Nílian Cristina da Silva (Ciência Política, USP)

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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Ciência Política
Desconfiança Política nas Instituições Democráticas – Quais
suas causas e implicações para o funcionamento do regime
democrático nas democracias consolidadas e nas “novas
democracias”
Nílian Cristina da Silva
Trabalho Final apresentado para a
Disciplina Cidadania, Confiança
Política e Instituições Democráticas,
ministrada pelo Prof. Titular José
Álvaro Moísés.
Janeiro, 2006
1
“Democratic values now command widespread
acceptance as an ideal, but at the same time citizens
have often become more critical of the working of the
core institutions of representative democracy”
(Norris, 1999a, p. 21).
INTRODUÇÃO
Diversos estudos têm apontado para um declínio da confiança nas instituições
democráticas ao redor do mundo. Por exemplo, Nye e outros pesquisadores demonstraram
uma significativa queda nos níveis de confiança política entre os cidadãos americanos ao
longo dos anos 1990. Outras pesquisas demonstram que esse não é um fenômeno restrito
aos EUA, mas comum às sociedades industriais avançadas em geral, a despeito de
variações a serem tratadas mais à frente (Klingemann, 1999; Norris, 1999a, 2000; Levi,
1998; Nye et. al., 1997; Putnam et. al., 2000; Warren, 1999; Dalton, 1999). Em casos de
países como Estados Unidos, Inglaterra, França, Suécia e Canadá, a existência de pesquisa
continuada por mais de quatro décadas permite visualizar a extensão dessa variação: na
década de 1960, em alguns casos, mais de 3/4 dos cidadãos expressavam confiança em
governos e instituições em contraposição a cerca de 25% atualmente (Moisés, 2005).
No caso dos regimes nascidos da chamada “terceira onda de democratização” de
Huntington, os níveis de confiança nas instituições são ainda mais alarmantes. Por
exemplo, na maior parte da América Latina, somente 1/5 dos cidadãos têm ‘muita’ ou
‘alguma’ confiança em parlamentos e partidos políticos, e menos de 1/3 confia em
governos, funcionários públicos, policia ou judiciário (Lagos, 2000). Frente a esse
diagnóstico, a questão que se coloca é qual o significado e implicações dessa queda das
taxas de confiança – ou manutenção de níveis baixos, no caso das democracias da “terceira
onda” – nas instituições políticas para o funcionamento do regime democrático.
Antes de tentarmos avançar no sentido de contribuir para a resposta dessa
complexa questão, é preciso destacar que o tema da “confiança” tornou-se uma coqueluche
nos últimos tempos em diversas áreas das ciências sociais e mesmo nos debates políticos.
Seu conceito tem atraído a atenção de uma ampla gama de disciplinas acadêmicas. No
campo da ciência política – notadamente nas teorias sobre capital social e sobre cultura
cívica – bem como no da economia, a variável “confiança” tem sido considerada aspecto
2
chave para a compreensão do funcionamento da sociedade devido ao caráter benéfico da
confiança generalizada como “lubrificante” de inúmeros tipos de interações e processos
sociais. No que se refere à economia,
por exemplo, vários estudos demonstram a
importância da confiança na promoção do crescimento econômico (Putnam, 1993;
Fukuyama, 1995). Por sua vez, no que tange ao campo político propriamente dito, diversos
autores demonstram a importância da confiança, seja para a solução de problemas de ação
coletiva (Levi, 1998; Uslaner, 2002), para a estabilidade democrática (Inglehart, 1999;
Uslaner, 2002), seja ainda para a participação política dos cidadãos (Knack and Keefer,
1997). Nesse sentido, a confiança remete à coesão social considerada indispensável ao
funcionamento das sociedades modernas, complexas e diferenciadas e, portanto, aparece
como uma variável relevante em se tratando da qualidade da democracia. E é justamente
por esta razão que a queda nos níveis de confiança entre os cidadãos é um fenômeno que
precisa ser melhor compreendido, em si mesmo e nas implicações que pode acarretar.
O principal objetivo deste trabalho, retomando o que já foi colocado acima, é
discutir o significado e implicações do declínio da confiança política entre os cidadãos
para o funcionamento do regime democrático. Para tanto, em primeiro lugar, será feita
uma breve reconstrução do tratamento dado pela literatura ao tema da confiança. A seguir,
serão discutidos os diversos modelos explicativos referentes à confiança política
propriamente dita. Em terceiro, será descrito o diagnóstico feito pelos diversos estudos que
apontam para o declínio da confiança política nas diversas democracias. Finalmente, com
base no escopo anteriormente apresentado, serão feitas considerações sobre as possíveis
causas e conseqüências de tal fenômeno.
BREVE RECONSTRUÇÃO TEÓRICA DO CONCEITO DE CONFIANÇA
O fato da temática da confiança ter atraído o interesse de várias disciplinas – desde
a psicologia até a economia, passando pela sociologia e ciência política – acabou por
resultar numa variedade de definições do conceito. Derivada em seus primórdios de
pesquisas no campo da psicologia social, a confiança interpessoal foi associada
inicialmente a traços da personalidade – como misantropia ou, no outro pólo, disposição
para o convívio social –, mas ao ser incorporada por outras disciplinas, houve uma
diversificação tanto das definições quanto dos aspectos da confiança a serem analisados.
A despeito das diversas formas e significados que o conceito assumiu, é possível
encontrar uma série de características relacionadas à confiança compartilhadas, com
alguma variação, pela maior parte dos autores – malgrado seus diferentes pressupostos
3
teóricos (Luhmann, 1979; Barber, 1983; Gambetta et al., 1988; Barbalet, 1996; Sztompka,
1999; Offe, 1999). A confiança é vista como um elemento capaz de “estabilizar” os
parâmetros das nossas ações sob condições de contingência, possibilitando-nos a presumir
“benign or at least non-hostile intentions on the part of partners in social interactions”
(Hart, 1988, p. 188). Ou ainda, de acordo com Gambetta, a confiança é “a device for
coping with the freedom of others” (Gambetta, 1988, p. 219). De acordo com Luhmann
(1979), a confiança reduz a incerteza nas sociedades complexas e possibilita que a
cooperação social. Para Putnam (1993), a confiança é um bem que aumenta se é usado e
diminui se é deixado sem uso e cuja variação para mais ou para menos conduz à criação de
círculos virtuosos ou viciosos de desenvolvimento na sociedade. Os equilíbrios resultantes
de situações onde prevalece a confiança produziriam efeitos positivos e, por outro lado, os
equilíbrios resultantes de situações onde a desconfiança prevalece, além de bastante
estáveis, teriam por resultado uma série de efeitos colaterais negativos. Para os
economistas, por seu turno, a confiança reflete uma propensão para a cooperação: onde há
confiança, embora esta não seja considerada condição suficiente, as probabilidade de que
interação seja marcada por um comportamento cooperativo são muito maiores (La Porta et.
al., 1997).
De acordo com Rosenberg (1956), a confiança implica um ato de fé nas pessoas, a
saber, fé no fato de que alguém manterá sua palavra. Deutsch (1958), por sua vez, destaca
as noções de “relevância motivacional” e de “previsibilidade” envolvidas na confiança, ou
seja, o ato de confiar envolveria expectativas de eventos que ocorrerão no futuro e a
possibilidade de sofrer algum tipo de perda se a confiança não for correspondida. Isto
significa dizer que há um elemento de risco envolvido.
Sinteticamente, o ato de confiar envolve a expectativa de uma das partes de que a
outra parte ou partes se comportarão de uma determinada forma com relação a uma
questão específica. Em outros termos, a confiança implica a expectativa racional do
confiante (o depositário) em relação às ações e/ou decisões a serem adotadas pelo confiado
(aquele em que é depositada a confiança). Todavia, tendo em conta que o comportamento
do chamado “confiado” não poder ser completamente controlado pelo “confiante”, o ato
de confiar necessariamente envolve uma dimensão de risco, na medida em que aquele em
que é depositada a confiança pode não se comportar da maneira esperada pelo depositário.
