabelecida, e nem uma nova visão cosmo-histórica como a da comunidade de Qumram, nem propunha outro calendário (até aquele momento). No início, o cristianismo era uma parte do judaísmo e era herdeiro do mesmo. As etapas mais importantes da vida de Jesus eram vistas de forma semelhante a de outros personagens bíblicos.53 Quando o Cristianismo se cindiu do judaísmo e descobriu suas próprias respostas à crise desta religião depois da destruição do Templo, assumiu outras influências de tradição clássica como a grega (por exemplo, o “logos”, sendo posta em segundo plano a figura de Yahweh e também de outras comunidades como as de Qumram). Por fim, o movimento de Jesus é uma renovação explicável. Jesus se separou do grupo de João Batista antes de sua morte e também levou seguidores com ele. A destruição do Templo será sempre um ponto de referência pois supôs a separação da arca da aliança. O cristianismo foi para Roma, já que na urbe passava mais despercebida a fé cristã. Utilizamos a palavra movimento para definir a um grupo que tem um líder carismático e situa-se à margem das estruturas políticas – e às vezes é contrário a elas – e do funcionamento econômico, com princípios excêntricos, com os quais se preocupa de forma imediata. É um grupo socialmente qualificado e com uma breve duração no tempo, a não ser que se institucionalize, como foi o caso do cristianismo.54 O Movimento de Jesus Como Movimento Milerarista Quando os sociólogos falam de movimentos, costumam definir os mesmos através de naturezas diferentes. Para definir o cristianismo, é comum a utilização da classificação deste como movimento milenarista. Os movimentos milenaristas surgem em situações de crises e de brusca mudança social, pois as velhas estruturas não são capazes de assimilar as mudanças (o caso da Palestina, com a irrupção do domínio romano).55 Expressam os anseios e interesses dos judeus, dos grupos marginalizados economicamente que têm outras necessidades ao perder paulatinamente seus elementos de identidade, e ao sofrer graves carestias, que conduz a uma tomada de consciência e à busca de um passado ideal. Os movimentos milenaristas também protestam contra o ordem estabelecida e anunciam uma nova ordem de forma iminente. Quando Jesus anuncia o Reino de Deus, anuncia um futuro 52 MANSON, T. W., Ética e Evangelho. (Trad. Daniel Costa). São Paulo: Novo Século. 2000, p. 56. VELASCO, Rufino, A Igreja de Jesus. (Trad. Nancy B. Faria e Wagner de Oliveira Brandão). Petrópolis: Vozes. 1996, p. 38. 54 TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas. 1988, p. 25. 55 SCARDELAI, Donizete. Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus: Jesus e Outros Messias. São Paulo: Paulus, 1998. pp. 240-241. Ver também: TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas. 1988, p. 50. Ver também: KEE, H. C., As Origens Cristãs: em perspectiva sociológica. (trad. J. Rezende Costa). São Paulo: Paulinas. 1983, p. 33. 53 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 18 novo e próximo. O Reino de Deus é o futuro próximo, mediado pelo drama escatológico, pela iminência do fim. Conforme afirma Steggemann: “A palavra-chave "reino de Deus" acentua a nova situação com que Jesus e seu séquito se viam confrontados no drama escatológico, porque "ela corresponde ao ideal tradicional e contemporâneo do rei, que é auxiliador e benfeitor, e não administrador de coisas". Portanto, na concepção do estabelecimento do reinado de Deus aparece, em primeiro plano, o ele- mento positivo da dominação, o auxilio.” 56 Os movimentos milenaristas também são marcados pela crítica à ordem econômica, já que socialmente está presente junto às classes mais pobres, onde estes são chamados de bemaventurados. Jesus se apresenta crítico com a lei da proibição da comida no sabbat, com a imposição dos sacerdotes. O profeta que interpreta todos os elementos não é uma autoridade tradicional (nem hereditária, nem legal, que não é um sacerdote ou juiz), mas tem como principal qualidade pessoal estar em contato com a divindade. A eleição do mesmo é decisiva e também simbólica, já que este tem uma grande influência diante do resto do grupo. É por isso que quando este desaparece, a sua figura é mitificada. O cristianismo, ao endossar os livros proféticos, mostra Jesus como o cumprimento dos mesmos. Jesus é transformado numa figura mítica.57 O movimento milenarista também dá aos pobres maior relevância. Concede a eles uma nova identidade. Ser cristão é sentir-se renovado, é o começo de uma identidade em nível pessoal e comunitário.58 Não existe inicialmente no cristianismo uma elaboração teológica que primasse as suas atividades vitais. Em geral, as comunidades com caráter milenarista são de curta duração, salvo o caso de se institucionalizem – o que foi o caso.59 O cristianismo, no princípio, também não possuía um corpus teológico, e foi sensivelmente subversivo, e só se desenvolveu teologicamente quando se institucionalizou, aceitou a ordem estabelecida, convertendo-se numa igreja com um dogma e um corpus teórico. O Reino de Deus: Perspectivas Escriturísticas sob um Enfoque Crístico O Reino de Deus é um conceito fundamental para a compreensão da liberdade cristã. O cristianismo e a liberdade sob a ótica cristã, para serem compreendidos, o são na perspectiva dos textos normativos da sua confissão religiosa: os textos da Escritura Sagrada.60 A perspectiva cristocêntrica do Reino de Deus, que consiste na condição plena e ideal da liberdade sob a ótica cristã, para ser analisada de forma eficaz, necessita da análise de cada elemento que contribuiu 56 STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus. 2004, p. 236. 57 Esta reconstrução é baseada no artigo de Douglas Moo, "What Does It Mean Not to Teach or Have Authority Over Men?" em Recovering Biblical Manhood & Womanhood: A Response to Evangelical Feminism, eds. John Piper e Wayne Grudem (Wheaton, IL: Crossway Books, 1991) 180-2. 58 ELIADE, M., O sagrado e o Profano, A Essência das Religiões, Lisboa, Livros do Brasil. 1981, pp.187-188. 59 TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas. 1988, p. 21. 60 Dodd, sobre isto, afirma: “Por isso, se as origens do cristianismo devem ser interpretadas, como justamente fizeram os primeiros cristãos, à luz das profecias, a conseqüência lógica é a seguinte: a comunidade hebraica não podia mais representar o verdadeiro Israel de Deus, como encamação dos desígnios salvíficos de Deus em favor da humanidade; seu lugar devia ser ocupado pela ecclesia cristã.” DODD, Charles Harold, Segundo as Escrituras: estrutura fundamental do Novo Testamento. (trad. JoséRaimundo Vidigal). São Paulo: Paulinas. 