trilha musical

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TRILHA MUSICAL
Música e Articulação Fílmica
Ney Carrasco
Sumário
Prólogo
7
PARTE 1: A CONSOLIDAÇÃO DE UMA LINGUAGEM
11
Capítulo 1: A Infância Muda
13
A INCORPORAÇÃO DA MÚSICA AO FILME MUDO
AS FASES DA MÚSICA NO CINEMA MUDO
Capítulo 2: O Sonho de Edison
O ADVENTO DO SOM SINCRONIZADO
OS PRIMEIROS ANOS DO CINEMA SONORO
SUSTOS, MEDOS, EUFORIA: A POLÊMICA DO SOM
A EVOLUÇÃO DA MÚSICA DE CINEMA NA DÉCADA DE TRINTA
A QUESTÃO DO CLICHÊ
CARACTERÍSTICAS DA MÚSICA DE CINEMA NA DÉCADA DE TRINTA
ALGUMAS QUESTÕES DE NATUREZA ESTÉTICA
Capítulo 3: O Sonho de Eisenstein
OS PRECURSORES DO VÍDEO-CLIP
EISENSTEIN E A PARTITURA AUDIOVISUAL
OUTRAS PERSPECTIVAS TEÓRICAS
13
17
25
25
30
35
37
39
40
42
45
45
48
58
PARTE 2: MÚSICA E ARTICULAÇÃO FÍLMICA
65
Capítulo 4: Trilha Musical e a Teoria dos Gêneros
67
O CINEMA E A TEORIA DOS GÊNEROS
O CUNHO ÉPICO DO CINEMA
O CUNHO DRAMÁTICO DO CINEMA
A TRILHA MUSICAL E O GÊNERO CINEMA
67
69
71
74
Capítulo 5: A Articulação Épica
A MÚSICA NOS CRÉDITOS INICIAIS
A FUNÇÃO ÉPICA DA CANÇÃO
CARACTERÍSTICAS ÉPICAS DA MÚSICA INSTRUMENTAL
A AÇÃO DRAMÁTICA EM SEGUNDO PLANO
MÚSICA E MONTAGEM 1: O CORTE - LIGAÇÕES E TRANSIÇÕES
MÚSICA E MONTAGEM 2: GRANDES SEÇÕES
A EVOLUÇÃO DO MICKEYMOUSING
TRILHA MUSICAL E A ARTICULAÇÃO TEMPORAL
ÚLTIMAS PALAVRAS SOBRE A ARTICULAÇÃO ÉPICA
Capítulo 6: A Articulação Dramática
ARTICULAÇÃO FÍLMICA: UMA NOVA DIMENSÃO DRAMÁTICA
O DRAMA NO CINEMA
MONTAGEM INVISÍVEL - MÚSICA INAUDÍVEL
TRILHA MUSICAL E UNIDADE DE AÇÃO
MÚSICA E PERSONAGEM
A MÚSICA COMO "VOZ" DO PERSONAGEM
A EVOLUÇÃO DO MONÓLOGO INTERIOR
O ASPECTO DIALÓGICO DA MÚSICA
O USO DRAMÁTICO DA CANÇÃO
O USO DRAMÁTICO DO SILÊNCIO
Capítulo 7: Momento Lírico
A BUSCA DO PATHOS
77
80
82
88
89
90
91
92
93
99
101
101
102
103
106
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112
113
114
116
118
123
127
Epílogo
129
Bibliografia
131
À memória de Valter Krausche,
amigo inesquecível,
a quem devo, em grande parte,
este trabalho
Prólogo
Quando o profissional de música passa a atuar na área de trilhas musicais, seja para o
cinema ou para outros veículos dramáticos, inevitavelmente se defronta com novos problemas
técnicos e estéticos específicos a tais veículos. Mas, além de compreender essa problemática,
ele tem também que adaptar toda a sua terminologia e o modo pelo qual está acostumado a se
referir à música. É muito provável, por exemplo, que em seu primeiro encontro com o diretor,
para o encaminhamento do trabalho, o diálogo entre os dois comece com a seguinte frase: eu
não entendo nada de música, mas... Esse é um problema que os outros profissionais, no
mesmo tipo de produção, não enfrentam. Não é comum o diretor dizer que não entende nada
de cenários, para o cenógrafo; que nada sabe de roteiros, para o roteirista; ou que é um
completo leigo na área, para o diretor de fotografia. É de se esperar que um diretor de cinema
conheça, pelo menos, os fundamentos básicos de cada uma das partes envolvidas na
confecção de filmes, e mesmo que ele não tenha um conhecimento muito profundo sobre
algumas dessas especialidades, ele não vai assumir isso publicamente, e com tanta
naturalidade. Por que, então, eles o fazem com a música, sem o menor pudor?
Na verdade, esse problema transcende o universo específico ao cinema. Se
observarmos a atitude das pessoas, vamos perceber que existe um certo estigma em relação à
música que não é encontrado no que diz respeito a outras formas de expressão artística.
Normalmente, em uma conversa casual, quando dizemos que somos músicos, obtemos como
resposta a seguinte frase: ah, eu adoro música, mas não entendo nada. Se insistirmos no
assunto, perceberemos que nem sempre isso é verdade. Muitas vezes trata-se de uma pessoa
que ouve música assiduamente, que tem um bom conhecimento do repertório musical. Ora,
um ouvinte assíduo é alguém que tem alguma espécie de conhecimento musical. Por que ele
insiste em dizer que nada sabe de música? Por que o mesmo fenômeno não acontece em
8 Trilha Musical
relação a outras formas de expressão artística? As pessoas discutem filmes, livros, peças e
quadros sem se preocuparem em fazer a ressalva: eu não entendo nada de...
Ao que parece a linguagem musical carrega uma certa aura de hermetismo, que faz
com que o senso comum a veja como algo acessível apenas a alguns poucos “eleitos”. Algo
assim como uma seita secreta, cujos segredos são guardados a sete chaves pelos iniciados.
Em certo sentido, esse estigma tem sua origem na própria natureza da linguagem
musical. Comparando-a com as outras artes, percebe-se que entre elas e a música existe uma
diferença básica: é possível descrever o conteúdo de um filme, de uma peça, de um romance e
até mesmo de um quadro. Podemos dizer que um quadro é figurativo, ou abstrato. Podemos
fazer a sinopse de um filme, ou de uma peça e contá-la aos nossos amigos. Mas com a música
não ocorre o mesmo. Não é possível falar de música sem nos remetermos à própria
terminologia musical, e isso faz com que o discurso do “iniciado” em música possa parecer ao
“leigo” algo totalmente ininteligível. Assim, só é possível descrever uma obra musical de dois
modos distintos. O primeiro é aquele que usa a própria terminologia musical. Com ela,
podemos dizer que uma música é tonal, ou atonal, descrevê-la sob os pontos de vista
harmônico, rítmico, melódico, etc. O segundo modo é aquele que faz uso da terminologia
subjetiva, pela qual o ouvinte tenta expressar em palavras a sua experiência pessoal na
audição musical. Diz-se que a música é tocante, intimista, angustiante, sensual, doce, trágica,
etc. Mas tudo isso é apenas uma grosseira aproximação daquilo que realmente
experimentamos ao ouvir música. Depois, temos sempre a sensação de que a nossa descrição
nem sequer se aproximou daquilo que gostaríamos de ter, realmente, exprimido.
Essa dificuldade que encontramos quando queremos nos referir à linguagem musical
não se limita às nossas conversas cotidianas, até mesmo em setores especializados
encontramos seus reflexos. No cinema, por exemplo, tal dificuldade pode ser encontrada não
apenas na relação entre o músico e os outros profissionais envolvidos na produção de filmes,
mas também entre os teóricos, que evitam claramente se aprofundar nas questões referentes à
trilha musical. Em contrapartida, há os trabalhos especializados na área de música para
cinema, que normalmente são escritos por músicos e, em sua grande maioria, partem do ponto
de vista musical para a elaboração de sua análise. Assim sendo, acabou institucionalizando-se
uma tendência a ver a música de cinema não como um dos fatores integrantes da linguagem
cinematográfica, mas como um discurso paralelo ao filme. Raramente percebe-se que o filme
é um todo articulado e que a música é um dos fatores envolvidos nessa articulação. Grandes
trilhas musicais que estão totalmente inseridas no contexto dramático de seus respectivos
Prólogo 9
filmes, perfeitamente integradas ao seu fluxo narrativo, muitas vezes passam despercebidas,
não porque sejam ruins, mas porque foram pensadas e construídas com este objetivo.
Este trabalho tem por objetivos a abordagem da trilha musical como recurso
articulatório da narrativa fílmica, bem como demonstrar o modo pelo qual a música se insere
na dramaturgia específica ao cinema.
Sendo dirigido tanto ao cineasta quanto ao músico interessado na atividade específica
de trilhas musicais, procuramos apresentar, sempre, a conceituação necessária para que tanto
um quanto outro possam acompanhar o desenvolvimento da argumentação, sem a necessidade
de recorrer a outras fontes de informação. Esperamos que, de algum modo, ele possa
contribuir para aproximar os discursos e os pontos de vista dos profissionais das diversas
especialidades envolvidas na realização de filmes, de modo que a comunicação entre esses
profissionais se torne mais objetiva, com referenciais mais precisos.
O trabalho está dividido em duas partes. A primeira, contendo três capítulos, apresenta
uma discussão sintética do referencial teórico da literatura especializada em música de
cinema. Essa parte do trabalho tem um caráter bastante informativo. Procura situar o leitor em
relação ao desenvolvimento da música de cinema desde o período do cinema mudo e,
paralelamente, de apresentar-lhe um resumo das principais linhas de abordagem teórica
encontradas nessa literatura.
A segunda parte do trabalho, de caráter mais analítico, procura estabelecer os
fundamentos para uma discussão da música como recurso articulatório específico à
dramaturgia do cinema, partindo do referencial da teoria dos gêneros.
A cada estágio da argumentação são apresentados exemplos extraídos de filmes, em
sua maioria fáceis de obter, para que o leitor possa buscar no próprio repertório do cinema, a
manifestação prática dos conceitos abordados teoricamente.
Cabe ainda ressaltar que toda a análise foi feita com base na técnica e nos
procedimentos comuns ao cinema industrial, especialmente o norte-americano. Experiências
localizadas de cinema, bem como correntes estéticas específicas, aquilo que ficou
popularmente conhecido como cinema de arte, não são objetos de interesse deste trabalho.
PARTE 1
A CONSOLIDAÇÃO DE
UMA
LINGUAGEM
Capítulo 1
A INFÂNCIA MUDA
A INCORPORAÇÃO DA MÚSICA AO FILME MUDO
Nos primeiros anos a ausência de som obrigou os realizadores de filmes a
desenvolverem uma série de procedimentos técnicos e estéticos de caráter não-verbal que
viabilizassem o cinema enquanto arte narrativa. Dentre esses recursos estão o uso de
legendas, a explicitação do signo gestual através da pantomima dos atores e, especialmente,
os recursos de linguagem específicos do cinema, tais como as técnicas de enquadramento, os
movimentos de câmera e a montagem, que viriam a se tornar as principais especificidades
da linguagem cinematográfica.
Um outro aspecto que muito poucas vezes é tratado com a devida consideração pelos
teóricos de cinema é o fato dos filmes mudos terem sido sempre acompanhados por música,
desde as primeiras exibições comerciais.
A questão mais interessante que se nos apresenta em relação a este fato é: por que a
música? Por que não atores dialogando ao vivo, preenchendo o vazio de palavras do filme?
Por que não um sonoplasta, que pudesse criar a ambientação sonora necessária a cada um dos
momentos do filme? É sabido que houve algumas tentativas ou experiências neste sentido,
contudo não foi essa a prática que se tornou comum no cinema mudo. O que sobreviveu e se
tornou indispensável em todas as salas de exibição foi a música, o acompanhamento musical
ao vivo.
14 Trilha Musical
Existem muitas hipóteses a respeito do impulso inicial que teria levado os primeiros
exibidores a acompanhar de música as projeções de seus filmes. Dentre estas hipóteses, as
mais conhecidas são a de Kurt London1 e a de Hanns Eisler e Theodor Adorno2.
Segundo London, a música teria sido incorporada, inicialmente, com o intuito de
abafar o ruído bastante proeminente e desagradável dos primeiros projetores. Levando-se em
conta que tais projetores eram ainda bastante primitivos e que ainda não haviam sido isolados
em uma sala especial, pode-se supor que, de fato, tal ruído não era apenas incômodo, mas se
constituía em um fator permanente de dispersão para o público espectador.
A hipótese de Eisler/Adorno, embora tenha sido formulada com o intuito de
antagonizar a de London, não descarta-a, e hoje podemos tomá-las como complementares.
Segundo eles, a sala de projeção era um ambiente bastante inóspito para o público de então:
uma sala escura onde as pessoas se sentavam para assistir à projeção de imagens virtuais. De
certo modo era como assistir a fantasmas agindo. Isso, ocorrendo em absoluto silêncio, se
constituiria em uma verdadeira tortura psicológica. A música teria servido, então, como uma
espécie de antídoto para esse mal-estar causado pelo ambiente.
Apesar destas duas hipóteses serem citadas em praticamente todos os textos sobre a
música no cinema mudo, elas não esgotam as possibilidades de questionamento a respeito do
assunto. Recentemente, a discussão foi estendida por Claudia Gorbman3. Segundo ela, os
motivos que explicam a adoção do acompanhamento musical no cinema mudo poderiam ser
classificados em quatro níveis distintos:
a) Argumentos históricos
b) Argumentos pragmáticos
c) Argumentos estéticos
d) Argumentos psicológicos e antropológicos
1. London, Kurt foi o autor de um dos primeiros trabalhos teóricos sobre música de cinema: Film music,
publicado originalmente em 1936.
2.Eisler, Hanns e Adorno, Theodor: El cine y la musica.
3. Claudia Gorbman é professora da Universidade de Indiana, E.U.A.. Uma argumentação detalhada sobre o
assunto em questão pode ser encontrada em seu livro Unheard melodies.
A Infância Muda 15
Do ponto de vista histórico, o uso da música para acompanhar filmes segue a tradição
do melodrama, bastante comum no final do século passado e no qual a música era usada em
quantidade muito grande. Segundo a autora, a música no melodrama chega a ser mais
importante que os diálogos. A presença do pianista, ou da orquestra era indispensável nos
teatros, em uma época em que os gêneros de teatro musicado eram muitos, e responsáveis por
uma grande porcentagem da produção dramática do período.
Então, o que os exibidores de cinema teriam feito seria, apenas, seguir a tendência
dominante nas casas de espetáculo de então, incorporando o pianista, ou formações musicais
mais extensas às primeiras sessões comerciais de cinema.
O argumento dos pragmáticos, ou seja, aquele decorrente da hipótese de que a música
serviria para ocultar o ruído do projetor, é questionado a partir do seguinte ponto de vista: por
que a música era mais eficiente para disfarçar o ruído dos projetores? Se esse ruído era um
fator de dispersão para o público, por que a música não provocaria uma dispersão ainda maior
em relação ao filme que estava sendo exibido? E ainda mais: por que a música permaneceu
mesmo depois dos projetores terem se tornado menos barulhentos, e sido isolados do público
em cabines de projeção?
Estas questões nos levam aos argumentos estéticos. Segundo Claudia Gorbman, um
dos fatores que teria levado à incorporação da música nas exibições de filmes seria o fato do
acompanhamento musical intensificar a impressão de realidade do filme. Quando assistimos
a um filme, não estamos assistindo à representação de uma ação real, tal como acontece no
teatro. Este é o motivo que levou Eisler e Adorno a descreverem a impressão inicial do
cinema como fantasmagórica. Esse caráter sobrenatural do cinema seria agravado pelo fato
do filme ser projetado em uma superfície bidimensional, não possuindo uma profundidade
real, mas apenas uma ilusão de profundidade.
Com base nestes argumentos, a música teria servido para sanar dois problemas. Em
primeiro lugar ela seria responsável pelo preenchimento do espaço vazio do filme, suprindo
acusticamente o sentido de profundidade que visualmente o filme não possuía. Em segundo
lugar, a música serviria para simular uma atmosfera de realidade para a ação representada, na
linha do melodrama ou da mímica, que eram formas de expressão às quais o público estava
habituado.
Um outro fator estético importante, é aquele que diz respeito ao ritmo e que já havia
sido abordado por Kurt London:
16 Trilha Musical
A razão mais essencial para explicar estética e psicologicamente a
necessidade da música como acompanhamento do filme mudo, é sem dúvida o
ritmo do filme enquanto arte do movi-mento. Nós não estamos acostumados a
perceber o movimento como forma artística sem o acompanhamento de sons,
ou, pelo menos, ritmos audíveis.4
Podemos perceber, pela afirmação de London, que a música serviria como um suporte
rítmico para o movimento do filme, paralelizando, contrapondo, explicitando ou justificando
o ritmo das imagens.
No último tópico de sua análise Claudia Gorbman retoma a argumentação de cunho
mais psicológico da hipótese de Eisler e Adorno e complementa-a com argumentos de caráter
antropológico. Segundo ela, a música seria capaz de evocar o sentido comunitário, a sensação
de coletividade que torna o público uma comunidade de ouvintes participantes.
Todos esses argumentos possuem fundamento, e é bastante difícil dizer qual deles foi
o mais decisivo em todo o processo. É mais viável supor que todos estes fatores tenham
contribuído para o fato da música ter sido incorporada às exibições de filmes de tal modo, que
o cinema não iria jamais colocá-la aparte em todo o seu desenvolvimento subseqüente, exceto
é claro, em alguns casos isolados.
O mais importante em toda esta discussão é perceber que a música no período do
cinema mudo teve um papel relevante. Outro dado importante é o de que o desenvolvimento
da linguagem narrativa no cinema passa inevitavelmente pela via musical. A partir do
momento em que as exibições de filmes eram sempre acompanhadas de música, a própria
formação do código narrativo do cinema, bem como do referencial que, paralelamente, o
público desenvolveu para decodificar esse código, não se deram exclusivamente pela
dimensão imagética do cinema, mas sim pela soma desta com a dimensão musical. Desde o
princípio, a articulação fílmica dá-se com a presença da música. Em outras palavras, o cinema
comercial pode não ter nascido falado, mas com certeza nasceu musical.
4. Kurt London, em Gorbman, Claudia: op. cit. pg. 38.
A Infância Muda 17
AS FASES DA MÚSICA NO CINEMA MUDO
O casamento entre música e cinema é bastante antigo. Consta que a primeira exibição
comercial de filmes, realizada pelos irmãos Lumiere no Grand Café do Boulevard des
Capucines, em 28 de dezembro de 1895, contou com o acompanhamento de uma seleção
musical ao piano. Em torno de abril de 1896 tem-se notícia de diversas exibições de filmes
em salas de Londres que já contavam com o acompanhamento de orquestras.5
São poucas as informações sobre o repertório executado nessas primeiras exibições,
contudo é possível supor que não houvesse uma preocupação muito grande entre o conteúdo
dos filmes e o material selecionado. Os filmes eram ainda meras curiosidades e as exibições
públicas tinham muito mais o intuito de apresentar ao público o novo veículo e testar o seu
potencial comercial do que objetivos estéticos ou artísticos.
Não é possível também referir-se à música do cinema mudo como trilha musical, mas
apenas como acompanhamento musical de filmes. Esta distinção tem, por um lado, um
caráter técnico: o conceito de trilha musical, tal como o entendemos hoje, surge apenas depois
do advento do som sincronizado, quando tornou-se possível estabelecer relações precisas
entre som e imagem. Durante todo o período do cinema mudo, por mais detalhada que fosse a
elaboração da música para um filme ela estaria sempre sujeita à imprecisão inerente à
execução ao vivo e a todo o conjunto de variáveis envolvidas nesse processo. Assim, por não
estar ainda sincronizada às imagens, por não estar contida na película, toda a música do
cinema mudo deve ser entendida como acompanhamento musical e não como trilha.
A evolução do acompanhamento musical no cinema mudo caminha sempre no sentido
de uma maior interação entre os discursos imagético e musical e pode ser, genericamente,
dividida em três fases.
A primeira fase6 é caracterizada pelo fato de não existir ainda uma preocupação
muito grande entre o conteúdo musical e o conteúdo narrativo dos filmes. Normalmente, esse
5. A esse respeito ver Prendergast, Roy: Film Music - A neglected art, pg. 5
6
A classificação dos tipos de acompanhamento musical no cinema mudo em fases é um tanto artificial e não
pode ser entendida como algo rígido e estanque. O mais importante é ter em mente que, ainda que haja uma
sucessão cronológica das fases, o mais correto seria entendê-las como diferentes modos de pensar o
acompanhamento musical que se sobrepõe ao longo da história do cinema mudo. Assim, é possível que
enquanto uma sala de primeira classe em um grande centro urbano estivesse realizando sua música nos moldes
da terceira fase, uma pequena sala do interior ainda pudesse ter sua música realizada nos moldes da primeira ou
segunda fase.
18 Trilha Musical
acompanhamento era feito através de uma seleção musical extraída do repertório tradicional,
com ênfase nas músicas do período romântico, particularmente as da segunda metade do
século XIX.
A seleção musical era feita pelos músicos responsáveis pelas salas de exibição. Em
salas mais modestas, um único músico, normalmente um pianista ou um organista. Em salas
mais abastadas, uma orquestra completa. Esses músicos executavam o seu repertório sem
maiores preocupações. Em muitos casos, as músicas eram ouvidas integralmente, sem o
cuidado de buscar uma correspondência direta com aquilo que era visto na tela. Nessa época
os filmes eram em sua grande maioria de curta duração e as sessões públicas normalmente
apresentavam um grande número deles.
Existem informações sobre sessões de cinema nas quais cada filme curto era
acompanhado por uma peça musical distinta. É muito provável que isso fosse uma prática
comum, visto que se encaixa perfeitamente no tipo de acompanhamento musical realizado nos
espetáculos de variedades, tal como, por exemplo, os que aconteciam nos Music Halls7. É
muito provável que uma sessão de filmes curtos apresentasse para o músico acompanhador o
mesmo tipo de problemas que o espetáculo de variedades, com sua sucessão de números
independentes. Assim sendo, não é estranho que ele fosse buscar nesse universo o referencial
para o acompanhamento dos filmes.
Ainda nessa primeira fase surgem as primeiras tentativas no sentido de integrar a
música à narrativa do filme. As músicas continuam a ser extraídas do repertório tradicional,
mas cada vez mais procura-se estabelecer um princípio associativo entre elas e as imagens.
Curiosamente, nesse momento essa associação se dá mais ao nível do título da música do que
do conteúdo musical propriamente dito. Segundo relatosde, era comum acompanhar cenas à
luz do luar com o Adagio da Sonata ao Luar de Beethoven. As cenas à beira de um lago com
trechos da Suíte do Balet O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky, e assim por diante. De certo
modo, era esperado que o público estabelecesse o mesmo tipo de associação, desde que se
tratavam de músicas bastante conhecidas.
Ao estudarmos essa prática quase um século depois, em um primeiro momento temos
a impressão de que, por um lado, os músicos não haviam ainda descoberto o potencial
narrativo da música em relação ao filme e, por outro, os realizadores de cinema, não haviam
incorporado a linguagem musical aos seus filmes, apesar de fazerem uso do acompanhamento
7
Em "Music and the silent film", Martin Miller Marks apresenta uma descrição detalhada da música do
espetáculo de filmes curtos que Max Skladanowsky realizava com seu “Bioscópio” no final do século XIX.
A Infância Muda 19
musical para as exibições públicas dos mesmos. Contudo, observando mais atentamente
percebemos que o cinema ainda não havia se desenvolvido como linguagem narrativa e o
acompanhamento musical era totalmente compatível com o tipo de filme que se realizava na
época.
Uma outra característica da música na primeira fase do cinema mudo é a total ausência
de uniformidade. A produção do acompanhamento musical era uma responsabilidade da sala
de exibição e não da equipe de produção do filme. Sendo assim, duas exibições do mesmo
filme em salas diferentes contavam com acompanhamentos musicais totalmente distintos.
Além disso, a excessiva carga de trabalho dos músicos e maestros responsáveis pela seleção
musical fazia com que, muitas vezes, não houvesse tempo, sequer, para que eles assistissem
ao filme antes de sua exibição pública, o que, inevitavelmente, resultava em seleções musicais
concebidas sem nenhum vínculo direto com o conteúdo narrativo dos respectivos filmes.
Outro recurso bastante usado no período era o da improvisação. Os bons
improvisadores ao piano costumavam, inclusive, obter melhor remuneração por seu trabalho.
A improvisação era usada como transição entre os diversos momentos da seleção musical e
também para preencher todo e qualquer tipo de lacuna que pudesse vir a ocorrer entre o filme
e o seu acompanhamento musical. Nas salas maiores, onde o acompanhamento era feito por
uma orquestra, essas transições eram escritas pelo maestro responsável ou também
improvisadas pelo pianista ou organista da orquestra.
O próximo passo no sentido de aproximar o acompanhamento musical do que se
passava na tela vem através da fragmentação da seleção musical. Gradualmente passa-se a
não mais executar as músicas integralmente. Assistindo ao filme de antemão, o músico passou
a selecionar trechos musicais mais curtos, correspondendo a cada um dos momentos do filme.
O número de transições, improvisadas ou escritas, cresceu substancialmente. Aos poucos
começava-se a estabelecer uma nova relação entre as imagens e o seu acompanhamento
musical.
Como conseqüência inevitável desse processo chegamos a um outro modo de
produção de música para os filmes que poderíamos classificar como a segunda fase da
música no cinema mudo.
A principal característica dessa segunda fase está no fato de que os realizadores de
cinema começam a se interessar pelo acompanhamento musical de seus filmes. O grande
potencial comercial do cinema atrai também a atenção dos editores musicais que, cientes do
20 Trilha Musical
mercado e dos interesses da indústria cinematográfica, passam a editar em larga escala
partituras musicais exclusivamente voltadas ao acompanhamento musical de filmes.
A primeira iniciativa por parte da indústria do cinema que demonstra alguma
preocupação com o acompanhamento musical foi tomada pela Edison Film Company, que a
partir de 1909 começou a distribuir sugestões específicas de música para acompanhar os
filmes por ela produzidos8.
Os editores musicais, por sua vez, passaram a publicar coletâneas musicais
direcionadas ao acompanhamento musical de filmes. Nessas coletâneas as partituras musicais
eram catalogadas de acordo com o potencial dramático que, segundo seus editores, as faziam
adequadas ao acompanhamento de situações pré-determinadas. O método de classificação
seguido por esses editores era bastante específico e a concepção que então se fazia do
acompanhamento musical era a da música descritiva9. Assim, podia-se encontrar música para
qualquer tipo de situação: música para catástrofe, música misteriosa, música para incêndio,
música para navio afundando. Uma parte dessas músicas era composta especialmente para
integrar as coletâneas e outra parte era extraída do repertório tradicional, na maioria dos casos
adaptadas para terem seu apelo dramático intensificado.
Dentre essas coletâneas, as duas mais citadas na literatura especializada são a The
Sam Fox moving picture volumes de J.S. Zamecnik, publicada em 1913 e a Kinobibliothek
de Giuseppe Becce ou Kinothek, nome pelo qual ficou conhecida. Tendo sua primeira edição
datada de 1919, a Kinothek viria a se tornar a mais famosa publicação musical do período do
cinema mudo.
As coletâneas musicais foram decisivas no que diz respeito à interação entre a
indústria, produtora de filmes, e os exibidores, ou músicos, responsáveis pela elaboração do
acompanhamento musical. Através delas, se tornou muito mais fácil para o realizador indicar
8. A este respeito ver Prendergast, op. cit. pg. 6 e também Manvell, Roger e Huntley, John: The technique of
film music, pg. 22.
9. O conceito de música descritiva é, por si só, bastante discutível. O que significa, de fato, descrever
musicalmente uma ação? Se quisermos ser rigorosos veremos que esta é uma questão bastante complexa.
Contudo, o termo tem sido bastante usado e, ao que se pode observar, ele se refere a dois tipos de procedimento
bastante comuns em música de cinema. O primeiro deles é aquele onde existe um paralelismo rítmico entre a
música e a ação filmada. Trata-se de uma prática que evoluiria no sentido daquilo que nos anos 30 viria a ser
chamado pelos compositores de música de cinema de mickeymousing. O segundo é aquele onde se faz uso de
unidades musicais bastante sedimentadas no ouvido cultural ocidental e que, associadas às imagens podem
sugerir significados específicos. Assim, o canto gregoriano provocaria uma idéia associativa de religiosidade; a
marcha militar estaria associada à idéia de luta, guerra, vitória, e assim por diante.
A Infância Muda 21
as músicas desejadas para o acompanhamento de seus filmes. Foi um primeiro passo no
sentido da padronização da música no cinema. Contudo, persistia ainda a diversidade de
formações musicais, que variavam muito de uma sala de exibição para outra, e também da
própria execução. A padronização do material temático musical foi o máximo de definição
que se conseguiu atingir naquele período.
Deste modo, chegamos à terceira fase da música no cinema mudo, que é aquela onde
os filmes já são distribuídos com uma planilha de indicação de seu acompanhamento musical.
Paralelamente, a crescente sofisticação da indústria do cinema vai fazer com que,
gradualmente, as partituras originais, música especialmente composta para um determinado
filme, comece a tomar o lugar das planilhas de indicação. A primeira partitura original
composta para um filme data de 1908 e foi assinada pelo compositor francês Camille SaintSaëns. Posteriormente transformada em peça de concerto com o nome de Opus 128, a
partitura foi encomendada ao compositor pela companhia parisiense de cinema Le Film d'Art
e serviu como acompanhamento musical para o filme L'Assassinat du Duc de Guise.
Todavia, alguns anos iriam se passar até que esta se tornasse uma prática comum no cinema.
Em muitos casos a partitura distribuída com o filme não se tratava de uma música
original, mas sim, de arranjos específicos de músicas já existentes, especialmente trabalhadas
para atender às necessidades expressivas do filme.
Uma das partituras mais importantes do período é a de O Nascimento De Uma
Nação de D. W. Griffith, composta por Joseph Carl Breil. A música desse filme não é
totalmente original. Uma grande parte foi composta originalmente para o filme por Breil e
outra foi adaptada por ele, sob a rigorosa supervisão de Griffith, e é constituída por temas do
repertório orquestral e temas tradicionais do sul dos Estados Unidos. No que diz respeito à
estrutura de sua música, Breil antecipa práticas que se tornariam comuns no cinema, tal como
a recorrência temática. Nesse momento, quando os recursos narrativos do cinema encontramse bastante desenvolvidos, o referencial musical imediato deixa de ser o do espetáculo de
variedades e passa a ser a ópera. O próprio Breil declarou que entendia O Nascimento de
Uma Nação como uma “...ópera sem libreto”11.
10
Sobre a partitura deste filme, encontramos a seguinte passagem:
10. Birth of a Nation (E.U.A. - 1915).
11
Em Miller Marks, Music and the silent film, pg. 138.
22 Trilha Musical
A partitura é trabalho conjunto de D. W. Griffith (que estudou
composição em Louisville e New York) e um compositor e regente chamado
Joseph Carl Briel. Ela consistia de uma seleção elaboradamente orquestrada
de material original; um conjunto de pequenas citações, eventualmente
mescladas, de Grieg, Wagner, Tchaikovsky, Rossini, Beethoven, Lizst, Verdi
e toda a série de compositores isentos de “copyright”; e várias canções
tradicionais famosas dos Estados Unidos, tais como Dixie e The StarSpangled Banner.12
Curiosamente, apesar de sua importância para a história, muitas são as informações
distorcidas sobre a partitura de O Nascimento de Uma Nação. Na passagem acima, além do
erro de grafia no nome de Breil existe uma insinuação de que as músicas escolhidas apenas
por serem isentas de direitos, enquanto é sabido que Griffith e Breil sabiam exatamente o que
queriam e realizaram um trabalho muito meticuloso para selecionar os temas não originais do
filme. O próprio Griffith, na reedição “sonora” do filme, realizada em 1933 com a sua música
original então sincronizada à película, omite o nome de Breil.