Quando o risco envolvido na interação é tão baixo que chega a ser irrelevante, em vez de
confiança, seria mais apropriado falar de um situação onde há “certeza” sobre o
comportamento dos participantes (Levi, 1998). Isto se dá quando há pouca ou nenhuma
4
incerteza quanto ao comportamento da contraparte e por conseguinte, o risco é muito
limitado. Nesse caso, não faz sentido falar em confiança.
Ao especificar essa relação entre confiantes e confiados, os autores da chamada
escola da escolha racional postulam que X confia em Y com relação à questão Z, porque
acredita que o interesse de Y “encapsula” o seu próprio com respeito à essa questão. Para
Hardin (1999), portanto, as relações de confiança dão-se entre indivíduos para os quais
está em seu auto-interesse, dado o contexto da interação, ser “confiável”. De acordo com
Moisés (2005), ao tratar dessa perspectiva analítica, tal “encapsulamento de interesses”
implica que o depositário conheça a motivação daquele em quem confiança é depositada,
de forma que saiba de antemão se seus interesses serão levados ou não levados em conta
por este último. Por sua vez, o confiado também tem que estar em condições de supor que
seus interesses serão contemplados pelo confiante. “Nessa acepção, a confiança seria uma
aposta baseada na crença de que os interesses mútuos dos atores envolvidos são condição
suficiente para gerar benefícios comuns e, assim, inocular a possibilidade de dano
decorrente de seu abuso” (Moisés, 2005, p. 39-40).
Uma das objeções a esta abordagem estritamente racional é que em situações com
um número muito grande de participantes não parece plausível que se possa obter
informações sobre todos os envolvidos. Uma vez que a confiança está relacionada com a
informação disponível sobre o interesse dos agentes, bem como com o contexto em cada
interação específica, é difícil entrever como se pode confiar nas pessoas de forma
generalizada. Kramer (1999) coloca uma objeção adicional: esta abordagem exagera as
capacidades cognitivas dos sujeitos no que concerne tanto ao acesso de informações sobre
a conduta dos outros agentes envolvidos, quanto ao processamento dos cálculos de
utilidade em cada situação. Kramer, por sua vez, sugere uma integração do modelo
racional para tratar do fenômeno da confiança com outros em que a confiança é
considerada uma variável relacional e contextual, levando-se em conta, além do
fundamento aritmético da racionalidade, fatores sociais e situacionais (Kramer, 1999).
Em contraste com a abordagem racional, autores como Putnam (1993), Inglehart (1997) e
Uslaner (2002) postulam que a confiança generalizada é fundamentalmente uma
característica sociocultural da sociedade e, portanto, transmitida por meio dos processos
de socialização e não determinada por cálculos racionais baseados na quantidade de
informação disponível sobre o comportamento dos agentes. De acordo com Moisés (2005),
o argumento é que certos valores sociais – como o republicanismo cívico e a solidariedade
social – são capazes de formar a base da decisão de confiar dos atores mesmo em situações
5
marcadas pela ausência, ou significativa insuficiência, de informação ou outro mecanismo
de controle sobre o comportamento dos outros. Para Putnam (1993), por exemplo, a
confiança é criada e reforçada pelas densas redes horizontais ligadas à sociedade civil e
está ligada à existência de repertórios coletivos de reciprocidade e de normas facilitadoras
de cooperação. Estas redes, normas e reciprocidade constituem o chamado “capital social”,
elemento necessário para a existência de uma interação social capaz de gerar círculos
virtuosos de desenvolvimento econômico e político1.
(***)
É importante ressaltar aqui a diferença entre confiança interpessoal dentro do
grupo e confiança generalizada.
No primeiro caso, a confiança refere-se a pessoas
conhecidas pessoalmente, com quem se interage em bases rotineiras e, desse modo, o risco
envolvido é deveras limitado devido ao acesso à informação e à história do
comportamento anterior dos atores em questão. Todavia, pode haver muita confiança
dentro do grupo, como na família, porém baixa confiança nos outros em geral, ou seja, a
presença de altos níveis de confiança interpessoal como fenômeno específico e a presença
de confiança generalizada não são condições necessariamente mútuas. No primeiro caso, a
confiança apenas reiteraria interações específicas intra-grupais e colaboraria pouco para a
“facilitar” a cooperação social ou a implementação de objetivos políticos coletivos
(Uslaner, 2002).
De acordo com La Porta (1997), portanto, a disposição para confiar em estranhos,
pessoas com as quais não se tem familiaridade, é muito mais significativa do ponto de
vista da ação social: a confiança generalizada aumenta as chances de se obter uma
reciprocidade geral e, portanto, facilita o comportamento cooperativo coletivo. Ao se
manifestar em sociedades modernas, complexas e diferenciadas, a confiança generalizada
assume ainda maior relevância, pois na medida em que abrange não apenas os
pessoalmente conhecidos, mas também aqueles com quem não se tem familiaridade – e
que, na condição de cidadãos, integram a comunidade política –, traduz-se em disposição
potencial para a ação coletiva com vistas a objetivos coletivamente definidos (Moisés,
2005).
1
Uma das objeções a esse argumento é sua circularidade: se a confiança é vista como um dos elementos que
geram capital social, o capital social é visto como elemento necessário para que haja confiança em uma
determinada sociedade. No entanto, estudos apontam que se por capital social se entende a existência de
redes de associações voluntárias no âmbito da sociedade civil, não há correlação significativa, tampouco uma
relação clara e inequívoca de causalidade, entre a presença destas e a existência de confiança política, por
exemplo (Newton, 1999).
6
“A confiança funciona, neste caso, como uma alternativa para indivíduos que se sentem
vulneráveis em face de sua inserção em contextos de crescente complexidade e
interdependência típicos das sociedades modernas, mas que, ao mesmo tempo,
compartilham uma perspectiva comum definida por sua condição de cidadãos. Como não
podem controlar individualmente os fatores que influenciam ou definem a sua
vulnerabilidade, nem se informar completamente sobre as circunstâncias que a produzem,
eles usam a confiança como recurso facilitador da coordenação de ações que são
indispensáveis para a realização de objetivos sociais de amplo alcance e que são relativos
aos direitos de cidadania. Assim, a confiança social operaria como um redutor da
complexidade das escolhas individuais condicionadas pela incerteza que caracteriza a
vida moderna e, ao mesmo tempo, ofereceria um marco de segurança para atores que,
necessitando definir o horizonte em que estão situadas as relações de que dependem –
dentre as quais, as relações de poder –, querem aumentar o grau de confiabilidade de sua
própria ação” (Moisés, 2005, p. 40-41).
(***)
O que podemos, então, entender por confiança política? Ou ainda, como o
fenômeno da confiança se relaciona às instituições políticas, uma vez que são seres
inanimados e que não dá para ter informação completa sobre as motivações daqueles que
as dirigem?
As teorias da psicologia social, assim como o fazem com a confiança interpessoal,
tratam a confiança política como características básicas de diferentes tipos de
personalidade. Desta feita, dependendo de sua formação psicológica, alguns indivíduos
seriam mais otimistas em relação à vida e, por conseguinte, mais propensos a confiar nos
outros e a cooperar. O contrário se daria com aqueles marcados por uma postura
pessimista, que seriam mais desconfiados e isolacionistas. Segundo esta corrente
explicativa, então, a confiança não dependeria da experiência ou avaliação dos agentes,
antes seria uma orientação afetiva e não cognitiva, em função do tipo de personalidade de
cada indivíduo. Portanto, confiar ou não nas instituições políticas pouco ou nada se
relacionaria com os valores de determinada sociedade ou com o desempenho dos
governantes. Dentre as objeções a essa abordagem, podemos destacar as seguintes: a) esta
teoria, na medida em que atribui a presença ou ausência de confiança a características das
personalidades dos indivíduos, pouco colabora para explicar as variações nos níveis de
confiança nos países ao longo do tempo e entre os diferentes países; b) ainda partindo-se
da suposição de que a confiança é função de traços psicológicos, seria de se esperar uma
correlação significativa entre confiança social e confiança política, o que não é confirmado
pelas pesquisas sobre o tema: os mesmos indivíduos que apresentam altos índices de
7
confiança interpessoal ou em organizações sociais não apresentam podem apresentar
baixos níveis de confiança política (Newton e Norris, 2000).