1979, p. 111. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 19 na construção da teologia sobre o assunto. O Antigo Testamento, lido cristologicamente, e as tradições do Novo Testamento sobre o Reino de Deus constituem o caminho para compreender o conceito de Reino de Deus, e a posteriori, o conceito de liberdade cristã.61 O Reino de Deus no Antigo Testamento O Antigo Testamento apresenta desde o seu início a necessidade de se ter esperança e confiança na aliança feita por Deus com o ser humano.62 Isto se faz através das diversas tradições sobre as alianças feitas com Deus em momentos decisivos da história da salvação. 63 Inicialmente a música é descrita como sendo feita, diretamente com o povo de Israel, na demonstração de Yahweh como o provedor de uma farta terra e uma numerosa nação que nasceria em Abrão.64 A compreensão teológica a partir daí aponta para o fato de ser apenas Deus aquele quem satisfaz plenamente as profundas aspirações e necessidades do povo de Israel. O status quo passa a ser entendido na perspectiva de um Deus que acolhe e abençoa seu povo.65 Esta promessa, seguida da esperança do cuidado de Deus, é o fio através do qual se delineará a ideia da soberania divina.66 A história da salvação consiste na manifestação de Yahweh na história, guardando o povo com quem ele fez a aliança. O Antigo Testamento consiste num relato desta relação entre a divindade e o povo de Israel, de tal forma que tais concepções progridem até a afirmação tácita da instauração do Reino de Deus.67 O anúncio veterotestamentário aponta para o Deus de Israel como aquele que concretiza na história o futuro de seu povo, trazendo à existência aquilo que era apenas expectativa e esperança. O projeto redentor de Deus torna-se realidade na plenitude dos tempos. A esperança alimentada por Israel contempla o futuro e estabelece-se através da fé nas promessas do Deus criador. Toda a expectativa quanto à chegada do Reino de Deus está unida à esperança de que homens e mulheres, bem como toda a criação, hão de encontrar a plenitude da salvação, o sentido último de toda a criação de Deus, para a qual o próprio Deus está conduzindo todas as coisas. Esta condução se entende naturalmente, e baseia-se na Lei.68 61 DUTHEIL, Michel. Foi Para a Liberdade que Cristo nos Libertou (In: VVAA, Libertação dos Homens e Salvação em Jesus Cristo: 2a parte. [trad. Benôni Lemos]. São Paulo: Paulinas, 1981.) p. 45. 62 Frankfort, H., La Royauté et les dieux, Paris, Payot, 1953, p. 244. Ver também Vandier, J., op.cit., pp.72-80. 63 A aliança com a humanidade após o dilúvio (Gn 9.8-17), com os patriarcas (Gn 12, Gn 15, Gn 17), com o povo no Sinai (Ex 24), a aliança com o povo em Siquém após a conquista da terra (Js 24), com os reis (1 Sm 18.3, 2 Cr 29.10) são alguns exemplos da centralidade do tema da aliança no Antigo Testamento. Esta é uma aliança entre desiguais, já que a iniciativa é de Javé, que dita também os termos da aliança (Jr 50.5). conf. KIELER, H. W., Aliança (AT) . In: BAUER, Johannes, Dicionário Bíblico-Teológico. 2. Ed. (trad. Fredericus Antonius Stein). São Paulo: Loyola, 2000. pp. 4-6. 64 PRATT JR., Richard L., Ele Nos Deu Histórias: um guia completo para a interpretação de histórias do Antigo Testamento. (Trad. Suzana Klassen). São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 157. 65 É necessário entender que a relação entre a Divindade e o povo de Israel se baseia na aliança. O estabelecimento desta relação acaba por criar um paradigma interpretativo para narrar a história de Israel: prosperidade e períodos de paz são decorrentes da manifestação do cuidado de Deus com o povo. Derrotas, guerras, pestilências e tragédias são interpretadas como manifestações da ira e do juízo de Deus. Ver: CAZELLES, P., A realeza ou a Instituição a Serviço da Liberdade (In: VVAA, Libertação dos Homens e Salvação em Jesus Cristo: 1a parte. [trad. Benôni Lemos]. São Paulo: Paulinas, 1981.) p. 34. 66 Chouraqui, A., op.cit., pp.218-220 Histoire du Judaisme, Paris, PUF, 1981. Rosemberg, R.A., The Concise Guide to Judaism: History, Practice and Faith., NY, Penguin Books, 1990. p. 127. 67 OTTO, E. , Lei (In: BAUER, Johannes B., Dicionário Bíblico-Teológico. (trad. Fredericus Antonius Stein). São Paulo: Loyola, 2000. p. 229. 68 “Do retrospecto sobre a evolução legislativa no Antigo Testamento têm-se compreensão mais adequada da relação entre preceito e lei. Ligadas à história, as leis estão sujeitas à alteração constante conforme é provado em face dos adendos e complementos a muitas leis. Em momento nenhum existiu em Israel lei transcendental. Nem mesmo a subordinação das leis sob a teofania sinaítica anulou a vinculação com a história concreta na sua evolução www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 20 Esta concepção é registrada a partir dos relatos das origens do povo de Israel. Excluindo o testemunho da origem do mundo (Gn 1-11), a narrativa dos primórdios do povo de Israel é marcada pela ideia de aliança – ideia esta dinâmica. E o paradigma da confiança é a demonstração do cumprimento das promessas de Deus ao patriarca Abraão. O patriarca recebe uma dupla promessa: de que seria uma grande nação e que herdaria uma terra. A partir desta promessa é estabelecida a aliança e a história progride para o cumprimento desta promessa feita a Abraão. Mas a confissão de fé de Israel nos termos do pacto está presente de forma mais marcante na narrativa do Êxodo. Esta narrativa consiste na afirmação da fidelidade de Deus, que não esquece o povo que escolheu, o povo com o qual Ele opta por fazer uma aliança de cuidado, proteção e bênção. A esperança em Deus, fundamentada em sua ação libertadora, marcou a história do povo de Israel, de forma a interpretar constantemente as expectativas de libertação sob o paradigma do Êxodo. Lemos a seguinte afirmação: “A história do povo de Israel se inicia por uma experiência de libertação política: a do Êxodo (chamaremos aqui de "Êxodo" o conjunto de acontecimentos que vão da escravidão no Egito até a instalação na terra prometida). E essa recordação marcou tão fortemente o povo que, no decurso dos séculos, ele sempre se volta para o acontecimento do Êxodo. Se lermos as mais antigas profissões de fé feitas por Israel, verificaremos que apresentam o Senhor como aquele que fez o seu povo sair do Egito e que o conduziu até a terra na qual o estabeleceu (ef. Dt 26,51 0; Js 24,2-23). Se tomarmos em seguida o livro mais recente do Antigo Testamento, veremos que a meditação sobre o Êxodo ocupa mais da metade dele (Sb 1 0, 1 5-1 9,22).” 