Da mesma maneira que o nome de Griffith ficou marcado para sempre na história do
cinema pelas inovações técnicas que introduziu em seus filmes, especialmente pelo
desenvolvimento das técnicas de montagem e, conseqüentemente, da narrativa fílmica,
também no que diz respeito à música de cinema a sua contribuição é indiscutível. Junto com
Breil, ele foi um dos primeiros a fazer uso de unidades musicais temáticas de forma
recorrente, ou seja, de algo próximo ao leitmotivs, o que viria a se tornar uma das práticas
mais comuns até hoje nas trilhas musicais de filmes. Se Breil tem o mérito de ter criado a
música de O Nascimento de Uma Nação, Griffith tem o mérito de ter sido um dos primeiros
diretores a perceber a importância da música na narrativa fílmica.
Outro grande nome na música nesta terceira fase do cinema mudo é o do compositor
Edmund Meisel, responsável pela partitura dos filmes O Encouraçado Potemkin e
Outubro13 de Sergei Eisenstein. Os autores de trabalhos especializados são unânimes em
afirmar que uma das maiores tragédias da história da música de cinema foi o irremediável
extravio da partitura original de O Encouraçado Potemkin.
12. Em Manvell, Roger e Huntley, John: op. cit. pg. 25.
13. Bronienosets Potemkin (U.R.S.S. - 1925) e Oktiabr (U.R.S.S. - 1928).
A Infância Muda 23
Como pudemos notar, a música no período do cinema mudo percorre um caminho que
parte de uma situação inicial onde ela não passava de um mero fundo musical para o filme e
termina por alcançar um status de parte integrante do produto final, a partir do momento em
que passa a ser distribuída junto com a película. Foi um caminho onde a cada estágio tornouse mais claro o imenso potencial significativo que a música possui e que pode emprestar aos
filmes, especialmente naquele momento, quando não era ainda possível contar com o recurso
do diálogo.
É interessante também notar como a cada estágio cumprido pelo cinema no sentido de
sua consolidação enquanto linguagem, especialmente no que diz respeito ao seu
aprimoramento como linguagem narrativa, a música torna-se cada vez mais uma peça
fundamental do modo de produção. Não é por acaso que no momento em que a estrutura
narrativa do cinema começa a se consolidar - e o marco dessa consolidação é,
indiscutivelmente, o trabalho de Griffith - a música passa a ser cada vez mais definida pelos
próprios realizadores dos filmes. Não era mais possível deixar o acompanhamento musical a
critério de cada um dos exibidores, pois isso comprometeria o resultado do filme como um
todo.
Mas naquele momento o cinema não poderia chegar ao destino que lhe estava
reservado. Isto porque apenas uma parte do filme podia ser classificada como produto
industrializado. O fato da música ser ainda executada ao vivo nas salas de exibição fazia com
que o cinema ainda fosse obrigado a manter um forte vínculo com o espetáculo teatral. Na
película, que é reprodutível e, conseqüentemente, passível de industrialização, estavam
contidas apenas as imagens, o que representa apenas uma das faces do filme. Enquanto
linguagem audiovisual, o cinema era apenas semi-industrializado. A outra metade mantinha
ainda as características da produção artesanal e estava sujeita a todas as variáveis inerentes a
esse tipo de produção. Uma execução musical nunca é exatamente igual a outra, assim como a
representação de um espetáculo teatral varia a cada sessão. A preocupação em definir a
música que serviria de acompanhamento musical para seus filmes é uma tentativa da indústria
de limitar o número dessas variáveis, não sendo contudo possível reduzi-las a zero. É uma
tentativa de levar a perspectiva de uniformização da indústria, o conceito de padrão de
qualidade, para o domínio do artesanal. A tentativa inútil de controlar, ainda que
precariamente, o incontrolável.
Por tudo o que foi dito, encontramo-nos diante de um paradoxo. Por um lado a
impossibilidade técnica de sonorização não permitiu que a música no período do cinema
mudo se alçasse em vôos mais ousados e pudesse alcançar um estágio muito além do que ela
24 Trilha Musical
chegou. Por outro, essa mesma impossibilidade, que inviabilizava a incorporação dos
diálogos aos filmes, fez com que a linguagem narrativa do cinema se desenvolvesse
independentemente deles, mas apoiada sobre o discurso musical. Assim, da mesma forma que
o indivíduo não esquece jamais a língua aprendida na infância, a música passou a ser uma
linguagem imprescindível ao cinema, desde que ele teve todo o seu aprendizado na infância
ligado a ela.
Capítulo 2
O SONHO DE EDISON
O ADVENTO DO SOM SINCRONIZADO
Desde o surgimento do cinema tentava-se, experimen-talmente, desenvolver um
dispositivo que permitisse a sincronização dos sons com as imagens. A idéia, com certeza, era
bastante antiga. O próprio Edward Muybridge1 na introdução de seu trabalho Animal
locomotion apresenta o seguinte relato:
(...)Deve ser aqui observado que em 27 de fevereiro de 1888, tendo o
autor contemplado vários aperfeiçoamentos do zoopraxiscópio, consultou o
Sr. Thomas A. Edison sobre a praticabilidade de se usar esse instrumento
associado ao fonógrafo, para assim combinar e reproduzir, simultaneamente,
na presença do público, ações visíveis e palavras audíveis. Àquele tempo o
fonógrafo não estava apto a alcançar os ouvidos de uma grande audiência,
assim o projeto foi temporariamente abandonado2.
Ao que tudo indica, a idéia de sincronizar o som do fonógrafo às imagens em
movimento era uma obsessão para o próprio Edison, que em março de 1893 patenteia o seu
1. Edward Muybridge: fotógrafo inglês radicado nos Estados Unidos. Foi um dos primeiros pesquisadores a
obter resultados práticos com o registro e síntese do movimento através da fotografia instantânea no final do
século XIX. É considerado um dos pais da cinematografia.
2. Em Guidi, Mario: De Altamira a Palo Alto - A busca do movimento, pg. 141.
26 Trilha Musical
famoso Kinetoscópio3. Uma outra experiência de sincronização foi na França por Léon
Gaumon, que antes de 1900 produziu uma série de pequenos filmes sonoros com atores
famosos, dentre eles a grande estrela Sara Bernhardt.
Basicamente, todos esses dispositivos usavam o recurso da sincronização mecânica do
som às imagens, ou seja, eram dispositivos que, por meio de eixos e engrenagens, procuravam
coordenar em simultaniedade a rotação da película e a do cilindro - posteriormente disco - no
fonógrafo. Obviamente, pelo simples fato de sons e imagens estarem registrados em sistemas
independentes e serem reproduzidas por máquinas diferentes, era muito difícil obter um
resultado preciso, e com bastante frequência o precário sistema de sincronização entrava em
colapso. Um simples risco ou um sulco deteriorado no cilindro, um pequeno lapso da película
na grifa, ou fotogramas quebrados, eram motivos suficientes para comprometer todo o sistema
de som sincronizado.
A solução para esse problema só se tornaria possível no momento em que som e
imagem fossem impressos na mesma película. O primeiro sistema registro sonoro por meios
fotográficos que se tem notícia veio da Alemanha4 e foi chamado de Tri-Ergon5
Demonstrações deste sistema foram realizadas em 1919 e 1920.
Paralelamente, Lee De Forest pesquisava nos Estados Unidos um sistema similar. Já
em 1923, De Forest exibia filmes de curta duração, por ele chamados Phonofilms, como uma
atração extra em salas de cinema americanas. O sistema de De Forest é o antecessor do
sistema Movietone6 desenvolvido por Theodore W. Case, assistente de De Forest, por
encomenda de William Fox, e que viria a se tornar o primeiro sistema comercial de som ótico
para cinema7.
3. O Kinetoscópio de Edison era uma máquina que permitia a exibição de filmes curtos, mudos ou sonoros, para
um único espectador. Seu desenvolvimento foi possibilitado pelo surgimento do filme em película de
nitrocelulose cuja produção por George Eastman teve início em 1889.
4. A literatura registra que os fundamentos técnicos de tal sistema já eram conhecidos antes mesmo da virada do
século e teriam sido aplicados em 1911 por um francês de nome Lauste.
5. Segundo Eric Rhode, o Tri-Ergon era um sistema bastante superior aos seus similares. Caso a indústria de
cinema alemã não tivesse passado por tantas flutuações, eles teriam estado em condições de produzir filmes
sonoros de qualidade muito antes dos americanos.
6. Também chamado de sistema Fox-Case. Foi com este sistema que a Fox Films produziu o primeiro cinejornal sonoro, o Fox Movietone News em abril de 1927.
7. Basicamente, o sistema criado por De Forest, e posteriormente aperfeiçoado, consiste em um dispositivo que
converte as ondas sonoras em impulsos elétricos que podem ser fotografados como variações de luz em uma
película em preto e branco. Posteriormente, uma célula foto-elétrica instalada na máquina de projeção converte
essas variações de luz em impulsos elétricos que, amplificados, reproduzem as ondas sonoras originais.
O Sonho de Edison 27
Em vista disso, a pergunta que se nos apresenta é: se no início da década de vinte já
haviam sido superadas as dificuldades tecnológicas para a sincronização do som, por que
apenas no final dessa década os filmes sonoros entram no circuito comercial?
Há vários aspectos envolvidos neste fato. O primeiro deles diz respeito à situação de
estabilidade que viveu a indústria do cinema nos anos vinte. O público comparecia cada vez
mais aos cinemas. O Star System já havia transformado em mitos diversos mortais. Apesar do
rádio, em pleno desenvolvimento, o cinema ia bem, e era mudo. Embora a incorporação do
som fosse inevitável, ninguém parecia disposto a arriscar seu bem estar em uma aventura cujo
fim era imprevisível. Assim, criou-se uma situação de estabilidade inercial na indústria do
cinema de então.
Por outro lado, se o problema técnico relativo à sincronização de sons e imagens
estava resolvido, restava ainda o problema da amplificação desses sons8 .
Estes dois motivos, bastante objetivos, normalmente são abordados pela literatura
especializada. Mas havia ainda um terceiro aspecto na resistência da indústria em tornar o
cinema sonoro que normalmente não é muito discutido: o fator estético.
Como foi dito anteriormente, o cinema - tal como havia se consolidado nas primeiras
décadas do século XX - mantinha um caráter de espetáculo ao vivo que era dado pelo
acompanhamento musical. Para o senso-comum o cinema era uma arte muda, acompanhada
de música ao vivo. Era sabido que nenhum sistema de amplificação disponível naquela época
poderia competir em termos de qualidade de som com a execução da música ao vivo. Isso
fazia com que o risco da aventura do cinema sonoro se tornasse muito maior. O que os
grandes estúdios não perceberam é que a sua pretensa estabilidade era muito mais frágil do
eles poderiam supor. Em certo sentido todos sabiam que o cinema se tornaria sonoro, mas
apostou-se em uma transição gradual. Ninguém esperava o choque que iria ocorrer em 1927.
Muitos estavam envolvidos em pesquisas para viabilizar o cinema sonoro. Todos
sabiam que a incorporação do som ao filme seria inevitável. Mas era preciso um motivo de
força maior para que alguém se entregasse ao risco dessa aventura. Esse motivo foi
econômico.
8. Este problema só veio a ser resolvido com a introdução das válvulas elétricas, mais especificamente os
diodos. A produção em escala comercial destes dispositivos tem início por volta da metade da década de vinte,
data esta que coincide com as primeiras experiências comerciais de cinema sonoro.
28 Trilha Musical
Por volta da metade da década de vinte a Bell Telephone havia desenvolvido um
sistema de som sincronizado para cinema no padrão mais primitivo, ou seja, o som gravado
em disco era sincronizado mecanicamente com a máquina de projeção. Tendo sido
denominado Vitafone, o novo sistema apresentava como novidade o fato de comportar discos
de 13 a 17 polegadas, o suficiente para sonorizar um carretel completo de filme. Foi esse o
sistema usado pela Warner Brothers para introduzir o filme sonoro no circuito comercial.
Para entender os motivos que levaram a Warner Brothers a apostar no novo modo de
produção do cinema, é preciso saber a situação econômica em que se encontrava esse estúdio
naquele momento. Um relato sobre essa situação é dado por Eric Rhode:
Por toda a década de 20 os quatro irmãos Warner - Harry, Sam, Albert
e Jack - foram tolhidos pela falta de capital. (...) Segundo Jack Warner,
apenas as atuações de animais salvaram-lhes da falência: gorilas, tigres,
chimpanzés - e Rin Tin Tin.9
Em vista disso, a aposta no cinema sonoro era um dos últimos recursos à disposição da
Warner para sair da crise financeira em que havia mergulhado.
O teste do sistema Vitafone foi feito no filme Don Juan, estrelado por John
Barrymore, cuja estréia ocorreu em 26 de agosto de 1926. Curiosamente, tratava-se ainda de
um filme mudo cujo acompanhamento musical havia sido gravado em disco e sincronizado à
película. A novidade passou despercebida, pois não havia nenhuma mudança de caráter
estético no filme, se comparado aos outros filmes mudos. Pelo contrário, a qualidade sonora
do acompanhamento musical era bastante inferior à da execução ao vivo.
O choque no mercado vai ocorrer, de fato, em 6 de outubro de 1927, quando a voz de
Al Jolson sai da tela e inunda a audiência de canções. Era a estréia de O Cantor de Jazz10.
Começa aí a febre dos talking pictures, como passaram a ser chamados.
O Cantor de Jazz não é um filme genuinamente falado11 Trata-se na verdade de um
filme mudo com quatro interlúdios falados e cantados. Mas isso bastou para provocar uma
verdadeira revolução na indústria do cinema. O público queria mais e mais talking pictures.
Aos estúdios cabia a tarefa de produzi-los.
9. Em Rhode, Eric: A history of the cinema. pg. 262.
10. The Jazz Singer (E.U.A. - 1927).
11. O primeiro filme integralmente falado produzido nos Estados Unidos foi The Lights of New York (1928), da
própria Warner Brothers.
O Sonho de Edison 29
Foi uma verdadeira revolução no modo de produção do cinema. Quem não se adaptou,
foi posto de lado - desde atores até exibidores. Em relação a estes últimos, especialmente, o
cinema sonoro foi impiedoso. O grande investimento necessário à adaptação das salas de
exibição para os filmes sonoros praticamente eliminou os independentes. As pequenas salas
de projeção que não estavam vinculadas aos grandes estúdios foram engolidas por eles:
O advento do som possibilitou uma reformulação não apenas da
produção, como também da exibição. A partir dos anos trinta, os
equipamentos dos cinemas precisaram ser trocados. A projeção não poderia
mais utilizar a velocidade de 16 fotogramas por segundo. O novo padrão
estabeleceu como norma técnica a velocidade de 24 fotogramas por segundo,
além da necessidade de tratamento acústico das salas, com amplificadores,
autofalantes e a própria concepção arquitetônica.
Com isso, os grandes estúdios norte-americanos mais uma vez se
aproximaram do capital financeiro, que passou a fornecer financiamentos
para a adaptação ou construção de novas salas, desde que houvesse contratos
de garantia com os estúdios. Vale dizer que a maioria das grandes produtoras
já possuía salas de exibição, que foram as primeiras a serem adaptadas.
Mesmo os exibidores independentes continuaram atrelados ao fornecimento
de filmes através de contratos com os estúdios. Pode-se dizer que, na prática,
o capital financeiro para a exibição foi avalizado pelos estúdios, que optaram
pelos exibidores que concordassem com as normas de distribuição que as
grandes companhias impunham.12
A conversão do cinema mudo em sonoro foi tão brusca, que muitos filmes que haviam
sido inicialmente planejados como filmes mudos foram subitamente reelaborados para se
adequar à nova realidade sonora. Em alguns casos isto foi feito após o início das filmagens.
OS PRIMEIROS ANOS DO CINEMA SONORO
12
Em Capuzzo, Heitor: Twilight Zone - Combinatórias narrativas e intertextualidades.
30 Trilha Musical
Em vista da forma abrupta pela qual se deu a transição entre o cinema mudo e o
cinema sonoro, todos os envolvidos na realização de filmes foram obrigados a se adaptar
muito rapidamente. Nesse processo diversos recursos da linguagem, desenvolvidos ao longo
de muitos anos de experimentação, tiveram que ser temporariamente postos de lado. Em
termos de refinamento estético e acabamento, os primeiros filmes sonoros estavam bem
abaixo do padrão de qualidade do cinema mudo.
Ironicamente, todos os problemas advinham do próprio sistema de sonorização.
Naquele momento, era necessário que o som fosse gravado ao vivo, na forma que hoje
conhecemos por som direto. As câmeras até então em uso eram bastante ruidosas e tinham de
ser colocadas, junto com seu operador, em um cubículo isolado, de modo que esse ruído não
fosse registrado junto com os diálogos do filme. Em outras palavras, a introdução do som
roubou ao realizador de filmes não apenas o mundo de sonhos das imagens silenciosas, mas
roubou-lhe também quase que todos os movimentos de câmera13.
No que cabe à musica de cinema, foi também um momento de muitas dificuldades. O
registro sonoro, tal como era feito então, permitia apenas duas saídas: ou se gravava música,
ou se gravava diálogo. Qualquer tentativa de se gravar música simultânea à ação dramática
exigia esforços desmedidos. Max Steiner14 relata os problemas que enfrentou nesse período:
Nos velhos tempos um dos maiores problemas era a gravação direta, já
que a mixagem e a dublagem eram desconhecidas naqueles dias. Era
necessário ter permanentemente a orquestra inteira e os vocalistas no set de
filmagem, dia e noite. Era uma despesa imensa. (...) Era impossível trabalhar
com rapidez. Muitos ensaios e muitas tomadas (takes) eram necessários antes
que se pudesse obter um resultado satisfatório. Eu soube de casos em que um
pequeno número, de dois ou três minutos de duração, teria levado dois dias
para ser gravado15 .
A precariedade dos equipamentos de gravação afetava também a qualidade da
execução musical. O próprio Max Steiner descreve uma situação onde isso ocorreu:
13. Em Prendergast, Roy: Film Music - A neglected art, pg. 20.
14. Steiner, Max (1888-1971). Compositor austríaco, emigra para os Estados Unidos em 1924. Participa de
espetáculos teatrais na Broadway e em 1929 muda-se para Hollywood onde se tornará um dos mais férteis,
produtivos e importantes compositores para o cinema.
15. Em Prendergast, Roy: op. cit. pgs. 22/23.
O Sonho de Edison 31
Durante as filmagens de uma certa película... levamos dois dias para
encontrar um lugar adequado para o contra-baixo, já que as condições
acústicas do palco eram tais que todas as vezes que o contrabaixista tocava o
seu instrumento a pista de som era saturada (distorcida ou borrada). Esta
experiência com toda a companhia - atores, cantores e músicos - no set,
custou à companhia setenta e cinco mil dólares.16
A inexistência de recursos de pós-produção sonora, tais como o sistema de pistas
sonoras, a regravação, a dublagem e a mixagem17, não permitia uma manipulação sofisticada
da pista de som. Sendo assim, não havia o que hoje conhecemos por edição sonora.
Diálogos, música e sons naturalistas (ruídos), tinham que ser realizados ao vivo
durante a filmagem. Se, como foi dito por Max Steiner, o som de um contrabaixo era
suficiente para saturar a pista de som, ruídos mais intensos, tais como os tiros, por exemplo,
tinham que ser forjados, pois era absolutamente impossível gravá-los a partir da fonte sonora
real.
Assim, de uma hora para outra, a música, que antes era a responsável por preencher
todo o espaço sonoro do filme, tornou-se um problema, e teve que conviver com os diálogos e
os ruídos. Na impossibilidade de inteirar-se com a nova sonoridade, ela se viu em situação de
concorrer com ela. Uma concorrência na qual a música entrava em grande desvantagem.
Em primeiro lugar é preciso levar em conta todas as dificuldades técnicas e o alto
custo envolvido na produção de música para os filmes naquela época. Em segundo lugar vem
a questão da estratégia de marketing da indústria cinematográfica. Somos obrigados a
reconhecer que, por este ponto de vista, a música não era de modo algum uma novidade.
Aquilo que foi visto como novidade realmente significativa na incorporação do som aos
filmes foi a possibilidade do diálogo. O próprio termo usado então para designar os filmes
sonoros, talking pictures, é um símbolo disso.
Do ponto de vista musical, essa síndrome realista, que teve início com o advento do
som sincronizado, vai se constituir também em um dado de limitação. Objetivamente falando,
16. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 23.
17. O termo mixagem já era usado no período mas se referia ao ato de coordenar os diversos microfones usados
na gravação, de modo que houvesse equilíbrio das diversas fontes sonoras na pista de som final. Atualmente, o
termo mixar significa combinar as diversas pistas de som já gravadas e montadas em uma única gravação. Todo
o processo é feito magneticamente ou, em sistemas mais recentes, digitalmente. A conversão para o sistema de
som ótico é o último estágio da produção sonora do filme.
32 Trilha Musical
havia apenas duas maneiras básicas de utilização da música nos filmes de então. A primeira
delas era utilizá-la como acompanhamento musical, abolindo assim os diálogos e sons
naturalistas. Esse tipo de utilização da música possibilitava a produção de musicais, onde os
números tinham que ser gravados ao vivo, som e imagem simultaneamente. Como vimos, isso
era bastante dispendioso para os estúdios18. Por outro lado, o uso da música como
acompanhamento, tal como era feito no cinema mudo, ia contra a necessidade comercial de se
explicitar o novo recurso da sincronização, e também contra a ânsia por efeitos de caráter
realista que tomou conta de Hollywood.
Isso acabou levando a situações curiosas, como relembra o próprio Max Steiner:
Mas eles (diretores e produtores) achavam que era necessário explicar
a música visualmente. Por exemplo, se eles queriam música para uma cena de
rua, era mostrado um realejo. Era fácil usar música em cenas de nightclubs,
salões de baile e teatros, já que neles as orquestras necessariamente
desempenham um papel no filme.
Vários procedimentos estranhos eram usados para introduzir a música.
Por exemplo, uma cena de amor poderia estar alocada em um bosque e para
justificar a idéia musical necessária ao seu acompanhamento, um violinista
errante seria apresentado sem nenhuma razão objetiva. Ou, ainda, um pastor
deveria ser visto conduzindo sua ovelha e tocando sua flauta, para o
acompanhamento de uma orquestra de cinquenta instrumentos.19
A segunda opção era a de não usar música no filme, ou no máximo utilizá-la quando
fosse inevitável fazê-lo pelos moldes do realismo de então. Na literatura podem ser
encontrados diversos exemplos de filmes que fizeram pouquíssimo uso da música,
concentrando seus esforços no apelo provocado pelos diálogos e pelos sons naturalistas20.
Há dois dos filmes desse primeiro período do cinema sonoro que merecem ser citados.
O primeiro deles é Chantagem e Confissão21, primeiro filme sonoro de Alfred Hitchcock,
cuja estréia ocorreu em junho de 1929. Chantagem e Confissão é um daqueles filmes
18. Apesar das dificuldades, há três musicais que são sempre citados pela literatura como os primeiros exemplos
do musical americano no cinema. São eles Broadway Melody (1929), King of Jazz (1930) e Forty-Second
Street (1933).
19. Em Prendergast, op. cit. pg. 23.
20. Alguns desses filmes são Little Caesar (E.U.A. - 1930), Quick Millions e The Front Page (E.U.A - 1930).
21. Blackmail (Inglaterra - 1929).
O Sonho de Edison 33
originalmente planejados para serem mudos e que durante a sua produção foram convertidos
em sonoros. Assistindo a esse filme hoje, notamos claramente que se trata, na verdade, de um
filme mudo com alguns momentos falados e alguns sons naturalistas. Há, inclusive, alguns
truques, na tentativa de forjar uma ambientação de cinema sonoro com material filmado
originalmente sem som. Todo o primeiro rolo do filme é acompanhado por música
ininterrupta e apresenta apenas seis efeitos sonoros, todos eles não sincronizados, sobrepostos
à música. Tais são, por exemplo, o ruído da portinhola da carroceria do caminhão e a cena dos
detetives no toalete, onde ouve-se o ruído ambiente, inclusive diálogos, mas nota-se
claramente que os sons não correspondem à sua suposta fonte.
Apesar de ser este o seu primeiro filme sonoro, Hitchcock demonstra já uma certa
ousadia com o novo recurso. Segundo ele:
A atriz alemã, Anny Ondra, mal falava inglês e, como a dublagem tal
como é praticada hoje ainda não existia, contornei a dificuldade apelando
para uma jovem atriz inglesa, Joan Barry, que ficava em uma cabina colocada
fora do enquadramento e recitava o diálogo diante de seu microfone enquanto
a Srta. Ondra fazia a mímica das palavras.22
Assim, Hitchcock inventou um método de gravação que possui características do
play-back e da dublagem. Há também uma cena onde é feito um jogo sonoro bastante
interessante, um primitivo efeito especial com a palavra knife (faca).
A música de Chantagem e Confissão é bastante próxima do cinema mudo. Essa sua
característica é ressaltada pelo fato da música nunca ser ouvida junto com diálogos e sons
naturalistas. Quando há música, há apenas música.
A música em si é uma versão exata do tipo de som usado para
acompanhar filmes na maioria dos cinemas do ocidente no final dos anos
vinte. Ela é repetitiva, de conteúdo simples, altamente atmosférica e quase
toda baseada em um simples “tema com variações” padrão.23
Outro filme que vale a pena comentar é o famoso O Anjo Azul24. Assinada por
Friedrich Hollaender, a trilha musical desse filme é um ótimo exemplo de como as
22. Em Hitchcock - Truffaut: Entrevistas, pg. 44.
23. Em Manvell, Roger e Huntley, John: The Technique of film music, pg. 32.
24. The Blue Angel (Alemanha - 1930).
34 Trilha Musical
dificuldades técnicas eram contornadas com um pouco de criatividade. Em sua grande
maioria, os momentos musicais são inseridos na própria ação filmada, aquilo que na
terminologia especializada recebe o nome de source music25. Dessa maneira foi possível
contornar o problema da edição sonora. Ainda não havia a possibilidade de executar um
mixagem dos diversos sons, mas a possibilidade do corte seco foi utilizada com grande
criatividade, de forma que a porta do camarim de Lola Lola (Marlene Dietrich) funcionasse
como elemento de abertura e corte da fonte sonora.
No que diz respeito à organização da trilha musical, Friedrich Hollaender foi
extremamente meticuloso, combinando a ária Ein Mädchen oder Weibchen, da ópera “A
Flauta Mágica” de Mozart com canções de cabaré, separando assim os universos do Prof.
Rath (Emil Jannings) e Lola Lola. Há uma diferença interessante entre as versões alemã e
americana desse filme. A versão alemã possui uma abertura musical no sentido estrito do
termo, na qual são combinados e transformados os temas da ária operística e de Falling In
Love Again, principal canção do filme. Já a versão americana possui seus créditos iniciais
apenas acompanhados por uma versão instrumental de Falling In Love Again.
O balanço desses primeiros anos do cinema sonoro demonstra que, se por um lado a
música foi como que posta em segundo plano pela indústria, por outro, o que há de melhor na
produção cinematográfica dessa época de uma forma ou de outra envolve a linguagem
musical. Apesar da música não ser o foco das atenções, o cinema não conseguiu se sustentar
enquanto linguagem sem fazer uso dela. Vale dizer que, mais uma vez, foi reforçada a idéia
de que a música havia se tornado parte indispensável do texto fílmico. Se as limitações
técnicas impediram que nesse momento a trilha musical de cinema desse o salto qualitativo
permitido pela incorporação da totalidade das sonoridades, são essas mesmas limitações
técnicas que apontaram para a necessidade de uma evolução nos equipamentos que permitisse
um uso menos restrito da música. Foi aí também que se descobriu que o texto falado no
cinema não tem a mesma importância que o texto no teatro. Para incorporar os diálogos, a
linguagem do cinema foi obrigada a se reestruturar, se adaptar às novas condições. A música
sempre havia estado lá.
SUSTOS, MEDOS, EUFORIA: A POLÊMICA DO SOM
As limitações técnicas e estéticas provocadas pela introdução do som sincronizado no
cinema desencadearam uma grande polêmica em torno da nova técnica. Como sempre ocorre
25. Entende-se por source music todo tipo de intervenção musical no qual a fonte sonora é claramente
identificável na imagem. Por exemplo, uma orquestra, um disco que é posto a tocar, o rádio, e assim por diante.
O Sonho de Edison 35
nessas ocasiões, havia o grupo dos que estavam a favor do som e o grupo dos ferrenhos
defensores do cinema enquanto arte muda. Havia o grupo dos puristas, que viam no som uma
ameaça à própria linguagem do cinema. Segundo eles, o som viria destruir todas as conquistas
obtidas até então pelo cinema enquanto linguagem. Havia também aqueles que assumiam uma
postura corporativista, protestando contra o imenso número de profissionais que se viram,
então, desempregados, desde atores, que não conseguiram se adaptar ao texto falado, até os
músicos, diretamente ligados às salas de exibição, que do dia para a noite tornaram-se
totalmente desnecessários.
Mas havia também os otimistas, os visionários. O compositor Ernst Toch, escrevendo
para o The New York Times, declarou que o foco de atenção da música de cinema deveria
ser o filme-ópera26. E ele não estava se referindo a adaptações de óperas famosas, mas sim da
criação de uma linguagem operística peculiar ao cinema. O Dr. Toch chega, inclusive, a
afirmar que o primeiro filme-ópera, uma vez escrito e produzido, irá despertar muitos
outros27.
Em agosto de 1928 foi publicada pela primeira vez a famosa Declaração - Sobre o
futuro do cinema sonoro.28 Assinada por Sergei Eisenstein, V. I. Pudovkin e G. V.
Alexandrov, esse texto apresenta uma séria apreensão sobre os possíveis usos do novo recurso
técnico que, segundo eles, poderia comprometer de modo irreversível as conquistas obtidas
até então pela arte cinematográfica.
Em primeiro lugar, é preciso refletir um pouco sobre a época e o contexto em que tal
declaração foi escrita. O cinema soviético, naquele momento, estava cotado entre os melhores
do mundo, não apenas por suas realizações, mas também pelo alto grau de desenvolvimento
que havia alcançado no plano teórico. Foram eles, por exemplo, que sistematizaram as teorias
de montagem. Seus textos, de uma forma ou de outra, são até hoje leitura obrigatória para os
estudantes e os profissionais de cinema.
Foi também um período onde a arte, a teoria e a ideologia revolucionária caminhavam
lado a lado, unidas e indissociáveis. Em vista disso, os textos teóricos produzidos naquele
período pelos soviéticos tendem a ser extremamente afirmativos, decididos e, impregnados de
uma grande carga ideológica.
26. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 21.
27. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 22.
28. Publicada originalmente nas revistas Sovietski Ekran e Zhizn Iskusstva em agosto de 1928. Posteriormente
incluída no livro A forma do filme.
36 Trilha Musical
Acima de tudo, por trás das declarações dos três soviéticos pode-se perceber o medo
de que o cinema sonoro viesse destruir todo o trabalho desenvolvido por eles e por um grande
número de cineastas ao longo de muitos anos. Havia o receio de que o cinema viesse a se
tornar um teatro filmado. Havia o medo de que o som, novidade por si mesmo, passasse a ser
o foco decisivo de toda a produção cinematográfica. Nas entrelinhas dos argumentos dos
soviéticos percebe-se, também, o medo de que o cinema soviético não consiga aparelhar-se a
tempo de entrar no novo meio de produção junto com a indústria cinematográfica norteamericana, o que levaria, inevitavelmente, a uma mudança na privilegiada posição que
ocupava o cinema soviético no contexto internacional.
Como vimos, eles tinham razão no que diz respeito aos resultados obtidos pelo cinema
sonoro a curto prazo. O que eles não puderam prever é que o cinema sonoro passaria por uma
evolução tão rápida em seus primeiros anos de existência. Não era possível prever que as
limitações técnicas seriam superadas com tanta velocidade e que não só o cinema não seria
obrigado a abrir mão de suas especificidades de linguagem e articulatórias, como iria também
incorporá-las a todo o complexo que integra a banda sonora do filme.