O modelo explicativo sócio-cultural, por sua vez, postula que a confiança política é
produto de experiências sociais de participação e colaboração e dos processos de
socialização, os quais transmitiriam o complexo de valores culturais de cada sociedade,
marcando as concepções e comportamento dos indivíduos com relação à comunidade e às
instituições políticas. Ainda de acordo com Newton e Norris (2000), esta teoria remonta ao
pensamento Alexis deTocqueville e John Stuart Mill, os quais enfatizavam a importância
da participação em associações voluntárias como mecanismo para os cidadãos se
educarem para a participação democrática. Em diversos autores contemporâneos (Bellah et
al., 1985), pode-se encontrar discussões que remetem à capacidade de se inculcar nos
membros da comunidade políticas os chamados “hábitos do coração”, a saber confiança,
reciprocidade e cooperação, por meio do engajamento em atividades na esfera da
sociedade civil (Coleman, 1990; Inglehart e Abramson, 1994; Sztompka, 1996). Os
autores associam a confiança e a cultura cívica com a estabilidade do regime democrático
(Inglehart, 1990 e 1997; Ostrom, 1990; Rose, 1994; Newton, 1997; Dalton, 1999). Esta
abordagem foi trazida de volta à cena e reatualizada pelas teorias do capital social, as quais
associam a participação dos indivíduos em associações voluntárias com a presença de
uma atmosfera social favorável à geração de confiança entre os atores sociais e políticos, e
destes com relação às instituições políticas e representantes (Fukuyama, 1995; Putnam,
1993).
Seria de se supor, então, com base nesse modelo, que a confiança social, a
participação em associações voluntárias e a confiança política nas instituições estivessem
fortemente correlacionadas. As pesquisas mostram, no entanto, que tal correlação é
estatisticamente pouco significativa no nível individual, embora seja relevante no nível
agregado (Newton e Norris, 2000). Ademais, tendo-se em conta que os padrões culturais
de uma sociedade são duradouros, esta abordagem, embora possa explicar alterações de
longo prazo na atitude dos cidadãos, não daria conta de variações de curto prazo nos níveis
de confiança política em um determinado país. Assim sendo, um modelo capaz de explicar
as variações nos níveis de confiança política deveria considerar além dessas variáveis
\socioculturais, fatores que levassem em conta outras dimensões, como aquelas
relacionadas à esfera política propriamente dita.
O terceiro modelo explicativo, o modelo da performance institucional, postula que
as instituições exercem um papel fundamental na geração da confiança, na medida em que
8
exercem uma função de controle talvez capaz de balizar o comportamento dos agentes, via
regras e sanções a comportamentos desviantes, reduzindo assim o risco de confiar em
desconhecidos (Levi, 1998; Rothstein, 2000). A confiança, segundo esta abordagem, seria
explicada em função da justificação e dos padrões de funcionamento das instituições.
Desta feita, a confiança política estaria distribuída da sociedade de maneira aleatória entre
as personalidades dos vários tipos, nos mais variados contextos socioculturais (Newton e
Norris, 2000).
Autores como Pettit (1998), Offe (1999) e Warren (1999) argumentam que as
instituições não são neutras, mas que suas regras constitutivas remetem a conteúdos
normativos que fornecem a referência comum para o relacionamento dos cidadãos com as
estruturas da comunidade política, ou seja, as instituições funcionariam como
“mecanismos de mediação informados por valores relativos aos objetivos coletivos a que
se propõem realizar” (Moisés, 2005, p. 42). No caso das instituições democráticas, tal
justificação normativa e regras constitutivas são vistas como legítimas pois são originadas
de um consenso normativo negociado pelas forças políticas – negociação esta que envolve
a participação dos cidadãos na vida pública via eleições para a escolha dos representantes e
para a tomada de decisões vinculantes; via direitos civis, políticos e sociais e do controle
social dos governantes e checks and balances dos poderes públicos (Moisés, 2005). Tais
regras constitutivas gerariam expectativas por parte dos cidadãos a respeito do
funcionamento das instituições e do desempenho daqueles responsáveis por sua condução.
Retomando o que já foi colocado acima a respeito do papel das instituições, estas
funcionam como marcos de previsibilidade da ação governamental, balizando e
regulamentando o comportamento dos representantes políticos por meio de regras
procedimentais fundamentadas na imparcialidade e sanções, também imparciais, para
punir comportamentos desviantes, garantindo o controle social. As regras são universais e
remetem aos direitos de cidadania que estas instituições – como o sistema eleitoral e
partidário, o Congresso, os tribunais de justiça – têm por missão assegurar (Warren, 1999).
Assim sendo, a avaliação dos cidadãos no que se refere a confiar ou não nas
instituições, muito embora remeta a sua performance 2 , estaria fundamentada em um
2
É importante ressaltar que ao falar o desempenho das instituições políticas este não está sendo mensurado
apenas por variáveis como o desempenho econômico de determinados governos. De fato, o crescimento
econômico pode ser considerado sintoma de um bom desempenho governamental. Entretanto, se a avaliação
dos cidadãos fosse baseada somente nesse critério, seria de se esperar que nos períodos de maior
prosperidade os cidadãos apresentassem maiores níveis de confiança política. Todavia, não é isso o que se
constata empiricamente: em países como a Itália e o Japão, por exemplo, altos índices de desconfiança
conviveram com períodos de intenso crescimento econômico. Nos EUA, para citar outro exemplo,
9
julgamento sobre a consistência e a coerência internas de suas normas, mais do que
simples avaliações sobre o desempenho dos ocupantes atuais dos cargos públicos. Se as
instituições funcionam conforme a expectativa implicada por justificação normativa – a
qual, por sua vez, remete à função para qual a instituição foi criada –, isto é, se houver
reciprocidade, a tendência é que seja promovida a confiança por parte dos cidadãos.
“A suposição é que as instituições funcionam bem se, coerentes com seus fundamentos
legais e sua legitimidade, sinalizam imparcialidade, universalismo, probidade e justeza na
relação com os cidadãos, ganhando a sua confiança e, assim, constituindo-se em
referencial de seu comportamento político” (Moisés, 2005, p. 52).
Para Offe (1999), a confiança depende da capacidade discursiva das instituições de
sinalizar aos cidadãos, de forma inequívoca, o caráter universal, imparcial e idôneo de seus
procedimentos, obtendo a concordância e cooperação por partes destes, ao assegurar, por
meio de seu funcionamento prático, que seus diferentes interesses serão levados em conta
pelo sistema político.
Por outro lado, baixos níveis de confiança seriam gerados caso essa expectativa
fosse continuamente frustrada no funcionamento prático das instituições (Offe, 1999;
Norris, 1999a). A desconfiança política seria, então, o resultado de uma situação em que
os cidadãos experienciam
constantemente um desempenho institucional que vai de
encontro ao que seria de se esperar de acordo com sua missão e com suas regras
balizadoras – como, por exemplo, corrupção; improbidade administrativa; falta de
idoneidade eleitoral; políticas públicas ineficientes ou que promovam distorções
distributivas; desrespeito ou não cumprimento dos direitos civis, políticos e sociais;
favorecimentos ilícitos; desigualdade no tratamento dos cidadão (Norris, 1999a; Nye et al.,
1997).
Assim, segundo Moisés (2005), as experiências significativas que fornecem os
fundamentos para que os cidadãos avaliem as instituições dizem respeito tanto a suas
regras constitutivas e procedimentais – as quais são baseadas em padrões ético-políticos
derivados do princípio de igualdade de todos perante a lei –, quanto a sua performance
prática.
significativa queda na taxa de confiança nas instituições, no pós-60, ocorreu em um período de prosperidade
econômica (Nye, 1997). Autores, como Dalton (1999), têm demonstrado que a confiança política é,
sobretudo, função de fatores de natureza política, muito mais que do desempenho econômico do dia de
governos específicos.