69 Mas o desenvolvimento mais claro de uma concepção mais exata do conceito de Reino de Deus se dá no estabelecimento da monarquia. Geralmente se aceita que o conceito de Reino de Deus e a consequente invocação de Yahweh como melek (rei) não são anteriores à instauração da monarquia israelita, a partir do ano 1050. a.C..70 Logicamente, quando os israelitas chegaram a Canaã, encontraram cidades cananeias bem fortificadas nas zonas mais férteis do país.71 Sem dúvida, os israelitas, que combatiam a pé, ficaram atemorizados ao ver as carroças de guerra dos habitantes do lugar e optaram por ficar nas zonas montanhosas e pobres que os cananeus tinham deixado desabitadas. É isto o que está por trás do relato escriturístico: “Não podemos subir contra esse povo, porque até rematar na comunidade cultual.” WESTERMANN, Claus, Fundamentos da Teologia do Antigo Testamento. (trad. Frederico Dattler). São Paulo: Academia Cristã. 2005, p. 204. 69 WIENER, C.. Exode de Moise: chemin d’aujourd’jui. Essai de lecture biblique pou notre temps. Paris: Casterman. 1979, p. 80. 70 A concepção de monarquia se estabeleceu em Israel sob a égide da “teocracia”: Deus instaura a monarquia e separa (unge) o monarca. Isto faz com que Deus seja o verdadeiro rei. Afirma Ladd: “Se bem que a expressão "o Reino de Deus" não ocorra no Velho Testamento, a ideia verifica-se em toda a extensão da atividade profética. Há uma dupla ênfase sobre a soberania real de Deus. Ele é frequentemente referido como o Rei, tanto de Israel (Êxodo IS: 19; Números 23:21; Deuteronômio 33:5; Isaías 43: 15) como de toda a terra (11 Reis 19: 15; Isaías 6:5; Jeremias 46:18; Salmos 29: 10; 99:1-4). Muito embora Deus seja mencionado como já sendo Rei, outras referências falam de um dia quando ele se tomará Rei e governará sobre o seu povo (Isaías 24:23; 33:22; 52:7; Sofonias 3:15; Zacarias 14:9 e ss.)." Isto leva à conclusão de que, embora Deus seja Rei, ele deve também tornar-se Rei, ou seja, deve manifestar a sua soberania real no mundo dos homens e das nações. In: LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. (trad. Darci Dusilek e Jussara Marindir Pinto Simões). São Paulo: Ed. Exodus. 1997, p. 58. Nesta direção, o rei que constitui o arquétipo de “Rei Ideal” é Davi. Este é apontado como um “(...) rei sábio, justo, ideal (...) que governaria segundo o Espírito de Javé e acabaria com as guerras, em vez de um pastor que reúne o povo e o alimenta com bons ensinarnentos, os profetas se encontravam com a triste necessidade de denunciar o contrário: os chefes eram rebeldes, amigos de ladrões; não faziam justiça ao órfão nem atendiam à causa da viúva (Is 1,23; Is 10,2). Os juízes chamavam de bem ao mal e de mal ao bem e perdoavam o culpado por dinheiro (Is 5,20-23). Leis injustas eram ditadas e se organizava a opressão (Is 10, 1-2).” SEUBERT, Augusto. Como Entender a Mensagem dos Profetas. (trad. Célia Maria Genovez). São Paulo: Paulinas. 1992, p. 74. 71 BROWN, P.. "A Antiguidade Tardia" In: História da Vida Privada. São Paulo. Ed. Cia das Letras. 1991, Vol I, pp. 272-273. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 21 é mais forte que nós (...). Nós nos tínhamos ante eles como gafanhoto e isso mesmo lhes parecíamos a eles” (Num 13, 31-33). Os israelitas ocuparam as terras marginais de Canaã e as primeiras figuras de autoridade, os juízes – também chamados de melek – se estabeleceram como lideranças eventuais e libertadores do povo, nos períodos de opressão. Esta opressão foi consequência do conflito com os filisteus, que tinham sido expulsos pelos egípcios das suas terras, e passaram a disputar os territórios ocupados pelos israelitas. Os israelitas sofreram duas grandes derrotas ( 1 Sm 4,1-7,1), nas quais perderam, inclusive a Arca da Aliança, recuperada através da ação de Davi, que geraria ao mesmo tempo, uma expectativa positiva para a monarquia davídica, mas posteriormente a frustração com os reis humanos, como diz Cazzeles: “Desde o fim do reino de Davi, a experiência começa a decepcionar, e a crise, incubada durante o reino de Salomão, estourou com a sua morte. A ideologia real se mostrou artificial e, se proporcionou um certo bem-estar ao povo, foi incapaz de promover sua verdadeira libertação.” 72 Israel, naqueles tempos, comparado com as nações vizinhas, era um povo primitivo. Seus costumes sociais, suas instituições políticas e sua própria cultura eram ainda as correspondentes a uma vida singela e semi-nômade. As doze tribos consideravam-se um só povo e compartilhavam uma mesma fé, mas careciam de um chefe único e da mínima organização político-social e também militar.73 Ao perceberem que os vizinhos eram fortes, precisamente porque dispunham de uma organização política – tinham reis (os cananeus) ou príncipes (os filisteus) – os israelitas desejaram ter um rei “como todas as nações” (1 Sm 8, 5). De maneira que, no santuário de Gilgal, todo o povo proclamou “rei a Saul diante de Yahweh” (1 Sm 11, 15). O fato é que Saul conseguiu importantes vitórias sobre os filisteus, mas ao final as tropas israelitas foram derrotadas (1 Sm 31). Os filhos de Saul morreram na batalha, e ele mesmo, para não cair em mãos de seus inimigos, tirou a própria vida. Então as seis tribos do sul elegeram a Davi “rei da casa de Judá” (2 Sam 2, 4). Davi se casou com Mical, a filha de Saul, e dessa forma também as tribos do norte reconheceram sua autoridade (2 Sm 5, 1-3). Conseguiu acabar definitivamente com a ameaça dos filisteus (2 Sm 5, 17-21), submeteu depois às cidades cananeias, mais tarde derrotou aos moabitas e acabou criando um grande império que fazia sentir sua influência até a Síria central (2 Sm 10, 1-11, 1; 12, 26-31). Tudo isto foi obra de um homem com uma inteligência invulgar, que se viu favorecido pela situação geral do Oriente Médio. Por aqueles anos nem o Egito nem a Mesopotâmia tinham o interesse de outros tempos por dominar a Palestina – essa estreita faixa que comunicava ambos os impérios – e por isto Israel só teve que enfrentar as potências de segunda ordem.74 Não é estranho que a figura de Davi – o homem que salvou às doze tribos da extinção e as converteu num grande império – fora idealizada. O rei Davi foi considerado um dom divino para Israel, comparável às maravilhas que experimentou durante o Êxodo. A profecia de Natã prometia a Davi uma “dinastia eterna”, e o “reino davídico” começou a fazer parte dos “credos” de Israel (2 Sm 7, 8-17). A decadência do império teve início com o filho de Davi, Salomão. Salomão era filho de Davi e sua esposa favorita, Betseba, que tinha sido mulher de Urias (2 Sm 12, 24). Provavelmente esta é a razão pela qual as tribos do Norte não aceitaram bem o sucessor de 72 CAZELLES, P.. A realeza ou a Instituição a Serviço da Liberdade. In: VVAA, Libertação dos Homens e Salvação em Jesus Cristo: 1a parte. [trad. Benôni Lemos]. São Paulo: Paulinas. 