Assim, o som não desarticulou a linguagem do cinema, mas trouxe a ela toda uma
nova dimensão, cujas possibilidades narrativas e articulatórias só fizeram aumentar
sobremaneira o léxico da linguagem cinematográfica.
Por outro lado, o texto dos soviéticos apresenta uma solução bastante lúcida para o
problema. Em um exercício de futurismo quase visionário, eles propõe que a única maneira
do cinema incorporar o som sem ser obrigado a abrir mão de suas especificidades seria fazer
um uso polifônico desses sons em relação às imagens. Em música, o termo polifonia é usado
para descrever o tipo de construção musical onde várias vozes se desenvolvem
simultaneamente, articuladas umas com as outras, mas mantendo o caráter de independência
melódica, ou de individualidade, de cada uma dessas vozes29.
Em outras palavras, a idéia dos soviéticos é a de que o discurso sonoro não pode ser
subjugado pelas imagens, ou seja, que ele não pode ser usado apenas para corresponder ao
29. O termo polifonia é usado em música em duas acepções distintas. A primeira delas, mais genérica, é aquela
em que ele se refere a qualquer tipo de construção musical que faça uso de sons sobrepostos, em oposição ao
termo monofonia, que significa o tipo de música onde apenas um som é ouvido a cada vez. Assim, diz-se que o
piano é um instrumento polifônico, enquanto a flauta é um instrumento monofônico. A segunda acepção do
termo diz respeito à idéia de construção contrapontística do discurso musical, a somatória de vozes
independentes, e se opõe ao conceito de homofonia, que é o tipo de construção musical que faz uso de blocos
sucessivos de sons, ou acordes, sem se preocupar com a individualidade melódica de cada uma das vozes.
O Sonho de Edison 37
que está sendo visto. Som e imagem são complexos sígnicos paralelos, que devem interagir,
mas conservando um grau de independência que lhes ofereça um grande número de
possibilidades de articulação e, conseqüentemente, de resultados significativos. Algo assim
como ocorre com as diversas vozes de um contraponto.
Nesse aspecto, os soviéticos tinham razão. Tanto, que não iria demorar muito para o
cinema descobrir toda essa outra dimensão representada pelo som. Passado o furor provocado
pela novidade, os realizadores de filmes vão começar a buscar todas as possibilidades
narrativas permitidas pelas combinações de texto falado, sons naturalistas e música. Não era
mais necessário ser fiel ao realismo do primeiro momento.
Esse foi o passo decisivo na consolidação do cinema. Foi também com isso que deu-se
a consolidação do filme enquanto produto industrializado. Pela primeira vez o cinema se viu
em uma posição de não possuir mais nenhum vínculo com as artes ao vivo. Só então ele está
apto a explorar ao máximo sua potencialidade. Realizado o sonho de Edison, o cinema vai
entrar em uma fase muito importante de sua história e nesse contexto a música vai exercer um
papel fundamental.
A EVOLUÇÃO DA MÚSICA DE CINEMA NA DÉCADA DE TRINTA
A introdução da gravação de bandas óticas independentes possibilitou à banda sonora
o mesmo grau de manipulação das imagens. Diálogos, música e sons naturalistas poderiam, a
partir de então, ser gravados individualmente e posteriormente mixados em uma única pista,
com seus volumes devidamente balanceados. Torna-se também possível editar a banda
sonora, da mesma forma que era feito com as imagens. A sincronização não precisava mais
ser feita durante as gravações, e as películas contendo o material sonoro podiam ser
colocadas, junto com as imagens, na moviola, e sincronizadas mecanicamente. É nesse
momento que surge a edição sonora. É a partir daí, também, que podemos passar a nos referir
à música de cinema como trilha musical, e ao complexo de três pistas (diálogos, efeitos
sonoros e música) como trilha sonora.
O início da década de trinta assistiu também ao surgimento dos primeiros
departamentos de música nos grandes estúdios de Hollywood.
Nessa época, era muito comum que as trilhas musicais dos filmes não fosse composta
por um único profissional. A velocidade com que eram feitos os filmes não permitia que se
38 Trilha Musical
assumisse uma postura individualizada de artista perante a obra. Era preciso trabalhar na
velocidade da indústria, no esquema das linhas de montagem. O compositor David Raksin
conta que no dia que um novo filme chegava às suas mãos, toda a equipe se reunia de manhã
para assisti-lo. Segundo ele:
À hora do almoço nós havíamos separado o filme em seqüências que
presumivelmente necessitavam de música, determinado o tipo de material
temático necessário e quem iria escrevê-lo. Após o almoço, enquanto eram
preparadas as planilhas de tempo que nos permitiriam sincronizar nossa
música com o filme, Buttolph, Mockridge e eu nos dirigíamos a nossos
estúdios para compor qualquer material específico do qual estivéssemos
encarregados. Nós nos encontraríamos de novo, rapidamente, com muitas
versões de cada tema, para decidir quais em cada categoria seriam de melhor
serventia aos nossos propósitos, que normalmente eram bastante claros porém nunca definidos; esses temas eram fotocopiados e cada um de nós
ficava com um conjunto de todo o material para esse filme. A essa altura as
planilhas de tempo já estavam prontas, assim nós dividíamos o trabalho em
três partes, e cada um voltava para sua casa para compor o seu terço.
Às vezes havia tempo para cada um orquestrar a sua própria
seqüência, mas normalmente a urgência era tanta, que na manhã seguinte nós
já estávamos entregando esboços para os orquestradores, e ao meio-dia eles
estavam distribuindo páginas de partituras aos copistas. Na manhã do quarto
dia começaria a gravação; o estúdio tinha uma refinada orquestra sob
contrato, e disponível a qualquer momento. As partituras tinham de trinta a
quarenta minutos de duração, sempre incluindo “perseguições” em
andamento muito rápido - os quais implicavam em muitas notas para serem
escritas, isso tornava o trabalho lento; mesmo com a habilidade e o
profissionalismo de todos os envolvidos era bem provável que enquanto nós
estivéssemos gravando uma seqüência a outra estivesse ainda sendo copiada.
No quinto dia, deveria começar um par de dias de mixagem (colocar
todas as pistas de diálogo, música e efeitos sonoros juntos para o preview ou a
transcrição final). Depois disso haveria uma breve pausa e então o processo
começava novamente.30
30. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 31.
O Sonho de Edison 39
Em vista dessa mecânica de produção da trilha musical, característica aos grandes
estúdios naquela época, é muito comum encontrarmos os créditos de música assinados pelo
diretor musical31 do filme, que era o responsável pela coordenação da equipe.
A QUESTÃO DO CLICHÊ
Em vista da excessiva carga de trabalho imputada aos departamentos de música, é
natural que muitos filmes dessa época apresentem uma série de procedimentos similares em
suas trilhas musicais. O senso-comum costuma definir esses procedimentos por clichês.
Todavia, é bom que seja feita aqui uma distinção. O próprio termo clichê tem um sentido
bastante pejorativo e traz consigo uma idéia de limitação criativa, de fórmula préestabelecida. Num sentido mais estrito, pode ser considerado como clichê o uso de uma
mesma unidade mecanicamente. Isso, de fato, acontecia na época, especialmente em
produções mais baratas, tais como os seriados de cinema. Em muitos casos, inclusive, não
havia a preocupação em se requisitar ao departamento de música, já tão sobrecarregado, que
escrevesse uma música original para essa categoria de filmes. O que se fazia era recolher
material de arquivo já gravado e editá-lo com vista às necessidades do filme. É claro que
nesses casos a organização da trilha musical era um trabalho muito mais mecânico e sujeito a
todos os tipos de clichês.
Mas é preciso estar atento ao fato de que nem sempre o uso de um mesmo tipo de
idéia musical, ou de um mesmo procedimento significa um clichê. É de se levar em conta que
havia um padrão estético no que diz respeito à música de cinema da época, e até que ponto
tais procedimentos podem ser classificados como clichês, é difícil dizer.
CARACTERÍSTICAS DA MÚSICA DE CINEMA NA DÉCADA DE TRINTA
A partir do momento em que o uso da música nos filmes deixou de ser limitado por
questões técnicas, parece ter havido uma grande euforia. Passou-se a usar música para quase
31. O termo também é usado para designar o profissional responsável pela organização de trilhas musicais
montadas a partir de material em arquivo.
40 Trilha Musical
tudo. De certa forma o que se vê nessa época é um resgate da velha tradição do
acompanhamento musical contínuo, nos moldes do cinema mudo.
Esse fato pode ser explicado por duas vias distintas e complementares. A primeira
delas diz respeito à tradição do cinema, que era justamente a do acompanhamento musical
contínuo. Essa tradição foi temporariamente abandonada por motivos técnicos. Porém, ao que
parece, assim que esses problemas técnicos foram resolvidos e abriu-se o leque de
possibilidades para o uso da música, o referencial que se possuía então era o da tradição. A
outra via de argumentação parte da idéia de que a trilha musical de cinema, tal como a
conhecemos hoje, onde a música age interativamente não apenas com as imagens, mas com
todo o complexo sonoro do filme, ainda não existia. Era preciso aprender a usar a música,
desenvolver uma nova disciplina. Passou-se, então, a experimentar, e essa fase de
experimentação caracteriza-se por um certo exagero. Por último, é preciso também lembrar
que naquela época havia entre os produtores o mito de que a música teria o poder de
“conduzir” o filme, funcionando como uma espécie de amálgama capaz de uniformizar
defeitos de construção e oferecer-lhe progressividade rítmica. Nisso também é possível
perceber um forte resquício da tradição do cinema mudo e de como essa tradição foi decisiva
na formação da linguagem do cinema.
Esse tipo de trilha musical que ocupa quase que a totalidade do filme gerou um termo
que até hoje é bastante conhecido na área: o mickeymousing32.
Por mickeymousing entende-se o tipo de construção onde a trilha musical está
diretamente vinculada à ação filmada. É um tipo de trilha musical que tem um caráter bastante
descritivo, parece estar sempre comentando as imagens. O vínculo se dá, numa primeira
instância, pelo aspecto rítmico, ou seja, música e imagem se desenvolvem com um andamento
similar e possuem o mesmo grau de atividade rítmica33. Mas apesar da instância rítmica ser
primordial, também nos níveis melódico e de instrumentação pode dar-se a correspondência.
32. Obviamente o termo foi derivado do nome do famoso ratinho de Walt Disney.
33. O conceito de andamento na linguagem musical diz respeito à velocidade do pulso sobre o qual a música se
desenvolve. Dizemos que um determinado movimento musical é um adagio, por exemplo, quando seu
andamento é lento; já o allegro é de um andamento rápido. Em termos absolutos o andamento é medido por
unidades metronômicas. Um andamento “60”, por exemplo significa que cada minuto contém sessenta pulsos
(ou unidades de tempo) daquela música, trata-se de um andamento lento. Um metrônomo “240”, por sua vez é
um andamento rápido, pois a cada minuto duzentos e quarenta pulsos serão percorridos.
Já o termo atividade rítmica refere-se ao número de figuras de duração (ou valores rítmicos)
executados no espaço de cada um desses pulsos. Um pulso pode ser subdividido, por exemplo, em quatro ou seis
ataques, o que significa uma atividade rítmica intensa. Por outro lado, uma única figura rítmica pode durar
vários pulsos, ou seja, pouca atividade rítmica.
O Sonho de Edison 41
Um filme que exemplifica muito bem tudo o que foi dito acima é E O Vento Levou34.
Em seus duzentos e vinte e dois minutos de duração, nada mais nada menos que cento e
noventa e dois apresentam alguma espécie de música, ou seja, apenas trinta minutos do total
do filme não possuem música35. O tipo de relação entre som e imagem em E O Vento Levou
também é um exemplo bastante fiel da técnica do mickeymousing, tal como era usado naquela
época.
Parece haver uma concordância entre os autores na área de que o dado estilístico da
música do cinema na década de trinta tem como referencial a música sinfônica e operística
européia do final do período romântico mais especificamente, a da segunda metade do século
XIX. Essa influência torna-se ainda mais explícita se notarmos o número de compositores
europeus, ou de formação européia, que se instalaram em Hollywood naquele período36. A
respeito desse dado estilístico, Prendergast diz o seguinte:
Foi durante esse período (década de trinta), que os compositores
solidificaram as formas e os estilos que seriam usados pelos compositores de
filmes por quase todo o tempo que estava por vir. Max Steiner, Erich
Wolfgang Korngold e Alfred Newman foram mais responsáveis por
estabelecer este estilo que quaisquer outros compositores. Impõe-se a questão:
por que esses compositores escolheram o estilo que eles escolheram, a saber,
o idioma sinfônico da metade para o final do século XIX assim exemplificados
nos trabalhos para o palco de Wagner, Puccini, Verdi e Strauss? Uma
resposta que tem sido dada é que o público “entende” esse idioma mais
facilmente que outro. Esta resposta, todavia, meramente reflete um equívoco
fundamental sobre a relação da música e das artes dramáticas. Quando
confrontados com o tipo de problemas dramáticos que os filmes lhes
apresentavam, Steiner, Korngold e Newman apenas olharam (não importa se
consciente ou inconscientemente) para aqueles compositores que haviam, em
grande parte, resolvido problemas quase idênticos em suas óperas.37
Em princípio é possível concordar com Prendergast. Porém, há questões que ficam
ainda sem reposta: por que o cinema incorporou o modo de tratar o problema desses
compositores e não um estilo musical totalmente diferente? Por que o referencial buscado por
34. Gone With The Wind (E.U.A. - 1939). Música de Max Steiner.
35. Ver em Bazelon, Irwin: Knowing the score, pg. 22.
36. Por exemplo : Max Steiner, Erich Korngold, Franz Waxman e Dimitri Tiomkin.
37. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 39.
42 Trilha Musical
eles não foi, por exemplo, o dos balés de Stravinsky? Aí, somos obrigados a voltar àquela
explicação que ele considera um equívoco fundamental. Não é possível desconsiderar o fato
desse estilo musical ser bastante acessível ao público de cinema daquele período. O fato dos
grandes estúdios terem incorporado justamente esse estilo musical é um dado significativo da
aceitação desse tipo de música por parte do público. Não devemos esquecer, também, que a
tradição musical do cinema, desde o período do cinema mudo, está ligada ao estilo romântico.
Neste sentido, poderíamos dizer que há uma progressão evolutiva natural, que faz com que a
linguagem musical do cinema mudo permaneça na primeira década do cinema sonoro. A
transformação dessa linguagem e a incorporação de novos estilos é algo que vai ocorrer
gradualmente ao longo dos anos subseqüentes38.
ALGUMAS QUESTÕES DE NATUREZA ESTÉTICA
Tendo em mente tudo o que foi discutido no item anterior, torna-se possível chegar a
alguns pontos muito interessantes sobre a consolidação da linguagem da trilha musical no
cinema.
Em primeiro lugar há um dado bastante curioso: a partir do momento em que o cinema
sonoro se consolida, o caminho que percorrem os profissionais envolvidos com a criação e a
realização de filmes não vai no sentido da gradativa incorporação da música ao cinema, mas
exatamente no sentido inverso, ou seja, o da gradativa economia no uso da música.
Esta constatação nos leva a um questionamento importante: no que diz respeito à
música, o que mudou de fato com o advento do cinema sonoro? E a partir daí: qual o papel da
música na composição desse novo discurso?
Um aspecto importante do cinema sonoro é aquele que diz respeito à ilusão de
realidade. Sobre isto há um fragmento de Jean-Louis Comolli que diz o seguinte:
A fala e o Sujeito da fala entram em cena. Tão logo eles são
produzidos, som e fala são geralmente decretados a “verdade”, a qual estava
38. O jazz e a música atonal, por exemplo, só viriam a ser incorporadas pelo cinema na década de cinqüenta,
com os filmes: Um Bonde Chamado Desejo (A Street Car Named Desire - E.U.A. - 1951), música de Alex
North e Vidas Amargas (East of Eden - E.U.A. - 1955), música de Leonard Rosenman. Coincidentemente,
esses dois filmes foram dirigidos por Elia Kazan, o que faz deste diretor uma importante personalidade no que
diz respeito à evolução da linguagem musical do cinema.
O Sonho de Edison 43
faltando ao filme mudo... a verdade que é subitamente anunciada, não sem
alarme e resistência, como tendo faltado ao filme mudo. E simultaneamente
essa verdade torna não mais válidos todos os filmes que não a possuem, que
não a produzem. O suplemento decisivo, o “lastro de realidade” (Bazin)
constituído por som e fala ocorrendo simultaneamente, portanto, como
aperfeiçoamento e redefinição da impressão de realidade.39
O conceito de ilusão de realidade é bastante útil para se analisar o cinema sonoro sob
o ponto de vista da incorporação do diálogo, basta ver que, de fato, houve um surto realista
nos primeiros anos do cinema sonoro. Mas isso durou muito pouco e, depois, de que modo
isso se aplica à questão da trilha musical?
Notamos que, no que diz respeito à música, o som sincronizado permitiu a
incorporação da intervenção musical de caráter naturalista, aquela que possui uma
justificativa na ação filmada40. Daí a insistência, nos primeiros anos do cinema sonoro, para
que a música fosse sempre justificada nas imagens.
Mas, passada a novidade da incorporação do universo sonoro realista ao filme, o
cinema volta a usar a música sem se preocupar em justificá-la visualmente. De certo modo, a
herança do acompanhamento musical do cinema mudo estava enraizada a tal ponto na
linguagem do cinema, que ele não poderia desfazer-se dela.
A partir disso, pode-se dizer que a ilusão de realidade não implica, necessariamente,
no emprego de recursos naturalistas. O “universo real do filme”, construído a partir de
recursos articulatórios de caráter naturalista ou não, envolve o espectador em seu próprio
espaço-tempo e, desde que esse “universo” seja verossímil, ou narrativamente consistente, a
ilusão de realidade estará criada. A música é, indiscutivelmente, parte desse “universo real do
filme”, e como parte dele é aceita pelo público, independente do fato de existir ou não alguma
justificativa visual para ela. Não é à toa que Hollywood já foi chamada de indústria de
sonhos. O sonho é o que o público espera do cinema e a música é um fator indispensável para
a construção desses sonhos.
Partindo por esta via de análise, percebemos que os compositores de música para
cinema da década de trinta se viram diante de todo um complexo sígnico a ser desvendado.
Todo o referencial de música aplicada às artes dramáticas - teatro, ópera, dança, mímica 39. Em Gorbman, Claudia: op. cit. pg. 43.
40. A literatura especializada chama esse tipo de intervenção musical de source music ou de realistic music.
44 Trilha Musical
podia ser aplicado apenas em parte ao cinema. Em todas as outras artes acima citadas há uma
separação entre a música e os outros complexos sonoros ou, no mínimo, eles se desenvolvem
paralelamente.
O cinema, ao contrário, inaugura o conceito de linguagem audiovisual. O sonoro e o
imagético são concebidos e articulados como um todo. A música vê-se, então, como uma das
faces desse universo sonoro e torna-se necessário engendrar todo um sistema de articulação
para ela, tanto com os outros elementos sonoros, quanto em relação ao universo das imagens.
A coexistência com diálogos e sons naturalistas também permitiu ao compositor de
cinema a descoberta da música enquanto sonoridade no filme, e não apenas como discurso. O
leque de possibilidades de texturas e contrastes sonoros foi largamente ampliado.
Ironicamente, foi essa mesma coexistência que possibilitou a incorporação do silêncio
enquanto sonoridade integrante desse universo.
A década de trinta serviu como laboratório para esse processo de descoberta e
organização de toda a dimensão sonora do filme. Nela surgem procedimentos que subsistem
até hoje. Quando ela termina, o cinema sonoro, está consolidado. Mas, como sabemos, muito
ainda estava por acontecer.
Capítulo 3
O SONHO DE EISENSTEIN
O cinema sonoro não despertou apenas o interesse da indústria, dos grandes estúdios.
Tão logo tornou-se viável a sincronização de sons e imagens, começaram as tentativas no
sentido de se estabelecer princípios teóricos que pudessem explicar a relação entre ambos.
Surgiram, também, os primeiros textos, críticos, que procuravam avaliar o uso que o cinema
fazia da música no nível de sua produção comercial. Paralelamente, houve quem se
dispusesse, através da experimentação prática, descobrir as novas possibilidades significativas
oferecidas pelo novo veículo, que poderiam, posteriormente, ser incorporadas pela produção
industrial de filmes.
OS PRECURSORES DO VÍDEO-CLIP
O compositor Edmund Meisel, colaborador de Eisenstein na música dos filmes
Encouraçado Potenkim e Outubro, era um verdadeiro aficionado pela busca de relações
entre som e imagem. Partidário da opinião de Eisenstein, de que a música e o cinema
possuem similaridades estruturais, desde o período do cinema mudo Meisel pesquisava um
46 Trilha Musical
meio de explicitar essas similaridades. Em um texto de 1934, Ernest Borneman descreve um
dos experimentos realizados por Meisel:
Meisel analisou a montagem de diversos filmes mudos no que refere ao
ritmo, intensidade, clímax emocional e caráter. Para cada plano isolado ele
designou um determinado tema musical. Em seguida ele combinou diretamente
os temas isolados, usando o ritmo, intensidade e clímax da montagem visual
para a organização de sua música. Ele desejava mostrar, com este
experimento, que a montagem de um bom filme é baseada nas mesmas leis e se
desenvolve do mesmo modo que a música. O resultado deste experimento foi
que muitos dos assim chamados “bons” filmes de modo algum produziram
música, mas apenas um caos de vários temas,
desordenados e
desorganizados. Outros dos filmes que ele escolheu, contudo, resultaram em
um tipo de rapsódia, inusitada e extraordinária para os ouvidos, mas no
entanto, não sem uma certa continuidade musical.1
Os experimentos de Meisel serviram de base para um projeto experimental bastante
amplo que viria a ser desenvolvido pelo Instituto Alemão de Pesquisa Fílmica em Berlin.
Infelizmente, Meisel veio a falecer antes que tal instituição adquirisse câmeras sonoras, que
lhe permitiriam pôr em prática diversas de suas hipóteses.
Trabalhando com a técnica conhecida, então por montagem sonora2, os pesquisadores
desse instituto partiam da premissa que o cinema sonoro tornaria possível - graças à absoluta
precisão na sincronia entre sons e imagens - o desenvolvimento de novos métodos de
construção de filmes.
Dentre os aspectos estruturais que serviram de ponto de partida para as experiências as
questões relativas ao pulso e ao ritmo ocuparam uma posição de destaque. A partir de uma
música pré-estabelecida, os pesquisadores passaram a executar a montagem de planos e
1. Em Manvell, Roger e Huntley, John: The technique of film music: pg. 27.
2. Aqui o termo montagem sonora (sound montage) é usado numa acepção diferente da usual e significa o
método de construção de filmes pelo qual a montagem das imagens é determinada pelas leis estruturais da
linguagem musical. Basicamente, trata-se do método descrito no experimento de Meisel.
O Sonho de Eisenstein 47
seqüências de acordo com a estrutura temporal da música. Sincronizando os cortes segundo o
pulso e as figuras rítmicas da música, procuravam chegar a um resultado onde o ritmo
pudesse ser visualizado, em simultaniedade com a percepção auditiva.
As experiências com o aspecto temporal da música não se limitaram à pura e simples
junção de planos. Logo elas tinham atingido o domínio da montagem interna ao plano:
panorâmicas, travellings, outros movimentos... Segundo Ernest Borneman:
Pulso e ritmo, por exemplo, poderiam ser agora exprimidos por
movimentos horizontais e verticais de um lado para outro; crescendo e
decrescendo por aproximações e retrações da câmera; a curva melódica por
movimento em curva correspondente da câmera. Câmera lenta e câmera
rápida eram usadas para representar variações musicais de tempo; fade-in e
fade-out para aumento e decréscimo de intensidade musical; one-turn onepicture para as síncopas; prismas para acordes; planos compostos e duplaexposições para vários tipos de harmonias e dissonâncias.(...)
(...) Refrões, por exemplo, poderiam ser exprimidos pela frequente repetição
de uma certa série de planos, ou temas recorrentes poderiam ser
representados pelo realce de certas imagens. Truques de instrumentação tais
como surdinas poderiam ser claramente interpretados por gazes, distorções de
espelhos e de lentes especiais.3
Apesar do imenso trabalho exigido na execução de tais experimentos, os resultados
não foram tão significativos quanto seus idealizadores esperavam. Ao longo dos anos eles
descobriram que as similaridades entre a linguagem musical e a articulação fílmica não eram
tão exatas ou, pelo menos, que aquele não era o caminho para chegar-se à essência última
dessa similaridade. Ao contrário do que esperavam, suas experiências não iriam resultar em
um novo princípio, ou uma nova norma estética para o cinema sonoro. O prematuro estágio
em que se encontravam naquele momento os meios de comunicação audiovisuais não lhes
possibilitou perceber o verdadeiro potencial estético de suas pesquisas. Muitos anos depois, já
3. Em Prendergast, Roy: Film music: A neglected art: pg. 27.
48 Trilha Musical
na década de oitenta, os mesmos princípios viriam a ser aplicados novamente, agora sim com
finalidade artística, nos moldes estéticos dos grandes veículos de comunicação de massa, a
ponto de se tornar quase uma coqueluche. Eles não sabiam, mas estiveram muito próximos de
inventar o vídeo-clip.
EISENSTEIN E A PARTITURA AUDIOVISUAL
No mesmo período em que as pesquisas acima descritas eram executadas na
Alemanha surgem as primeiras tentativas de tratamento da música de cinema sob o ponto de
vista teórico. Por tratar-se, então, de uma prática muito recente, há muito de especulação
nessas primeiras tentativas, não no sentido pejorativo do termo, mas no sentido de que não
havia ainda o tempo suficiente para que ela pudesse ser avaliada com um maior
distanciamento crítico.
Uma das primeiras tentativas no sentido de se estabelecer um método que pudesse
orientar a relação da música com as imagens pode ser encontrada nos primeiro e terceiro
artigos da trilogia intitulada Montagem Vertical4 de Sergei Eisenstein.
Eisenstein, assim como Meisel, acreditava na existência de muitas similaridades entre
os princípios articulatórios do cinema e os da linguagem musical. Desde seus primeiros textos
teóricos pode-se notar a insistência com que ele se utiliza de exemplos e paralelismos
musicais para explicar processos específicos do cinema. Em certo momento de seu trabalho,
Eisenstein chega mesmo a apropriar-se de termos técnicos musicais. Em sua famosa teoria
dos métodos de montagem, por exemplo, ele apresenta a seguinte classificação: montagem
métrica, montagem rítmica, montagem tonal, montagem atonal e montagem intelectual5.
Basta olhar para esta lista para perceber-se que as comparações de Eisenstein não eram
apenas metáforas, mas que ele realmente acreditava na correlação entre as duas linguagens.
4. Publicados pela primeira vez na revista Iskusstvo Kino (Arte do Cinema) entre os meses de setembro de
1940 e janeiro de 1941. Posteriormente incluídos no livro O sentido do filme.
5. Para maiores detalhes ver artigo Métodos de montagem, em A forma do filme.
O Sonho de Eisenstein 49
A atitude de Eisenstein pode ser entendida se levarmos em conta dois dos aspectos
que ela denota. Em primeiro lugar é preciso observar que Eisenstein, sendo um dos primeiros
teóricos a tratar das questões referentes à articulação fílmica sob o ponto de vista técnico, não
possuía ainda nenhum referencial conceitual nem terminológico sobre o qual pudesse
desenvolver o seu trabalho. Era necessário criar uma conceituação, e ele o faz usando a
terminologia própria à música, que àquela altura dos fatos já estava bastante desenvolvida,
coesa e sedimentada.
Em segundo lugar seria possível dizer que a opção de Eisenstein pela música não é
infundada, nem inconseqüente, a partir do momento em que é possível, de fato, constatar que
cinema e música possuem um grande número de similaridades no que diz respeito à
construção de seus discursos: ambos se desenvolvem no tempo; têm como princípio
construtivo a junção ordenada de pequenas unidades, que se agrupam em unidades maiores
para compor a forma; estão fundamentadas em princípios temporais, tais como ritmo e
andamento. Especialmente, ambos são donstruídos sobre um eixo horizontal (que se
desenvolve no tempo) e outro vertical (que rege a simultaneidade de eventos.
Se desde o período do cinema mudo Eisenstein já demonstrava essa especial afinidade
com a terminologia musical, com o advento do cinema sonoro ele passa a vislumbrar toda
uma imensa gama de relações e novos paralelos a serem traçados entre os discursos visual e
sonoro, agora simultâneos e sincronizados. Se aquele empréstimo de termos musicais havia
dado tão certo antes do som sincronizado, por que não haveria de funcionar também, e
especialmente, agora que o som havia se tornado parte integrante do discurso fílmico?
Essa tendência já está manifesta na Declaração - Sobre o futuro do cinema sonoro,
discutida no capítulo anterior, quando Eisenstein, junto com seus colegas soviéticos, propõe o
conceito de uso polifônico do som no cinema. Ao longo dos anos seguintes, Eisenstein vai
estabelecendo as normas dessa polifonia e, por fim, sistematiza-a nos artigos da trilogia
montagem vertical.
Como é sabido, o grande foco das atenções de Eisenstein como teórico foi a
montagem cinematográfica. No primeiro artigo da trilogia, que recebeu o sugestivo nome de
Sincronização dos sentidos, ele procura estabelecer o conceito de montagem vertical,
50 Trilha Musical
partindo do princípio que as mesmas leis que regem a montagem visual podem ser aplicadas à
sincronização de sons e imagens. Para tanto, ele lançou mão de um outro paralelo, o da
partitura orquestral:
Todos estão familiarizados com o aspecto de uma partitura orquestral.
Há várias pautas, cada uma contendo a parte de um instrumento ou de um
grupo de instrumentos afins. Cada parte é desenvolvida horizontalmente. Mas
a estrutura vertical não desempenha um papel menos importante, interligando
todos os elementos da orquestra dentro de cada unidade de tempo
determinada. Através da progressão da linha vertical, que permeia toda a
orquestra, e entrelaçado horizontalmente, se desenvolve o movimento musical
complexo e harmônico de toda a orquestra.6
O que Eisenstein faz aqui é tão somente delimitar com mais precisão o conceito de
polifonia. A polifonia musical possui dois sentidos: o primeiro deles é o sentido horizontal,
que é o sentido melódico de cada uma das vozes da polifonia. O outro sentido, o vertical é
onde dá-se a organização da simultaniedade da polifonia, ou seja, o aspecto harmônico. É na
busca dessa correlação vertical, ponto-a-ponto, transposta para o domínio do cinema, que ele
vai desenvolver o seu raciocínio. Em outras palavras, Eisenstein está buscando um princípio
teórico que explique a relação som/imagem do ponto de vista polifônico, no sentido mais
estrito do termo. Para ele, é aí que pode ser encontrada a superestrutura das relações
audiovisuais.
Do ponto de vista da estrutura da montagem, não mais temos uma
simples sucessão horizontal de quadros, mas uma nova “superestrutura” é
erigida verticalmente sobre a estrutura horizontal do quadro. Unidade a
unidade, estas novas faixas da “superestrutura” diferem em comprimento das
da estrutura do quadro, mas, desnecessário dizer, elas são iguais no
comprimento total. As unidades sonoras não se encaixam nas unidades visuais
em ordem seqüencial, mas em ordem simultânea.7
6. Em Eisenstein, Sergei: O sentido do filme, pg. 52.
7. Idem pg. 55.
O Sonho de Eisenstein 51
Segundo Eisenstein, a “chave” para essa polifonia audiovisual está no movimento,
comum aos dois discursos. A idéia de movimento nos remete ao fator temporal e,
conseqüentemente, ao ritmo, que é para ele o nível mais elementar da relação som/imagem.
Para ligarmos tais elementos, encontraremos uma linguagem natural
comum a ambos - o movimento. (...) O movimento nos mostrará de uma forma
concreta o significado e o método do processo de fusão. (...)