10
De acordo com a concepção defendida por Moisés (2005), e com a qual
concordamos como mais adequada para tratar do fenômeno da confiança política:
“[o] fenômeno de confiança em instituições radica nas próprias instituições e não na
confiança interpessoal. Isso se refere ao sentido ético e normativo da mediação que elas
implicam, para o que contam seus fins, sua justificação e seus meios de funcionamento.
Essa significação ético-política das instituições tem raiz no contexto social que lhes dá
origem – do qual fazem parte as orientações intersubjetivas dos cidadãos –, mas isso não
exclui que a permanente atualização dessa significação envolva, ao mesmo tempo, o
aprendizado que decorre da avaliação que os cidadãos fazem do desempenho concreto
das instituições a partir de sua experiência. Por isso, não há motivo para contrapor a
motivação normativa à racionalidade decorrente dessa avaliação e do julgamento que ela
suscita” (Moisés, 2005, p. 55).
Esta abordagem é legatária da relação estabelecida por Easton (1965) entre a
confiança política e a experiência dos cidadãos. Nesse sentido, a distinção originalmente
proposta por este autor entre apoio político difuso e apoio político específico é bastante
apropriada, sendo que o primeiro trata-se de uma série de atitudes arraigadas sobre a
política e o funcionamento do sistema político, independente do desempenho atual de seus
agentes, que são mais impassíveis a mudanças e funciona como indicador da legitimidade
do sistema ou das instituições políticas; enquanto o segundo está relacionado às ações e
performances dos governos e elites políticas. Com base no que lhes foi transmitido sobre o
significado das instituições e, sobretudo, com base em suas experiências concretas, os
cidadãos avaliam o desempenho das instituições, porém distinguindo entre sua
performance específica, conjuntural, e sua função permanente (Dalton, 1999).
Dalton (1999) também destaca a distinção estabelecida por Almond e Verba entre
dois tipos de crenças políticas, que ele chama de orientações afetivas (representam
aderência a determinados valores) e avaliações instrumentais (representam os julgamentos
de certos fenômenos políticos): as primeiras envolvem aceitação ou identificação com
determinada entidade e as segundas envolvem um julgamento sobre a performance ou
adequação do objeto. Combinando-se essas dimensões, tem-se um mapa das orientações
com relação à política e ao sistema político. Este mapa é importante, pois enfatiza a
distinção entre os vários níveis de apoio político e é uma ferramenta importante no
momento de se interpretar os dados sobre a queda na confiança política. Por exemplo, um
declínio nas taxas de apoio a governos específicos (apoio específico) não reflete
necessariamente ou implicam queda no apoio ao regime político (apoio difuso).
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Quanto ao apoio político, este termo pode ter vários significados possíveis e a
distinção teórica entre os diferentes níveis de “apoio político” geralmente é ignorada no
debate sobre confiança na democracia. Esta ausência de distinções poderia fazer com que a
insatisfação com os atuais ocupantes dos cargos políticos fosse tomada como um sintoma
de aumento da desconfiança nas instituições democráticas (Dalton, 1999; Norris, 1999a).
Dalton (1999) e Norris (1999a) apontam para a multidimensionalidade do fenômeno e
distinguem cinco objetos de apoio político, que na verdade constituiriam uma dimensão
continua de avaliações que vai desde as ações imediatas dos governos específicos até a
identificação com o Estado-nação. São eles: 1) a comunidade política; 2) os princípios do
regime democrático; 3) a performance do regime; 4) as instituições do regime; e 5) os
atores políticos.
Seguindo a distinção apresentada por Norris (1999a), o primeiro nível refere-se ao
modo pelo qual os cidadãos vinculam-se à nação, para além das instituições atuais, e a
uma disposição geral de cooperar politicamente – o que, por sua vez, envolve um consenso
a respeito das fronteiras políticas e geográficas da comunidade política, com base nas quais
será definida a identidade coletiva de seus membros. Dentre os sentimentos comumente
associados a esse tipo de identificação estão o sentimento de pertencimento, o orgulho
nacional, a identidade nacional 3 . O segundo nível concerne à adesão dos cidadãos aos
valores do regime democrático. Muito embora o conteúdo do ideal democrático seja ele
mesmo a múltiplos significados, há certos princípios fundamentais que o caracterizam e
distinguem os regimes ditos democráticos dos demais, a saber: liberdade, igualdade,
participação, tolerância, moderação, império da lei e respeito por direitos e deveres
legalmente estabelecidos. O terceiro nível diz respeito à performance da democracia, ou
seja, ao funcionamento prático do regime em contraposição a seu significado ideal. Para
isso, em foco estão menos as percepções dos cidadãos sobre os princípios do regime e
mais sua percepção sobre a sua capacidade de lidar com os problemas socialmente
percebidos como prioritários (Fuchs, 1995, Moisés, 2005). Nesse sentido, para avaliar o
desempenho específico do regime democrático nas novas democracias, seria mais
adequado compará-la com a performance de regimes anteriores que com um padrão ideal
de funcionamento (Klingemann, 1999). O quarto nível refere-se às instituições
propriamente ditas e inclui
atitudes e percepções dos cidadãos sobre governos,
parlamentos, o executivo, o sistema legal e a polícia, a burocracia estatal, e as forças
3
De acordo com Newton (1999), para as teorias do capital social a forma de vinculação dos cidadão com a
comunidade política estaria entre as variáveis chaves para explicar a confiança social e o engajamento cívico.
12
armadas. Trata-se de aferir a confiança generalizada nas instituições e não em seus
dirigentes ocasionais, ou seja, “a ênfase é posta nos objetivos finalísticos das instituições e
na expectativa que geram, menos do que em resultados práticos” (Moisés, 2005, p. 55).
Finalmente, o quinto nível analítico diz respeito ao apoio aos atores políticos, incluindo
avaliações tanto dos políticos enquanto “classe” ou categoria, quanto da performance de
líderes específicos (Norris, 1999a). São esses diferentes níveis de apoio que conformarão
base de orientação avaliativa dos cidadãos sobre a capacidade de governos e instituições
de responder às expectativas normativas geradas pela ordem institucional (Moisés, 2005).
As implicações sistêmicas são diferentes conforme se caminha ao longo desse
continuum representado pelos diferentes níveis de apoio político: o declínio no apoio ao
processo político pode significar um desafio à estrutura constitucional ou levar a mudanças
no funcionamento do processo político. Por contraste, a insatisfação com os ocupantes
atuais dos cargos em geral tem poucas implicações sistêmicas. Ao mesmo tempo, diferem
também quanto às implicações para a motivação dos cidadãos de participar dos processos
políticos de tomada de decisões que afetam a comunidade como um todo e, portanto, a si
próprios. Se há confiança políticas nas instituições, que são os canais mediadores entre as
preferências dos cidadãos e o regime político, os cidadãos têm incentivos para participar,
via mecanismos de representação, com vistas à realização de seus interesses, a despeito de
performances ruins de governos específicos. Se, por outro lado, não confiam ou confiam
pouco nas instituições, os incentivos para a participação são muito baixos e isso pode
afetar a crença dos cidadãos na capacidade do regime de responder às suas aspirações. Em
que medida isso afeta a continuidade dos sistemas democráticos, ou quais são os efeitos da
queda da confiança política para o funcionamento deste, é uma questão controversa e que
precisa ainda ser muito estudada.
