MITO E RAZÃO

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MITO E RAZÃO
O nascimento da filosofia pode ser entendido como o surgimento de uma nova ordem
do pensamento, complementar ao mito, que era a forma de pensar dos gregos. Uma
visão de mundo que se formou de um conjunto de narrativas contadas de geração a
geração por séculos e que transmitiam aos jovens a experiência dos anciãos. Como
narrativas, os mitos falavam de deuses e heróis de outros tempos e, dessa forma, misturavam a sabedoria e os procedimentos práticos do trabalho e da vida com a religião
e as crenças mais antigas.
Nesse contexto, os mitos eram um modo de pensamento essencial à vida da comunidade, ao universo pleno de riquezas e complexidades que constituía a sua experiência. Enquanto narrativa oral, o mito era um modo de entender o mundo que foi sendo
construído a cada nova narração. As crenças que eles transmitiam ajudavam a comunidade a criar uma base de compreensão da realidade e um solo firme de certezas. Os
mitos apresentavam uma religião politeísta, sem doutrina revelada, sem teoria escrita,
isto é, um sistema religioso, sem corpo sacerdotal e sem livro sagrado, apenas concentrada na tradição oral, é isso que se entende por teogonia. Vale salientar que essas
narrativas foram sistematizadas no século IX a.C. por Homero e por Hesíodo no século VII a.C.. Ao aliar crenças, religião, trabalho, poesia, os mitos traduziam o modo que
o grego encontrava para expressar sua integração ao cosmos e à vida coletiva.
Os gregos a partir do século V a.C. viveram uma experiência social que modificou a
cotidianidade grega: a vivência do espaço público e da cidadania. A cidade constituíase da união de seus membros para os quais tudo era comum. O sentimento que ligava
os cidadãos entre si era a amizade, a filia, resultado de uma vida compartilhada.
Os mitos cumpriam uma função social moralizante de tal forma que essas narrativas
ocupavam o imaginário dos cidadãos da pólis grega direcionando suas condutas. Na
Atenas do século V a.C. existia também o espaço para as comédias que satirizavam
os poderosos e personagens célebres, e as tragédias que narravam as aventuras e
prodígios dos heróis, bem como suas desventuras e fracassos. Haviam festivais em
que os poetas e escritores competiam elegendo as melhores peças e textos, estes festivais eram muito importantes na vida da “pólis” grega,
era por meio destes eventos sociais que as narrativas míticas se difundiam.
Narrativa trágica de Sófocles, “Édipo Rei”
O soberano consulta o Oráculo, o que era comum na cultura grega antiga. O Oráculo
afirma que seu primogênito irá desposar a própria mãe e assassinar seu pai, o Rei
Laio. Então, Laio manda que eliminem o menino, mas a pessoa encarregada não cumpre a ordem e envia o menino para um reino distante onde ele se torna um grande
guerreiro e herói, numa de suas andanças ele encontra um homem arrogante e o
mata; chegando ao Reino de Jocasta, Édipo se apaixona e a desposa. Anos mais tarde, Édipo descobre que ele próprio é o personagem da profecia, e num gesto de desespero, arranca os próprios olhos e sai a vagar pelo mundo a fora. A profecia se cumpriu, porque o rei se recusou a matar a criança. Esta narrativa possui um fundo moral,
o alerta para os desígnios dos deuses, que não devem ser contrariados, e o percurso
de Édipo, de toda sua saga, de ter vencido a Esfinge e decifrado seu enigma, seu destino não o poupou. Contudo, um novo pensamento se formava e a vida na pólis cada
vez mais é direcionada pela política, e aos poucos a moral estabelecida pelas narrativas míticas foram sendo substituídas pela ética e pelos valores da cidadania grega. O
cidadão grego cada vez mais participativo não considerava a idéia de não controlar a
própria vida. Na vida da pólis, os homens livres manifestavam suas posições escolhendo entre iguais o direcionamento das decisões e das ações da cidade-estado.
O nascimento da Filosofia
Quando dizemos que a filosofia nasceu na Grécia, pontuamos que a Grécia do século
V a.C. não possuía um Estado unificado, mas era formada por Cidades-Estados independentes, as chamadas pólis, que foram o berço da política, da democracia e das ciências no ocidente. Transformaram a matemática herdada dos orientais em aritmética,
geometria, harmonia e lapidaram o conceito de razão como um pensar metódico, sistemático, regido por regras e leis universais. Os gregos eram um povo comerciante,
propensos a navegação e ao contato com outras civilizações. A filosofia nascera das
adaptações que os pensadores gregos regimentaram aos conhecimentos adquiridos
por meio dessas influências, e da superação do pensamento mitológico buscando racionalmente aliar essa nova ordem de pensamento propriamente grega, a vida na pólis.
O Mito e a Origem de Todas as Coisas
As narrativas míticas tentavam responder as questões fundamentais, como: a origem
de todas as coisas, a condição do homem e suas relações com a natureza, com o outro e com o mundo, enfim, a vida e a morte, questões que a filosofia desenvolveu no
decorrer de sua história. Mas aqui podemos formular outra questão: a filosofia nasceu
da superação dos mitos, mas foi uma superação gradual ou um rompimento súbito?
Para tanto, temos que primeiramente identificar algumas diferenças básicas entre os
mitos e a filosofia.