(...)Neste caso, a arte só começa no momento da sincronização em que a
conexão natural entre o objeto e seu som não é apenas gravada, mas ditada
pelas exigências da obra expressiva em desenvolvimento.8
Mas para Eisenstein, as relações rítmicas são tão elementares que não chegam a
merecer, sequer, uma atenção maior.
Este é o caso mais simples, mais fácil e mais frequente de montagem
audiovisual, que consiste em planos cortados e montados com o ritmo da
música da trilha sonora paralela. (...)
(...)Porém, é evidente que, mesmo neste nível comparativamente baixo de
sincronização, há uma possibilidade de se criar composições interessantes e
expressivas.
A partir destes casos mais simples - simples coincidência métrica de
cadência (...) - é possível organizar uma ampla variedade de combinações
sincopadas e um “contraponto” puramente rítmico na execução controlada de
ritmos livres, planos de diversas distâncias, temas repetidos e repercutidos, e
assim por diante.9
Para Eisenstein, como é possível notar pelo fragmento acima, essas relações são por
demais óbvias, primárias. Ele está preocupado em levar às últimas conseqüências o paralelo
8. Idem pg. 56.
9. Idem, pgs. 56/57.
52 Trilha Musical
entre som e imagem. Para tanto, ele vai aplicar seus conceitos a estruturas musicais mais
complexas, em especial ao discurso melódico.
Que passo segue-se a este segundo nível de movimento superficial
sincronizado? Possivelmente um que nos capacitará a mostrar não apenas
movimento rítmico, mas também movimento melódico.10
É a partir daí que Eisenstein começa a perder-se em seu próprio discurso. Através de
um jogo de termos técnicos bastante questionável, ele vai procurar estabelecer um complexo
de relações absolutas bastante discutível, especialmente pela introdução do fator cor.
A “unidade superior” na qual somos capazes de organizar os tons
independentes da escala de sons, pode ser visualizada como uma linha que os
une através do movimento. As mudanças tonais nesta linha também podem ser
caracterizadas como movimento, não mais como um movimento
estremesclado, mas como um movimento que vibra, cujas características
podemos perceber como sons de diapasão e tons variados.
Qual o elemento visual que ecoa este novo tipo de “movimento”
introduzido em nossa discussão pelos tons? Obviamente será um elemento que
também se movimenta por vibrações (apesar de ter uma formação física
diferente), e que também é caracterizado pelos tons. Este equivalente visual é
a cor.11
O texto acima, do ponto de vista musical é totalmente incoerente. O que significa, por
exemplo, unidade superior que organiza os sons de uma escala? Procurar estabelecer uma
relação de equivalência entre sons e cores é entrar em um labirinto teórico sem saída. Existem
várias tentativas com essa finalidade que foram feitas através da história e nenhuma delas
chegou a lugar nenhum, nem do ponto de vista teórico, nem no que diz respeito ao resultado
poético desse sistema de equivalências.
10. Idem, pg. 57.
11. Idem, pg. 57.
O Sonho de Eisenstein 53
Outro fator que prejudica a objetividade da análise de Eisenstein é o emprego de
alguns termos técnicos de música de uma forma ambígua, ou mesmo inexata. Esse problema
já pode ser encontrado em textos mais antigos do autor, antes mesmo dele começar a se
preocupar com o cinema sonoro. Em A quarta dimensão do cinema12, por exemplo, falando
sobre a montagem de seu filme A Linha Geral13, ele escreve o seguinte:
Aí, junto com a vibração de um tom dominante básico, vem uma série
completa de vibrações semelhantes, chamadas de tons maiores e tons
menores. Seus impactos uns contra os outros, seus impactos com a tonalidade
básica, e assim por diante, englobam essa tonalidade básica em um conjunto
total de vibrações secundárias. Se na acústica estas vibrações colaterais se
tornam meramente elementos “perturbadores”, essas mesmas vibrações, na
música - na composição, se tornam um dos mais significativos meios de causar
emoções utilizados por compositores experimentais de nosso século, como
Debussy e Scriabin.14
Por mais incrível que possa parecer, no trecho acima Eisenstein está falando de
montagem cinematográfica. Enquanto metáfora, ou por analogia, os termos musicais podem
ser aplicados para explicar determinadas características da linguagem do cinema. Mas quando
se penetra na linguagem musical com o grau de detalhamento ao qual ele se propunha, os
argumentos começam a perder a sustentação.
A tentativa de Eisenstein de criar um método objetivo de correlações entre som e
imagem que pudesse ser aplicado ao processo de criação e realização de filmes chega ao seu
ápice no artigo Forma e conteúdo: Prática, o terceiro da trilogia montagem vertical. Nesse
texto ele apresenta a proposta de métodos concretos de construção de relações entre música e
12. Publicado pela primeira vez no jornal Kino, em agosto de 1929.
13. A Linha Geral (Gueneralnaia Liniia - U.R.S.S. - 1929) é também chamado de O Velho e o Novo (Staroie I
Novoie).
14. Em Eisenstein, Sergei: A forma do filme, pg. 73.
54 Trilha Musical
quadro no cinema, utilizando como exemplo de aplicação prática desses métodos uma
seqüência de seu filme Alexander Nevsky15.
Na própria proposição está embutida uma idéia ambígua, pois nela se fala da relação
absoluta entre música e quadro, sendo que, imediatamente antes, Eisenstein havia dito que o
ponto comum entre os discursos sonoro e imagético era, justamente, o movimento. A
premissa de utilizar o quadro como referencial para o desenvolvimento do método vai ser um
fator prejudicial para todo o desenvolvimento da argumentação de Eisenstein.
Uma outra premissa discutível de Eisenstein é a de que a decodificação da linguagem
musical se dá por meio de imagens visualizadas pelo ouvinte:
Todos nos referimos a peças musicais particulares como
“transparentes”, ou “dinâmicas”, ou que tem um “padrão definido”, ou
“contornos indistintos”.
Fazemos isso porque a maioria de nós, ao ouvir música, visualiza
alguns tipos de imagens plásticas, vagas ou claras, concretas ou abstratas, mas
de algum modo peculiarmente relacionadas e correspondendo às nossas
próprias percepções da música em questão.16
Eisenstein afirma com uma segurança de fazer inveja algo que não pode provar e que
em uma avaliação mais rigorosa é, no mínimo, matéria para longas discussões. Logo de início
seria possível levantar a seguinte questão: por que o processo de percepção musical depende
de um referencial exterior à própria música? Por que não é possível decodificar relações
sonoras puras? Será que o fato de algumas pessoas lançarem mão de associações com
imagens não significa pura e simplesmente que essas pessoas não possuem uma terminologia
adequada para expressar-se a respeito do que ouviram? Não é fácil provar tudo isso, nem é o
que nos interessa no momento, contudo, um argumento simples pode ser dado no sentido da
negação das afirmações de Eisenstein: se as pessoas não são capazes de decodificar relações
15. Alexander Nevsky (U.R.S.S. - 1938). Música de Sergei Prokofiev. Em português é também conhecido por
Cavaleiros de Ferro.
16. Em Eisenstein, Sergei: O sentido do filme, pg. 102.
O Sonho de Eisenstein 55
sonoras puras, de que modo elas decoram as músicas que ouvem? Será que para cantarolar o
Parabéns a Você cada um de nós precisa antes remeter-se à sua imagem pessoal dessa música
e a partir dela recordar a melodia?17 Tudo indica que Eisenstein construiu sua premissa sobre
o conceito que o mais elementar senso comum possui a respeito do processo de comunicação
através da linguagem musical. E é a partir dessa premissa que ele fundamenta o seu método:
A partir do material apresentado acima, podemos formular um método
simples, prático, de combinações áudio-visuais.
Devemos saber como apreender o movimento de uma determinada
peça musical, fixando seu caminho (sua linha ou forma) como a base da
composição plástica que deve corresponder à música.
(...)Um compositor deve agir do mesmo modo quando pega uma seqüência
cinematográfica previamente montada: ele é obrigado a analisar o movimento
visual tanto através de sua construção abrangente de montagem, quanto da
linha estilística desenvolvida de plano a plano - até as composições dentro dos
planos. Ele terá de basear sua composição da imagem musical nesses
elementos.18
Tendo partido de tal premissa, Eisenstein acredita que exista, de fato, uma
correspondência entre os fatores plásticos do quadro e o movimento musical:
(...)não podemos negar o fato de que a impressão mais surpreendente e
imediata será obtida, é claro, a partir de uma coincidência do movimento da
música com o movimento do contorno visual - com a composição gráfica do
quadro; porque este contorno, esboço ou linha é o mais vívido “enfatizador”
da própria idéia do movimento. (...)
17. Não pretende-se aqui chegar ao extremo de dizer que não existe um processo de idéias associativas na
decodificação da linguagem musical, muito pelo contrário. O que se questiona é o conceito de imagem pictórica
que Eisenstein apresenta.
18. Idem, pg. 104.
56 Trilha Musical
(...)Tentaremos descobrir neste caso o “segredo” das correspondências
verticais seqüenciais que, passo a passo, relacionam a música com os planos
através de um movimento idêntico, que está na base do movimento musical,
assim como do pictórico.19
A partir dessa fundamentação, Eisenstein chega à sua proposição de uma partitura
audiovisual, onde seriam descritas as correspondências entre a música e sua imagem
correspondente. O fundamento dessa partitura audiovisual é totalmente gráfico, ou seja, uma
linha ascendente dentro do quadro teria como correspondência um movimento de alturas
ascendentes na música.
Um exemplo de aplicação dessa “partitura” é apresentado por Eisenstein através de
uma seqüência do filme Alexander Nevsky. Trata-se, em última instância, de um story-board
onde são apresentados os doze planos que compõe a seqüência e sob eles estão dispostas a
partitura musical, em exata correspondência com os respectivos planos e, abaixo dela, uma
síntese gráfica do que seria para ele o movimento comum a ambos.
O discurso de Eisenstein pode surpreender aos mais desavisados, porque ao
assistirmos à referida seqüência no filme vemos que ela é, de fato, muito bem construída.
Pode parecer à primeira vista que isso ocorre graças à “partitura audiovisual”, sendo que isto
não é verdade. A seqüência funciona porque tanto Eisenstein era um grande diretor, um
homem que sabia articular muito bem imagens e música, quanto Prokofiev era um ótimo
compositor e sabia escrever música para filmes. A música se relaciona bem com a imagem
nessa seqüência, não porque corresponda aos contornos dos planos, mas porque as relações
sonoras que apresenta em seu desenvolvimento são adequadas ao que está sendo visto e
contado. Essa adequação advém, acima de tudo, do equilíbrio da composição audiovisual. Do
efeito dramático da espera da batalha que se aproxima, do tempo do suspense, que passa
lentamente, quando todos se calam e voltam-se a si mesmos, preparando o inevitável encontro
com o inimigo. Em última instância, é com estes aspectos que o espectador está preocupado e
é por esta via que vai sua percepção. Ninguém se ocupa, nesse momento, em observar se o
19. Idem, pg. 106/107.
O Sonho de Eisenstein 57
movimento ascendente da música corresponde à linha da montanha, ou se as semínimas em
tremolo correspondem às lanças erguidas, o que importa é a batalha que virá.
Em certo sentido, chega a ser surpreendente que um cineasta com o conhecimento que
Eisenstein possuía sobre o seu ofício, tendo desenvolvido um trabalho tão meticuloso sobre as
técnicas de montagem, ou seja, tendo um domínio tão grande do princípio narrativo do
cinema e da importância do movimento para essa linguagem, tenha se fixado justamente em
uma premissa que põe aparte toda a questão do movimento natural do cinema, que é aquele
que ocorre pela sucessão de fotogramas e planos, para ater-se a um movimento presumível
interno à composição pictórica do quadro.
A partir do momento em que ele se fixa no aspecto plástico da composição do quadro,
ele descarta o sentido temporal do cinema. Sendo que a narrativa desenvolve-se no mesmo
sentido do discurso musical e ambos são regidos pelo fator tempo, este seria um caminho
muito mais fértil para a busca de correspondências audiovisuais.
De tudo o que foi dito acima, podemos obter como síntese o seguinte: Eisenstein
possui os méritos de ter percebido que cinema e música são correlatos, enquanto linguagens
temporais e quanto aos princípios de construção de seus discursos; a partir desse
desenvolvimento temporal, ele incorporou o conceito de ritmo na articulação fílmica; ele
também foi um dos primeiros a perceber e a acreditar nas possibilidades narrativas do som e,
especialmente, da música no cinema, em um momento em que a grande novidade era
apresentar as pessoas falando na tela. Acima de tudo, ele foi um dos primeiros a perceber que
deve haver um princípio que rege as relações entre música e imagem nas linguagens
audiovisuais. Suas grandes falhas foram, em primeiro lugar, ter acreditado que houvesse um
sistema de correlações absolutas entre som e imagem, sendo que é quase impossível, sequer,
delimitar com clareza o conteúdo significativo de uma determinada música, pelo menos no
estágio em que se encontrava, e se encontra ainda hoje a nossa compreensão da linguagem
musical. Em segundo lugar, Eisenstein foi infeliz em sua opção pela supremacia do aspecto
plástico, pictórico, em detrimento da temporalidade, do ritmo, da articulação fílmica e da
progressão narrativa.
58 Trilha Musical
OUTRAS PERSPECTIVAS TEÓRICAS
Ao contrário do caminho proposto por Eisenstein, qual seja, o de encontrar um método
que pudesse orientar a composição da mensagem audiovisual, desde o princípio da década de
trinta podem ser encontrados trabalhos que procuram estabelecer uma conceituação, uma
terminologia e uma análise crítica da produção de música para o cinema. A grande diferença
entre esses trabalhos e o de Eisenstein é o fato deles tomarem por referencial a própria
produção da indústria cinematográfica. Em outras palavras, a partir da análise e síntese de
procedimentos comuns em filmes eles tentam estabelecer os princípios teóricos que guiam a
produção de música no cinema, enquanto Eisenstein procurava um princípio teórico absoluto
que pudesse orientar essa produção.
A maioria desses trabalhos apresenta uma síntese das funções que a trilha musical
pode exercer em relação à totalidade do filme. Normalmente, o critério para a elaboração
dessa síntese é o da indução: “música pode servir para...” Em The technique of film music,
encontramos a seguinte classificação20:
a) Música e ação
b) Música cênica e de lugar
c) Música de época
d) Música para tensão dramática
e) Música de comédia
f) Música para a emoção humana
g) Música em filmes de animação e especializados
20. Em Manvel, Roger e Huntley, John: op. cit. pg. 89.
O Sonho de Eisenstein 59
Em um trabalho mais recente, Film Music - A neglected art, é apresentada uma lista
de funções similar à anterior21:
a) Música pode criar uma atmosfera mais convincente de tempo e lugar
b) Música pode ser usada para sublinhar ou criar refinamentos psicológicos - os
pensamentos não ditos de um personagem ou as implicações não vistas de uma situação
c) Música pode servir como um tipo de fundo neutro de preenchimento
d) Música pode ajudar a construir o sentido de continuidade de um filme
e) Música pode prover a sustentação para a construção teatral de uma cena e então
arrematá-la com um sentido de finalização
Em outros trabalhos do mesmo gênero, encontramos classificações similares, com
pequenas diferenças de um para outro. A respeito delas pode-se levantar o seguinte
questionamento: será que os tópicos apresentados cobrem, de fato, todos os usos possíveis da
música nos filmes? E mais: será este o melhor caminho para o tratamento teórico da música
de cinema?
Uma crítica que pode ser feita a tal tipo de abordagem é que esses tópicos de funções
estabelecem categorias que nos permitem classificar uma determinada passagem da trilha
musical de um filme, porém, elas não nos permitem delimitar o modo pelo qual essa música
se integra à narrativa desse filme. Será que uma música de época em vários filmes diferentes
exerce sempre a mesma função? Não ocorre nenhuma mudança no aspecto sígnico desse tipo
de música de um filme para outro? Será que o modo pelo qual a música de um filme pode
significar o não dito ou o não visto é sempre o mesmo?
A impressão que fica sobre esses trabalhos é a de que eles abordam a trilha musical
quase que exclusivamente sob o ponto de vista da música, e não do cinema. É como se a
música fosse algo que é colocado sobre o filme, e não algo que faz parte dele. Esse é um dos
maiores riscos que se corre ao tentar estudar a música do cinema, de repente, sem que se
21. Em Prendergast, Roy: op. cit. pgs. 201/210.
60 Trilha Musical
perceba, estamos falando apenas de música e nos esquecemos do cinema. Nesse aspecto
Eisenstein foi muito sábio, pois procurou desenvolver seu método tendo sempre em mente o
signo audiovisual como uma unidade.
Assim, não é possível encontrar na literatura especializada um trabalho sobre trilha
musical que tente abordá-la sob o ponto de vista do cinema, a partir de suas técnicas e de seu
código específico.
Em grande parte isso ocorre porque não existe ainda uma conceituação e uma
terminologia próprias à trilha musical, enquanto a música, ao contrário, possui uma
fundamentação teórica bastante clara e bem sedimentada. Sendo assim, torna-se muito
tentador explicar a trilha musical exclusivamente sob o ponto de vista da música. A teoria de
cinema, por sua vez, evita ao máximo aprofundar-se na questão, como se o significado de
cinema se confundisse com o de imagens em movimento, pura e simplesmente, reforçando a
idéia de que a trilha musical é um discurso paralelo ao filme e não parte integrante dele. E por
aí criou-se o círculo vicioso: o cineasta não fala da trilha musical porque não entende de
música e o músico volta todas as suas atenções às questões musicais porque não se sente
seguro para falar de cinema.
Em Unheard melodies, Claudia Gorbman procura sistematizar a prática musical do
cinema dos anos trinta através do exemplo do compositor Max Steiner. Desse modo ela acaba
chegando a um tipo de classificação um pouco diferente dos outros trabalhos. Para ela, a
síntese do modelo hollywoodiano clássico de trilha musical é o seguinte22:
a) Invisibilidade: o aparato técnico da música não diegética23 não deve ser visível.
b) Inaudibilidade: a música não é destinada a ser ouvida conscientemente. Assim, ela deve
subordinar-se aos diálogos, às imagens - ou seja, aos veículos primários da narrativa.
22. Em Gorbman, Claudia: op. cit. pg. 73.
23
A autora adota os termos “diegético” e “não-diegético” para identificar os dois tipos de inserção da música na
trilha, quais sejam, a música cuja fonte pode ser identificada na ação filmada (source music) e aquela cuja fonte
não pode ser identificada, respectivamente.
O Sonho de Eisenstein 61
c) Significador de emoção: a trilha musical pode estabelecer climas e enfatizar emoções
particulares sugeridas na narrativa, mas em primeiro lugar e acima de tudo, ela é um
significador de emoção por si só.
d) Sugestão narrativa:
referencial/narrativa: a música proporciona sugestões narrativas e referenciais, indicando
pontos de vista, provendo demarcações formais e estabelecendo ambientação e caráter.
conotativa: a música “interpreta” e “ilustra” eventos narrativos.
e) Continuidade: a música provê continuidade rítmica e formal - entre planos, em transições
entre cenas, preenchendo “lacunas”.
f) Unidade: pela repetição e variação do material musical e da instrumentação, a música
auxilia na construção da unidade formal e narrativa.
Como é possível notar, existem alguns pontos comuns entre esta última classificação e
as apresentadas anteriormente. Por exemplo, o princípio de continuidade já pode ser
encontrado na classificação anterior. A grande diferença, porém, reside no fato da autora ter
abandonado o sentido indutivo em sua análise, ou seja, o ponto de partida não é mais a
música serve para..., ela está à procura de uma classificação onde possam ser sintetizadas as
diversas implicações da música na narrativa fílmica.
A partir daí pode ser iniciada toda uma discussão, agora, sob o ponto de vista da
linguagem narrativa do cinema, e não de uma perspectiva puramente musical. Em outras
palavras, através das teorias específicas do cinema, é possível discutir a música como parte
integrante da narrativa fílmica.
Para podermos iniciar a discussão sobre a música no modo narrativo do cinema,
vamos nos valer dos princípios da teoria dos gêneros, da dramaturgia e dos fundamentos da
articulação fílmica. Em certo sentido, isso significa resgatar o ponto de partida de Eisenstein,
que apesar de todos os equívocos na elaboração de seu método, foi o primeiro a insistir na
idéia de que deve-se buscar entender o processo de composição audiovisual do cinema como
62 Trilha Musical
um todo. Para ele não havia um discurso imagético e um discurso sonoro independentes, mas
um complexo audiovisual que só podia ser entendido enquanto somatória desses sistemas
sígnicos. Hoje, mais de cinqüenta anos após a publicação de seus trabalhos na área, a teoria de
cinema ainda não conseguiu resolver várias das implicações contidas nas questões por ele
apresentadas, e talvez ainda demore muito a fazê-lo. Assim, o sonho de Eisenstein ainda está
vivo, e continua a ser um sonho.
PARTE 2
MÚSICA E
ARTICULAÇÃO
FÍLMICA
Capítulo 4
TRILHA MUSICAL E A TEORIA DOS GÊNEROS
O CINEMA E A TEORIA DOS GÊNEROS
A teoria dos gêneros tem sua origem na filosofia grega clássica. A primeira tentativa
de classificação das obras literárias por gêneros pode ser encontrada em Platão1 e,
posteriormente, na Arte poética de Aristóteles2. A partir da conceituação desses dois filósofos
a teoria desenvolve-se, chegando ao momento presente sob a forma de uma classificação
tríplice, sintetizada nos conceitos de Épico, Dramático e Lírico. Em essência, a teoria dos
gêneros procura classificar a obra literária segundo a maneira pela qual o poeta se posiciona
em relação a seu texto, e de que modo a sua presença se manifesta nessa obra.
O gênero Lírico é aquele onde o poeta exprime subjetivamente as suas impressões
pessoais sobre os fatos, ou suas emoções. Segundo Anatol Rosenfeld:
A lírica tende a ser a plasmação imediata das vivências intensas de um
Eu no encontro com o mundo, sem que se interponham eventos distendidos no
tempo. (...) A manifestação verbal “imediata” de uma emoção ou de um
sentimento é o ponto de partida da lírica. (...)
1. Ver em Platão, República, Livro 3.
2. Ver em Aristóteles, Arte poética, capítulo 3.
68 Trilha Musical
(...)Este caráter do imediato, que se manifesta na voz do presente, não é,
porém, o de uma atualidade que se processa e distende através do tempo, (...)
mas de um momento “eterno”,(...) permanecendo à margem e acima do fluir
do tempo, como um momento inalterável, como presença intemporal.3
Em contraposição ao lírico, onde o Eu subjetivo do poeta confunde-se com o próprio
objeto da mensagem poética, está o gênero épico, no qual o sujeito do poeta opõe-se ao objeto
da mensagem.
O épico é o gênero da narração, onde o poeta conta os fatos, procurando fazê-lo de
maneira imparcial. Obviamente, essa imparcialidade é relativa, mas conserva o
distanciamento necessário para que a narrativa possua um caráter pretérito na ação, e em cujo
fim, seja ele qual for, não se pode mais interferir. Esse distanciamento faz com que o narrador
se veja em uma condição de impotência no que diz respeito à sua interferência no objeto da
narração. Mesmo quando a narrativa é feita em primeira pessoa, sendo o narrador um de seus
personagens, ela tem essa característica de ação finalizada, cujo desenlace já é parte do
passado.
O gênero dramático, por sua vez, é o gênero da ação presente por excelência. No texto
dramático o poeta se ausenta totalmente, deixando a ação a cargo de personagens que
dialogam e agem por conta própria, sem a interferência de nenhum mediador:
Na dramática, finalmente, desaparece de novo a oposição sujeitoobjeto. Mas agora a situação é inversa à da lírica. É agora o mundo que se
apresenta como se estivesse autônomo, absoluto (não relativizado a um
sujeito), emancipado do narrador e da interferência de qualquer sujeito, quer
épico, quer lírico.4
Para que o texto dramático se efetive, é imprescindível a sua atualização, que dá-se
por meio da ação representada no palco. Assim, pode-se dizer que o texto dramático tem
como objetivo final não a sua leitura, mas a representação, o espaço teatral, onde se dá essa
3. Em Rosenfeld, Anatol: O teatro épico, pgs. 22/24.
4. Em Rosenfeld, Anatol: op. cit. pg. 27.
Trilha Musical e a Teoria dos Gêneros 69
sua atualização. Os personagens devem se materializar através de atores, ganhar vida, dizer
seus diálogos em alto e bom som. Ao contrário da épica, a dramática coloca o público diante
de uma ação, ocorrendo à sua frente naquele momento, e que, portanto, não possui o caráter
de predeterminação. Enquanto a ação está ocorrendo, todas as saídas são possíveis.
O CUNHO ÉPICO DO CINEMA
Mas, e no que diz respeito ao cinema? Existe um gênero que explique o texto fílmico?
A partir do momento em que se constituiu como forma narrativa, o dado épico está na raiz do
gênero cinematográfico. A própria definição de épico de Anatol Rosenfeld parece ser uma
definição do cinema narrativo:
O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo
(naturalmente imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens
(envolvidas em certas situações), emancipa-se em larga medida da
subjetividade do narrador. Este geralmente não exprime os próprios estados
de alma, mas narra os de outros seres. Participa, contudo, em maior ou menor
grau, dos seus destinos e está sempre presente através do ato de narrar.
Mesmo quando os próprios personagens começam a dialogar em voz direta é
ainda o narrador que lhes dá a palavra, lhes descreve as reações e indica
quem fala, através de observações como “disse João”, “exclamou Maria
quase aos gritos”, etc.5
Obviamente, no cinema não é necessário que o narrador intervenha verbalmente com
observações como “disse João”. Há outros recursos que se equivalem à interferência do
narrador na literatura. Algumas dessas interferências são bastante objetivas e podem de fato
ser percebidas pelo público como tais. Um bom exemplo são as legendas do cinema mudo,
que tinham a função de orientar o espectador em relação à narrativa, com intervenções do
tipo: “Do outro lado da cidade...”, ou mesmo fornecendo indicações sintéticas dos diálogos.
Isto se assemelha bastante à intervenção literária “disse João”, pois, durante um breve
5. Idem, pg. 24.
70 Trilha Musical
momento, a ação narrada é interrompida para que o narrador apresente um plano distinto onde
podem ser lidas as palavras correspondentes àquele diálogo que está sendo visto em silêncio.
Mas não é apenas nesse tipo de interferência objetiva que se manifesta o dado épico
do cinema. Em cada plano, em cada seqüência, está implícita a voz de um narrador. Christian
Metz se refere a essa característica do cinema, embora não fosse a sua preocupação discutir a
questão do gênero:
Um primeiríssimo plano de um revólver não significa “revólver”
(unidade léxica puramente virtual) -, mas significa no mínimo, e sem falar das
conotações, “Eis um revólver”. Ele carrega consigo uma espécie de eis.6
Assim, no cinema não é preciso que o narrador intervenha com deixas literárias como
“disse João”, ele simplesmente seleciona o plano de João falando e determina o lugar que ele
ocupará em determinada seqüência do filme. Por trás de tudo o que acontece na tela está a
mão do narrador, desde a seleção dos ângulos a serem filmados, a luz, cenários, figurinos, a
caracterização dos personagens, a montagem, a música. Enfim, tudo o que pode ser visto e
ouvido no produto final, que é o filme (tal como o assistimos no cinema), pode ser entendido
como texto e voz desse narrador.
Mas há um ponto crucial que diferencia o narrador no âmbito da literatura em relação
ao narrador no cinema. Na obra literária, de uma forma ou de outra, a figura do narrador
confunde-se com a do autor da obra. No filme, por sua vez, a autoria está como que diluída
entre todos aqueles que participaram criativamente de sua composição. Tradicionalmente a
autoria de um filme é creditada ao seu diretor. De fato, a parcela de responsabilidade do
diretor na criação do filme, especialmente pelo aspecto da centralização que cabe a ele, é
indiscutivelmente muito grande. Mas, em última instância, o filme é um produto da
multiautoria. Não há diretor que consiga fazer um filme sozinho - embora alguns tentem.
Dada a complexidade técnica e o alto grau de especialização exigido dos profissionais
envolvidos com a criação de filmes, o produto final é sempre o resultado da contribuição
criativa de todos esses profissionais. Nesse sentido, o filme é sempre uma criação coletiva,
não em termos absolutos, mas no sentido em que, respeitadas a ordem e a hierarquia próprias
Trilha Musical e a Teoria dos Gêneros 71
à indústria cinematográfica, todos possuem uma parcela de sua criação. O autor da história
original (argumento), o roteirista, o desenhista de produção, o diretor de arte, o diretor de
fotografia, o compositor da trilha musical, o montador, o editor de som, os atores, enfim, toda
a equipe coordenada pelo diretor, que centraliza o processo de criação e confecção. Sem falar
do produtor, que na maioria dos casos tem um grau de autoridade tão grande quanto o diretor,
senão maior. De certo modo, a autoria no cinema poderia ser representada pela forma da
pirâmide. No topo encontram-se o diretor e o produtor, imediatamente abaixo os outros
membros da equipe de criação e assim por diante até a base. Essa pirâmide incluiria todos os
responsáveis, de uma maneira ou de outra, por uma parcela da criação do filme.
Partindo desta argumentação, é possível dizer que o narrador no cinema é tão
complexo quanto a equipe de profissionais envolvida em sua composição. Logo, é possível
afirmar que o narrador no cinema é um narrador coletivo. Esse narrador coletivo objetiva-se
surge como uma resultante de todos os elementos envolvidos na composição do filme. Em
suma, o narrador do cinema é, no plano do narrado, uma abstração.
O CUNHO DRAMÁTICO DO CINEMA
Mesmo em se tratando de obras literárias, a teoria dos gêneros não possibilita uma
classificação absoluta. Como está implícito em seu próprio nome, ela nos permite uma
classificação genérica das obras poéticas e não uma divisão estanque. A respeito disto, Anatol
Rosenfeld diz o seguinte:
Evidentemente ela é, até certo ponto, artificial como toda a conceituação
científica. Estabelece um esquema a que a realidade literária multiforme, na
sua grande variedade histórica, nem sempre corresponde. Tampouco ela deve
ser entendida como um sistema de normas a que os autores teriam de ajustar a
sua atividade a fim de produzirem obras líricas puras, obras épicas puras ou
obras dramáticas puras. A pureza em matéria de literatura não é
6. Em Metz, Christian: A significação no cinema, pg. 85.
72 Trilha Musical
necessariamente um valor positivo. Ademais, não existe pureza de gêneros em
sentido absoluto.7
Se a pureza dos gêneros é quase impossível no domínio da literatura, o que dizer do
cinema, com sua imensa complexidade sígnica? Em relação às obras literárias usa-se uma
subclassificação . A partir dela, passamos a utilizar os termos épico, lírico e dramático em
duas acepções distintas. Isto é o que propõe Rosenfeld na seqüência de seu texto:
A primeira acepção - mais de perto associada à estrutura dos gêneros
- poderia ser chamada de “substantiva”. (...) A segunda acepção dos termos
lírico, épico, dramático, de cunho adjetivo, refere-se a traços estilísticos de
que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o
seu gênero (no sentido substantivo). (...)
(...) Há numerosas narrativas, como tais classificadas na épica, que
apresentam um forte caráter lírico (...) e outras de forte caráter dramático.8
Como vimos, o dado estrutural, ou substantivo, do gênero no cinema é mais próximo
do épico. Todavia, sempre que falamos de cinema acabamos, de uma forma ou de outra, nos
referindo a aspectos dramáticos. Isso ocorre porque o cinema possui, de fato, um acento
dramático muito pronunciado, que acaba se constituindo em um dado adjetivo de gênero.