DIAGNÓSTICO SOBRE OS NÍVEIS DE CONFIANÇA POLÍTICA NAS
DEMOCRACIAS CONSOLIDADAS E NAS
“NOVAS DEMOCRACIAS” E
POSSÍVEIS EXPLICAÇÕES PARA O FENÔMENO4
Na década de 1970, Samuel Huntington (1975), dentre outros pesquisadores
(Crozier, Huntington e Watanuki, 1975), apresentaram um diagnóstico sobre o
funcionamento das democracias ocidentais em que novas e crescentes demandas estavam
sendo colocadas aos governos, inclusive por maior participação – demandas estas que as
4
Os dados analisados pelos autores citados no decorrer desta seção referem-se, sobretudo, às ondas de
pesquisas do World Values Survey, do Eurobaromêtro e do Latinobaromêtro.
13
instituições políticas não tinham condições de atender, a não ser às custas de sua eficiência.
Essa situação foi chamada de “crise das democracias ocidentais”. Ao final da Guerra Fria,
entretanto, renasce uma euforia com relação à democracia e ao processo democrático,
mesmo entre aqueles que haviam anteriormente anunciado sua crise. Em primeiro lugar,
diversos países antes sob regime autoritário passaram por um processo de democratização
de suas instituições – a chamada “terceira onda de democratização’. Em segundo lugar, o
diagnóstico a respeito da debilidade dos regimes democráticos não se confirmou na
realidade. De um lado, muitas das novas demandas e tendência participativas foram
integradas dentro do processo democrático. De outro, os governos responderam ao
problema da sobrecarga reduzindo suas atividades em determinadas áreas e diminuindo as
expectativas dos cidadãos sobre sua atuação. Ou seja, tanto o governo quanto os cidadãos
se adaptaram: “democracies had generally succeeded in retaining the benefits of the new
ideas while avoiding the dire results predicted about the excesses of democracy” (Dalton,
2000, p. 252).
Todavia, desde os anos 1980, pesquisas vêm mostrando que ainda haveria motivos
para preocupação quanto à vitalidade do processo democrático. Evidências apontam para
baixos níveis de confiança política e altos níveis de cinismo, mesmo entre os cidadãos das
chamadas democracias consolidadas. A insatisfação com governos específicos, no entanto,
não é necessariamente problemática, pelo contrário, faz parte do jogo democrático. “As
citizens are criticizing the incumbents of government, they are simultaneously expressing
support for the democratic creed” (Dalton, 1999, p. 74). Ou ainda, como afirma Hardin
(1999), ter cidadãos totalmente confiantes em uma democracia pode produzir diversos
efeitos colaterais negativos, tais como cidadãos que não questionam as autoridades. Mais
problemática, porém, é a possibilidade de que crescente e contínua insatisfação possa vir a
corroer o apoio ao regime político. Em outros termos, a grande preocupação é que a
insatisfação com performances particulares possa se traduzir em insatisfação com o
funcionamento da democracia como regime de governo.
Embora haja variação no fenômeno do aumento da deconfiança5, e a despeito das
limitações comparativas por conta da escassez de dados que permitam comparações mais
5
Em países como o Japão, a Itália e a Alemanha, as evidências apontam para um cinismo endêmico e
generalizado. Por sua vez, em países como Holanda, Noruega e Dinamarca, a confiança nas instituições
democráticas apresenta índices elevados, estáveis e crescentes com o passar do tempo (Newton e Norris,
2000; Norris, 1999a).
14
precisas entre os países e ao longo do tempo6, ao se fazer um “overview” comparativo das
tendências de apoio político nas democracias avançadas (Austrália, Áustria, Canadá,
Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Inglaterra, Islândia, Itália, Japão, Holanda, Noruega,
Suécia e Estados Unidos), as pesquisas apontam para um aumento do ceticismo, ou
declínio generalizado da confiança, com relação às autoridades políticas (medida mais
específica e de curto prazo de apoio político). (Klingemann, 1999; Norris, 1999a; Dalton,
1999; Putnam et. al, 2000).
No caso dos EUA, uma série de evidências apontam para o crescimento do
ceticismo em relação ao governo ao longo do tempo, a partir da década de 1960. O
contexto então era marcado pelas divisões provocadas pela luta pela expansão dos direitos
civis e pela Guerra do Vietnã, erodindo também a confiança nos líderes políticos. Na
década seguinte, escândalos como o de Watergate agravaram esse quadro. Os níveis mais
baixos de desconfiança nos governantes atingiu seu ponto mais baixo nos 80, quando foi a
tendência de declínio foi temporariamente revertida com a eleição de Reagan. Contudo, a
tendência de queda continuou nas eleições subseqüentes e adentrou os anos 1990 (Dalton,
1999).
A insatisfação dos cidadãos com os atuais ocupantes dos cargos representativos, ou
com governos específicos, pode refletir a vontade dos cidadãos de mudar a administração
na eleição seguinte. Em outros termos, a insatisfação com os políticos pode ser um sinal da
vitalidade da democracia e refletir uma leitura objetiva da política por parte dos cidadãos.
Portanto, para que isso seja parte ou sintoma de uma crise da democracia, essa insatisfação
deve ser generalizada ao sistema político com um todo7.
A questão que se coloca, então, é até que ponto essa insatisfação com líderes
políticos específicos se generalizou a ponto de afetar orientações afetivas mais gerais,
como a identificação partidária8. Nesse quesito, as evidências mostram que a maior parte
das democracias avançadas apresenta um declínio estatisticamente consistente da
identificação partidária, refletindo não apenas insatisfação com partidos específicos, mas
com os partidos políticos em geral. Se a identificação partidária reflete o apoio do cidadão
6
Com exceção dos EUA, são poucos os países que fazem pesquisas sistemáticas e desde muito tempo sobre
o tema da desconfiança política.
7
Nesse ponto, vale ressaltar, contudo, que se a insatisfação é generalizada ao ponto em que os cidadãos
deixam de acreditar na “classe política” como um todo, as chances para a renovação democrática diminuem
drasticamente (Putnam et. al., 2000).
8
A identificação partidária é considerada um elemento-chave que define o comportamento político, uma vez
que reflete atitudes normativas a respeito do papel que partidos políticos deveriam desempenhar no sistema
democrático. Ou seja, a identificação partidária implica não apenas apoio a um partido específico, mas
também suporte para a instituição do sistema partidário (Dalton, 1999).
15
ao sistema democrático representativo baseado no sistema partidário, então o seu declínio
generalizado pode representar um primeiro sinal do desengajamento afetivo dos cidadãos
com relação à política (Dalton, 1999; Norris, 1999a; Putnam et. al., 2000).
Ao checar, no caso dos Estados Unidos, se esta tendência abrange outras
instituições além do sistema partidário, Dalton (1999) mostra evidências significativas de
queda na crença de que partidos, eleições e governos são responsivos ao interesses
públicos. Assim, a insatisfação dos americanos abrange também as instituições e não se
restringe aos políticos nos cargos. Comparando com dados para os outros países, a
constatação é que o apoio às instituições políticas enfraqueceu-se nas democracias
avançadas de forma geral (Parlamento – instituição central da democracia representativa –,
forças armadas, judiciário, polícia, burocracias estatais) (Dalton, 1999, Inglehart, 1999,
Norris, 1999a; Newton e Norris, 2000).
“(...) parallel evidence from other advanced industrial democracies suggests that we are
witnessing more than a temporary slump in politicians’ performance. Rather than a
transient phenomenon or merely linked to distrust of incumbents, public scepticism has at
least partially generalized to political institutions and thus may be a continuing feature of
contemporary democratic politics.” (Dalton, 1999, p. 68)
Ou ainda, nas palavras de Putnam et. al. (2000):
“Quite apart from any temporary disenchantment with the present government or
dissatisfaction with particular leaders, most citizens in the Trilateral world have become
more distrustful of politicians, more skeptical about political parties, and significantly
less confident in their parliament and other political institutions” (Putnam et. al., 2000, p.
21).