O Mito (Mythos) é narrado pelo poeta-rapsodo, que escolhido pelos deuses transmitia
o testemunho incontestável sobre a origem de todas as coisas, oriundas da relação
sexual entre os deuses, gerando assim, tudo que existe e que existiu. Os mitos também narram o duelo entre as forças divinas que interferiam diretamente na vida dos
homens, em suas guerras e no seu dia-a-dia, bem como explicava a origem dos castigos e dos males do mundo. Ou seja, a narrativa mítica é uma genealogia da origem
das coisas a partir de lutas e alianças entre as forças que regem o universo.
A filosofia, por outro lado, trata de problematizar o porquê das coisas de maneira universal, isto é, na sua totalidade. Buscando estruturar explicações para a origem de
tudo nos elementos naturais e primordiais (água, fogo, terra e ar) por meio de combinações e movimentos. Enquanto o mito está no campo do fantástico e do maravilhoso,
a filosofia não admite contradição, exige lógica e coerência racional e a autoridade
destes conceitos não advém do narrador como no mito, mas da razão humana, natural
em todos os homens.
Mito e Filosofia numa perspectiva filosófica
Na origem da filosofia encontramos o mito e a poesia. Entre estas, as que chegaram
até nós são as poesias de Homero e Hesíodo, que contam detalhes da vida das sociedades gregas antigas. Os mitos dos quais temos notícia são formas de narrativa oral
sobre os tempos primordiais, isto é, sobre a origem ou a criação, é o modo como as
sociedades arcaicas representavam coletivamente a geração de todas as coisas, isto
é, a sua maneira de exprimir suas experiências. É preciso esclarecer que os chamados primeiros filósofos oriundos da Jônia, mais ou menos no século IV a.C, foram também astrônomos, geômetras, matemáticos, médicos e físicos, isto é, as divisões do
saber, as quais estamos acostumados, são modernas e não faziam parte do universo
dos antigos. A distinção entre o que é a filosofia e o que é poesia, física, etc., é herança platônica.
Existem duas versões principais sobre a origem da filosofia: a versão mais conhecida
é aquela que acentua o surgimento de uma metodologia nova de abordagem dos problemas no esforço de certos pensadores em explicar os fenômenos naturais com métodos que possibilitavam medir, verificar e prever os fenômenos. Nessa versão a filosofia ao nascer, opõe-se ao mito e o substitui, a partir de uma nova racionalidade. A
segunda versão diz que não houve um rompimento com o mito e a religiosidade dos
antigos continuou a aparecer nas formas de conhecimento filosófico.
As duas respostas podem ser consideradas extremadas. A filosofia surgiu gradualmente a partir da superação dos mitos, rompendo em parte com a teodicéia. Outras civilizações apresentaram alguma forma de pensamento filosófico, contudo, sempre ligado
à tradição religiosa. A filosofia, por sua vez, abandona e supera a crença mítica e abraça a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar. Então podemos dizer
que a filosofia surgiu por meio da racionalização dos mitos, mas sob a influência dos
conhecimentos adquiridos de outros povos gerando algo novo, ou seja, houve uma superação e transformação do antigo, gestando o novo de maneira diferente.
Desde sempre o iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores.
Mas completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal. O
programa do iluminismo era o de livrar o mundo do feitiço. O iluminismo partiu do pensamento de que a razão seria um instrumento capaz de iluminar a realidade, libertando os homens das trevas da ignorância, da ingenuidade da imaginação e do mito. O
animismo, a magia e o fetichismo teriam sido finalmente superados e o mundo estaria
livre desses flagelos. O entendimento e a razão assumiriam o comando sobre a natureza e transformar-se-iam em senhores absolutos e imperativos. No entanto, o iluminismo não deu conta da tarefa que se propôs. Suas luzes não iluminaram tanto quanto
se pretendia e a libertação do mito, do dogma e da magia medieval não teve o êxito
afirmado por alguns autores. O iluminismo pretendeu retirar o mito e a fantasia de seu
altar, mas colocou a razão e a técnica em seu lugar, logo, não derrubou o mito, apenas
inverteu, dando à ciência e à técnica o brilho da “verdade”, gestando, assim, o mito
moderno da racionalidade.
Para Nietzsche (1844 – 1900) o iluminismo não cumpriu o que se propôs a fazer. Não
libertou os homens de seus prejuízos, os mitos não foram abandonados, mas substituídos por novos e mais elaborados heróis. O que pode ser tão escravizador quanto o
dogma, isso porque a técnica e o saber científico podem estar a serviço do capital.
Além disso, este saber técnico pode coisificar o homem e neste sentido os mitos modernos apresentam-se camuflados. Por isso, a crença na razão de forma absoluta
gera um mito, o que caracterizaria um retrocesso no percurso do mito ao logos que, de
certo modo, não era a intenção.
Mas enfim o que é o mito?
O pensamento mítico é por natureza uma explicação da realidade que não necessita
de metodologia e rigor, enquanto que o logos caracteriza-se pela tentativa de dar resposta a esta mesma realidade, a partir de conceitos racionais.
O homem moderno continua ainda a mover-se em direção a um valor que o apaixona
e só posteriormente é que busca explicitá-lo pela razão. Entende-se, pois, que o mito
manifesta-se por meio de elementos figurativos, enquanto que o logos utiliza-se de
elementos racionais, portanto é preciso deixar bem claro que não se pretende aqui colocar o pensamento racional no mesmo plano do pensamento mítico, mas sim, que a
partir de uma releitura percebemos que o Iluminismo não deu conta nem mesmo de
realizar a tarefa de que se propôs: iluminar as trevas da ignorância; quanto mais dissolver os mitos e anular a imaginação
(Adaptado de Vários autores. Filosofia ensino médio. Secretaria de Estado da Educação - PR. 2ª ed. 2006. p. 336. pp. 15-25.)
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