Segundo Roman Jakobson, a distinção entre o cinema e o teatro reside no fato de que o
material do cinema é o objeto ótico/acústico, enquanto o material do teatro é a ação do
homem9. Nesta afirmação está implícita a conceituação do gênero cinematográfico, pois se o
objeto do teatro é a ação do homem, é preciso lembrar que o cinema narrativo, tal como o
conhecemos, utiliza como matéria prima para a construção de seu objeto ótico/acústico essa
mesma ação humana. Em última instância, o que vemos nos filmes narrativos são atores,
representando personagens envolvidos em determinados conflitos, com suas emoções,
fatalidades e mazelas do dia-a-dia. São pessoas imaginárias com as quais podemos nos
7. Rosenfeld, Anatol: op. cit. pg. 16.
8. Idem, pgs. 17/18.
9. Jakobson, Roman: Lingüística, poética, cinema, pg. 157.
Trilha Musical e a Teoria dos Gêneros 73
identificar e cujos conflitos vivenciamos interativamente até que encontrem o seu desenlace.
O que é isto senão uma estrutura dramática clássica?
Mas ao contrário do teatro, a ação humana no cinema passa por vários filtros que lhe
retiram o caráter imediato: seleção da imagem que será filmada, filmagem fragmentada,
processo de laboratório, montagem, dublagem e pós-produção, etc. Ela já chega para nós
filtrada pelo ponto de vista do narrador. É por isso que o dado dramático no cinema é
adjetivo, posto que ele jamais pode ser isolado do dado substantivo épico.
É curioso notar como o fator dramático é tão importante para o gênero do cinema que,
ao longo de sua história, a indústria cinematográfica procurou sempre enfatizá-lo, bem como,
sempre procurou ocultar o fator épico. Isso pode ser notado em práticas comuns, tais como a
montagem invisível10, através da qual se obtém uma linearidade narrativa no filme, ou seja, os
recursos articulatórios que compõe o ferramental épico do narrador não devem sobrepujar o
desenvolvimento da narrativa; tanto quanto no gênero dramático, no discurso
cinematográfico, apesar de todas as evidências de sua presença, o narrador acaba
desaparecendo no fluxo narrativo. Ao menos na prática do cinema industrial norte-americano,
o público não deve ser requisitado a observar um determinado corte, ou um movimento de
câmera específico. O que importa é o significado desse corte no desenvolvimento da fábula, o
que ele significa em termos de progressão narrativa. Assim, procura-se criar a ilusão de que
aquilo que ocorre com os personagens na tela, esteja ocorrendo de fato, como se estivéssemos
diante de pessoas reais, em ações reais. Espera-se que o público vivencie o filme como obra
dramática, e não épica.
10. A montagem invisível é um princípio técnico característico ao cinema narrativo nos moldes holywoodianos.
Segundo tal princípio, o espectador não deve perceber conscientemente os cortes, enquadramentos, ou seja os
recursos articulatórios usados para compor o filme. Espera-se que toda a atenção esteja voltada para o
desenvolvimento da narrativa, do enredo, como popularmente dizemos.
74 Trilha Musical
A TRILHA MUSICAL E O GÊNERO CINEMA
A música, enquanto fator da articulação fílmica, faz parte do conjunto de recursos
épicos. Na composição da narrativa ela é um instrumento do qual o narrador pode dispor para
montar o seu discurso. Mas, assim como os outros fatores do aparato articulatório, ela tem
que ser posta a serviço da progressão dramática do filme. Assim, a música pode ser entendida
como uma das vozes do narrador, que pode manifestar-se como intervenção épica ou como
parte da ação dramática.
Desde o momento da criação do roteiro de um filme é necessário ter em mente essa
dupla função (épica e dramática) da trilha musical, pois é do equilíbrio entre as duas que
obtém-se um bom resultado final. Uma música excessivamente interferente, que chame
demais a atenção do espectador sobre si mesma, pode fazer com que esse mesmo espectador
perca o sentido da progressão dramática do filme. Do mesmo modo, um filme onde a música
jamais interfira, onde não exista nenhum rompimento provocado por ela, está dispensando um
importante recurso narrativo e, normalmente, a assimilação do conteúdo dramático por parte
do público nesse tipo de filme tende a ser mais “árida”, exigir uma concentração maior, pois a
música tem um poder muito grande de captação das atenções e funciona como um catalisador
para a compreensão da progressão dramático/narrativa do filme.
Um roteiro minucioso contém indicações de transições, enquadramentos, movimentos
de câmera e também de música, para que no momento da realização desse filme toda a equipe
de profissionais envolvidos já possuam uma idéia do produto final. Obviamente, essas
indicações musicais são apenas referências que, na maioria dos casos, são alteradas na
confecção da trilha musical, que ocorre num momento em que a pós-produção do filme já está
bem mais adiantada. Mas o importante, para o momento, não é o grau de precisão dessas
indicações. O importante é perceber que a trilha musical faz parte da escritura do filme. Ela
está prevista desde o momento de sua concepção, em seu estágio mais inicial.
Neste ponto, é importante fazer uma distinção entre o cinema e as obras dramáticas
tradicionais. O ponto de partida do espetáculo teatral é o texto. O texto dramático traz, no
máximo, indicações das intervenções musicais. Assim, a música no drama tradicional é um
elemento que está ligado ao espetáculo e não à escritura da obra. A cada montagem de um
Trilha Musical e a Teoria dos Gêneros 75
determinado texto dramático, assistimos a um novo espetáculo, uma nova atualização desse
texto, com seus cenários, figurinos, atores e música particulares. Mesmo quando existam
indicações musicais mais precisas, como no caso dos textos que apresentam partituras, a cada
montagem mudam-se os músicos, os arranjos, enfim, o que vemos é uma nova leitura do
material musical original.
O roteiro cinematográfico, por sua vez, não possui o grau de precisão do texto
dramático para o teatro. Ele serve apenas como ponto de partida que orienta a produção do
filme. A partir do momento em que o filme esteja realizado ele perde a sua função, ao
contrário do texto teatral, que é o que subsiste para futuras montagens. O filme será sempre o
mesmo a cada atualização, para se fazer uma releitura de um filme, é preciso fazer um outro
filme, um remake. O “texto” do filme é o próprio filme e a trilha musical faz parte desse
“texto”.
Isso faz com que o cinema tenha um parentesco com a ópera, fato que muito se
comenta mas que foi muito pouco aprofundado pelos teóricos e críticos de cinema. Guardadas
as devidas proporções, tanto na ópera como no cinema a música é um fator primordial na
estrutura da obra, participando integralmente de sua construção dramática. Há, é claro, várias
distinções indiscutíveis, mas já foi dito que o cinema realiza o sonho de Wagner da obra de
arte total, um sonho que nasceu no âmbito da ópera.
Capítulo 5
A ARTICULAÇÃO ÉPICA
Uma das piadas clássicas da história da trilha musical de cinema originou-se durante a
produção do filme Um Barco e Nove Destinos1, dirigido por Alfred Hitchcock. Conta-se que
durante as filmagens, Hitchcock teria feito o seguinte comentário2:
Mas de onde supostamente vem a música no meio do oceano?
Ao qual o compositor David Raksin respondeu da seguinte maneira:
Perguntem ao Sr. Hitchcock de onde vêm as câmeras.
Por trás da ironia, a malícia da resposta de David Raksin conota a sabedoria de quem
conhece o seu ofício. Como grande compositor de música para o cinema, ele já havia
percebido que a trilha musical obedece a leis similares àquelas que regem todos os outros
fatores responsáveis pela articulação fílmica. Poucas vezes alguém se preocupa em saber onde
a câmera foi colocada para a obtenção de um determinado efeito. A pressuposição de que sem
a câmera não existiria o filme é tão banal que ninguém se preocupa em questioná-la. O
mesmo se dá no que diz respeito à montagem. Ninguém espera que um filme seja construído
inteiramente em plano-seqüência. A pressuposição de que para se articular a narrativa fílmica
é preciso que haja cortes e junções de planos é tão clara para o profissional, e tão sedimentada
1. Lifeboat (E.U.A. - 1943).
2. Em Prendergast, Roy: Film music - A neglected art, pg. 210.
78 Trilha Musical
no referencial do público, que há muito já deixou de ser uma questão relevante para a
discussão teórica.
A troca de “farpas” entre Hitchcock e Raksin ilustra bem o fato de que o cinema
demorou mais tempo para compreender que a trilha musical faz parte do grupo de fatores
articulatórios acima citados. Em grande parte isso advém de um certo preconceito que data
dos primeiros anos do cinema sonoro, quando acreditava-se que a música interferia na ilusão
de realidade do filme, por isso ela deveria sempre ser justificada de alguma maneira na ação
filmada3.
Uma observação detalhada mostra que esse preconceito tem uma explicação histórica.
De certo modo, a trilha musical, enquanto instrumento narrativo, passa por uma evolução
similar à dos outros fatores articulatórios, porém com uma grande defasagem no tempo.
Durante todo o período do cinema mudo, a preocupação do cineasta em relação à música de
seus filmes era muito pequena ou, no mínimo, distante. A música se torna um instrumento de
articulação fílmica, de fato, com a introdução do som sincronizado. Assim sendo, quando o
cinema adquire maturidade técnica para empregar a linguagem musical em todo o seu
potencial narrativo, os outros fatores de articulação, como a montagem, por exemplo, estão há
muito consolidados.
Aí, surge a pergunta: por que a trilha musical gerou esse preconceito e os diálogos e
sons naturalistas não? Em vista desta questão, é preciso que se faça uma distinção: diálogos e
sons naturalistas são elementos do modo realista. Não há nada de especial em assistir a uma
pessoa falando, ou ouvir o som de uma porta batendo, quando a porta que vemos nas imagens
se fecha. Isso já faz parte do referencial do público a priori. Mas os fatores articulatórios do
modo não-realista despertam sempre um questionamento, quando se parte da ótica realista. O
modo realista tende a ser aceito sem muitos problemas, enquanto o modo não-realista demora
algum tempo para ser incorporado ao referencial do público.
A trilha musical não foi a única a passar por esse processo, até ser incorporada ao
referencial. Veja, por exemplo, este interessante relato de Erwin Panofsky sobre as seções de
cinema no início do século XX em Berlin:
Os produtores procuravam meios de clarificação semelhantes aos que
se podem encontrar na arte medieval. Entre eles contam-se os títulos ou letras
impressos. (...) Em data anterior houve mesmo explicadores que diziam, viva
3. Ver depoimento de Max Steiner no capítulo 1 deste trabalho.
A Articulação Épica 79
voce, “agora ele pensa que a mulher está morta mas tal não acontece”, ou
“Não quero ofender as senhoras do público, mas duvido que alguma fizesse
tanto pelo filho”.4
Se nos colocarmos na posição do público nesses primeiros anos, veremos que tal
dificuldade em entender a nova linguagem era bastante compreensível. O sistema de
codificação da narrativa fílmica apresentava-se bastante complexo. E quanto maior fosse a
sofisticação do público em relação ao código narrativo do cinema, tão maior seria o número
de recursos narrativos à disposição do realizador de filmes. O público de hoje poucas vezes se
apercebe disso porque está muito habituado à narrativa fílmica, mas isso é resultado de um
amadurecimento do público de cinema que já dura mais de um século.
Caso o cinema tivesse sido sonoro desde a sua origem, é possível que a trilha musical
tivesse evoluído concomitantemente aos outros fatores narrativos. Mas a defasagem no tempo
que existiu entre a consolidação dos aspectos imagético e sonoro da narrativa fílmica criou
uma série de equívocos sobre a função da trilha musical nessa narrativa.
No período do cinema mudo a música era tratada pela indústria como um acessório do
filme, como algo que acontecia paralelamente no momento da exibição. Ela não era vista
como um recurso de linguagem, apesar da imensa importância que teve na consolidação do
cinema perante o público.
Da mesma maneira que o referencial do público se sofisticou, com o passar dos anos,
em relação aos recursos articulatórios do modo não-realista, também no que diz respeito à
trilha musical pode-se notar uma evolução similar. Ninguém se importa em saber de onde
vem aquela música, se a sua fonte tem alguma explicação na ação filmada ou não, da mesma
maneira que ninguém se surpreende quando um corte lança um personagem no futuro ou no
passado. Em última instância, o que importa para esse público é o resultado narrativo e o seu
efeito estético no filme como um todo.
A música de cinema está sempre, de um modo ou de outro, ligada ao fator épico. O
fato de existir ou não música em uma determinada passagem do filme é uma escolha, que tem
por objetivo o fluxo narrativo. Há momentos nos quais a ênfase deve recair sobre um
determinado diálogo. Nesses casos a música pode ser usada com uma função secundária
como, por exemplo, criar uma atmosfera característica. Em outros momentos ela mesma é o
centro das atenções e carrega em si um conteúdo narrativo mais significativo que todos os
4. Em Wollen, Peter: Signos e significação no cinema, pg. 120.
80 Trilha Musical
outros elementos. Tudo se resume ao sentido narrativo, e em função dele deve ser feita a
opção. Ele é o ponto de fuga que coordena o equilíbrio de todos os fatores articulatórios.
Uma determinada passagem musical de um filme será tanto mais épica, quanto mais
ela se caracterizar como interferência do narrador na narrativa.
A MÚSICA NOS CRÉDITOS INICIAIS
Logo de início, nas aberturas dos filmes, costuma-se encontrar manifestações desse
caráter épico da trilha musical. De um modo genérico, todos os créditos iniciais tem por
objetivo direcionar a atenção do espectador para o início da narrativa. Eles são o espaço
reservado ao narrador para a sua preleção inicial. É como se todos eles nos dissessem: “preste
atenção, o filme começou. Você vai assistir a uma estória chamada... Interpretada por...
escrita por... Com música de... Dirigida por...” - Além disso, a abertura já informa, em
grande parte, o que o público pode esperar do filme, se se trata de uma comédia, de ficçãocientífica ou de mistério. A abertura costuma também conter dados de estilo, tais como ritmo,
ambientação, enfoque, entre outros. Todas essas informações são passadas em conjunto, pelas
imagens (inclusive o tipo de letra usado nos créditos) e, especialmente, pela música.
Do ponto de vista musical, os créditos iniciais no cinema industrial, em sua forma
tradicional, possuem uma certa similaridade com a abertura operística. Ambos exercem a
função de situar o espectador em relação ao discurso que se inicia. Ela serve como uma
espécie de transição entre o “mundo real” e o universo particular do espetáculo.
Em alguns casos a música de abertura é construída sobre fragmentos do material
temático que será usado no decorrer de todo o filme. Em outros casos ela é construída sobre
um único tema musical, normalmente o tema principal da trilha musical do filme ou, como
diriam os americanos, o main theme. Esse tema principal pode estar ligado a um personagem,
um lugar, a uma determinada relação ou conflito e fragmentos dele costumam ser usados
como leitmotiv em diversas situações do filme.
A música dos créditos iniciais exerce várias funções simultaneamente. A primeira
delas é a de dirigir a atenção do espectador para o ponto inicial da narrativa e, eventualmente,
para alguma informação em especial que se queira destacar nos créditos iniciais. Era comum
na década de trinta, por exemplo, enfatizar os créditos de produtor do filme com incisivos
A Articulação Épica 81
ataques de acordes no naipe de metais da orquestra5, ou seja, o nome do produtor era
acompanhado de uma fanfarra que dava a ele um destaque proporcional ao seu grau de poder
na confecção do filme6.
A segunda função da música nos créditos iniciais é a de fornecer ao público um
primeiro dado sobre o gênero7, estilo, e ambientação do filme. Um melodrama costuma
apresentar, logo de início, um tema romântico. Um filme de aventura normalmente é aberto
por um tema musical com bastante atividade rítmica, em andamento acelerado, que já procura
situar o espectador em relação aos perigos que o herói do filme irá passar, e onde já se pode
perceber a conotação de movimento e uma certa ansiedade características ao filme de ação.
No que diz respeito à ambientação do filme, a música dos créditos iniciais também pode
oferecer algumas informações relevantes, tais como a época e o local onde se desenvolverá a
ação.
A terceira função da música dos créditos iniciais é a de apresentar ao público o
material temático musical que será usado no decorrer do filme. O tema (ou temas) musicais
apresentados na abertura de um filme adquirem, imediatamente, uma significação especial.
Quando esse tema é usado de forma recorrente, como leitmotiv, no decorrer do filme, ele já
não é desconhecido do público, pois lhe foi dado um momento de destaque. O tema musical
usado na abertura do filme fica, de certo modo, ligado à sua idéia central.
Um tema de abertura clássico é o de E O Vento Levou8. Os créditos iniciais são
apresentados sobre o tema de Tara, principal tema musical do filme, que será usado em todo o
desenrolar da ação. O título do filme atravessa a tela em toda a sua extensão e o tema musical
é tratado em forma imitativa, onde o motivo se repete, transformado, e com mudanças
timbrísticas, como se fosse a resposta de um eco, que lhe confere um sentido de profundidade.
De certo modo tem-se a impressão de que o vento leva, de fato, os créditos e a música.
5. O naipe de metais na orquestra sinfônica tradicional é composto pelos seguintes instrumentos: trompas,
trompetes, trombones e tubas.
6. O uso dos instrumentos de metal para delinear figuras importantes possui uma longa história, que remonta à
renascença, quando eram usados para indicar a presença da nobreza, sendo assim muito usados nas aberturas de
obras dramático-musicais. A prática dos anos trinta confere ao produtor do filme uma aura de aristocrata,
diferenciando-o do restante da equipe que realizou o filme. Um bom exemplo dessa prática é a abertura do filme
King Kong (E.U.A. - 1933).
7. Aqui o termo gênero é usado em sua acepção mais popular, qual seja, aquela pela qual dizemos que um filme
é do gênero western, ou policial, ou mistério, e não no sentido da teoria dos gêneros.
8. Gone With The Wind (E.U.A. - 1939). Música de Max Steiner.
82 Trilha Musical
Uma outra característica curiosa do tema musical de E O Vento Levou é que, apesar
de não possuir letra, ele é construído de forma que o título se encaixa perfeitamente na linha
melódica do motivo principal. Tal característica faz com que a associação subliminar entre o
tema musical e o título do filme se torne muito mais objetiva, assim como uma canção, que
mesmo sendo executada apenas por instrumentos traz à memória do ouvinte o seu texto
poético.
A FUNÇÃO ÉPICA DA CANÇÃO
Os compositores de trilhas musicais para o cinema freqüentemente reclamam de um
mal que ataca ciclicamente a indústria de filmes: a “febre da canção”. Curiosamente, esse mal
ataca normalmente aos estúdios que se encontram em dificuldades financeiras, talvez porque
a falta de capital provoque uma “queda de resistência”, deixando-os vulneráveis a esse mal.
Nesses períodos, quando a “febre” se manifesta, os filmes passam a ter suas trilhas musicais
construídas sempre tendo como ponto de partida uma ou mais canções. Mas, se para os
compositores de cinema a “febre” da canção é um mal, para os produtores ela se constitui em
um grande antídoto para a crise financeira, pois quando uma canção atinge o mercado, rompe
o limite da tela e ganha o espaço público do rádio, da televisão e do disco, é possível que ela
gere um lucro ainda maior do que o próprio filme.
Uma dessas epidemias de “febre da canção” ocorreu no início da década de cinqüenta,
no momento em que o cinema via o lucro das bilheterias despencar devido à sua dificuldade
em se adaptar à convivência com a televisão, cada vez mais comum nos lares do público
médio.
Uma das canções de maior sucesso nesse período foi a balada Do Not Forsake Me Oh
My Darling, composta por Dimitri Tiomkin9 para o filme Matar ou Morrer10. Segundo
consta, o sucesso público dessa canção foi o responsável pelo início da epidemia de “febre da
canção” do início dos anos cinqüenta.
Do Not Forsake Me Oh My Darling tem uma estrutura tradicional do ponto de vista
musical. Trata-se de uma canção simples, que lembra muito as canções folclóricas que são
freqüentemente encontradas em westerns. Sua letra, em primeira pessoa, tem o ponto de vista
9. Com letra de Ned Washington.
10. High Noon (E.U.A. - 1952). Música de Dimitri Tiomkin.
A Articulação Épica 83
do personagem principal, o xerife Will Kane (Gary Cooper) e é um resumo do argumento do
filme:
Do not forsake me, oh my darling
On this our wedding day
Do not forsake me, oh my darling
Wait, wait long
Oh, noon day train will bring Frank Miller
If I'm a man I must be brave
And I must face that deadly killer
Or lie a coward
A craven coward
Or lie a coward in my grave
(...)
Do not forsake me, oh my darling
You made that promise when we wed
Do not forsake me, oh my darling
Although you're grieving
I can't be leaving
Untill I shoot Frank Miller, there
Wait long, wait long, wait long...
A canção acima tem um caráter épico bastante explícito. O narrador literalmente
apresenta a sinopse do filme na trilha musical. E isso se dá tão logo o filme começa, pois a
canção acompanha os créditos iniciais. Junto com os créditos vemos a ação da quadrilha de
Frank Miller se reunindo para recepcionar o seu chefe em sua gloriosa chegada no trem do
meio-dia. Até esse momento, o xerife Will Kane ainda não surgiu, mas o seu ponto de vista
como personagem central da narrativa já está sendo apresentado pela canção, paralelamente à
ação de seus inimigos. Esse paralelismo que é estabelecido logo nos créditos iniciais vai ser a
tônica em todo o desenvolvimento da narrativa, pois os bandidos estão felizes como garotos
em dia de traquinagem, enquanto a voz de Tex Ritter canta o lamento do xerife, que no dia
de seu casamento é abandonado por toda a cidade que ele ajudou a manter em ordem e,
inclusive, pela esposa, que não aceita o fato dele adiar a lua-de-mel para enfrentar a perigosa
quadrilha. Todo o conflito já está sintetizado na abertura do filme, e a canção é um fator
imprescindível para a clareza dessas informações.
84 Trilha Musical
Em seu aspecto épico, de interferência do narrador, a canção na trilha musical de
cinema se assemelha ao coro da tragédia grega clássica. Ela pode se infiltrar na narrativa
como comentário, como a voz de um personagem ausente, ou mesmo como o ponto de vista
de um determinado personagem. O exemplo extraído de Matar ou Morrer é bastante
ilustrativo, pois nele podemos perceber claramente a canção como interferência épica, já que,
apesar de expressar o ponto de vista do personagem central da narrativa, ela não é cantada por
tal personagem. Assim sendo, ela possui o caráter de impessoalidade que caracteriza a
interferência do narrador.
No caso da tragédia grega, essa impessoalidade também pode ser encontrada no coro,
e o recurso cênico usado para obter-se esse efeito é o da somatória das vozes. Muitas pessoas
dizendo um mesmo texto simultaneamente tornam esse texto impessoal, como o comentário
de uma consciência que está acima dos fatos narrados: a consciência do narrador. No cinema
o recurso do coro também é usado. Um bom exemplo é o filme Suplício de Uma Saudade11,
onde a canção tema, Love Is a Many Splendored Thing - que viria a se tornar, também, um
grande sucesso junto ao público - é cantada por um coro de grande porte e tem o aspecto de
quase que uma reflexão sobre o conteúdo do filme, porém é feito por um ponto de vista
exterior a ele. Nesse caso, a semelhança com o coro da tragédia grega é bastante grande.
O poder descritivo da canção é muito grande, pois ela traz em si associados o discurso
musical e o texto poético verbal. Ela permite que se faça um comentário que possui, ao
mesmo tempo, um grau de objetividade maior que o da linguagem musical pura, e a
expressividade da música e do texto poético.
Pelo que foi dito acima, pode-se deduzir que o grau de interferência épica da canção
tende a ser muito maior do que o da música instrumental. O fato da canção possuir um texto
poético, de associar a linguagem musical a palavras, faz com que a sua introdução no filme
direcione para ela uma parcela muito maior da atenção do espectador do que aquela
requisitada em uma intervenção puramente musical.
Mas se a canção é um recurso narrativo tão poderoso, por que os compositores tem
tanta resistência em relação a ela?
A resposta para a questão acima pode estar no fato de que utilizar a canção como
interferência épica requer um cuidado muito grande. De certo modo, a canção interfere
demais no universo da narrativa. Ela surge como uma voz exterior a esse universo,
11. Love Is a Many Splendored Thing (E.U.A. - 1955). Música de Alfred Newman.
A Articulação Épica 85
comentando o que ali se passa. Momentaneamente, o espectador deixa de ser envolvido pela
narrativa e vê-se em posição de avaliá-la. Quando isso é feito indiscriminadamente corre-se o
risco de perder o fio-condutor do discurso.
Obviamente, quando um compositor se vê em situação de ser obrigado a usar uma
canção, seja ela adequada ou não a determinada passagem do filme, é natural que ele se
manifeste contra, especialmente se o interesse em questão for puramente comercial e não uma
preocupação com a eficiência da música em relação no filme. Isto é o que atestam os
depoimentos de diversos compositores:
(1) O barômetro apropriado (para o uso de canções em filmes) é: o que é
correto para o filme sob o ponto de vista de sua dramaturgia interna? Ao
invés disso, o barômetro parece ter se tornado: o que vai nos proporcionar
uma vendagem de um milhão de compactos e um quarto de milhão em LPs da
trilha sonora? Portanto, nós tivemos uma inversão na ordem do pensamento.
Nós agora temos uma situação na qual, ao invés de avaliar o que é correto
para o filme, (...) o produtor começa perguntando o que é melhor para o
mercado fonográfico e, tendo decidido o que é melhor para o mercado
fonográfico, ele então empurra aquilo para dentro de seus filmes.
(2) A música tem tradicionalmente cumprido certas funções básicas em filmes.
Para fazê-lo, ela era cuidadosamente cronometrada e editada, com o
compositor concedendo pontos altos e baixos na textura e colorido
orquestrais. Leitmotivs e temas eram “costurados” e desenvolvidos para
abrilhantar ou escurecer, sempre cuidadosamente coordenados segundo-a-segundo com a ação. A música pop não pode ser avaliada nos mesmos termos
porque seu propósito básico não é o de ser trilha de um filme, mas vender
discos. Uma trilha que consista de apenas uma canção pop não é, por
definição, uma trilha realmente. Ela não está relacionada com as
necessidades estéticas e emocionais dos filmes. Ela pode, de fato, prejudicar
seriamente um filme.
Em síntese, o que os depoimentos acima revelam é que a canção não pode ser
apresentada em qualquer momento do filme. Não deve-se partir do princípio que exista um
determinado lugar no filme para se usar uma determinada canção, simplesmente para que ela
86 Trilha Musical
penetre nos ouvidos do público e se torne um sucesso12. Obviamente, também não é possível
simplesmente pôr de lado os interesses dos estúdios no mercado fonográfico: normalmente
esses interesses são muito mais fortes que os poderes do compositor da trilha, ou mesmo que
os do diretor do filme.
Mesmo que o objetivo seja o de que a canção “roube a cena”, isso pode ser feito de
modo que ela se insira no contexto narrativo do filme, caso contrário, o efeito pode ser o
inverso do esperado. Corre-se o risco de cair no ridículo, na ininteligibilidade, ou prejudicar a
progressão narrativa, o que, inevitavelmente, resulta em uma queda de qualidade do filme
como um todo e diminui o impacto da canção propriamente dita, podendo, inclusive,
prejudicar o sucesso de ambos junto ao público.
O filme Álamo13, dirigido por John Wayne possui uma seqüência que faz uso da
canção como interferência épica cujo resultado é pouco eficiente, apesar da trilha musical ser
assinada por um verdadeiro mestre em trilhas de westerns, Dimitri Tiomkin, o mesmo
compositor que havia assinado a trilha musical de Matar ou Morrer. A parte final desse filme
narra os últimos momentos do forte Álamo, antes da grande batalha com o exército mexicano,
da qual, sabidamente, não haverá sobreviventes. Frente à morte inevitável, os conflitos
pessoais e psicológicos de cada personagem vêm à tona. Há diálogos, monólogos, reflexões,
redenções, enfim, o caráter dramático da seqüência é muito acentuado. Nessa seqüência, foi
colocada a canção Green Leaves of Summer (que também viria a se tornar um grande
sucesso nos anos sessenta) cantada por um coro de grande porte. A interferência épica da
canção prejudica o contexto dramático da seqüência. Ela passa a interferir nos diálogos. Sua
textura musical uniformiza as mudanças de caráter emocional da ação, diluindo as sutis
variações implícitas no texto de cada personagem. Em suma, todas as reflexões ali
apresentadas se perdem sob o poder de uma voz mais forte, que não compactua com a
dramaticidade específica daquele momento da narrativa.
A solução, nesse tipo de situação, é assumir o caráter de interferência épica da canção
e deixar que ela fale por si só. Um exemplo clássico desse uso assumidamente épico da
canção é o do filme Butch Cassidy14. Em determinado momento do filme, a ação é
12. Exemplos dessa prática de uso indiscriminado da canção, apenas com fins comerciais podem ser encontrados
em diversos filmes e seriados produzidos especificamente para a televisão. No Brasil, essa prática é comum nas
trilhas musicais das novelas de televisão, que em sua grande maioria têm a trilha musical construída com
músicas das paradas de sucessos e cujo objetivo é, antes de tudo, a vendagem dos discos, cassetes e CD's da
trilha sonora.
13. The Alamo (E.U.A. - 1960). Música de Dimitri Tiomkin.
14. Butch Cassidy and the Sundance Kid (E.U.A. - 1969). Música de Burt Bacharat.
A Articulação Épica 87
interrompida para que seja ouvida, na íntegra, a canção Raindrops Keep Falling On My
Head. A seqüência é quase um video-clip da canção, que a partir do filme viria a se tornar um
imenso sucesso no mercado fonográfico. O fato da ação ser interrompida para a apresentação
da canção também suscitou críticas por parte dos defensores da tradição da trilha musical de
cinema:
Um exemplo presente desse uso nonsense da música nos filmes pode
ser encontrado no filme Butch Cassidy, musicado por Burt Bacharat. Há uma
cena no filme que consiste da montagem de planos de um passeio de bicicleta.
A música em toda essa cena, a canção Raindrops Keep Falling On My Head,
demonstra inteiramente a premissa de London de que uma canção tema
“obstrui a ação”. A cena não tem outro propósito dramático no filme que não
seja o de oferecer uma oportunidade para a canção ser executada em sua
totalidade.
Os exemplos acima demonstram o quanto é delicada a intervenção épica feita através
de uma canção. Caso haja ação dramática, corre-se o risco de sufocá-la. Caso opte-se por
interromper essa ação e deixar que a canção ocupe o espaço de maior proeminência, corre-se
o risco de interromper a progressão narrativa.
Um exemplo que consegue equilibrar esses dois polos, ou seja, fazer da canção uma
interferência épica que não interrompa o desenvolvimento da narrativa e, pelo contrário,
contribua com ele, pode ser encontrado no filme Ensina-me a Viver15, lançado em 1972, num
período em que a música pop era a tônica da indústria cinematográfica16. A seqüência final
desse filme cria uma ação paralela em dois tempos diferentes. Em um dos tempos vê-se a
entrada de Maud (Ruth Gordon) no hospital e o desespero de Harold (Bud Cort) que tenta,
em vão, evitar que a sua tentativa de suicídio leve efetivamente à sua morte. Paralelamente
vê-se Harold em seu carro, dirigindo em alta velocidade em uma estrada deserta,
completamente transtornado. Em cada um dos planos do hospital o espectador já sabe que
Maud não sobreviverá, pois já está acompanhando a ação seguinte à sua morte. Tudo isso
ocorre ao som da voz de Cat Stevens. O dado relevante nessa seqüência é o de que a ação
15. Harold and Maud (E.U.A. - 1972). Música de Cat Stevens.
16. O primeiro filme cuja trilha foi composta exclusivamente por canções pop foi A Primeira Noite de um
Homem (The Graduate - E.U.A. - 1967). O imenso sucesso da trilha musical de Simon & Garfunkel
desencadeou uma nova epidemia da febre da canção, dessa vez não mais de canções tema, mas de trilhas
musicais integralmente cantadas. Os cantores e compositores pop tomaram conta dos créditos de música no
cinema. Ensina-me a Viver faz parte desse ciclo.
88 Trilha Musical
dramática existe, mas lhe foi subtraída toda a sonoridade17. Embora vejamos as pessoas
conversando e toda a agitação característica ao hospital, não podemos ouvir o que elas estão
dizendo, tudo se passa como se fosse um filme mudo, com seu acompanhamento musical.