Quanto às avaliações e percepções sobre a performance do regime democrático, há
uma variação entre as democracias ocidentais (Itália e Grécia apresentam os menores
índices de aprovação, enquanto Noruega e Dinamarca apresentam os menores índices),
mas de modo geral os níveis de satisfação com o funcionamento do sistema democrático
mantiveram-se estáveis desde o início dos 1970 até o final dos 1980, com algumas
pequenas flutuações no começo dos anos 1990, mas nenhuma tendência de declínio
contínuo (Norris, 1999a; Dalton, 1999). Até onde é possível aferir, os dados sugerem que o
apoio aos direitos políticos e normas participativas aumentou no decorrer da geração
passada. Ademais, há evidências indiretas de que a percepção do papel apropriado para o
16
cidadão agora enfatiza um estilo mais participativo e uma maior disposição para desafiar
as autoridades (Dalton, 1999).
Passando para o próximo nível de apoio político, é extremamente importante
enfatizar que a abundância de dados empíricos sobre as atitudes direcionadas à democracia
sugere que não houve erosão do sentimento de que a democracia é a melhor forma de
governo (mais de ¾ do público nas democracias avançadas considera a democracia a
melhor forma de governo). As pesquisas demonstram que essa tendência se mantém na
atualidade e que, mesmo antes do fim da Guerra Fria e do renascimento da euforia
democrática, o apoio ao ideal democrático era quase universal dentro das democracias
consolidadas. Com base nesses dados, conclui-se que a legitimidade da democracia é
amplamente difundida (Dalton, 1999; Newton e Norris, 2000; Norris, 1999a).
“contemporary publics are dissatisfied with the incumbents of office and even with the
political institutions of representative democracy, but these feelings of dissatisfaction
have apparently not (yet) affected basic support for the political system and the values
of the democratic process”. (Dalton, 1999, p. 72)
A dúvida que permanece é se os cidadãos continuarão a gostar do “jogo”
democrático mesmo tendo perdido a confiança nos jogadores e em como o jogo é jogado.
Finalmente, no que tange os sentimentos em relação à comunidade política 9 – o
último nível de apoio político –, a despeito da diferença da intensidade, os níveis de
ligação com a comunidade política se mantiveram estáveis ao longo do tempo na maior
parte das democracias avançadas.
No caso das chamadas “novas democracias”, embora o panorama seja
caracterizado por diferentes conjunturas e especificidades, o quadro é mais alarmante. Se
por um lado as novas democracias do Leste Europeu e da Europa Central apresentaram, na
década de 1990, um modesto crescimento no apoio aos novos regimes em comparação
com os regimes autoritários que precederam o sistema democrático (Mishler e Rose, 1999),
no mesmo período, pelo menos 2/3 dos cidadãos dos países da América Latina estavam
insatisfeitos com a performance dos regimes – sendo os casos de opinião pública negativa
mais acentuados, nesse quesito, o México, a Colômbia e o Brasil (Klingemann, 1999).
Nesse caso, uma das explicações possíveis para a variação na avaliação da performance
dos regimes com relação às novas democracias é que esta reflete as diferentes experiências
9
Segundo Almond e Verba, uma ligação emocional forte com a nação forneceria um reserva de suporte
difuso que seria capaz de manter o sistema político ao atravessar temporários períodos de tensão política.
17
dos governos nos processos de transição e consolidação do regime democrático (Norris,
1999).
O caso mais preocupante, no entanto, refere-se aos níveis de confiança nas
instituições. No caso dos países da América Latina, na década de 1990, em média somente
1/5 do público apresentava muita ou alguma confiança nos partidos políticos, e menos de
1/3 dizia confiar no congresso nacional, nos funcionários públicos, no governo, na polícia
ou no judiciário (Lagos, 1997). Muito embora tenham conhecido queda na maioria das
democracias consolidadas, “moreover, levels of support for the institutions of
representative democracy seem low in many newer democracies. Although the problem
should not be exaggerated, given the limited evidence of time-series trends, if we had to
specify the most important concern about support for government, the cross-national
evidence points towards this institutional level” (Norris, 1999, p. 20).
Quanto ao apoio aos valores democráticos, os dados mostram que este já era
disseminado dentre a maioria dos cidadãos nos países da América Latina na década de
1990 – claro que com algumas variações, sendo que os países com maiores índices de
apoio incluem Argentina e Uruguai e os com os menores índices incluem Brasil e Chile
(Klingemann, 1999). As evidências apontam que nessa mesma década a democracia já era
vista como a forma de governo ideal pela maioria dos cidadãos nos países do Leste
Europeu, América Latina e Ásia.
Pode-se dizer, portanto, que a adesão normativa à democracia por parte dos
cidadãos nas novas democracias é um fenômeno generalizado e, portanto, a legitimidade
do regime democrático não está em xeque. Contudo, os altos níveis de desconfiança nas
instituições podem ter implicações mais graves no longo prazo. Discutiremos algumas
dessas possíveis implicações mais adiante.
(***)
Apresentado esse diagnóstico, quais seriam os fatores responsáveis pelo aumento
da desconfiança nas autoridades e instituições políticas entre os cidadãos das democracias
consolidadas e quais os efeitos desse declínio para o funcionamento do regime
democrático? E no caso das chamadas “novas democracias”, o que explicaria taxas tão
baixa de confiança nas instituições democráticas? Quais as implicações desse descrédito
generalizado nesse último caso? Há uma série de modelos explicativos que procuram dar
conta do fenômeno do aumento da desconfiança. Aqui trataremos, ainda que de forma
breve e sucinta, das principais correntes explicativas.
18
De acordo com uma abordagem legatária de Crozier et. al. (1975), o aumento do
escopo de demandas por parte do público, abrangendo novas questões e áreas, envolveu o
governo em novas políticas – como as relacionadas à proteção do meio-ambiente; à
garantia dos direitos das minorias, à ampliação dos direitos sociais. O declínio do apoio
político seria, então, segundo essa perspectiva, resultado do fato de que as instituições
estabelecidas não têm capacidade de responder efetiva e eficientemente às mudanças de
longo-prazo nas expectativas dos cidadãos em relação ao desempenho do governo.
Demandas excessivas haviam supostamente sobrecarregado a habilidade dos governos de
respondê-las, gerando uma crise. A performance insatisfatória dos governos seria, então,
responsável pelas quedas nos níveis de confiança nas instituições. Porém, essas teorias
foram colocadas em xeque nos anos 1980, uma vez que o Estado não entrou em colapso
como fora previsto, mas se adaptou ao aumento das demandas (Listahug, 1995; Dalton,
1999). Ademais, medir o desempenho não é uma tarefa simples. Quando foram utilizados
indicadores macroeconômicos, como sustenta Pharr (2000), a conexão entre desconfiança
política e performance econômica nem sempre ficou clara, sobretudo nas democracias
avançadas. Embora o desempenho econômico dos governos específicos possa ser uma
elemento que em parte explique a satisfação com os líderes políticos atuais ou com o
desempenho dos governos, não há uma correlação significativa, ou relação de causalidade,
entre períodos de prosperidade econômica e altos níveis de confiança nas instituições
(Norris, 1999a). A análise dos dados mostra que em países como a Itália e o Japão, por
exemplo, altos índices de desconfiança conviveram com períodos de intenso crescimento
econômico. Nos EUA, para citar outro exemplo, significativa queda na taxa de confiança
nas instituições, no pós-60, ocorreu em um período de prosperidade econômica (Nye,
1997). Autores, como Newton (1999), têm demonstrado que a confiança política é,
sobretudo, função de fatores de natureza política, muito mais que do desempenho
econômico do dia de governos específicos.
Conforme uma segunda abordagem, com base nas teorias do capital social,
mudanças nos padrões político e sociais das sociedades industriais avançadas teriam
levado à diminuição do engajamento cívico dos cidadãos – um sintoma desse fenômeno
seria a diminuição da participação das pessoas em associações voluntárias (Putnam, 1993)
–, com conseqüências deletérias para a confiança social. Para Putnam (1993), a confiança
social é criada e reforçada pelas densas redes horizontais ligadas à sociedade civil e está
ligada à existência de repertórios coletivos de reciprocidade e de normas facilitadoras que
“lubrificam” as interações sociais, constituindo o chamado “capital social”. O capital
19
social, portanto, seria um elemento chave para a promoção de uma atmosfera social
favorável à cooperação entre os atores sociais e políticos, bem como ao apoio às
instituições políticas e representantes (Fukuyama, 1995; Putnam, 1993). De acordo com
essa abordagem de cunho culturalista, a explicação do porquê os níveis de satisfação com
as autoridades, governos e instituições caíram seria a erosão nos níveis de capital social,
por conta de mudanças socioculturais pelas quais passaram as sociedades avançadas.