1981, p. 34. 73 DE VAUX, R. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo. São Paulo. Ed. Paulus. 2003, pp. 22-26. 74 PIXLEY, Jorge. A História de Israel a Partir dos Pobres. 6a Ed. (Trad. Ramiro Mincato). Petrópolis: Vozes. 1999, p. 21. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 22 Davi. Soma-se a isto o fato de Salomão ter aumentado o luxo da corte e ter construído numerosos edifícios, entre eles o Templo de Jerusalém, com recursos advindos dos impostos cobrados. A tradição descreve o caráter extraordinário das obras majestosas de Salomão (1 Re 10, 14-22) e a posteridade fala de suas enormes riquezas e da sua magnificência (Mt 6, 29). É possível que o esplendor da monarquia de Salomão trouxesse admiração e também orgulho, mas é evidente que o povo gemia sob o peso dos impostos cobrados para manter tanta ostentação. Salomão dividiu o território israelita em doze distritos. Cada mês, um distrito era responsável de atender às demandas da corte (1 Re 4, 7). Salomão também implantou o sistema de trabalhos forçados ou obrigatórios (1 Re 9, 15.20-22). O fato é que após a morte de Salomão (ano 925 a.C.) dividiu-se o Império: as tribos do sul mantiveram a dinastia davídica, mas as tribos do norte reimplantaram o costume eletivo que subsistiu na escolha de Saul. O que tinha sido um império poderoso se converteu em dois reinos menores – o de Israel (ao norte) e o de Judá (ao sul) – e ambos, depois de um período de decadência, acabaram perdendo inclusive sua independência, no ano 733 a.C.. A Assíria fez de Israel uma província de seu Império e no ano 587 a.C. a Babilônia fez o mesmo com Judá, chegando ao extremo de arrasar Jerusalém, destruir o Templo e deportar quase toda a sua população. A partir de então ambos foram passando de mão em mão, segundo as potências sucediam umas às outras (Ptolomeus, Selêucidas, Roma etc). O balanço dos quinhentos anos de independência não foi brilhante.75 O autor deuteronomista produziu uma opinião desfavorável em relação à monarquia (1 Sm 12). Desqualifica 19 reis do Reino do Norte e a todos os do Reino do Sul, exceto Davi, Ezequias e Josias. No entanto, a esperança de um novo florescimento está presente no texto. Renascia e morria a cada novo rei, ou seja, algum dia o verdadeiro rei teria de chegar e poria tudo em seu lugar, tal como – de acordo com a saga e a poesia - tinha feito em outro tempo Davi. Dos vários textos que até pouco críamos que faziam referência ao messias, majoritariamente estes fazem menção às expectativas criadas ante ao nascimento de um novo rei (Is 7, 10-14; 9, 1-6; os salmos reais etc). As passagens realmente messiânicas são todas elas posteriores à queda da monarquia. Efetivamente, a partir do exílio, quando todas as esperanças razoáveis tinham se dispersado. A dinastia tinha desaparecido, Jerusalém estava arrasada e o Templo mesmo não era nada mais que um montão de ruínas. Alguns homens começaram a alimentar a esperança, despojada já de todo cálculo humano, numa intervenção direta de Deus, que restauraria o trono de Davi. Mowinckel afirma que “O Messias é singelamente o rei desse reino futuro, nacional e religioso, que um dia se estabelecerá graças à intervenção milagrosa de Yahweh.”76 Posteriormente o entendimento da fidelidade de Yahweh era projetado ao Templo e à cidade de Jerusalém. A idéia de que a cidade santa e o Templo nunca seriam destruídos, por serem habitação de Deus, estabeleceu-se de forma tão marcante que a destruição do Templo e da cidade constituíram um duro golpe contra a fé javista.77 Neste sentido é que surge a esperança ou expectativa do advento do Messias. Inicialmente projetada para a figura do rei, e eventualmente para a figura do sacerdote, a idéia 75 Apesar do cumprimento da profecia e do início do reinado de Deus, os govemantes estrangeiros ainda não foram derrotados. TÜNNERMANN, Rudi, AS Reformas de Neemias: a reconstrução de Jerusalém e a reorganização de Judá no Período Persa. São Leopoldo: Sinodal. 2001, p. 60. 76 MOWINCKEL, Sigmund, El que ha de venir, Fax Madrid 1973, p. 170. A palabra mashiah – um adjetivo que significa “ungido”- aparece 38 vezes na Bíblia Hebraica: umas vezes o ungido é um personagem histórico, outras um personagem escatológico; umas vezes se trata de um rei, outras de um sacerdote; etc. Não é estranho que CAZELLES, Henri (El Mesías de la Biblia, Herder, Barcelona 1981, pp. 163-169) Aqui vemos ser utilizado somente no sentido que lhe dá Mowinckel; para os demaiás casos utiliza a tradução casteliana (“ungido”). 77 TÜNNERMANN, Rudi, AS Reformas de Neemias: a reconstrução de Jerusalém e a reorganização de Judá no Período Persa. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 61. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 23 de messianidade foi se apresentando mutável no Antigo Testamento. O rei seria o libertador, a garantia do cuidado divino. Para isto ele era ungido e esta era sua principal função. A idéia da teocracia judaíta, por exemplo, passa necessariamente pela concepção de que o Reino é governado pelo Senhor através do rei, ungido por ordem do próprio Deus para ser representante da divindade.78 O Antigo Testamento é um texto de esperanças. De forma geral, a autocompreensão de Israel preponderante após o exílio era que este continuava sendo o povo de Deus. Esta convicção foi manifestada na própria manutenção da vida religiosa e da manutenção dos elementos que constituíam a identidade nacional – e estes majoritariamente apontavam para a fé em Yahweh.79 A esperança consistia na firme confiança na bênção e na proteção de Yahweh, como consequência de suas promessas no pacto da aliança. Esta aliança não é estática, mas dinâmica, sendo atualizada e reafirmada através da obediência. A obediência era apresentada como garantia das promessas do pacto, podendo aquele que procedia bem ter confiança e a esperança no cuidado de Deus com seu povo, não obstante circunstâncias exteriores negarem a possibilidade de reafirmação da soberania de Yahweh. Esta reafirmação se dá por volta de 200 a.C., pela literatura apocalíptica, e sua temática sobre o Reino.80 O exílio constituiu um desafio à fé. Era inicialmente o risco da negação da promessa feita por Deus ao povo. Resumidamente, a esperança de Israel foi sempre em torno da