Desse modo, a narrativa incorpora a canção e não é interrompida por ela. Não foi necessário
interromper a ação e a progressão dramática para que se introduzisse a canção. A canção
explicita a voz do narrador, que fala através dela.
CARACTERÍSTICAS ÉPICAS DA MÚSICA INSTRUMENTAL
O grau de interferência da música instrumental na narrativa varia num espectro muito
mais amplo do que o da canção. A linguagem musical pura, sem a coexistência do texto
poético permite uma flexibilidade muito maior em seu uso. Ela pode transitar com muito mais
facilidade entre as dimensões épica e dramática do filme. A ausência do texto abre o leque de
significações associativas da linguagem musical, que pode assim interagir diretamente com a
imagem, sem a intermediação das palavras. De uma forma ou de outra, a letra da canção
limita o número dessas possibilidades associativas, a partir do momento em que a palavra
estabelece um sentido que direciona a percepção do público. A música pura, pelo contrário,
mesmo quando usada com função descritiva, sugere muito mais do que explica.
A música tem o poder de penetrar no universo da narrativa e coexistir com a ação, sem
que isto seja prejudicial à clareza e inteligibilidade dessa ação. A extrema flexibilidade da
linguagem musical também permite que essa penetração no universo narrativo se dê em uma
gama muito variada. A música pode ser introduzida paralelizando a ação, comentando-a, tal
como ocorre na técnica do mickeymousing, ou ela pode estar ligada a fatores articulatórios
como o corte. Sua duração, andamento e atividade rítmica podem ser a duração e o ritmo de
um plano, da sucessão de planos, de uma seqüência ou de um único gesto. Ela pode ocupar o
espaço sonoro vazio entre as várias falas de um diálogo, ou ainda servir apenas como uma
textura sonora que permeia uma determinada passagem do filme sem que sequer nos
apercebamos de sua existência.
O enquadramento possibilita que um determinado elemento visual possa ocupar
diversas posições na perspectiva da imagem, desde um plano fechado - onde nos é
apresentado em seus detalhes - até um plano geral - onde se perde na totalidade das imagens e
17. Sobre esse tipo de construção, ver também capítulo 6 deste trabalho: O USO DRAMÁTICO DO
SILÊNCIO.
A Articulação Épica 89
se funde aos outros elementos que compõe a paisagem. Da mesma maneira, a intervenção
musical pode ocupar diversos “planos” do espaço sonoro. Há momentos em que ela nos é
apresentada em “primeiro plano”, ocupando quase que a totalidade do espaço sonoro. Em
outras ocasiões ela se oculta, quase não pode ser ouvida, mas, lá de longe, vai costurando a
ação. Às vezes uma dessas melodias perdidas lá no último plano da dimensão sonora é
resgatada, cresce em volume, passa a ocupar todo o espaço sonoro, algo como uma
aproximação musical.
A música é uma das vozes do narrador. Talvez não a mais objetiva, mas com certeza
uma das que possuem maior penetração e, talvez, a mais sugestiva. A música permite que o
narrador intervenha na narrativa sem a objetividade da palavra, o que torna essa intervenção
muito mais sutil e, em muitos casos, mais eficiente do que ela o seria se ele fizesse uso de
outros recursos. Em suma, há coisas que não podem ser ditas apenas com música, mas há
coisas que só a música pode dizer.
A AÇÃO DRAMÁTICA EM SEGUNDO PLANO
O filme, tradicionalmente, não costuma ter o mesmo grau de atividade dramática que
o drama escrito para o palco, o processo narrativo do cinema costuma alternar momentos de
maior e menor intensidade dramática. Obviamente existem exceções, estamos falando do
modelo padrão da indústria de cinema. Em quase todos os filmes há momentos onde a
dimensão dramática é enfatizada, e outros onde o caráter épico é mais proeminente.
É comum, por exemplo, vermos os personagens de um filme serem apresentados em
suas atividades cotidianas: levantando-se, saindo para o trabalho, cozinhando, etc. É comum
também vermos a cidade onde se passa a ação mostrada em panorâmica18, ou em plano-geral
à distância. Seqüências que mostram perseguições, batalhas, travessias...
Nesse tipo de construção, o aspecto dramático tende a ficar em segundo plano, no
sentido em que a ação dramática, propriamente dita, não é a responsável pela maior parcela de
informação. Quem fala, acima dela, é a voz do narrador.
A música, enquanto instrumento narrativo é fundamental em tais momentos. Em certo
sentido, ela é capaz de preencher a lacuna deixada pela ação, servindo como um nível de
18. Movimento onde a câmera gira sobre seu próprio eixo.
90 Trilha Musical
informação a mais na narrativa. Ela também contribui para o estabelecimento do sentido
temporal, do andamento, do ritmo e da direcionalidade narrativa, conferindo-lhe um caráter
de conclusividade, ou não.
Paralelamente, a linguagem musical possibilita ao narrador aumentar o grau de
informação dessa determinada seção do filme, oferecendo sugestões de caráter mais subjetivo,
tal como, por exemplo, a condição emocional de um determinado personagem ou situação.
Ela também permite que o narrador se insira na narrativa, estabelecendo comentários,
reiterando ou contradizendo a informação que é dada pelas imagens, criando assim novas
possibilidades de leitura daquilo que é visto e ouvido. Em muitos casos, o esforço para se
obter o mesmo resultado sem o auxílio da linguagem musical seria muito grande. A música
permite que tudo isso seja feito de modo bastante sintético, pois ela tem o poder de incitar
uma resposta emocional imediata, sem exigir que o narrador se insira verbalmente no filme. A
música instrumental é uma voz do narrador, mas uma voz sem palavras.
MÚSICA E MONTAGEM 1: O CORTE - LIGAÇÕES E TRANSIÇÕES
Uma das aplicações épicas mais características da música de cinema é aquela na qual
ela é usada como um elemento de “costura” da narrativa, estabelecendo ligações entre partes
ou momentos do filme e proporcionando unidade ou uniformidade às transições na ação
narrada.
Nesse aspecto, a trilha musical de cinema está diretamente ligada ao fundamento
articulatório responsável pela organização da narrativa fílmica que é a montagem.
A música dialoga com o corte. Ela pode enfatizá-lo ou suavizá-lo. A transição de um
momento para o outro do filme pode ser feita com o corte seco da imagem e da música. Por
outro lado, a música pode transgredir o corte nas imagens, partindo de uma seção do filme e
penetrando na seção seguinte, conferindo-lhe um sentido de unidade. Juntos eles estabelecem
o ritmo e o caráter de uma determinada seqüência, bem como as características da sucessão
dessas seqüências, a construção do clímax e do anti-clímax de cada um dos momentos, e do
filme como um todo.
Em sua inter-relação com o corte, a música se insere como um elemento a mais no
processo criativo da montagem, integrando as dimensões visual e sonora com vista à
composição da narrativa.
A Articulação Épica 91
MÚSICA E MONTAGEM 2: GRANDES SEÇÕES
Em muitos filmes podemos encontrar seqüências integralmente acompanhadas por
música. Em tais momentos, podemos avaliar com mais clareza a herança que a linguagem
cinematográfica ainda traz de sua infância muda. São momentos em que a ação filmada não
apresenta diálogos ou, quando existem, estes não são relevantes para a progressão da
narrativa, que se articula unicamente através das imagens e da música.
Mas existe uma diferença na base da concepção muda do cinema em relação ao que
vemos acontecer no cinema a partir do advento do som sincronizado, que é o fato de a partir
de então música e imagem poderem interagir diretamente. Pode-se dizer que hoje, a música é
um elemento da articulação da narrativa e que o mesmo não acontecia no cinema mudo.
Do mesmo modo que a música se relaciona com o corte, ela também pode ser
responsável pela organização das grandes unidades do filme, de seqüências ou de seções
narrativas em sua integridade.
É possível perceber o quanto os filmes que possuem um caráter épico muito acentuado
fazem uso com bastante frequência de construções de longa duração erigidas com base em
uma estrutura musical sólida. Especificamente, aquilo que de maneira coloquial habituou-se a
chamar de filme épico, ou seja, os filmes históricos, as grandes sagas e os filmes bíblicos,
chegam a abusar desse tipo de construção. São grandes cavalgadas, peregrinações pelo
deserto, legiões romanas a caminho da batalha, escravos subjugados, narrados com
grandiosidade e forte dose de apelo emocional. À música cabe sustentar esse apelo emocional
e a grandiosidade da narrativa, que, em muitos casos, não teria a mesma eficiência sem ela.
Uma caravana que cruza o deserto em silêncio pode ser algo extremamente entediante. Em
tais situações, a música se constitui em uma das principais vozes do narrador.
Em muitos casos a música é usada, inclusive, para suprir determinadas carências de
conteúdo que uma passagem qualquer do filme apresente. São inúmeros os casos na história
do cinema onde um compositor foi requisitado para “salvar” um filme. Obviamente, não há
música, por melhor que seja, que resolva os problemas de um filme mal construído. Mas com
certeza ela pode atenuar o efeito causado por esses problemas. No que diz respeito a uma
passagem específica do filme que não esteja funcionando bem, ela pode mesmo resolver o
problema, fazendo com que tal seção passe a integrar-se bem à progressão narrativa.
92 Trilha Musical
De fato, é comum encontrarmos seqüências inteiras de filmes que vistas sem a sua
respectiva música contribuem muito pouco para o desenvolvimento da narrativa, ou seja,
possuem um grau de informação muito pequeno.
A EVOLUÇÃO DO MICKEYMOUSING
Originalmente o termo mickeymousing diz respeito à técnica de composição pela qual
a música acompanha a ação descritivamente, ilustrando-a e comentando-a. É a técnica usada
nos desenhos animados tradicionais, onde a forma, ritmo, andamento e até mesmo a estrutura
melódica e harmônica da música estão subordinadas aos seus correspondentes imagéticos19.
Embora necessária e altamente funcional no que diz respeito aos desenhos de
animação, o mickeymousing, quando aplicado ao filme dramático20 tende a ser visto como um
tipo de técnica superado e ineficiente. Isso ocorre porque o mickeymousing, dentre todos os
tipos de correlação entre som e imagem, é aquele que provoca a maior interferência na ação.
A partir do momento em que a música ilustra e comenta a ação, o narrador se torna
“onipresente” e impede que essa ação se desenvolva por conta própria. A interferência
excessiva do narrador, também provoca uma diminuição das possibilidades conotativas que
tal ação pode assumir junto ao público, pois ela direciona o seu significado com base no ponto
de vista do narrador.
Contudo, apesar de ser visto hoje com um certo preconceito, o mickeymousing,
quando usado de forma cuidadosa pode proporcionar resultados bastante eficientes. Por
exemplo, quando se quer dar um tom de comédia a uma determinada passagem, ou criar um
efeito de “filme antigo”.
O que pouco se comenta é que a técnica de mickeymousing de certo modo sobrevive
até hoje na trilha musical de cinema, não em sua forma tradicional, tal como era usada na
década de trinta, mas transformada.
É difícil delimitar com clareza todas as diferenças entre a prática do mickeymousing
nos anos trinta e aquilo que hoje poderia ser considerado como prática derivada dele. O tipo
19. A título de exemplificação da técnica de mickeymousing em desenhos animados, ver animações clássicas,
tais como os filmes de Tom & Jerry.
20. Exemplos de mickeymousing em filmes dramáticos podem ser encontrados em grande quantidade em filmes
da década de trinta.
A Articulação Épica 93
de comentário musical dos anos trinta é muito característico, paraleliza permanentemente a
ação filmada, nos aspectos rítmico, melódico, instrumental, etc. É também característica a
grande fragmentação do material musical. Vários elementos dessa prática podem ser
encontrados hoje em dia em situações diversas, embora o mickeymousing tradicional seja
encontrado apenas como recurso paródico, humorístico, ou com a deliberada intenção de
remeter àquele período em que era prática cotidiana.
Um aspecto fundamental da técnica de mickeymousing diz respeito ao ritmo. Uma das
suas principais característica é a correspondência rítmica entre a ação filmada e a música. A
dimensão temporal da música, andamento e ritmo, tem o poder de inserir-se na ação sem
provocar uma interferência tão exagerada quanto aquela que é produzida pelo comentário
melódico, ou timbrístico21. Assim, é comum encontrarmos passagens em filmes onde a música
paraleliza ritmicamente a ação filmada, mas não se sobrepõe a ela como um comentário
permanente, excessivo, permitindo que ela flua livremente e colaborando nesse fluir.
TRILHA MUSICAL E A ARTICULAÇÃO TEMPORAL
Uma das principais características da narrativa fílmica é a manipulação do tempo.
Através dos recursos articulatórios da linguagem pode-se obter saltos, dilatações e contrações
de tempo. Em outras palavras, a narrativa cria uma temporalidade própria, relativa, isolada do
fluir contínuo do tempo cronológico. Em duas horas de projeção assiste-se a acontecimentos
de décadas, séculos, ou narra-se uma ação que, em tempo real, não levaria mais do que alguns
minutos para acontecer. São poucos os filmes onde o tempo narrado corresponde exatamente
ao tempo cronológico.
Isso é possível porque a percepção humana se relaciona com o tempo também de dois
modos distintos. Um deles é o tempo cronológico, que tomamos consciência quando
observamos as mudanças de segundos em um relógio, por exemplo. O segundo é o tempo
psicológico, que constantemente subverte a nossa percepção do tempo cronológico e vive nos
pregando peças. Quantas vezes, concentrados em uma atividade qualquer, não tomamos um
susto quando olhamos para o relógio e vemos que muitas horas se passaram sem que nos
21. Entende-se aqui por comentário timbrístico o tipo de intervenção de um determinado timbre com uma
finalidade ou significado específico. Por exemplo, no mickeymousing tradicional é comum encontrarmos
passagens onde um trompete com surdina é usado para fazer um comentário de comédia, como se parodiasse um
riso irônico. Imita-se uma gargalhada com uma escala cromática descendente com portamento em cada uma das
notas em um clarinete. O fagote é usado para sublinhar personagens cômicas, gordas ou desajeitadas.
94 Trilha Musical
déssemos conta disso. Em outras ocasiões temos a impressão de que muito tempo foi perdido
em determinada atividade e quando vamos conferir, vemos que passaram-se apenas alguns
minutos.
A música, enquanto linguagem temporal, é extremamente útil no que diz respeito à
manipulação desse aspecto psicológico da percepção temporal. O pulso musical funciona
como um relógio e age diretamente sobre a percepção de tempo do ouvinte. Assim, também
na linguagem musical existe uma temporalidade relativa, com ela pode-se criar a impressão
de que o tempo passa mais vagarosamente ou é acelerado.
Andamentos lentos e pouca atividade rítmica tendem a criar uma sensação de que o
relógio foi retardado. Muita coisa pode acontecer entre um pulso e outro. Eles podem ser
usados tanto no sentido de criar uma atmosfera de placidez, calma, como na obtenção do
suspense, de algo que demora mais a acontecer do que deveria, de uma ação que não se
resolve.
Em Psicose22, de Alfred Hitchcock, há um momento que exemplifica esse caráter dos
andamentos lentos. Trata-se da cena na qual o detetive Arbogast (Martin Balsam) entra na
casa de Norman Bates (Anthony Perkins), sobe as escadas e é assassinado a facadas. A cena
toda, desde a entrada de Arbogast não dura mais que cinquenta e cinco segundos. A subida da
escada, especificamente, até levar a primeira facada dura apenas vinte segundos. Contudo,
tem-se a sensação de que muito mais tempo se passou.
A música dessa seqüência tem um andamento bastante lento e quase nenhuma
atividade rítmica. Há pouca definição, inclusive, no próprio pulso, dado o número de pausas
que permeiam a música. Motivos lentos na região aguda das cordas se repetem ciclicamente.
A ausência de direcionalidade, de resolubilidade desses motivos ajuda a compor a atmosfera
de suspense. De certo modo, a música associa-se ao mistério que aquela casa representa para
o detetive; mas o público já espera o ataque e antecipa o final trágico que está reservado ao
personagem. A música vai contra essa expectativa do público, que vê na cena antes o perigo
do que o mistério. A vontade de todos é dizer a Arbogast: “saia daí, você vai ser morto!”, e a
música não diz isto, muito pelo contrário, ela não apresenta nenhuma premência, que poderia
ser dada por uma aceleração do andamento e intensificação da atividade rítmica. Um corte
abrupto na música introduz uma passagem em andamento rápido e pulso definido, com
ataques na região aguda das cordas, mas aí já é tarde demais, não há nada que se possa fazer
por Arbogast, venceu o leitmotiv do assassino. Tudo isso interfere na percepção do tempo por
22. Psycho (E.U.A. - 1960). Música de Bernard Herrmann.
A Articulação Épica 95
parte do público. No domínio psicológico do tempo tudo demora a acontecer, no tempo
cronológico tudo se passa muito rapidamente.
Os andamentos acelerados e uma grande quantidade de atividade rítmica interferem na
percepção temporal criando um sentido de premência, agitação, stress, que normalmente cria
a ilusão de que o tempo se passa mais rapidamente. Quase sempre, quando a intenção é criar
um efeito de pressa, ou a ilusão de uma determinada ação ocorre em um período de tempo
mais curto do que ela de fato está ocorrendo, esse procedimento musical é válido e eficiente.
O exemplo clássico desse tipo de construção, que pode ser encontrado em inúmeros
filmes é o da bomba-relógio. A bomba está armada e o “herói” possui apenas dez segundos
para desarmá-la. Alternam-se planos dos personagens aflitos e da bomba, onde é possível ver
cada um dos segundos se escoando. Entre um plano e outro da bomba decorrem cinco, dez
segundos na contagem do tempo real, mas quando a bomba é mostrada novamente, apenas
dois segundos se passaram em seu cronômetro. O tempo é dilatado para aumentar a
intensidade emocional e o efeito dramático da cena. Nesse tipo de estrutura a música
normalmente tem um pulso bastante definido, que funciona como “pêndulo” do relógio
psicológico. O ritmo contribui para esse sentido de contagem acelerada de tempo. Figuras
rítmicas que reforçam o pulso e motivos em ostinato23 ajudam a reforçar a tensão da cena,
bem como transmitem a sensação de que o tempo se esgota muito rapidamente.
Nos aspectos melódico e harmônico da música a tensão inerente a tais passagens pode
ser enfatizada também através de unidades repetitivas e construções melódicas e harmônicas
que possuam pouca conclusividade ou direcionalidade. Progressões harmônicas e melodias
cujo sentido tonal seja muito claro costumam subtrair uma parcela do suspense necessário ao
efeito psicológico de tais passagens. A direcionalidade do discurso musical, tal como ocorre
na linguagem tonal, onde as progressões harmônicas e as frases melódicas possuem começo,
meio e fim claramente delimitados, permitem ao ouvinte uma decodificação dessa
direcionalidade que leva à previsão do desfecho do discurso e, conseqüentemente, antecipa o
desfecho da ação dramática, que deve ser preservado. Construções musicais repetitivas,
cíclicas, ou que subvertam a lógica direcional do discurso, reforçam o sentido de indefinição
do desfecho da ação e contribuem para que, enquanto ela ocorre, o público possa a todo
momento se perguntar: “será que ele vai conseguir?”.
23. Ostinato: do italiano, obstinado. Em música significa o tipo de construção que faz uso de uma unidade
musical que se repete continuamente, pode ser um motivo ou uma frase.
96 Trilha Musical
Na seqüência inicial de Os Caçadores da Arca Perdida24, Indiana Jones (Harrison
Ford), tenta resgatar um “ídolo” de ouro de uma antiga civilização, que se encontra no
interior de uma caverna, protegido por diversas armadilhas. Logo após retirar o “ídolo” de seu
pedestal, a caverna começa a desabar. Indiana e seu guia fogem, mas para sair da caverna
precisam atravessar um fosso. O guia, usando o chicote de Indiana preso a um tronco,
atravessa-o. O tronco cai e o guia fica com o chicote. Indiana pede que o guia lhe entregue o
chicote. O guia aproveita-se da situação para barganhar com Indiana: o chicote pelo “ídolo”.
Atrás do guia, uma porta de pedra começa a se fechar. Indiana joga o ídolo mas é traído pelo
guia, que o abandona com um simples: “adios, señor”. Indiana tenta saltar o fosso mas fica
pendurado em sua borda. Alternam-se planos da porta que se fecha com outros de Indiana
tentando, desesperadamente, escalar a borda do fosso e alcançar a porta antes que ela se
feche. Finalmente, ele consegue agarrar-se a uma raiz e sai a tempo de passar sob a porta e,
pouco antes desta tocar o chão, apanha o seu chapéu.
A partir do momento em que se vê o primeiro plano da porta que começa a se fechar
passam-se quarenta segundos até que ela toque o chão, um tempo mais do que suficiente para
a porta se fechar várias vezes. Pode-se observar, inclusive, que a porta inicia o seu movimento
de descida duas vezes. Em suma, o tempo é dilatado para aumentar a densidade dramática
desse momento. Mas ao assistirmos à seqüência não nos damos conta disso, pois os planos da
porta são muito curtos e o resultado final é verossímil.
A música dessa passagem é construída segundo os princípios descritos anteriormente.
Há um motivo na região aguda do naipe de metais, construído sobre figuras rítmicas de curta
duração e em andamento muito rápido. Entre cada uma das repetições desse motivo ouve-se
outros motivos em notas longas. John Williams foi bastante econômico, pois, embora o
andamento seja rápido, o pulso não é exposto claramente, não há um beat explícito
sustentando a passagem musical, ele está apenas implícito. Não há regularidade na reiteração
do motivo inicial, que se alterna entre metais e cordas, isso rompe com a lógica direcional da
passagem musical. As repetições do motivo funcionam mais como pontuações da ação, que é
sempre paralelizada pela música, ou seja, tem-se aqui também um exemplo do uso mais
recente da técnica de mickeymousing. A região extrema grave é pouco explorada, para que
não haja atrito entre os ruídos do desabamento da caverna e a movimentação nessa região,
que é usada apenas para sustentar, com notas longas, o resto da orquestra. A economia na
seleção do material musical contribui muito para o efeito da cena. Ela permite que a música
24. Os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of The Lost Ark - E.U.A. - 1981). Música de John Williams.
A Articulação Épica 97
cumpra a sua função de incrementar a tensão da cena e criar o ilusão de que tudo se passa
muito rapidamente, sem chamar para si mais atenção do que a ação propriamente dita.
A percepção temporal pode ser manipulada com fins narrativos também no sentido
inverso, ou seja, o de condensar em muito pouco tempo uma ação que demoraria muito para
acontecer em tempo real. O tipo mais simples de contração de tempo é aquele que
encontramos com frequência em filmes onde o personagem há um personagem atleta, por
exemplo, um jogador de futebol. Obviamente, é impossível apresentar no filme um jogo
completo do personagem. Assim, o que se faz, na maioria dos casos, é alternar planos do
personagem jogando com outros da torcida e do placar, favorável ou desfavorável a essa
personagem. Com isso, cria-se a ilusão de um jogo completo e a percepção relativa de tempo
aceita tal passagem como verossímil na narrativa.
Ao contrário do que ocorre nos efeitos de dilatação de tempo, onde a direcionalidade
da música pode antecipar a resolução e roubar o suspense, quando se usa o recurso da
contração de tempo o discurso musical direcional, conclusivo, pode contribuir muito para
obter-se o sentido de unidade da cena, contrapondo-se à segmentação das imagens necessária
à síntese temporal.
No filme Uma Cilada para Roger Rabbit25, há um exemplo bastante peculiar de
contração de tempo. Quando o detetive Eddie Valiant (Bob Hoskins) chega pela primeira vez
ao seu escritório, vê-se sua sombra através do vidro da porta que traz a inscrição Valiant &
Valiant - Private Investigators, que indica que ele deveria possuir um companheiro e que esse
companheiro era, provavelmente, o seu irmão, cujo assassinato ele já havia mencionado
anteriormente no filme. Coincidindo com a entrada do detetive em seu escritório tem início
uma música cuja linha melódica é tocada por um solo de flügelhorn26. Trata-se de uma
melodia jazzística, à moda das baladas antigas, tonal e melancólica. Ao som dessa música
Eddie Valiant recolhe algumas fotos e examina-as. Misturadas com as fotos recém tiradas de
Jessica Rabbit, ele encontra fotos da última viagem à praia que fez com sua namorada e o
irmão morto. Eddie Valiant senta-se à sua mesa com uma garrafa de bebida quase cheia. No
momento em que ele encontra as fotos onde aparece lado-a-lado com o irmão, o solo de
flügelhorn é interrompido e ouve-se um interlúdio de cordas com piano, é a marca para o
início de um flash-back construído em um único plano-seqüência. A câmera sai de Valiant.
25. Who Framed Roger Rabbit (E.U.A. - 1988). Música de Alan Silvestri.
26. Instrumento de metal da família dos fliscornos cujo formato, tessitura e timbre se assemelha muito ao do
trompete, com a diferença de ser menos brilhante e mais aveludado. Em jazz é muito usado como substituto do
trompete como instrumento solista, especialmente em passagens lentas.
98 Trilha Musical
Retorna o solo de flügelhorn. Vê-se a mesa do irmão com seus objetos de detetive sobre ela,
empoeirados. Sem que haja corte a câmera caminha sobre velhos jornais, que apresentam
manchetes dos casos resolvidos pelos irmãos Valiant, uma foto da formatura na academia de
polícia, e uma última foto dos dois com a namorada de Eddie. Completando o movimento
circular, a câmera chega novamente a Valiant, agora caído sobre a mesa e tendo ao seu lado a
garrafa vazia. A música conclui-se com um ralentando. Percebe-se que muitas horas se
passaram.
A música é responsável por diversos aspectos da composição dessa seqüência. Em
primeiro lugar está a escolha do instrumento solista: o flügelhorn possui um timbre suave,
introspectivo, e por isso é usado com freqüência em passagens lentas, onde pretenda-se um
incremento de expressividade, ou um caráter intimista. A melodia simples, expressiva e com
sentido conclusivo bem definido dá unidade à passagem e informa o público de que tudo
aquilo é algo muito tocante para o personagem. Ao mesmo tempo, o conjunto música/imagem
é construído de tal forma que toda a informação dada nesse momento adquire uma
importância muito grande no filme, e isto é necessário, pois o assassinato do irmão de
Valiant, que desperta nele o ódio pelos desenhos animados é um dos conflitos principais do
filme e tem que ser entendido com bastante clareza. Além disso, a música delimita o tempo da
seqüência e, especialmente, do flash-back, dando-lhe um sentido de terminação, conclusão, e
reintroduzindo a ação no presente. E o mais incrível é que toda essa informação é dada em
poucos segundos, em um único plano, que corresponde a muitas horas no tempo da narrativa.
Um outro exemplo de contração de tempo que vale a pena ser citado é aquele que
ocorre em Cidadão Kane27, de Orson Welles. Há nesse filme um flash-back onde toda a
relação de Kane (Orson Welles) com a primeira esposa é sintetizada em apenas dois minutos,
através da fusão de planos de diversos momentos dessa relação, sempre à mesa do café-damanhã. São apresentados seis momentos, cada um acompanhado por uma passagem musical
diferente. É interessante notar como a música acompanha o desgaste da relação do casal.
Herrmann se utiliza de um único motivo temático, de apenas quatro notas, que se transforma a
cada vez que é introduzido um novo momento da ação. Inicialmente ele é apresentado em
tempo de valsa, com um caráter tranqüilo e romântico, ambos estão ainda apaixonados. O
segundo momento é mais jocoso, menos romântico, ainda há intimidade, mas a ironia é maior,
percebe-se a infidelidade de Kane, a música ilustra o caráter jocoso da cena com movimentos
rápidos nas madeiras. O terceiro momento é mais tenso, mais agressivo, mas eles ainda
dialogam, a tensão na música também cresce. No quarto momento a ironia e o descrédito na
27. Citizen Kane (E.U.A. - 1941). Música de Bernard Herrmann.
A Articulação Épica 99
relação de ambos é explícito, os ataques na música são mais agressivos e cresce o caráter de
mistério. O quinto momento, bastante curto, apresenta apenas uma resposta ríspida de Kane à
observação da esposa sobre comentários alheios, cai o andamento da música, cresce a tensão.
Finalmente, no último momento, os dois não se falam mais, apenas lêem o jornal e o motivo
musical é apresentado em andamento bastante lento, sobre um acompanhamento repetitivo.
Durante toda a seqüência, a dissonância na música cresce no mesmo sentido da “dissonância”
na relação do casal. A compartimentação em momentos bem distintos informa o público das
mudanças de fases do casamento e contribui para o seu entendimento, impedindo que se
confunda um momento com outro. Um outro dado curioso é que Herrmann passa por diversos
estilos musicais, partindo da valsa, característica ao período romântico, cujo simbolismo está
ligado à idéia da relação amorosa bem sucedida, ele chega no último momento a um tipo de
construção característica da música do século XX. Ao mesmo tempo, o uso de um único
motivo temático confere unidade a toda a seqüência.
ÚLTIMAS PALAVRAS SOBRE A ARTICULAÇÃO ÉPICA
A interferência épica é inerente ao processo de articulação fílmica, seja no que diz
respeito às imagens como no que confere ao som. Contudo, é preciso que o instrumental
narrativo seja usado para obter-se o melhor resultado possível no desenvolvimento de um
determinado conteúdo, ou objeto da narração.
Muitas vezes esse instrumental narrativo do cinema é posto a serviço de outros
interesses e o resultado dessas experiências costuma ser desastroso. Isso acontece, por
exemplo, quando um determinado recurso articulatório é usado apenas pela novidade estética
ou visual desse recurso, como curiosidade, desvinculado do contexto dramático no qual
deveria estar inserido. É o caso, por exemplo, daqueles momentos em que são inventadas
novas máquinas para a produção de efeitos especiais e um filme é produzido apenas com o
intuito de explorar todos os recursos oferecidos por essas máquinas. O mesmo ocorre em
superproduções grandiosas, mas cujo único objetivo seja o de mostrar essa grandiosidade:
hordas de figurantes, cenários faraônicos, figurinos riquíssimos, etc. Se tudo isso não for
colocado a serviço do objeto da narração, ou da progressão dramática do filme, o resultado
tende a ser uma mera sucessão de grandes efeitos de pirotecnia fílmica.
Nesses casos, a música é um elemento bastante requisitado. Quando o conteúdo é
vazio, logo pensa-se que uma boa música será capaz de salvar o resultado final. Isso não é
100 Trilha Musical
verdade. A música pode, no máximo, preencher uma parcela desse vazio e amenizar a
catástrofe, mas ela não é capaz de suprir o vazio de conteúdo dramático de um filme.
Em vista disso, vale dizer que a música, como todos os outros fatores de articulação
do filme, não pode ser usada apenas para mostrar os recursos musicais de uma determinada
produção, ou por seu apelo junto ao público. Tal procedimento é prejudicial tanto para o filme
como para a música, por melhor que ela seja. É preciso que a trilha musical se insira no
contexto dramático do filme e que seja usada para articulá-lo, com vista ao melhor resultado
que se possa obter na narrativa.
Capítulo 6
A ARTICULAÇÃO DRAMÁTICA
ARTICULAÇÃO FÍLMICA: UMA NOVA DIMENSÃO DRAMÁTICA
A natureza articulatória do cinema, com seus enquadramentos, movimentos de câmera
e articulação de planos, possibilitou um total redimensionamento do conceito de gênero
dramático. Originalmente, a escritura dramática se efetiva a partir do texto verbal, que se
atualiza a cada representação. A importância do texto na escritura dramática tradicional está
ligada não apenas ao fato dele ser reprodutível, e ter sido por tanto tempo a única forma de
registro, significando a própria sobrevivência de um determinado drama. É preciso, também,
levar em conta que o drama no palco, ao vivo, depende em grau muito grande do texto falado
para que o espectador possa entender os caminhos da ação dramática. A expressão dramática
tradicional possui uma diferença básica em relação ao cinema no que diz respeito às suas
possibilidades articulatórias, qual seja: em última instância, o espectador possui sempre um
ponto de vista fixo do qual contempla a ação, e isso lhe permite uma visão de conjunto da
ação representada.