Contudo, como já dito em outro momento, para que esse modelo desse conta de explicar o
fenômeno do declínio da confiança, seria necessário que encontrássemos correlações
significativas entre as variáveis confiança social, participação em associações voluntárias e
confiança política nas instituições. As evidências, entretanto, apontam que tal correlação,
quando existe. é estatisticamente pouco significativa (Newton, 1999).
“There is not a close or consistent association between social and political trust, between
social trust and political behaviour, or between actitvity in voluntary associations and
political attitudes of trust and confidence. The links, where they exist, tend to be weak
and contingent” (Newton, 1999, p. 185).
Uma terceira abordagem, também de cunho culturalista, atribui o aumento
desconfiança política a mudanças culturais amplas devido a transformações mais gerais e
contínuas na natureza das sociedades industriais avançadas, tais como crescimento
econômico sem precedentes e diversas transformações sociais (Inglehart, 1997; Dalton,
2000). Inglehart (1997) sustenta que o declínio da confiança em “todos os tipos de
autoridade tradicional” deve-se a mudanças culturais ligadas aos processos de
modernização e pós-modernização. O desenvolvimento econômico transformou os padrões
de vida e os referenciais. A luta básica pela sobrevivência e pela segurança não é mais uma
preocupação para a maioria das pessoas. O processo de modernização trouxe mudanças
nos estilos de vida, bem como na estratificação da sociedade e nas relações sociais. A
conseqüência de tais transformações teria sido uma mudança nos valores sociais e políticos
contemporâneos, os quais deixaram de ser materialistas (referentes a questões de
sobrevivência e segurança) e passaram a ser pós-materialistas (enfatizando objetivos como
melhoria da qualidade de vida, liberdade individual, escolha do estilo de vida, livre
expressão e participação). Esta mudança nos valores públicos teria, segundo o autor,
implicações diretas e complexas para o processo democrático. De acordo com Inglehart, a
geração pós-materialista demanda do governo que cuide de uma nova série de questões
políticas, tais como problemas ambientais, direitos das minorias. Ademais, os pós-
20
materialistas também demandam formas mais participativas de fazer política, desafiando
os canais tradicionais de participação que privilegiam as elites políticas, bem como são
céticos em relação às autoridades políticas e sociais, tornando-se o que Norris (1999a)
chama de “cidadãos críticos”. Essas pressões por participação se manifestam de diversas
formas: engajamento em novos movimentos sociais, participação via novos canais de
participação política. Com o advento desses valores, por conseguinte, a tendência de
idealizar a autoridade foi substituída por cidadão mais críticos à ordem política
estabelecida.
Dalton (2000) ressalta, no entanto, que o impacto dessa mudança de valores não é
um declínio geral na confiança, como argumentam certos autores, mas uma mudança nos
critérios que alguns cidadãos usam para avaliar as organizações políticas e sociais. Ou seja,
não é a legitimidade política que está em questão, mas a fonte da legitimidade que está
mudando e sendo questionada: a legitimidade fundamentada na autoridade hierárquica é
posta em xeque pelos pós-materialistas 10 . A mudança para valores pós-materialistas
afetaria sim o funcionamento da democracia, mas no sentido de estimular a ação política,
mudar as fontes de legitimidade e alterar as expectativas dos cidadãos para com os
governos: “Legitimacy based on inclusion is replacing legitimacy base don hierarchical
authority” (Dalton, 2000, p. 261).
Em contraposição aos teóricos da crise dos anos 1970, o que autores como Dalton e
Inglehart sugerem é que os cidadãos não estão se afastando ou se alienando da vida
política, mas participando via canais políticos não-tradicionais, refletindo uma renovação
do interesse e da participação política de base, e não através das instituições de massa,
burocráticas e monopolistas associadas às etapas inciais do processo de modernização11:
10
Ao examinar a relação entre os valores pós-materialistas e as normas e ideais democráticos para checar se
estes se contrapõem, os resultados encontrados pelo autor demonstram que, na verdade, os pós-materialistas
tendem a acreditar mais da idéia de que a democracia é a melhor forma de governo (67% acreditam
fortemente nisso, enquanto apenas 39% dos materialistas acreditam fortemente nisso) e a apoiar mais a
democracia como um ideal. Tal adesão à democracia, bem como demandas por processos mais participativos,
não é uma ameaça, mas um sinal de sua vitalidade e uma força que pode gerar uma reforma política
progressiva (Dalton, 1999b).
11
Os canais de participação tradicionais das democracias representativas limitam o potencial de participação
dos cidadãos. Portanto, o declínio do comparecimento dos cidadãos às urnas pode ser um sintoma do
descontentamento dos cidadãos com essa forma restrita de participação. Segundo Dalton, , as instituições
tradicionais das democracias representativas foram desenvolvidas no século XIX e, desde então, a sociedade
mudou significativamente. O fortalecimento do compromisso com os ideais democráticos, a melhora nos
níveis de educação e dos recursos dos cidadãos na atualidade têm levado a pressões por formas mais diretas e
participativas de democracia. Assim, malgrado tenham diminuído o comparecimento às urnas e a
identificação partidária, novas formas de participação (por exemplo, os novos movimentos sociais) têm
aumentado e pressionado os governos a considerar novas formas de “policy-making” e de administração
(Dalton, 1999b).
21
“At the heart of the problem may be a breakdown in the consensus over how democracies
should operate and what they should provide their citizens” (Dalton, 2000, p. 269).
Podemos destacar, ainda, uma quarta abordagem, de cunho institucional. Segundo
esta abordagem, se a forma como as instituições políticas estão desenhadas gera nos
eleitores a percepção de que as autoridades estão distantes e são impossíveis de serem
cobradas, a confiança nos políticos e nelas próprias declina. Norris (1999b), por exemplo,
sugere que o aumento nos níveis de desconfiança, em alguns casos, seria conseqüência da
falta de accountability das instituições intermediadoras, tais como os partidos políticos e
os parlamentos, devido a certos desenhos constitucionais. Democracias onde a a
accountability é percebida como baixa, como no caso dos sistemas de partido dominante,
os níveis de desconfiança nas instituições e nos políticos são maiores. Listhaug (1995), por
sua vez, argumenta que nos países em que os cidadãos percebem que o funcionamento das
instituições deixa de fora da representação política grupos significativos e, além disso,
sentem que não podem renovar os políticos no poder, aumenta a desconfiança no processo
político e nas autoridades políticas. Outros fatores que Norris (1999b) aponta como
responsáveis pelo aumento da desconfiança são a crescente profissionalização das
legislaturas e baixos níveis de alternância no poder. Para que contem com o apoio dos
cidadãos, as instituições políticas precisam ser aceitas como as “regras do jogo” e, para
tanto, devem ser vistas como relativamente neutras em relação ao sucesso ou fracasso de
qualquer que seja o ator e coerentes com suas justificativas normativas. Por sua vez,
quando estas não contam com esse apoio, sua função de mediação entre as expectativas
dos cidadãos e objetivos coletivos propostos por governos e pelas autoridades políticas fica
seriamente comprometida (Offe, 1999).
(***)
Para compreender as implicações do fenômeno da desconfiança nas instituições
políticas é preciso ter em conta a dupla função que estas cumprem nos regimes
democráticos, a saber: a) regulamentar como se dará a distribuição do poder de tomar as
decisões que afetarão o conjunto dos cidadãos e b) garantir a possibilidade da participação
dos cidadãos na avaliação e no julgamento daquilo que fundamenta o processo de tomada
dessas decisões (Moisés et. al., 2005).