ação de Deus na realização da história da salvação, sendo o Reinado de Deus o fundamento desta esperança. Conforme afirma Crossan: “O Reino de Deus é povo sob governo divino - e isto, como ideal, transcende e julga todo o governo humano. O foco da discussão não está em reis, mas em governantes, não no reino, mas no poder, não no lugar, mas no processo. O Reino de Deus é o que o mundo poderia ser se Deus estivesse direta e imediatamente à sua frente. Mas mesmo dentro dessa compreensão da expressão, é possível e necessário imaginar uma tipologia quádrupla básica do Reino de Deus no uso judaico da época de Jesus. Imaginem-se quatro quadrantes ou tipos criados pela intersecção de dois eixos. Um eixo é uma distinção de tempo, com o futuro ou presente em cada extremidade. O outro eixo é uma distinção de classe, baseada mais uma vez no modelo de Lenski, com os Arrendatários ou elites de escribas em uma extremidade e os Camponeses ou pessoas comuns na outra.”81 O desaparecimento do reinado em Israel e em Judá frustrou a idéia de um reinado e até de um sacerdócio divino. O caos nacional e a ausência da figura real, atrelada a uma dinastia (no caso de Judá) criou uma crise que foi abordada pelos profetas e demais escritos exílicos. O não cumprimento das expectativas temporais devido às tragédias nacionais e aos exílios culminaram na projeção da esperança às realidades transcendentais e supramundanas.82 A idéia de um restaurador legítimo da casa de Davi sucumbiu diante da idéia de uma figura ideal “É necessário ressaltar que a doutrina messiânica surgiu como uma crença relativamente tardia dentro do judaísmo do fim do Segundo Templo, e que os apocalipsistas contribuíram significativamente para a erupção dos muitos movimentos de libertação no século primeiro.” In: SCARDELAI, Donizete, Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus: Jesus e Outros Messias. São Paulo: Paulus, 1998. pp. 30-31. 79 ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo Testamento. São Leopoldo – RS. Ed. Sinodal. 2005, p. 17. 80 “Essa diferença entre reino de Deus futuro, escatológico, e o seu senhorio resenste sobre tudo o que ocorre, assume, desde cerca de 200 a.C., um caráter relativamente dualista na apocalíptica.” GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3a ed. (Trad. Martin Dreher e Ilson Kayser). São Paulo: Teológica. 2002, p. 83. 81 In: CROSSAN, John Dominic, Jesus: Uma Biografia Revolucionária. (Trad. Júlio Castañon Guimarães). São Paulo: Imago. 1995, p. 70. 82 Estas realidades, retratadas na apocalíptica, consistem em subsídio “ (...) para a maioria, para o povo cuja fé simples no governo justo de Deus estava constantemente exposta aos embates da dura experiência diária.” In: MANSON, T. W.. O Ensino de Jesus. (Trad. Jorge César Mota). São Paulo. ASTE. 1965, p. 158. 78 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 24 trazendo traços idênticos a heróis do passado. Neste contexto surge a escatologia e depois deste, da apocalíptica judaica, onde surge de forma incipiente o conceito de Reino de Deus.83 As interpretações e consequentes projeções da esperança nacional foram diferentes em cada época e em cada escola que procurou resolver o impasse teológico que se estabeleceu: como o Deus que prometera cuidar do povo permitiu o opróbrio e a vergonha estabelecidas a partir da ruína da monarquia. As respostas foram diferenciadas. O Deutero-Isaías, por exemplo, anuncia o advento do Servo de Yahweh, que concretizaria toda expectativa de Israel. Na verdade, o servo sofredor de Yahweh cumpriria a missão de profeta da nova libertação, do novo êxodo, seria o sacerdote da reconciliação e assumiria em si mesmo o sacrifício da redenção.84 Em suma, o Reino de Deus no Antigo Testamento está vinculado à noção da soberania ou governo de Deus. É Moltmann quem fala de dois momentos relacionados entre si dentro desta concepção de Reino de Deus, isto é, a esperança concreta do Reino de Deus na história e o estabelecimento do seu senhorio único e universal sobre todas as coisas. A relação entre ambos constitui as bases do conceito de reino.85 Porém há outros elementos que constituem o conceito, como apresenta Gardner: “Apesar de não se encontrar no Antigo Testamento a expressão ‘Reino de Deus’, a ideia em si, aparece em quase todas as suas partes. De igual modo, apesar de à parte dos Evangelhos Sinóticos o título ser usado raramente no Novo Testamento, toda a mensagem de Jesus se focaliza sobre o Reino de Deus (cf. Mc 1.14,15), e a ideia mesma se apresenta sob muitas formas diferentes – por exemplo, como vida eterna no Quarto Evangelho e como misticismo em Cristo no caso de Paulo – através de todo o Novo Testamento. Na verdade, tão penetrante é o conceito de Reino de Deus no pensamento do Antigo e do Novo Testamentos, que se constitui num dos temas principais a manter os dois unidos”.86 As duas dimensões basilares do Reino na concepção de Moltmann não são excludentes, posto que a primeira carrega a contingencialidade do tempo e do espaço, enquanto a segunda diz respeito a uma fé universal.87 Ou seja, a dimensão do senhorio universal de Deus tem seu ancoradouro na ação histórica de Deus, uma vez que o seu Reino vive a dinâmica do “já” e do “ainda não”, sendo promessa concretizada, mas ainda esperança futura para toda a criação. 88 Na linguagem de Boff o presente já contém o seu fim. Por isso ele diz que devemos falar não de fim do mundo, mas de um novo começo do universo.89 Ainda para Moltmann, a criação, pela chegada do Reino, tornar-se-ia residência da glória de Deus. Segundo a tradição escriturística “O judaísmo apocaliptico também possuía diversos tipos de esperança. Alguns escritores enfatizaram o aspecto terreno, histórico do Reino (Enoque 1-36; Salmos de Salomão 17-18), ao passo que outros enfatizam os aspectos mais transcendentais (Enoque 37-71). Entretanto, a ênfase é sempre escatológica. De fato, o judaísmo apocalíptico perdeu o sentido da atuação de Deus no presente histórico. Neste ponto, o apocaliptismo havia se tornado pessimista não com referência ao ato final de Deus em estabelecer o seu Reino, mas com referência à atuação de Deus na história presente para salvar e abençoar o seu povo. O judaísmo apocalíptico demonstrava um certo desespero com relação à história, pois entendia que esta estava entregue aos poderes malignos. O povo de Deus somente poderia esperar o sofrimento e aflição nesta presente era, até o dia em que Deus agisse para estabelecer seu Reino na Era Vindoura." LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. (trad. Darci Dusilek e Jussara Marindir Pinto Simões). São Paulo. Ed. Exodus. 