Os recursos articulatórios do cinema permitem uma mudança de ponto de vista da
ação com muita flexibilidade. Perde-se a visão de conjunto, mas ganha-se a precisão do
detalhe. No teatro, por exemplo, não existe plano fechado. O que pode ser encontrado é algum
tipo de recurso similar, tal como um recorte na iluminação que torne possível ver apenas o
rosto do personagem, mas não é possível aproximar o rosto dessa personagem em relação ao
ponto de vista do espectador, tal como se faz no cinema.
Isso possibilitou ao cinema o desenvolvimento de uma nova dramaturgia. Uma
dramaturgia onde o texto falado tem uma importância menor que no drama tradicional e, em
102 Trilha Musical
muitas ocasiões, é substituído por recursos articulatórios não verbais. Como vimos no
capítulo anterior, a música faz parte desse conjunto de recursos articulatórios, e como tal, se
insere nessa dramaturgia específica, interagindo com o texto falado e, em muitos casos,
exercendo a função que caberia a ele no drama tradicional.
O DRAMA NO CINEMA
Em um certo sentido, o tipo de música que mais se insere no contexto dramático é a
inserção musical de caráter naturalista, aquela cuja fonte pode ser identificada como parte da
ação. O fato do espectador poder visualizar a fonte da música no filme justifica a existência
dessa música e diminui o seu caráter de interferência épica. É possível notar, inclusive, que os
filmes que são articulados com uma grande ênfase no aspecto dramático, especialmente
aqueles que são baseados em textos dramáticos originalmente escritos para o palco e nos
quais procura-se manter a fidelidade às peças originais, o uso de intervenções musicais épicas
costuma ser bem reduzido1. A interferência épica da música tende a transformar o drama em
melodrama.
Um filme onde esses dois universos, o épico e o dramático, são postos um ao lado do
outro, tendo na música um importante fator de distinção entre ambos, é Testemunha de
Acusação2. Baseado em uma peça de Agatha Christie, a trama do filme se arma a partir de
uma acusação de assassinato contra Leonard Vole (Tyrone Power). Curiosamente, a
principal testemunha da acusação é Christine (Marlene Dietrich), a própria esposa de
Leonard. Sempre que a ação se encontra no presente, não há nenhum tipo de intervenção
musical, e a progressão dramática se desenvolve de modo muito róximo ao que ocorreria no
palco. Mas os recursos próprios ao cinema são usados para ilustrar partes do texto,
especialmente através de flash-backs, e acompanhados por intervenções musicais. Assim,
nesse filme pode-se distinguir, através da música, a parcela que corresponde ao texto
dramático original, da parcela correspondente aos recursos específicos da narrativa fílmica.
Contudo, mesmo as intervenções musicais de caráter naturalista podem assumir uma
função épica. Isto ocorre, por exemplo, quando um personagem se encontra em uma festa e a
1. Alguns exemplos de filmes com muito pouca ou nenhuma música são: Os Desajustados (The Misfits - E.U.A.
- 1961), Quem Tem Medo de Virginia Woolf (Who's Afraid of Virginia Woolf - E.U.A. - 1966), ambos com
trilha musical assinada por Alex North, A Última Sessão de Cinema (The Last Picture Show - E.U.A. - 1971).
Não podemos nos esquecer, também, de Festim Diabólico (Rope - E.U.A. - 1948).
2. Witness For The Prosecution (E.U.A. - 1957). Música de Matty Malneck.
A Articulação Dramática 103
música que é tocada pela orquestra é o tema musical dessa personagem; ou quando a música,
apesar de inserida na ação, é usada para fazer um comentário dessa ação, e assim por diante.
Com isto, resta a questão: de que modo a intervenção musical não justificada na ação inserese no contexto dramático do filme?
MONTAGEM INVISÍVEL - MÚSICA INAUDÍVEL
Quando se fala em trilha musical de cinema, logo vem à tona uma velha máxima, pela
qual a melhor música de cinema é aquela que não é ouvida. O próprio Bela Balázs afirma
que:
(...) percebemos subitamente a ausência da música, mas não prestamos
nenhuma atenção à sua presença, de forma que, se quisermos, qualquer
música poderá harmonizar-se com qualquer cena.3
Mas se as afirmações acima são verdadeiras, por que a indústria cinematográfica se dá
ao trabalho de contratar um número tão grande de profissionais especializados e investir tanto
dinheiro para confeccionar a trilha musical de seus filmes? Se qualquer música pode
acompanhar qualquer cena, por que não colocar, literalmente, qualquer música?
As respostas para estas questões são muito simples. Em primeiro lugar, se existe
música em um filme ela está lá para ser ouvida, caso contrário não teriam se dado ao trabalho
de colocá-la. Em segundo lugar, se uma determinada música foi escolhida é, ou ao menos
deveria ser, porque ela proporciona um determinado resultado que se espera daquela
passagem do filme.
Contudo, se tais máximas são tão conhecidas e freqüentemente usadas pelo efeito que
provocam, deve haver algo por trás delas que justifique o seu sucesso. É possível notar, por
exemplo, que na origem de tais premissas se esconde um certo desconhecimento, ou
inobservância dos modos pelos quais recebemos e processamos a informação musical.
Há, basicamente, dois modos de se ouvir música4. O primeiro deles é aquele que
poderia ser classificado como audição intelectual, que é aquele tipo de audição onde toda a
3. Em Jakobson, Roman : Lingüística, poética, cinema, pg. 158.
4
A audição musical é um processo extremamente complexo. De modo algum é nossa intenção estabelecer uma
classificação estanque, deixando de lado todas as implicações do ato de ouvir música e o que ele significa para o
104 Trilha Musical
nossa atenção volta-se para o discurso musical. É através desse tipo de audição que tomamos
consciência do desenvolvimento temático da música, de suas relações estruturais, sua
organização formal, etc. É um tipo de audição que exige uma participação interativa do
ouvinte com a música e quanto maior for o seu conhecimento da linguagem musical, maior
será o número de relações sonoras que ele será capaz de perceber e decodificar.
Em contrapartida, há aquilo que poderíamos chamar de audição sensorial, ou seja, o
tipo de audição onde o ouvinte não volta toda a sua atenção para o discurso musical, por
exemplo, quando ouve música enquanto desenvolve outra atividade qualquer. Fazemos isso
todos os dias: no consultório médico, no supermercado, durante o trabalho, no carro. Nesses
momentos, a música ocupa um espaço secundário em nossa percepção consciente.
Estes dois modos de audição são possíveis porque a linguagem musical também
possui duas qualidades distintas. Uma delas é o seu aspecto estrutural, o modo pelo qual se
organiza o discurso musical. É através dessa estruturação que somos capazes de perceber
relações rítmicas, melódicas, harmônicas, contrapontísticas, formais, timbrísticas, etc. O
segundo aspecto da linguagem musical, mais subjetivo, está ligado ao poder de envolvimento
sensorial da música. Mesmo sem ouvir atentamente uma música, ou sem termos
conhecimento das relações estruturais nela presentes, podemos dizer que essa música nos
tocou, ou que provocou uma resposta emocional específica.
É esta última característica que permite que a música seja usada como informação
subliminar. Da mesma maneira que podemos executar uma atividade qualquer ouvindo
música, sem que a nossa concentração no que estamos fazendo diminua, também podemos
receber informação musical associada a outros tipos de informação. Isto não quer dizer que
não ouvimos a música, mas sim, que ela é ouvida mais em seu aspecto sensorial do que
estrutural.
Assim, quando se diz que a música de um filme não deve ser ouvida, ou que não
devamos perceber a sua existência, mas apenas da sua ausência, devemos entender isto como:
ser humano. Ouvir música, assim como ocorre com todas as formas de expressão artística, possui algo de
mágico e intangível que qualquer classificação teórica tende a “pasteurizar”. Ainda assim, a classificação aqui
apresentada é extremamente útil para podermos entender a maneira pela qual a música é utilizada pelo cinema,
pois é fato que a música possui uma característica que a distingue de outras formas de expressão artística, que é
o fato dela poder ser ouvida não como ato intencional do ouvinte. Foi essa sua característica que permitiu a
disseminação do “Musak”, a música produzida para ser tocada em escritórios e supermercados. Para vermos um
quadro, um filme, uma peça de teatro, é necessário um ato voluntário de nossa percepção consciente. Para
ouvirmos música, não.
A Articulação Dramática 105
no cinema, a ênfase não está, primordialmente, no aspecto estrutural da música, mas sim no
resultado que ela provoca em nossa percepção enquanto impacto sensorial.
Isto não quer dizer, de modo algum, que não seja possível utilizar construções
musicais sofisticadas e estruturas complexas no cinema. Mas é preciso ter claro que o fato de
utilizar-se desses recursos musicais complexos não garante a eficiência da música nos filmes.
A música, quando se insere no contexto dramático, não pode ser ouvida com o mesmo grau de
consciência que a ouvimos em um concerto. O seu aspecto intelectual é posto em segundo
plano e o que resta, em última análise, é o efeito provocado por essa música naquele contexto
específico.
Nesse sentido, a trilha musical de cinema, em sua forma tradicional, é tão “inaudível”,
quanto a montagem é “invisível”, ou seja, assim como na técnica da montagem invisível os
cortes são pensados de forma a que o público não tome consciência deles, também a música
deve ser pensada de forma que o público não a perceba como elemento principal em suas
intervenções no filme. Ambas são recursos épicos postos a serviço da estrutura dramática.
Em essência, isto quer dizer que o contexto dramático deve, acima de tudo, conservar
a sua autonomia ou, como disse Rosenfeld:
Estando o “autor” ausente, exige-se no drama o desenvolvimento
autônomo dos acontecimentos, sem a intervenção de qualquer mediador, já
que o autor confiou o desenrolar da ação a personagens colocados em
determinada situação.5
A citação acima refere-se ao drama em sua forma pura, no teatro. Como vimos, o
cinema não é uma forma dramática pura, pois jamais se desvencilha de seu aparato narrativo.
Contudo, o conceito de ilusão de realidade, tão presente no cinema comercial, visa
justamente forjar a impressão de que o contexto dramático do filme é autônomo e que se
desenvolve por si só. A ilusão de realidade, obtida através da montagem invisível e da música
inaudível, é uma característica da dramaturgia específica ao cinema.
TRILHA MUSICAL E UNIDADE DE AÇÃO
5. Em Rosenfeld, Anatol: O teatro épico, pg. 30.
106 Trilha Musical
Na gênese de toda a teoria dramática está o conceito de unidade de ação. A origem
desse conceito pode ser encontrada na Arte poética de Aristóteles:
O que dá unidade à fábula não é, como pensam alguns, apenas a
presença de uma personagem principal; no decurso de uma existência
produzem-se em quantidade infinita muitos acontecimentos, que não
constituem uma unidade. Também muitas ações, pelo fato de serem executadas
por um só agente, não criam a unidade. (...) (...) Homero, (...) ao compor a
Odisséia, não deu acolhida nela a todos os acontecimentos da vida de Ulisses,
(...) não era necessário nem sequer verossímil. (...) Em torno de uma ação
única, como dissemos, agrupou ele os elementos da Odisséia e outro tanto fez
para a Ilíada.6
O conceito de unidade de ação é revisto por Hegel e converge para aquilo que
entendemos por conflito. Falando sobre os conceitos hegelianos, Renata Pallottini diz o
seguinte:
(...) Uma ação, desencadeada por uma vontade, que tem em mira um
determinado objetivo colide com:
a) interesses,
b) paixões,
portanto, vontades opostas. Esta colisão é o conflito. E desta colisão algo
nascerá.
(...) A unidade de ação se encontra na persecução e realização de um fim
determinado, através de um conjunto de conflitos; a verdadeira unidade, no
entanto, só se realiza no movimento total (que inclui todas as vontades e todas
as colisões).7
Segundo Martin Esslin:
(...) A criação do interesse e do suspense8 (em seu sentido mais lato) está por
trás de toda construção dramática. Expectativas precisam ser despertadas,
6. Em Aristóteles: Arte retórica e Arte poética, pg. 310.
7. Em Pallottini, Renata: Introdução à dramaturgia, pgs. 19/20.
8. Aqui o termo suspense é usado com um sentido muito próximo ao de conflito na citação anterior.
A Articulação Dramática 107
mas nunca satisfeitas antes do momento final. (...) a ação precisa parecer
estar, a cada momento, chegando mais perto de seu objetivo, porém sem
atingi-lo de forma completa antes do final; e, acima de tudo, é preciso que
haja constante variação de andamentos e ritmos, já que qualquer tipo de
monotonia está certamente fadada a embotar a atenção e a provocar o tédio e
a sonolência.(...)
(...) Acontece, porém, que a capacidade humana para manter a atenção em
alguma coisa é relativamente curta. Um único elemento principal de suspense
não é suficiente para prender a atenção da platéia através de toda a duração
de uma peça.(...)
(...) Existe, assim, a necessidade de um elemento de suspense para cada cena
ou segmento da ação, sendo todos eles superimpostos ao objetivo principal ou
ímpeto de suspense da peça inteira.9
Se partirmos do princípio que a trilha musical faz parte dos recursos articulatórios
característicos à dramaturgia do cinema, ela deve, também no que diz respeito à sua
totalidade, ser articulada em função da unidade de ação. Ela deve possuir características que
façam dela um discurso unitário, e não apenas uma sucessão de passagens musicais sem
nenhuma conexão. Ao mesmo tempo, ela deve contribuir para o estabelecimento,
desenvolvimento e conclusão dos conflitos contidos nesse drama. No filme, enquanto unidade
complexa, fechada em si mesma, tudo o que se vê e se ouve deve estar articulado em função
da lógica e da direcionalidade dramático/narrativa. A sua trilha musical deve contribuir para a
caracterização dessa unidade. Vista como um todo, ela deve possuir coerência e
inteligibilidade, tanto internas, quanto em sua relação com o contexto dramático, pois caso
contrário, corre o risco de se assemelhar a uma “colcha de retalhos”, deixando de cumprir as
funções para as quais está destinada e, inclusive, prejudicando o próprio sentido de unidade
do filme.
Quando se fala em unidade da trilha musical é preciso ter em mente que isso não
significa uma uniformização da música de um determinado filme. Tentativas mecânicas de
obtenção de um discurso musical unitário podem resultar em trilhas musicais pouco
eficientes. Um exemplo desse tipo é o filme O Terceiro Homem10. Construída integralmente
com um único instrumento, a trilha desse filme perde muito de suas possibilidades
9. Em Esslin, Martin: Uma anatomia do drama, pgs. 47/50.
10. The Third Man (Inglaterra. - 1949). Música de Anton Karas.
108 Trilha Musical
dramáticas, pois as intervenções musicais possuem sempre a mesma textura e densidade
sonoras11.
Assim como a progressão dramática, a música deve possuir também “conflitos”
internos, que são obtidos pelo contraste entre diversas sonoridades e estruturas musicais. O
fato da linguagem musical de cinema ter se desenvolvido sobre a linguagem sinfônica tem
muita relação com essa necessidade, pois a orquestra sinfônica possui um espectro timbrístico
muito amplo. Ela permite um número de combinações de texturas e densidades sonoras
praticamente infinito, que permite atingir um altíssimo grau de variação e contraste. Com ela
obtém-se uma unidade timbrística e estrutural, uma unidade na variedade.
Do ponto de vista estrutural, um dos fatores fundamentais para a unidade da trilha
musical é o material temático. O uso de motivos e temas recorrentes localiza o espectador em
relação aos conflitos que se desenvolvem naquela construção dramática, sejam eles conflitos
principais (estratégicos) ou secundários (táticos). Quando desenvolvida cuidadosamente, a
trilha musical de um filme pode ser mesmo construída sobre um único tema. O filme Houve
Uma Vez Um Verão12, por exemplo, faz uso de um único tema musical em toda a sua trilha.
Ainda assim, foi uma das trilhas mais famosas dos anos setenta, tendo inclusive recebido o
Oscar nessa categoria.
O conceito de temático, quando estamos tratando de trilha musical de cinema, nos
remete imediatamente ao conceito de leitmotiv. Para que o leitmotiv possa cumprir com
eficiência as funções que lhe são imputadas, é necessário que ele seja muito flexível. É por
isso que os compositores de cinema são unânimes em afirmar que as estruturas temáticas da
música para filmes devem ser bastante sintéticas. Normalmente elas são construídas a partir
de motivos de curta duração, com poucas notas, mas organizados de tal forma que a sua
identidade temática seja bem clara e o público possa distingui-lo imediatamente.
Anteriormente afirmamos que a música de cinema obtém resultados mais eficientes
por seu aspecto sensorial do que pelo intelectual. A percepção de unidades temáticas está
ligada mais ao aspecto intelectual da audição do que ao aspecto sensorial. Assim, quanto
11. Em contrapartida, há o caso do filme Psicose, no qual Bernard Herrmann se propõe a compor uma trilha
em “preto-e-branco”, e para tanto utiliza-se, apenas, de uma orquestra de cordas (violinos, violas, violoncelos e
contra-baixos). Contudo, a variedade de texturas e densidades possíveis com tal formação possibilita uma
imensa gama de sonoridades, bem como um amplo espectro de alturas. Com isto, a trilha desse filme consegue
reunir as qualidades de unidade timbrística, dada pelo uso exclusivo das cordas, e a variedade necessária aos
diversos momentos da progressão dramática do filme.
12. Summer of 42 (E.U.A. - 1971). Música de Michel Legrand.
A Articulação Dramática 109
maior e mais complexa for uma construção temática, mais ela vai exigir do ouvinte em termos
de atenção e concentração para o seu entendimento. Já o emprego de unidades temáticas de
curta duração exigem essa atenção por um tempo muito curto e são rapidamente identificadas,
sem que o espectador seja obrigado a desviar-se da ação para acompanhá-las.
Resumidamente, pode-se dizer que o aspecto estrutural do leitmotiv, que lhe confere
identidade e é percebido mais intelectualmente, informa o público sobre “o quê”, ou “quem”,
aquela determinada passagem musical está se referindo, enquanto o tratamento dado a esse
leitmotiv, que atinge mais o aspecto sensorial da percepção informa sobre “como” se encontra
esse elemento, personagem ou situação, naquela determinada passagem do filme.
Em Psicose, encontramos um motivo temático ligado ao conflito de forma bastante
curiosa. Toda a primeira parte do filme é construída tendo como ponto de partida um roubo.
Marion (Janet Leigh) foge com quarenta mil dólares que seu patrão havia deixado com ela
para que depositasse no banco. Há em toda essa seção do filme um leitmotiv para o dinheiro
roubado, que várias vezes aparece em plano-fechado. O tema musical reforça a idéia de que
aquele é o conflito principal do filme. Contudo, ao se hospedar no motel de Norman Bates
(Anthony Perkins), ela é assassinada. Seu corpo é colocado por Norman no porta malas do
carro e, junto com o dinheiro, vão todos para o fundo do pântano. Só aí se percebe que tudo
não passou de um grande engodo e que, na verdade, o roubo não era o conflito principal do
filme. O público é propositalmente enganado, e a música contribui para a composição dessa
farsa.
Um filme que tem sua trilha musical totalmente ligada ao conflito principal é Coração
Satânico13. O detetive particular Harold Angel (Mickey Rourke) é contratado pelo misterioso
Louis Cyphre (Robert De Niro) para descobrir o paradeiro de um cantor de nome Johnny
Favorite, desaparecido durante a segunda guerra mundial. Angel nunca tinha ouvido falar do
referido cantor e inicia o seu trabalho. Durante toda a investigação ele é acompanhado por um
leitmotiv. Esse leitmotiv se insere na ação, pois chega a ser assobiado por Angel, o que
demonstra que o personagem tem conhecimento dessa música. No final do filme, descobre-se
que Angel é, na verdade, Johnny Favorite, que havia mudado de identidade para fugir a um
pacto com o demônio, ou melhor, Louis Cyphre, e que havia perdido toda a memória em
relação à sua vida anterior. Descobre-se que o leitmotiv era um antigo sucesso de Johnny
Favorite. Durante todo o filme, a trilha musical havia fornecido a informação para a resolução
do conflito. No momento em que o público é informado de que aquela é uma canção de
13. Angel's Heart (E.U.A. - 1987). Música de Trevor Jones.
110 Trilha Musical
Johnny Favorite, todo o mistério se resolve, tudo que havia sido apresentado anteriormente se
encaixa e passa a fazer sentido.
MÚSICA E PERSONAGEM
Todo drama se desenvolve através da ação representada. Assim, na base de qualquer
drama está a idéia de personagem. Costuma-se dizer que a música é um personagem a mais
no filme. Esta afirmação não é muito precisa, pois, em última análise, o personagem é aquele
que executa a ação dramática, e a música não age. Mas, em certo sentido, ela possui um grau
de verdade, se partirmos da premissa de que o cinema possui uma dramaturgia específica,
onde a função originalmente creditada ao texto no drama tradicional pode ser substituída por
recursos articulatórios não verbais.
Por outro lado, há a imagem poética desta afirmação, que é bastante instigante. Será
que a música é vista como personagem porque ela é capaz de estabelecer uma relação
dialógica com a ação dramática? Ou será porque sua presença cria a ilusão de que há alguém
a mais naquela ação? Alguém que não pode ser visto, mas cuja presença virtual pode ser
sentida como parte daquela ação.
Há casos nos quais a a música realmente substitui um personagem. No filme
Tubarão14, de Steven Spielberg, a figura central da fábula, ou seja, o próprio Tubarão, não
aparece mais do que algumas poucas vezes e nunca de corpo inteiro. Contudo, o público é
sempre informado de sua presença pelo motivo musical que corresponde ao perigoso animal.
A relação entre o Tubarão e o seu leitmotiv é estabelecida logo na abertura do filme.
Os planos iniciais mostram o título e ouve-se um curto motivo na região extrema grave das
cordas. Corta-se para um plano do fundo do mar passando em alta velocidade, o que
corresponde ao ponto de vista do Tubarão. O motivo musical se desenvolve sobre um ostinato
de cordas em andamento rápido, eventualmente pontuado por metais. A partir daí está feita a
associação e todas as vezes que ouvimos o referido motivo sabemos que o Tubarão está por
perto, embora quase nunca o vejamos. É um caso onde a música ocupa o espaço vazio
deixado pela ausência física do personagem na ação.
14. Jaws (E.U.A. - 1975). Música de John Williams.
A Articulação Dramática 111
Um outro exemplo similar pode ser encontrado no filme Rebeca - A Mulher
Inesquecível15, de Alfred Hitchcock. Uma humilde dama de companhia (Joan Fontaine)
casa-se com um lorde inglês (Laurence Olivier) viúvo. Sua vida conjugal é atormentada pela
imagem de Rebeca, a primeira esposa do lorde. Seu constrangimento por ser de classe social
inferior e não saber se comportar adequadamente em sua nova vida é constantemente
reforçado por comparações entre ela e Rebeca, feitas pela governanta de sua nova casa, a Sra.
Danvers (Judith Anderson). Rebeca, morta, nunca aparece, nem mesmo em flash-back.
Contudo, a presença virtual da morta na casa é extremamente opressora. Ela se revela em
cada objeto, em cada detalhe, que são cuidadosamente mantidos intocados pela Sra. Danvers.
A presença do espírito de Rebeca é reforçada pelo leitmotiv de Rebeca, que funciona quase
como que a respiração da morta na casa.
Também em Um Corpo Que Cai16, do mesmo Hitchcock, há um uso significativo do
leitmotiv para estabelecer uma relação de mistério com uma personagem já morta. O exinspetor Scottie (James Stewart) é contratado por um antigo colega de escola para vigiar sua
mulher Madeleine (Kim Novak), que supostamente está enlouquecendo por influência do
espírito de Carlota, sua antepassada morta em circunstâncias trágicas. Em alguns momentos
ela é Madeleine e em outros, aparentemente, perde a consciência e vaga pela cidade visitando
diversos pontos relacionados à morta, como se estivesse possuída por seu espírito. Há um
leitmotiv para Madeleine e outro para Carlota. Eles se misturam, se sucedem, sempre
informando ao público quem está agindo em cada momento, se Madeleine, ou Carlota.
Mas o que estamos mais acostumados a ver é o personagem presente na ação, e não
como uma presença virtual. Nesses casos, o leitmotiv funciona tanto como parte da
caracterização do personagem, quanto como informação sobre a condição desse personagem
em cada um dos momentos do filme. O leitmotiv se transforma e através dessas
transformações ele é capaz de revelar um aspecto do personagem que não está transparente na
ação.
A MÚSICA COMO “VOZ” DO PERSONAGEM
15. Rebeca (E.U.A. - 1940). Música de Franz Waxman.
16. Vertigo (E.U.A. - 1958). Música de Bernard Herrmann.
112 Trilha Musical
Além de funcionar como interferência do narrador para a composição e caracterização
do personagem, ou para informar sobre seu estado de espírito, condições emocionais e
psicológicas, a música pode ser usada também para expressar pontos de vista desse
personagem, exercendo uma função que originalmente pertencia ao texto falado.
Voltando ao exemplo do filme Um Corpo Que Cai citado no item anterior, todas as
passagens musicais apresentadas no decorrer da investigação sobre a suposta influência do
espírito de Carlota, que estaria levando Madeleine à loucura, são organizadas sob o ponto de
vista de Scottie. Todas as intervenções musicais e o desenvolvimento dos leitmotivs
expressam as impressões que Scottie está tendo a cada momento, bem como de seus
sentimentos por Madeleine. Isso contribui para que o público seja colocado na posição de
Scottie. O espectador passa a compactuar com o personagem em face àquele mistério e
participa com ele de toda a investigação. São longas seqüências nas quais Scottie persegue
Madeleine pelas ruas de San Francisco onde não se ouve uma palavra, sequer, apenas a
misteriosa música de Bernard Herrmann. O espectador vê-se envolvido na ação e é
enganado, tanto quanto Scottie, que não passa de uma “marionete” em uma complicada trama
de assassinato. Nesses momentos, a música não é percebida como intervenção, ou voz do
narrador, mas como parte da própria ação, como se o personagem falasse através dela.
Há casos, também, de construções onde música e texto falado se mesclam, com vista à
obtenção de um determinado resultado dramático. Um exemplo desse tipo pode ser
encontrado em Psicose. Imediatamente após roubar os quarenta mil dólares, Marion foge da
cidade. Há um tema musical para a sua fuga. É um tema que possui grande tensão interna, em
andamento rápido, com ataques fortes e destacados das cordas, que lembra bastante o estilo
de Stravinsky nas primeiras décadas do século. Marion é vista de frente, em plano fechado,
dirigindo seu carro, e está bastante aflita. A música está ligada ao ponto de vista da
personagem e compactua com sua aflição. Ao mesmo tempo, Marion pensa na reação de seu
patrão e de seu cliente roubado. Esse pensamento é apresentado com as vozes dos respectivos
personagens. Às vezes ouve-se as vozes e a música, às vezes só a música, que vai acumulando
toda a informação contida naquele diálogo e passa a significar tanto quanto ele. Em
determinado momento, não é mais necessário apresentar as falas, pois a música as substitui.
O caso extremo da música como fala do personagem ocorre no filme Cliente Morto
Não Paga17. O detetive Rigby Reardon (Steve Martin) tem uma reação neurótica toda vez
que ouve a palavra cleaning woman (faxineira) e invariavelmente tenta estrangular a pessoa
17. Dead Man Don't Wear A Plaid (E.U.A. - 1982). Música de Miklos Rozsa.
A Articulação Dramática 113
que a pronunciou. Na primeira vez que isso ocorre no filme, o incidente se dá com sua cliente
e amante, Juliet Forrest (Rachel Ward). Tendo ela sobrevivido ao ataque, ele tenta se
desculpar explicando a origem de seu estranho comportamento. Mas, para tanto, ele terá que
pronunciar a referida palavra. Seu bloqueio é tão grande que ele consegue, apenas, mexer
lentamente os lábios, e a orquestra articula o som da palavra por ele.
A EVOLUÇÃO DO MONÓLOGO INTERIOR
O monólogo interior, no drama tradicional, é um momento no qual a ação é
interrompida para que um personagem faça uma reflexão pessoal sobre essa ação, ou que
apresente suas impressões e seus conflitos internos. No teatro, o monólogo é, naturalmente,
falado pelo ator. No cinema, o monólogo interior continua a existir, contudo, os recursos
articulatórios específicos à linguagem cinematográfica permitem que esse monólogo seja
manipulado e assuma configurações diferentes.
Em primeiro lugar, o cinema permite criar a ilusão de que o monólogo se dá, de fato,
no domínio psicológico do personagem, que ele fala para si mesmo. Para tanto, basta que se
apresente tal personagem e sobreponha-se a ele o som de suas palavras, sem que haja
movimento correspondente dos lábios. Isso pode ser encontrado com grande frequência em
filmes dos mais variados estilos.
Em muitas ocasiões podemos encontrar passagens onde o tipo de construção é muito
semelhante ao usado na composição de um monólogo interior, com a única diferença de não
haver texto falado. As intenções e reflexões, ou seja, o momento psicológico da personagem é
indicado apenas pela música.
Na segunda parte do filme Um Corpo Que Cai, quando a suposta Madeleine é
descoberta em sua nova identidade, ela é seguida por Scottie, que a procura em seu quarto de
hotel. Ela nega que o conheça mas aceita um convite para jantar naquela mesma noite.
Quando Scottie deixa-a só, ela pensa em fugir. Uma rápida construção de planos mostra que
ela é, de fato, a mulher que havia se apresentado como Madeleine e que supostamente estaria
morta. Não há uma palavra nessa cena, apenas a articulação dos planos em flash-back e a
música. Mas percebe-se nitidamente a confusão e a aflição da personagem naquele momento,
seu conflito interior por ter sido parte de uma trama de assassinato. E é justamente a música
que revela esse estado de espírito, bem como, o fato dela ainda estar apaixonada por Scottie,
114 Trilha Musical
pois é o primeiro momento em que o tema romântico sai do ponto de vista dele e passa para o
dela. É claro, ela não poderia fugir.
Há casos, também, onde a composição do monólogo é feita através da música
associada ao texto falado, simultaneamente. Em Yentl18, por exemplo, a personagem central,
Yentl (Barbra Streisand), em diversos momentos comenta a ação que está ocorrendo de
forma interiorizada. Só que, isso é apresentado ao público em forma de recitativo19, no sentido
operístico do termo, não chega a ser uma canção, propriamente dita, mas tampouco é apenas
fala.
O ASPECTO DIALÓGICO DA MÚSICA
Se a música pode ser usada como voz do personagem e expressar os seus pontos de
vista, conseqüentemente podese dizer que ela possui um aspecto dialógico que permite que
ela seja usada como uma substituta do texto falado. As manifestações desse aspecto dialógico
da música podem se dar tanto em momentos em que ela substitui o texto falado, como no
exemplo apresentado no item anterior, quanto em momentos onde é usada associada a ele.
A associação de música e diálogos no cinema é vista sempre com uma certa reserva e
isto não é infundado. Uma música mal colocada pode destruir um diálogo. Normalmente esse
efeito maléfico da música sobre o diálogo se manifesta quando o grau de interferência épica
da música é muito alto, ou seja, quando ela não se articula eficientemente com o contexto
dramático, desviando a atenção do público do texto daquele diálogo.
Por outro lado, quando tratada adequadamente, a música sobre um diálogo pode se
fundir a ele como uma voz a mais, integrando-se como parte da ação dramática e dialogando
junto com os personagens. Esse aspecto da trilha musical é uma especificidade do cinema,
pois só se viabiliza a partir do momento em que seja possível estabelecer uma relação exata
de sincronia entre os diálogos, sons naturalistas e música, e destes com as imagens, ou seja, a
articulação precisa de todos os fatores da trilha sonora.
18. Yentl (E.U.A. - 1983). Música de Michel Legrand.
19. Na ópera o recitativo é um tipo de peça musical onde o texto é quase falado. Ao contrário da ária, sua linha
melódica não é muito definida, nem possui muitos contrastes internos, a interação do ritmo da música com o
texto é o mais importante.