O papel das instituições é, portanto,
simultaneamente, controlar o poder de modo que a liberdade dos membros da comunidade
política seja garantida e que os objetivos da vida pública não sejam distorcidos e, além
disso, assegurar que os cidadãos possam ter suas demandas politicamente representadas e
traduzidas em políticas públicas (Moisés et. al., 2005). Para tanto, é necessário que as
22
regras, normas, leis, mecanismos e processos institucionais assegurem a igualdade dos
cidadãos perante a lei – um dos princípios democráticos por excelência. O direito de
escolher os representantes é um dos principais meios para que isso seja garantido, mas não
é suficiente. É função das instituições de representação, de justiça e de formulação e
execução de políticas assegurar, concomitantemente, a distribuição de poder e que a
avaliação dos cidadãos a respeito das prioridades públicas seja referência no processo de
tomada de decisões (Moisés et. al., 2005).
Moisés et. al. (2005) argumentam que no caso das democracias consolidadas o que
se verifica, em geral, são processos permanentes de “requalificação cognitiva” de seus
membros como resultado de transformações socioeconômicas e culturais, dos quais a
queda nos níveis de confiança entre segmentos mais informados seria um dos sintomas,
sintoma este que expressaria uma saudável atitude crítica com relação ao desempenho dos
governos e das instituições democráticas (Norris, 1999a; Inglehart, 1999; Klingemann e
Fuchs, 1995; Nye et. al., 1997; Pharr e Putnam, 2000). Porém, sugerem os autores, em se
tratando das “novas democracias” – as quais ainda não completaram a tarefa de enraizar a
justificação normativa de suas instituições nos hábitos e nas condutas dos cidadãos –, a
desconfiança generalizada nas instituições somada aos altos índices de insatisfação
continuada com o desempenho dos governos e das lideranças políticas podem ser indícios
de entraves ao funcionamento do sistema político. Tais entraves refletiriam disfunções no
desenho ou no funcionamento das instituições e a conseqüência disso seria um
comprometimento na capacidade de coordenação e de cooperação social de governos e de
estruturas do Estado (Offe, 2001; Newton e Norris, 2000). Conforme os autores, as
implicações negativas vão ainda mais longe:
“o déficit de desempenho de governos e a indiferença ou a ineficiência institucional
diante de demandas sociais, corrupção, fraude ou desrespeito a direitos assegurados por
lei geram suspeição, descrédito e desesperança, comprometendo a aquiescência, a
obediência e a submissão dos cidadãos à leis [e produzindo] o desapreço dos cidadãos
com relação a instituições fundamentais da democracia como parlamentos e partidos
políticos (Moisés, 1995; Levi, 1998; Miller e Listhaug, 1998; Dalton, 1999; Tyler, 1998)”
(Moisés et. al., 2005, p. 5).
Corroborando esta tese, as análises empreendidas por Moisés et. al. (2005) para os
países da América Latina mostram que, embora a desconfiança política e a insatisfação
com o desempenho do regime não sejam fatores que estimulem a preferência por
alternativas não-democráticas entre os cidadãos, elas aumentam a probabilidade de que
23
estes optem por modelos de democracia que não incluem, necessariamente, nem partidos
políticos, nem o Congresso – instituições-chave da democracia representativa (Moisés et.
al., 2005).
Se isto reflete, como sugerem autores como Dalton e Inglehart ao se referirem às
democracias avançadas, que os cidadãos estão se tornando mais críticos e buscando novas
formas de participação ou se alienando da política, é uma questão controversa para a qual
não há resposta definitiva. Outra questão bastante polêmica, e não menos relevante, é se os
baixos índices de confiança refletem mudanças nos padrões avaliativos dos cidadãos sobre
como a democracia devia operar por conta de “requalificações cognitivas” ou – o que seria
de fato grave da perspectiva democrática – que as instituições simplesmente não estão
funcionando de maneira coerente com sua função e com sua justificação ético-política,
frustrando sistematicamente as expectativas por elas geradas, bem como a crença de que
vale a pena participar do “jogo democrático”. Neste caso, os regimes podem não enfrentar
nenhum problema de descontinuidade ou no que tange ao seu funcionamento “formal”,
todavia a qualidade da democracia estaria comprometida, na medida em que os interesses,
preferências e aspirações de grande parte da população não estariam representados ou
sequer chegariam a ser formulados politicamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Boa parte dos analistas contemporâneos, no que se refere à situação das
democracias no mundo, não afirmam que estas estão em crise, mas sugerem, todavia, ter
havido um aumento na percepção dos cidadãos de que alguma coisa não está funcionando
adequadamente.
Nas democracias avançadas, os cidadãos se tornaram mais distantes dos partidos
políticos, mais críticos com relação às instituições políticas, e menos positivos com relação
aos governos, o que aponta para mudanças fundamentais nas orientações políticas dos
cidadãos ao longo da última geração. Mais especificamente, o declínio da confiança
política é mais dramático e acentuado quando se trata de avaliações aos políticos e elites
políticas em geral. A deferência às autoridades, antes característica comum às democracias
ocidentais, foi substituída pelo ceticismo. Os sentimentos de desconfiança gradualmente se
expandiram e passaram a abranger as avaliações referentes ao regime político e às
instituições. Todavia, é importante ressaltar, tal ceticismo não afetou de forma significativa
o apoio aos princípios democráticos e à comunidade política.
24
Autores como Inglehart (1997, 1999) e Dalton (2000) argumentam que se o
declínio no apoio político não erodiu o apoio aos princípios democráticos, que permanece
forte e robusto, o que os cidadãos estão criticando é como esses princípios estão
funcionando na democracia representativa. Ao contrário daqueles que sustentam que a
diminuição da confiança nos políticos tem claros efeitos negativos para a democracia,
Inglehart conclui que um declínio secular do respeito pela autoridade tradicional está
levando os debates sobre políticas públicas de volta ao nível dos cidadãos comuns. Essa
insatisfação com as instituições e processos da democracia representativa, portanto, longe
de representar um indicador do ocaso da democracia, seria um sinal de sua vitalidade e
uma força que pode gerar uma reforma política progressiva no funcionamento do governo
democrático.
No caso das “novas democracias”, os dados podem sugerir tanto uma visão mais
otimista quanto uma mais pessimista. Por um lado, os dados mostram que ainda falta
muito para a consolidação de uma cultura política inequivocamente democrática. Por
outro lado, as evidências apontam que a crença na democracia como regime ideal de
governo é generalizada, enquanto aqueles que optariam por alternativas autoritárias
constituem minoria. É inegável, porém, que a confiança na instituições representativas –
como partidos e Congresso – é muito baixa. Todavia, a escassez ou ausência de dados que
permitam comparações ao longo do tempo impossibilita análises que permitam estabelecer
em relação a que outro período essas taxas são baixas, se não houve variações ou se, ainda,
elas sofreram um aumento. As comparações mais comuns são feitas com as democracias
consolidadas, cuja tradição histórico-política é completamente distinta.
No caso de alguns países da América Latina, além disso, altos níveis de
desconfiança nas instituições e de insatisfação com os políticos têm convivido
aparentemente bem com mais de duas décadas de regime democrático, os quais não
apresentam nenhum sinal aparente de colapso. Contudo, a continuidade desses índices
poderia ser acompanhada de uma desqualificação por parte dos cidadãos das instituições
de mediação tipicamente democráticas, como partidos e parlamento, e do próprio “jogo
democrático”, principalmente no que tange à sua capacidade de incorporar as diversas
demandas dos cidadãos. Assim, muito embora o funcionamento da democracia
procedimental possa não ser seriamente comprometido no curto e médio prazo, o mesmo
não se poderia dizer de sua qualidade, tendo em vista a missão normativa da democracia
de garantir que todos possam formular e expressar seus interesses de forma equânime e ter
os mesmos igualitariamente levados em conta nos processos de tomada de decisões.
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