1997, p. 59. 84 ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo Testamento, op. cit., pp. 25-30. Cf. BRAKEMEIER, Gottfried. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. São Leopoldo – RS. Ed. Sinodal. 1984, pp. 29-33. 85 MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação. Petrópolis: Vozes. 1993, p. .Ou O caminho de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993. Teologia da Esperança. São Paulo: Herder, 1971.??? 86 GARDNER, E. C.. Fé Bíblica e Ética Social. São Paulo. ASTE. 1964, p. 67. 87 MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação. Petrópolis: Vozes, 1993. Ou O caminho de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993. Teologia da Esperança. São Paulo: Herder, 1971.??? 88 MOLTMANN, Jürgen. Idem??? 89 LEONARDO, Boff. Vida para além da morte. Petrópolis. Ed. Vozes. 1973, p. . 83 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 25 veterotestamentária, desde o início da criação, o mundo caminha na direção de sua salvação. A história é a heilgeschichte.90 O conceito pós-exílico de Reino de Deus progrediu sobre os ditames da esperança. E atingiu uma amplitude maior nos escritos escatológicos e apocalípticos em particular. O ponto de partida para o início das especulações sobre a figura do Messias, sob cuja ideia se estabelece a ideia do Reino de Deus, é o livro de Daniel. Este livro, situado no contexto das guerras macabeias, é o expoente ideológico principal e ponto de partida para o desenvolvimento do conceito na literatura apocalíptica.91 A literatura apocalíptica, surgida a partir do século II a.C., foi fundamental para que os ideais judaicos de libertação ganhassem expressão e consequentemente ocupasse lugar entre os grupos religiosos. Esta literatura teve influência na formação de uma militância, que passou a compreender de forma imanentista a instauração da era messiânica, o que na prática constitui o conceito análogo a Reino de Deus. A tendência da apocalíptica em apontar para uma mudança dramática da sociedade e das estruturas sociais tem por pano de fundo sociológico o vexatório estado em que a sociedade concretamente estava. A partir deste fenômeno é possível entender a concepção de Reino de Deus dos grupos religiosos que surgiram na Palestina entre o segundo século a.C. e o período neotestamentário.92 O grupo dos assideus, que posteriormente originou o grupo dos essênios e dos fariseus, entendia a instauração do Reino de Deus como consequência das atitudes contra a helenização e opressão estrangeira.93 Dentro desta compreensão imanente de Reino, eles não se constituem um grupo definido, mas representam uma corrente ideológica posta em confronto com as forças que exerciam pressão e geravam o risco da perda da identidade nacional dos judeus. Eles não podem ser especificamente considerados principais fundadores do apocalipsismo, mas sim como possível influencia para o surgimento do farisaísmo.94 O Reino de Deus no Novo Testamento Quando o período neotestamentário surge, as expectativas messiânicas fazem parte do quotidiano dos principais grupos religiosos da época. Esta ideia é assumida sob o enfoque imanente pela ideologia dos essênios, fariseus, saduceus e zelotas. Para os essênios, a expectativa messiânica provocou a desviância – a retirada da sociedade majoritária e a consolidação de uma comunidade com estrutura social, literatura religiosa e regras próprias, para assegurar a constante presença de Deus. Esta ascese tinha por propósito a busca de uma ordem perfeita, até à vinda do Messias. As figuras messiânicas aguardadas na comunidade de Qumram eram um descendente de Arão e um descendente de 90 heil: salvação / geschichte: história. É a compreensão da história como fenômeno decorrente do ato contínuo de Deus a salvar o seu povo. Ver: WESTERMANN, Claus, Fundamentos da Teologia do Antigo Testamento. (trad. Frederico Dattler). São Paulo: Academia Cristã, 2005. p. 203. 91 “A militância apocalíptica é um fenômeno claramente presente em Israel desde a revolta anti-romana 6 d.C.” In: SCARDELAI, Donizete, Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus: Jesus e Outros Messias. São Paulo: Paulus, 1998. p. 28. 92 “O apocalipsismo judaico não está simplesmente restrito à Palestina, mas o seu foco geográfico, sem dúvida, encontra-se nesta região.” STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus, 2004. p. 173. 93 In: SICRE, José Luis, Introdução ao Antigo Testamento. (trad. Wagner de Oliveira Brandão). Petrópolis: Vozes. 1999, p. 317. 94 KEE, H. C.. As Origens Cristãs: em perspectiva sociológica. (trad. J. Rezende Costa). São Paulo: Paulinas. 1983, p. 36. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 26 Davi.95 O primeiro seria sumo-sacerdote e o segundo, um guerreiro. O estabelecimento da vontade de Deus se daria pela guerra ou conflito entre os filhos da luz e o filhos das trevas.96 Os fariseus acreditavam na rigorosa aplicação da lei de Moisés. Criam na manifestação do Reino de Deus, porém exclusivamente através da ação divina.97 O ser humano deveria cumprir a Lei, ter piedade individual e submissão à vontade de Deus. Os fariseus entendiam que os judeus precisavam aguardar pacientemente o Messias, sendo este o instaurador de uma monarquia teocrática, onde o mal é erradicado, a paz é trazida e a justiça é estabelecida. A pureza é a marca deste futuro. Para partilhar dele, na concepção farisaica, é preciso viver seus valores antes da vinda deste Reino.98 Os saduceus, na sua prática, manifestavam a ideia de que não era incompatível a dominação romana e o reino de Deus. Seu foco estava no Templo, que controlava a vida do cidadão judeu, sendo a administração romana vista como facilmente coexistente por parte deste grupo.99 Os saduceus, não obstante isto, tinham o sonho da autonomia política. O resultado disto era a sensação por parte do povo de que o Reino de Deus estava se manifestando pelas estruturas hierocráticas, mas não era pleno.100 Com a chegada de Jesus Cristo e sua nova proposta de vida, o que tornou o Reino de Deus uma realidade parcialmente concreta na história dos homens, as barreiras que dividiam a humanidade foram derrubadas e foi desencadeado um novo processo pelo qual na igreja e por meio da igreja uma nova humanidade foi e está sendo formada.101 Jesus Cristo inaugura um novo tempo, o “kairós” de Deus, uma nova época. Sabemos que as expectativas do Reino de Deus eram familiares no tempo do Novo Testamento, embora fossem conceitos muito diferenciados os dos grupos religiosos e do próprio Jesus.102 O Reino de Deus torna-se uma realidade histórica na pessoa de Jesus Cristo. Por isso que o propósito central do Novo Testamento é mostrar que, com a vinda do Messias, um novo tempo é instaurado e, através da pessoa de Jesus Cristo e de sua obra, o Reino de Deus tornouse uma realidade.103 Portanto, Reino de Deus e cristologia estão inseparavelmente ligados, pois segundo Leonardo Boff “Jesus prega, presencializa e inaugura este reino”.104 Na verdade, em 95 VOLKMANN, Martin. Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 98. “A comunidade de Qumran partilhava de urna esperança semelhante concernente ao Reino. Na consumação escatológica, aguardavam que os anjos descessem, ajuntando-se a eles – "os filhos da luz" – para a luta contra os seus inimigos – "os filhos das trevas" – e para conceder vitória aos membros da comunidade de Qumran contra os outros povos, quer judeus que aceitavam os padrões do mundo pagão quer gentios.” In: LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. (trad. Darci Dusilek e Jussara Marindir Pinto Simões). São Paulo: Exodus. 1997, p. 59. 97 STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus. 2004, p. 185. 98 VOLKMANN, Martin, Jesus e o Templo. São Leopoldo: Sinodal. 1992, p. 120. 99 ROLOFF, Jürgen. A Igreja do Novo Testamento. (trad. Nélio Schneider). São Leopoldo: Sinodal. 2005, p. 22. 100 MICHAUD, Jean-Paul, A Palestina do Primeiro Século. In: MAINVILLE, Odette (Org.), Escritos e Ambiente do Novo Testamento. (trad. Lúcia Mathilde). Petrópolis: Vozes. 2002, p.67. 101 PADILLA, C. René. Missão Integral. Ensaios sobre o Reino e a Igreja. São Paulo. Ed. Temática Publicações. 1992, p. 142. Cf. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis – Rio de Janeiro. Ed. Vozes. 1985. Ver John Howard Yoder. A Política de Jesus. São Leopoldo – RS. Ed. Sinodal. 1988, pp. 9-18. 102 ANDRADE, José Eugênio Soares. Liberdade Cristã. Uma fundamentação da ética em João Calvino. Monografia apresentada em cumprimento às exigências do curso de teologia no Seminário Teológico Presbiteriano do Rio de Janeiro, cujo orientador é o autor da referida tese. Rio de Janeiro. 2005, p. 55. 103 PADILLA, C. René. Missão Integral. Ensaios sobre o Reino e a Igreja, op. cit., p. 197. 104 BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis – Rio de Janeiro. Ed. Vozes. 1985, p. 62. BRAKEMEIER, Gottfried Brakemeier afirma que “L. Boff indiscutivelmente merece consentimento ao embasar o falar sobre o reino de Deus na cristologia. Reside aí uma das mais valiosas contribuições de seu livro”. Cf. BRAKEMEIER, Gottfried. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. São Leopoldo – RS. Ed. Sinodal. 1984, p. 18. 96 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 27 Jesus se cumpre toda a esperança messiânica. Em A Santíssima Trindade Boff declara que “Ele é a total expressão do Pai”.105 Boff ainda declara sobre a realidade do Reino de Deus que: “Reino de Deus é a revolução e transfiguração total, global e estrutural desta realidade, do homem e do cosmos, purificados de todos os males e repletos da realidade de Deus (...). No Reino de Deus a dor, a cegueira, a fome, as tempestades, o pecado e a morte não terão mais vez (...). Cristo veio para sanar toda a realidade em todas as suas dimensões, cósmica, humana e social (...). A intervenção de Deus já (foi) iniciada, mas ainda não totalmente acabada (...). A pregação do Reino se realiza em dois tempos, no presente e no futuro”. 106 Jesus inicia um tempo novo na história de Israel e da humanidade como um todo. Ele assume a esperança messiânica de Israel. É verdade que a expectativa de Israel girava, fundamentalmente, em torno de um messias libertador político, que livraria o povo da força imperialista de Roma. Jesus enfatiza concreta e definitivamente a chegada ou a vinda do Reino. O Reino de Deus chega pela sua livre e soberana iniciativa. Aos homens cabe receber a vocação de Deus em e por Jesus Cristo, entrando no Reino na dinâmica da graça mediante o dom da fé.107 Não sem razão a pregação apostólica traz a mensagem do Reino. Assim, os encontramos espalhando as boas notícias de que Jesus é o Messias, ou que através dele as antigas promessas tinham se cumprido, e proclamando as boas novas da paz em Jesus, do senhorio de Jesus, da cruz de Jesus, da ressurreição de Jesus, ou simplesmente, do próprio Jesus.108 Esta pregação ou testemunho apostólico se faz pelos evangelhos, pelas cartas paulinas, pelas cartas gerais e pelos textos joaninos, que tratam do Reino de Deus sob enfoques distintos, porém sob o fundamento da pregação ou anúncio feito por Jesus. Os Evangelhos A Questão das Fontes Salvo algumas referências, existem poucas fontes clássicas anteriores ao 112 d.C. Com exceção de Tácito e as “Perseguições de Nero”, Flávio Josefo, Suetônio e a correspondência entre Trajano e Plínio, os autores pagãos ignoraram os cristãos. Os demais que mencionam os cristãos só dão diversas interpretações aos fatos relatados por estas fontes primárias, e adicionam pouca informação.109 Os primeiros cristãos tiveram como referência o Antigo Testamento, já que o Novo Testamento não se formou até meados do séc. II d.C. (150d. c). O que se dá o princípio é uma tradição oral em que se dava valor aos fatos e ditos de Jesus que foram utilizados posteriormente nos evangelhos, aos que também foram adicionadas referências à sua vida e às palavras dele após a ressurreição. A estes relatos foram inclusos também elementos tradicionais. Junto com a tradição oral apareceram os textos de oração e de didascalía (ensino).110 BOFF, Leonardo. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Petrópolis – Rio de Janeiro. Ed. Vozes. 2000, p. 129. 106 BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador, op. cit., pp. 62,66,67,69,74. 107 BRAKEMEIER, Gottfried. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. São Leopoldo – RS. Ed. Sinodal. 1984, p. 35. 108 Cf. Atos 13. 32ss.; 10.36; 11.20; I Coríntios 15.2,3; Atos 17.18; I Coríntios 15.4; Atos 8.35. 109 Rohmer, J., "Jesus e o Novo Testamento" In: Testamento: Os Textos Sagrados Através da História", SP, Melhoramentos, 1981, p.149. 110 STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang, História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. (trad. Nélio Schneider). São Paulo: Paulus, 2004. p. 131. 