A Articulação Dramática 115
É comum vermos os compositores de cinema compararem o ato de compor música
para um diálogo ao de escrever música vocal. É como escrever o acompanhamento para um
cantor. Contudo, ao invés da linha melódica cantada, temos a fala, pura e simples. Trata-se de
uma técnica melodramática, no sentido mais estritamente técnico do termo. Essa característica
da música associada aos diálogos pode ser percebida no seguinte depoimento de John
Barry20:
Escrever para diálogo é um grande desafio. Você tem que levar em
conta as personalidades dos personagens e dos atores que os interpretam. Um
bom exemplo seria Gregory Peck. Ele tem uma voz maravilhosa e profunda e
um jeito de falar lentamente, com maravilhosas cadências. Quando se
trabalha com diálogo, você isola o tom de voz do personagem: Ele é um tenor
ou um barítono? Não estamos falando de notas definidas, obviamente, mas
sempre há uma região. E então você escreve a música para essa voz central acima ou abaixo dela.
Um dos recursos utilizados com frequência para que a música que acompanha um
diálogo não interfira com o texto dos personagens, é o de construir essa música de modo que
ela não se configure como um discurso musical, mas apenas como uma sonoridade a mais que
se insere no diálogo. Em outras palavras, isto significa construir a música tendo em vista
quase que apenas o seu aspecto sensorial. São acordes, notas longas, texturas musicais, que
funcionam mais como uma pontuação sonora do diálogo do que como uma intervenção
musical propriamente dita.
As construções com caráter temático, passagens musicais com uma organização muito
direcional do discurso exigem um tratamento mais cuidadoso. Contudo, elas também são
encontradas, especialmente em momentos assumidamente melodramáticos, como efeito
cômico, ou em momentos onde apesar de existir uma ação dialogada, o conteúdo desse
diálogo não é de difícil compreensão, ou mesmo quando a informação contida no texto não é
tão relevante para a progressão dramática.
Na primeira seqüência de A Gaiola das Loucas21 há um diálogo onde Albain (Michel
Serrault) reclama da indiferença de Renato (Hugo Tognazzi). Não é bem um diálogo, pois
Renato quase não fala, apenas ouve o turbilhão de lamúrias de seu amante. Esse diálogo é
acompanhado integralmente por um tema musical bastante simples e que confere à passagem
20
Em The Score - Interviews with film composers, de Michael Schelle, pg. 9.
21. La Cage aux Folles (França/Itália - 1978). Música de Ennio Morricone.
116 Trilha Musical
uma aura de comédia. É a música quem informa o espectador que tudo aquilo não deve ser
levado a sério, que não se trata de uma discussão dos problemas do casal, mas apenas de um
capricho do personagem, para chamar a atenção sobre si mesmo. Sem a música, a cena
poderia assumir um caráter de seriedade que não seria desejado, pois seu objetivo é
justamente o de caracterizar esse personagem como uma pessoa “manhosa”, suscetível a tal
tipo de comportamento.
O USO DRAMÁTICO DA CANÇÃO
No capítulo anterior vimos como a canção pode ser usada como intervenção épica.
Vimos também que esse uso requer um tratamento bastante cuidadoso, para que a canção não
desvie a atenção do espectador da ação. Quando a canção está inserida na ação do filme,
como sonoridade de caráter naturalista, esse problema se torna bem menos preocupante. O
fato da canção estar justificada na ação diminui o seu caráter de intervenção épica e permite
que ela ocupe o quanto necessite da atenção do espectador para que atinja o seu objetivo
dramático. Criando-se, por exemplo, um número musical inserido no filme, a canção pode ser
ouvida integralmente e presta-se mais atenção à sua letra e ao seus aspectos temáticos. Esse
tipo de construção, normalmente, evita os problemas caraterísticos à intervenção épica da
canção.
Quando é aberto um espaço na ação dramática para a intervenção de uma canção,
induz-se o público a ouvir atentamente essa canção e, conseqüentemente, ela adquire um
significado maior, podendo, inclusive, ter seu material temático usado posteriormente como
leitmotiv. Esse tema será sempre ouvido como algo significativo para a progressão dramática
do filme.
Quem não se lembra do clássico exemplo de Casablanca22 que imortalizou a canção
As Time Goes By23 na voz de Dooley Wilson? Quando se fala em Casablanca, lembra-se
logo de Rick (Humphrey Bogart) queimando de dor de cotovelo, enquanto Ilsa (Ingrid
Bergman) pede a Sam (Dooley Wilson), que cante: “play it Sam, play As Time Goes By”24. E
todos fazem uma trégua na ação para que Sam cante:
22. Casablanca (E.U.A. - 1942). Música de Max Steiner.
23. Apesar da trilha musical ser assinada por Max Steiner, As Time Goes By não é de sua autoria, mas de
Herman Hupfeld e já existia quando da confecção do filme.
24. Toque-a Sam, toque As Time Goes By.
A Articulação Dramática 117
You must remember this
A kiss still a kiss
A sigh is just a sigh
The fundamental things apply
As time goes by
And when two lovers woo
They still say I love you
On that you can rely
The world will always welcome lovers
As time goes by
Esta canção inseriu-se de tal modo no contexto dramático, que tornou-se a marca
registrada do filme. Sua execução é feita sem nenhuma grandiosidade. Sam, sozinho ao piano,
canta e toca, o que confere à canção um clima intimista e solitário. Além do efeito dramático,
a canção informa o público sobre a relação amorosa entre Rick e Ilsa. A letra da canção
revela a exata condição do casal, que revive naquele momento uma velha paixão,
interrompida bruscamente em um passado recente: You must remember this... este verso tem
a característica de diálogo, é direcionado a um interlocutor, assim como toda a primeira
estrofe da canção. Já a segunda estrofe tem uma característica de narração, o texto sai da
primeira pessoa para exprimir um ponto de vista genérico: And when two lovers woo, they
still say I love you... Sam, ao mesmo tempo, fala pelos personagens e narra, através da canção,
a sua condição. E, assim como o romance, a canção é interrompida bruscamente por um Rick
enfurecido, que com sua atitude revela ainda não ter superado a frustração desse romance.
O USO DRAMÁTICO DO SILÊNCIO
Não existe, de fato, um silêncio absoluto no mundo físico. Quando o mundo se cala,
madrugada adentro, há sempre um ou outro som que atravessa o vazio. O vento, um pássaro
noturno, um grito, uma sirene distante. Mesmo na absoluta reclusão da câmara anecóica,
ainda ouvimos a batida de nossos corações. Só há um lugar onde pode existir o silêncio
absoluto, e esse lugar é o universo dramático do filme.
118 Trilha Musical
Mas o silêncio absoluto é apenas um entre muitos tipos possíveis de silêncio. Quando
uma pessoa nos importuna dizemos a ela: “cale-se, dê-me um minuto de silêncio”. O silêncio,
nesse caso, pode significar o som de uma movimentada avenida. E para combater o ruído
insuportável dessa avenida, muitas vezes vamos nos refugiar no silêncio de um fone de
ouvido, o silêncio que a Ária da Suíte em Ré Maior de Bach representa, em contraste com
aquela avenida. E quando depois nos deitamos, mergulhamos no ruidoso silêncio profundo de
nós mesmos. O silêncio, intenso, é ensurdecedor.
Entendido sob este ponto de vista, o silêncio pode não significar ausência absoluta de
som, mas ausência de um determinado som, ou conjunto de sons. No universo dramático do
filme há três grupos distintos de sons: a fala humana, os sons naturalistas e a música. Do jogo
entre esses três grupos de sons, pode-se obter diversos tipos de contraste sonoro que podem
significar silêncio.
O primeiro deles é o silêncio da pista de diálogos, onde vemos a ação acontecer sem
que nada seja dito, mas onde ainda estão presentes os sons naturalistas correspondentes a esta
ação. Esse tipo de construção se caracteriza mais como silêncio, obviamente, quando não é
acompanhada de música. Mas mesmo quando existe uma intervenção musical, a ausência de
fala se caracteriza como silêncio dos personagens, e pode conter informações relevantes para
o desenvolvimento da ação dramática.
Há também o silêncio da pista de música, que deixa todo o espaço sonoro do filme a
cargo da fala e dos sons naturalistas. Isso não tende a ser percebido como silêncio,
naturalmente, o que ocorre é uma ênfase no caráter dramático da ação, a partir do momento
em que a música não interfere epicamente nessa ação. Contudo, o efeito de silêncio nesse tipo
de situação pode ser obtido por contraste, ou seja, uma retirada súbita de uma música que
vinha ocorrendo até então pode ser usada para criar um efeito de silêncio que põe em relevo a
ação dos personagens e prepara o espectador para a informação que se origina dessa ação.
Esse é, por exemplo, um modo eficiente de se preparar um diálogo importante do filme, que
se deseja enfatizar.
Mas o tipo de silêncio mais peculiar que pode ser obtido através da manipulação das
pistas de som no cinema, é aquele onde todo o conjunto de sons naturalistas é suprimido. Com
esse recurso torna-se possível obter dois tipos de efeito. O primeiro é o do silêncio absoluto,
onde o espectador só ouve os sons emitidos pela própria platéia. É um tipo de efeito que
nunca passa despercebido, pois interfere diretamente na ilusão de realidade do filme, e, por
isto, tem um caráter épico muito acentuado.
A Articulação Dramática 119
O segundo tipo de efeito possível de se obter é aquele onde o silêncio é suplantado
pela música. Nesses casos, a música passa a ser responsável por toda a informação sonora. A
intervenção musical sobre o silêncio, tem um caráter supra-real. É comum encontrarmos esse
tipo de construção usada com o objetivo de criar um efeito onírico, mágico. Ele também é
usado para indicar estados de espírito particulares, tais como, por exemplo, um mergulho do
personagem em si mesmo, um momento de reflexão pessoal, ou meditação, pois traz sempre
uma certa conotação de isolamento, de exílio pessoal do personagem. Sua comunicação com
o mundo foi cortada, pois nada do universo sonoro realista pode ser ouvido.
O caráter épico desse tipo de intervenção musical é inevitável, a partir do momento
em que ela rompe com a ilusão dramática. Mesmo assim, quando construída adequadamente e
articulada com a ação, ela pode produzir efeitos muito interessantes. Hitchcock, por exemplo,
usou esse recurso no filme O Homem Que Sabia Demais25, que em sua seqüência central
apresenta uma ação dramática totalmente articulada apenas sobre a música.
A bem da verdade, o conflito principal está ligado à música nesse filme, que possui
como epígrafe a frase: “de como um toque de pratos mudou a vida de uma família
americana”. O próprio Hitchcock dizia que para que tal cena consiga sua força máxima, o
ideal teria sido que todos os espectadores soubessem ler música26. O argumento do filme é
basicamente o seguinte: um embaixador vai ser assassinado durante um concerto no Albert
Hall em Londres. O tiro fatal será dado pelo assassino no exato momento em que for dado o
único ataque de pratos da Cantata Storm Clouds de Arthur Benjamin27. O fato da música
estar sendo executada pela orquestra, inserida na própria ação, confere-lhe um caráter realista,
contudo, uma observação atenta mostra que o som dessa seqüência, em seu conjunto, não é
nada realista, a partir do momento em que não existe nenhum som falado, nem ruído de
espécie alguma. De certo modo, Hitchcock resgata a convenção do cinema mudo: a ação em
silêncio e seu acompanhamento musical. Vê-se os personagens aflitos, dialogando textos
inaudíveis, mas cujo significado compreendemos perfeitamente. E é a música a responsável
pelo sentido dessa ação. Ela é quem tece toda a teia dramática da seqüência: os tempos da
ação, o grau de tensão interna em cada um de seus momentos, a aflição dos personagens,
enfim, tudo o que ocorre no filme naquele momento é sustentado dramaticamente pelo
discurso musical. A música deixa o plano dramático para se tornar puramente intervenção
épica, o que pode ser constatado quando notamos que não existe nenhuma preocupação com o
25. The Man Who Knew Too Much (E.U.A. - 1956). Música de Bernard Herrmann.
26. Em Hitchcock - Truffaut: Entrevistas, pg. 137.
27. Apesar da música desse filme ser assinada por Bernard Herrmann, nessa seqüência foi conservada a
música composta para a primeira versão desse filme, de 1934, cuja música era assinada por Arthur Benjamin.
120 Trilha Musical
controle dos níveis de volume correspondentes aos diversos ambientes, dentro e fora da sala
de concerto, o que daria um caráter realista à ação dramática.
São nove minutos ininterruptos de música e ação. Os planos dos personagens na
platéia, que tentam de qualquer maneira impedir que o crime aconteça, são alternados com
planos da orquestra, que executa a sua música sem nada saber do que ocorre paralelamente,
fora do palco. O espectador, que já sabe de tudo, pode acompanhar a partitura do
percussionista responsável pelos pratos. A aflição dos personagens, e do próprio espectador,
contrapõe-se à calma do músico que pacientemente espera a sua entrada, e que em
determinado momento se levanta calmamente, pega seu instrumento e prepara-se para tocar.
Realmente, não é tão necessário saber ler música para vivenciar toda a intensidade dramática
desse momento.
Em se tratando de silêncio, propriamente dito, vale a pena citar, mais uma vez, o filme
Houve Uma Vez Um Verão;. Hermie (Gary Grimes) é um adolescente em férias na praia no
verão de 1942. A tônica do filme é a iniciação sexual, que tanto preocupa o ser humano nessa
idade. Hermie, enquanto personagem, é confrontado com seu amigo Oscy (Jerry Houser).
Oscy é o adolescente típico, que fala o tempo todo de sexo e está louco para experimentar,
embora não saiba bem do que se trate. Hermie também tem o mesmo interesse, mas sua
personalidade não condiz com os jogos necessários e possíveis em sua idade. Assim, quando
os dois conseguem duas namoradas, e vão para a a praia com um único objetivo em mente,
Hermie não consegue ir além de uma tímida conversa e muito marshmallow na fogueira. Para
agravar a sua condição, Hermie se apaixona por Dorothy (Jennifer O'Neil), uma mulher
jovem, porém mais velha que ele e casada, cujo marido havia recentemente partido para a
guerra. Dorothy e Hermie se tornam amigos e ele faz de tudo para poder se encontrar com ela.
Em determinado momento, Hermie vai à casa de Dorothy e aí inicia-se uma seqüência onde o
silêncio será a tônica. Hermie entra na casa chamando por Dorothy. O único som que se ouve
é o ruído de um disco já terminado no fonógrafo. Hermie desliga o aparelho e vê, sobre a
mesa, um telegrama que informa da morte em combate do marido de Dorothy. Ela entra e há
um diálogo mínimo entre os dois. Ela recoloca o disco, que toca o tema do filme. Hermie diz
apenas: I'm sorry. Dorothy não responde. Caminha até ele e recosta a cabeça em seu ombro.
Os dois dançam sem dizer uma palavra. A música termina e os dois continuam a dançar em
silêncio, acompanhados apenas pelo ruído do fonógrafo. Beijam-se. Dorothy despe-se.
Deitam-se, beijam-se e amam-se, e tudo o que se pode ouvir é o ruído do mar, impreciso e
distante. Em seguida ela sai. Hermie veste-se e sai atrás dela. Dorothy está na varanda e, de
costas para ele despede-se: Good night Hermie. Ele responde e se vai. O ruído do mar cresce.
A Articulação Dramática 121
O silêncio dessa seqüência é tão penetrante e longo - ao todo a seqüência dura
dezesseis minutos - que adquire um significado muito grande. A ação cresce em importância,
pois é valorizada em si mesma, sem o uso da interferência musical. Isso faz com que ela
cresça em veracidade e impacto emocional. Qualquer coisa que se dissesse, fosse palavra ou
música, iria romper com a magia que o silêncio sintetiza nesse momento. Esse silêncio é tão
forte, que penetra em toda a seqüência posterior a ela, que se passa no dia seguinte e apresenta
Oscy, com sua fanfarronice de adolescente, falando a Hermie sobre a sua namorada. Hermie
não responde uma palavra sequer, ele está impregnado de silêncio. De certo modo, ele ainda
está na seqüência anterior. O silêncio só termina quando Hermie volta à casa de Dorothy e
descobre que ela havia partido. Encontra um bilhete com seu nome pregado à porta. Ao lê-lo,
o silêncio é rompido pela voz off de Dorothy e pela volta do tema musical. Até aí, foram vinte
e dois minutos de silêncio, com um mínimo de intervenções faladas.
Capítulo 7
MOMENTO LÍRICO
No cinema, a articulação lírica não é encontrada com tanta freqüência, nem possui o
mesmo grau de importância que as articulações épica e dramática. Porém, em diversas
ocasiões podemos encontrar passagens de filmes, ou mesmo filmes inteiros, onde o dado
lírico é usado para criar uma nova dimensão significativa e estabelecer um outro nível de
relação entre o espectador e a obra.
A expressão lírica, no cinema, é obtida 3através da articulação das dimensões épica e
dramática. O lirismo pode se manifestar tanto em uma, quanto em outra, ou em ambas. O
lirismo pode estar expresso argumento do filme, ou no modo de expressão de um personagem,
ou no ponto de vista do narrador, ou até mesmo no tipo de construção épico-dramática. Em
outras palavras, no tipo peculiar de dramaturgia característico ao cinema, a expressão lírica é
também um modo de articulação, pois é obtido através de uma combinação específica dos
mesmos elementos usados para a construção épica e dramática.
Invariavelmente, a obtenção do efeito lírico, por sua própria natureza, implica em
uma interferência no contínuo presente da ilusão de realidade do filme, ou, no mínimo, em um
modo de tratamento muito particular dessa pretensa realidade.
Em vista de tudo isto, pode-se perceber que a música, com seu potencial de
interferência no filme, com as possibilidades que oferece no que diz respeito ao modo
subliminar de comunicação, com a grande variedade de recursos expressivos e seu imenso
apelo emocional, é um instrumento extremamente eficiente na articulação lírica. Além disso,
o caráter lírico inerente à própria subjetividade do discurso musical pode ser usada muito
124 Trilha Musical
facilmente para impregnar de lirismo uma determinada construção, ou para intensificar a
intenção lírica presente em uma determinada passagem do filme.
Um filme onde o dado lírico já está presente no nível do roteiro é Amarcord1. O filme
é, de certo modo, uma auto-biografia de seu diretor Federico Fellini, e retrata a cidade de
Rimini na época do fascismo, onde Fellini passou sua infância. A memória da infância é uma
das maiores máximas do lirismo através da história. Não há memória de infância que não seja
um pouco distorcida, sempre para mais bela e bucólica do que o fato real acontecido, e que
não toque diretamente os níveis mais elementares de nossa emoção pessoal, a mesma emoção
sobre a qual trabalha o modo lírico de expressão.
O universo dramático-lírico de Amarcord tem na música de Nino Rota, um dos
principais elementos de caracterização. A própria estrutura temática da trilha musical desse
filme já possui os elementos necessários à construção desse universo. São temas musicais
simples, alguns deles conhecidos, mas extremamente expressivos e precisamente selecionados
com vista a produzir um forte impacto emocional no espectador. O lirismo também está
presente na escolha da instrumentação. Nela encontramos figuras características do inventário
folclórico das formações musicais, tais como o acordeonista cego e a tradicional banda da
cidade, formada não por músicos profissionais, mas por membros da comunidade. O barbeiro
gordo é um compositor e apresenta com seu flautim a música que acabou de compor. Aliás, a
banda é a única formação de proporções maiores do filme. Não há orquestra sinfônica.
Nenhuma intervenção musical se reveste de grandiosidade. O que transparece é a
simplicidade e a expressão individualizada, seja no caráter temático ou na execução. O
acordeonista cego e solitário, tocando o seu instrumento, quase em transe.
A canção, seja ela articulada epicamente, ou dramaticamente, constitui-se, também,
em um poderoso recurso na obtenção do efeito lírico. Através da canção é possível inserir no
filme o modo lírico de expressão propriamente dito, ou seja, o poema lírico. O fato do poema
ser apresentado na forma de canção faz com que a sua inserção conte com todas as vantagens
da linguagem musical, sejam elas estruturais ou expressivas, além de torná-la mais natural do
que o seria o simples ato de recitá-lo.
Em Bom Dia Vietnam2, há uma construção muito interessante. O locutor Cronauer
(Robin Williams) toca em seu programa de rádio a canção: What a Wonderfull World3,
1. Amarcord (Itália - 1974). Música de Nino Rota.
2. Good Morning Vietnam (E.U.A. - 1987). Música de Alex North.
3. Canção de George Weiss e Bob Thiele.
Momento Lírico 125
cantada por Louis Armstrong. Lanchas e helicópteros partem para mais um dia de combate
ao som da voz de Satchmo4. Ele diz:
I see trees of green
Red, roses, too
I see them bloom
From me and you
And I think to myself
What a wonderfull world
I see skies of blue
And clouds of white
The bright as a day
The dog say goodnight
And I think to myself
What a wonderfull world
The colors of the raimbow
So pretty in the sky
And also on the faces
Of people going by
I see friends shaking hands
Saying how do you do
They really say
I love you
I hear babies crying
I watch them grow
They learn much more
And I will never know
And I think to myself
What a wonderfull world
Trata-se de um poema lírico em sua forma pura, que, junto com a música, torna-se
uma canção altamente expressiva. Mas o contraste entre essa canção e o tipo de sentimento,
ou reflexão que ela evoca, e o que se vê na tela é muito forte. O confronto dos dois discursos
4. Apelido de Louis Armstrong.
126 Trilha Musical
leva a um conflito entre o apelo emocional, o lirismo da canção, e as imagens da guerra, com
seus bombardeios, massacres, desespero e humilhação. Com isso, além do efeito lírico, obtido
pelo uso da canção, a seqüência tem um caráter dramático muito forte, que é fundamental
para a compreensão do filme como um todo. Não trata-se apenas da inserção de um belo
número musical, mas de uma reflexão sobre a natureza da guerra que faz parte da temática do
filme.
Aliás, a guerra parece favorecer muito a expressão lírica, assim como a infância. Um
filme que justapõe esses dois elementos é O Império do Sol5. Esse filme conta a história de
um menino, filho de uma abastada família inglesa residente na China. Ele se desencontra de
seus pais e é feito prisioneiro pelos japoneses, sendo encaminhado a um campo de
concentração. O filme é todo narrado sob o ponto de vista do menino, pelo qual a guerra é
muito mais uma grande aventura do que, propriamente, uma tragédia. O caráter lírico já pode
ser notado ao nível do roteiro. A trilha musical é composta sobre uma singela canção infantil
que aparece logo na abertura do filme, cantada por um coral de meninos, do qual o
personagem principal é o solista. A partir desse momento, essa canção se liga ao personagem
e torna-se um modo de expressar esse seu ponto de vista, e as transformações que vão ocorrer
com ele no decorrer do filme. Com o material temático da canção, serão feitas as
intervenções, ela se torna um leitmotiv. Toda a progressão dramática do filme reveste-se de
lirismo e a música é um dos principais recursos usados para a obtenção desse resultado.
Mas o lirismo não se manifesta apenas em termos de construção dramática. Em alguns
casos, tem-se a impressão de que o próprio narrador foi impregnado pela forma de expressão
lírica. São momentos bastante perceptíveis, pois neles o narrador age, temporariamente, como
se houvesse perdido a sua “imparcialidade” perante o objeto da narração. Ele lança mão de
suas ferramentas narrativas para criar um sentido de subjetividade, ou um caráter onírico.
Um raro exemplo de filme construído quase que integralmente sobre o lirismo do
narrador é Koyaanisqatsi6. Nesse filme o narrador se utiliza de todos os recursos técnicos à
sua disposição para criar aquilo que poderia ser definido como: um quase poema lírico em
forma de filme. O mundo moderno e o mundo primitivo, ou natural, são contrapostos e o
antagonismo de seus diversos fenômenos é explicitado por movimentos de câmera lenta,
câmera rápida, filmagem quadro-a-quadro, etc. Tudo isto acontecendo sobre a música
minimalista de Phillip Glass, que com seus motivos recorrentes, cíclicos, se insere
perfeitamente no contexto visual do filme e faz com que ele possa ser visto quase como que
5. Empire of the Sun (E.U.A. - 1987). Música de John Williams
6. Koyaanisqatsi (E.U.A. - 1983). Música de Phillip Glass.
Momento Lírico 127
um vídeo-clip em longa metragem. No subjetivismo do narrador reside o caráter lírico desse
filme. Ele perde a sua suposta imparcialidade e se insere poeticamente na narrativa,
mostrando o seu ponto de vista pessoal e subjetivo, valendo-se para isto, inclusive, de seu
poder de descaracterização do objeto da narração. Uma rua não é mais uma rua, uma nuvem
não é mais uma nuvem, todos os elementos são decompostos e recriados poeticamente em
imagem e som.
A BUSCA DO PATHOS
Elliott (Henry Thomaz) cruza o bosque, com ET no bagageiro de sua bicicleta. ET
precisa “ligar” para casa. A música pontua a trajetória dos dois. De repente, a aflição, um
abismo. Plano fechado na face de ET. A bicicleta salta para o céu. A orquestra alcança o tema
que vinha buscando durante toda a seqüência. As cordas se lançam para o agudo7.
Todos os recursos articulatórios vistos neste trabalho interagem na composição do
drama, ou melodrama, cinematográfico. É possível afirmar que, em última instância, toda
construção dramática tem por objetivo a busca do pathos, ou seja, atingir o espectador em
seus níveis de sentimento mais elementares, provocar-lhe a emoção.
Uma vez que a atenção e o interesse do espectador tenham sido
captados, uma vez que ele tenha sido induzido a seguir a ação com total
concentração e envolvimento, seus poderes de percepção estarão
intensificados, suas emoções passarão a fluir livremente e ele atingirá, na
verdade, um estado exacerbado de conscientização no qual ficará mais
receptivo, mais observador, mais apto a discernir a unidade e o desenho geral
da existência humana. É isso que torna a verdadeira receptividade em relação
a qualquer arte semelhante à experiência religiosa (ou à conscientização mais
aguçada do mundo pelo consumo de determinadas drogas).8
E quando se trata de mexer com a emoção, de provocar o “mergulho” psicológico em
uma determinada ação, a música é uma linguagem indispensável. O discurso musical nunca é
conceitual, não há como sê-lo. Mas ele é capaz de romper a barreira da consciência com uma
facilidade muito maior do que as formas de expressão que trabalham com signos que
expressam conceitos, como a linguagem verbal. E, como vimos, ela pode fazer isto
7. E.T. - The Extraterrestrial (E.U.A. - 1982). Música de John Williams.
8. Esslin, Martin: Uma anatomia do drama, pgs. 58/59.
128 Trilha Musical
paralelamente à existência dessas outras linguagens. A coordenação de todos os elementos na
articulação de um filme rouba o espectador de seu universo real e faz com que ele mergulhe
em outro universo, o universo real do filme, onde tudo pode acontecer. Ele é envolvido e
passa a fazer parte desse universo, onde a música pode existir de modo tão fantástico quanto
tudo o mais. Quaisquer resultados que um filme venha a provocar no público: reflexões
conscientes, existenciais, políticas, ideológicas, comportamentais, etc, só poderão acontecer a
partir do momento em que esse público for arrebatado pelo filme em seu modo de
compreensão mais elementar que é a emoção.
As articulaçoões épica, dramática e a construção do momento lírico através da música,
têm por objetivo, acima de tudo, esse arrebatamento do espectador que leva ao patético (em
seu sentido mais estrito). Não é por acaso que as pessoas choram no cinema, o coração bate
mais rápido em determinadas passagens, a adrenalina corre nas veias. Levar um espectador a
esse estado requer uma grande sabedoria na manipulação dos recursos dramáticos, exige
habilidade e experiência. Assim, se do ponto de vista do espectador espera-se uma inserção
emocional completa, do ponto de vista do profissional exige-se, inversamente, uma total
consciência dos veículos e dos recursos de linguagem à sua disposição, pois só uma atitude
consciente e profissional possibilita a construção de estruturas que atinjam ao máximo esse
objetivo.
Epílogo
A consciência profissional, necessária tanto ao cineasta quanto ao compositor de
trilhas musicais passa, invariavelmente, pelo processo de aprendizado, pela tomada de
consciência dos recursos articulatórios que se encontram à sua disposição. Tal aprendizado se
dá em duas instâncias, basicamente. Uma delas é a via da experimentação prática, da
confecção de filmes. Ninguém se torna um bom artista se não for capaz de dominar o aspecto
“artesanal” de sua arte. A segunda instância do aprendizado do artista é o conhecimento
teórico, através do qual ele toma conhecimento das possibilidades de sua forma específica de
expressão artística, de maneira sintética e sistemática. A via teórica permite ao profissional
uma grande economia de tempo em seu aprendizado, pois elimina em grande parte o fator
tentativa e erro inerente ao aprendizado puramente prático. Ao mesmo tempo, ela permite um
grau de aprofundamento muito maior das questões pertinentes à expressão artística, seja em
seus aspectos técnicos, ou estéticos.
No que diz respeito à trilha musical de cinema, pelo menos no Brasil, há uma imensa
lacuna nesse segundo aspecto do aprendizado profissional, bem como da discussão
acadêmica. Nessa área, o número de trabalhos em língua portuguesa é praticamente zero.
Internacionalmente a carência, embora não seja tão drástica, também existe e, comparada a
outros aspectos do cinema, deixa muito a desejar.
Através deste trabalho, procuramos apresentar subsídios para o início de uma
discussão mais ampla sobre as questões referentes à música de cinema. O nosso objetivo é,
antes de tudo, apontar caminhos para essa discussão, e não oferecer respostas precisas ou
definitivas. A discussão é tão extensa e tão complexa, que não caberia em um único trabalho.
130 Trilha Musical
Sendo assim, muitos aspectos relativos ao assunto e muitas questões pertinentes não foram
sequer tocados.
Nosso sincero desejo, é que essa discussão não se encerre por aqui, mas que este seja
apenas o ponto de partida, tanto para profissionais, quanto para estudiosos, e que, a partir
dele, haja uma maior preocupação com a trilha musical, vista como elemento constituinte da
dramaturgia do cinema, e não como um mero acessório narrativo que é adicionado ao filme.
Certa vez o maestro Júlio Medaglia disse que o músico, para ser um bom autor de
trilha sonora tem que ser um dramaturgo1. Em outras palavras, o músico deve conhecer as
especificidades, os recursos de linguagem e os fundamentos da dramaturgia e da articulação
fílmica, para que a sua música possa participar significativamente dessa linguagem. O
conhecimento e a experiência puramente musicais não são suficientes para fazer de um bom
compositor, um bom autor de trilhas musicais. Em contrapartida, todo cineasta deve ser um
pouco músico, pois um conhecimento mínimo da linguagem musical amplia sobremaneira o
entendimento das possibilidades dramáticas e narrativas da música no cinema. O
conhecimento musical proporciona ao cineasta uma visão mais crítica e pode evitar que ele se
deixe levar por soluções fáceis, ou ineficientes, nas trilhas de seus filmes. Além disto, o
conhecimento de uma terminologia musical básica permite que o cineasta se comunique com
o músico de forma mais clara e objetiva, de modo que ambos possam trabalhar, de fato, juntos
e interativamente, com vista ao objetivo comum.
Em suma, há muito o que se aprender em relação ao papel da música nas linguagens
audiovisuais. A prática, a análise de obras e a síntese teórica devem caminhar juntas. Não é
possível nos contentarmos mais apenas com manuais técnicos, ou nos guiarmos por máximas
e tabus consolidados ao longo de muitos anos, que possuem muito mais o caráter de frases de
efeito do que princípios bem fundamentados, estabelecidos através da observação, da
sistematização e da aplicação prática. Está na hora de levarmos essa discussão a um outro
nível, para que ela possa, algum dia, possuir o mesmo grau de aprofundamento de outros
aspectos pertinentes ao cinema, de modo que esse conhecimento possa ser transmitido às
novas gerações como parte de sua formação profissional.
1. No artigo Trilha Sonora: A música como (p) arte da narrativa. Em Medaglia, Júlio: Música impopular, pg.
311.
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