105 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 28 Os antigos cristãos tinham práticas litúrgicas que não eram originalmente suas. Reuniam-se para comer, para as celebrações litúrgicas nas quais a oração pelo pão era a mais marcante. As celebrações e reuniões serviam para transmitir a mensagem sobre Jesus, o Cristo. Já os cristãos da diáspora em sua maioria sabiam ler e escrever.111 Os primeiros cristãos puseram sob a forma escrita aquilo que era transmitindo nos primeiros tempos oralmente. Isto ocorreu devido ao desaparecimento do grupo próximo a Cristo, surgindo a necessidade de anotar as experiências dos que o tinham visto e ouvido, e tinham falecido.112 Destes escritos, os evangelhos são tardios. São as recopilações destas anotações por escrito. Os lingüistas e os exegetas, através das contradições dentro dos evangelhos, percebem que estes parecem proceder de línguas diferentes como o grego, o arameu ou o hebreu. As didaquês são recopilações de textos fantasiosos ou ordinais que são emoldurados dentro dos textos apócrifos, que não chegaram a fazer parte dos evangelhos. Os textos cristãos mais antigos são os evangelhos, as cartas de João e as cartas de Paulo (escritas nos anos 50 d.C.). Estas últimas constituem o texto cristão mais antigo, conservados praticamente todos em documentos antigos do Novo Testamento. São cartas públicas que entram no gênero de literatura aberta. Têm uma intenção organizativa, de criar estruturas de política eclesiástica e de propaganda. A fórmula literária enlaçava com os antigos modelos gregos ou hebreus, mas sobretudo por seu caráter evangélico itinerante. Sobre isto, afirma Kee: “Primeiramente, Paulo emprega a carta como instrumento de sua autoridade apostólica. Ele não se pode fazer presente em todas as suas Igrejas ao mesmo tempo, mas o seu espírito o pode e, a seu ver, lá está (l Cor 5,4). O seu espírito está em ação "com o poder de Nosso Senhor Jesus' no solene julgamento de excomunhão (5,5).”113 Entre os cristãos primitivos, existiam diversas correntes ortopráticas e teológicas. Por exemplo, Paulo negava as práticas judias (como a circuncisão) como elemento indispensável para assumir o cristianismo. Esta postura não era aceita por todos, o que culminou na reunião das lideranças da igreja e a distribuição destes em áreas de influência mutuamente excludentes. A Paulo se lhe atribui a zona de Grécia e este utilizava as cartas para criar uma política organizativa. Esta forma era a que mais se aproximava à tradição oral de Jesus que está escrita como se fosse um discurso. As epístolas são um conjunto de cartas construídas segundo a tradição paulina e dirigidas às comunidades sob sua influência e responsabilidade.114 As epístolas chamadas de paulinas não são todas provenientes de sua pena. Algumas são de seus seguidores ou também atribuídas a ele de forma fraudulenta, porque o modelo epistolar de tradição paulina teve um grande sucesso. Todas as epístolas autenticamente paulinas foram escritas entre as décadas dos 50 e 60. Algumas epístolas se emolduram no grupo dos apócrifos, e outras são falsificações. Outros textos epistolares são a “carta de Clemente” “A instituição sinagogal consolidava particularmente a unidade dos membros da Diáspora, assegurando-lhes lugar público de expressão da sua fé, de educação para a Lei e para as práticas judaicas.” In: TASSIN, Claude. O Judaísmo: do Exílio ao tempo de Jesus. (trad. Isabel F. L. Ferreira). São Paulo: Paulinas, 1988. p. 49. 112 MEEKS, Wayne A., Os Primeiros Cristãos Urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. (trad. I.F.L. Ferreira). São Paulo: Paulinas, 1992. p. 153. 113 In: KEE, H. C., As Origens Cristãs: em perspectiva sociológica. (trad. J. Rezende Costa). São Paulo: Paulinas. 1983, p. 113. 114 DUTHEIL, Michel, Foi Para a Liberdade que Cristo nos Libertou (In: VVAA, Libertação dos Homens e Salvação em Jesus Cristo: 2a parte. [trad. Benôni Lemos]. São Paulo: Paulinas. 1981, p. 45. 111 www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp) - 29 sucessor de Pedro, o “Apocalipse de João”, cujo epílogo é uma carta e as “cartas de Pedro”, também destinadas à organização dos grupos cristãos.115 Junto às cartas há compilações e coleções que falam de Jesus que a partir do segundo século da era cristã. Tratava-se ao princípio de formulações escritas de diversos autores e línguas cujo modelo também não é original já que estava recolhida da tradição grega. Deste gênero se conservam os quatro evangelhos, o “evangelho segundo São Tomé” que se situa num contexto oriental (Síria) não chegou a Roma, e os apócrifos. Costuma-se unir a estes testemunhos cristãos os textos apocalípticos que partem da tradição judia como o “Apocalipse de João”. Estes textos dão lugar a uma infinidade de interpretações esotéricas e gnósticas que pretendem em origem confundir a profanos e os não iniciados.116 Os escritos teológicos foram os mais tardios, já que as primeiras comunidades cristãs eram mais vitalistas, mais do dia a dia, convictos de que a segunda vinda de Jesus estava próxima. Por isso não precisavam possuir uma teologia dogmática, mas sim convivencial, dado seu sentido prático. Desenvolviam mais a tradição oral e escritos dispersos. 117 Na segunda geração esses escritos se ordenaram e foram desenvolvidas as epístolas.118 É na terceira geração que foram formados documentos mais dogmáticos, quando desapareceram as testemunhas diretas e aumentou a distância em relação ao tronco comum do judaísmo. Nascem da necessidade de perpetuar a informação, tal é o caso da “Epístola aos Hebreus” ou a “Epístola de Bernabé” que não está incluída no Novo testamento. Foram conservados poucos documentos que procediam dos cristãos de base; os que mais se aproximam são as atas dos mártires. Há diferentes tipos. O primeiro deles são as atas, que constituem notas advindas dos juízos dos romanos sobre os cristãos. Não se conservam muitas, já que muitas foram queimadas nos processos de perseguição. O segundo tipo de evidência é a vida dos cristãos, obtidas a partir dos depoimentos dos primeiros mártires recolhidos pelas testemunhas. Estes textos são posteriores à formação do cânon.119 115 ROST, L. Introdução aos Livros Apócrifos e Pseudepígrafos do Antigo Testamento e aos Manuscritos de Qumran. (trad. Mateus Carvalho Rocha). São Paulo: Paulinas, 1980. p. ???. 116 OVERMAN, Andrew, O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, 117 POWELL, Mark Allan, Jesus as a Figure History: how modern historiant view the man from Galilean, Louisville: KY Westminster, John Knox Press, 1998. 118 MORALDI, Louigi, Evangelhos Apócrifos, (Trad. Benôni Lemos e Patrizia Collina Batianetto). São Paulo: Paulus, 1999. p. 393. 119 BITTENCOURT, B.P., O Novo Testamento: Cânon, Língua e Texto. Rio de Janeiro, JUEP, 1978. p. ???. www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 (Tim e WhatsApp)