Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC CANAS: DUAS NOTAS J. I. A. de Magalhães1 Resumo: O presente trabalho consiste em duas notas relativas à batalha de Canas, ocorrida durante a Segunda Guerra Púnica. Em Canas, Aníbal dispôs os celtas e iberos no centro de sua linha de batalha. Na primeira nota é questionada a explicação tradicional de que os mesmos foram ali colocados por se tratarem dos contingentes mais descartáveis do exército púnico. É também analisada a sugestão, que aparece mais recentemente na literatura, segundo a qual os gauleses e espanhóis foram designados para o setor central porque só a infantaria líbia teria o treinamento necessário para executar a manobra envolvente das alas. É formulada, então, a hipótese alternativa de que o número de combatentes, em cada um dos contingentes étnicos, foi o critério principal utilizado na indicação dos mesmos para as suas respectivas missões táticas. Na segunda nota uma crítica pontual é feita a um trabalho multidisciplinar no qual é buscada uma explicação matemática para o triunfo militar de Aníbal em Canas. Verifica-se que algumas estimativas feitas pela autora do referido trabalho, acerca dos efetivos de certos segmentos do exército cartaginês, não parecem coerentes com o que sabemos da campanha como um todo, tal como nos é descrita nas fontes antigas. Palavras-chave: Canas, Aníbal, Segunda Guerra Púnica. O enfrentamento bélico que teve lugar na planície próxima de Cannae, ou Canas, em 216 a.C., durante a Segunda Guerra Púnica, não foi uma das batalhas decisivas da História. Apesar da vitória esmagadora das armas púnicas naquele momento, a guerra terminou com a derrota de Cartago. Entretanto, o sofisticado e inovador plano tático concebido por Aníbal e sua execução praticamente perfeita, resultaram no quase total aniquilamento do principal exército romano. Ammianus Marcellinus, no quarto século de nossa era, referindo-se à derrota do imperador Valens frente aos godos em Adrianópolis, escreveu que nenhuma batalha da história romana, exceto Cannae, se constituiu em tal massacre (AMMIANUS 31.13, 1986). Ainda hoje, Canas é considerada um modelo de batalha de duplo envolvimento e estudada em academias militares de diversos países. O conde von Schlieffen – chefe do Estado Maior do exército alemão em anos anteriores à Primeira Guerra Mundial – 1 Mestre em Ciências, professor aposentado. E-mail: [email protected] Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC considerava Canas o paradigma de batalha de aniquilamento (SCHLIEFFEN, 1931). Analogias entre aquela batalha da antiguidade e batalhas modernas, como a de Stalingrado, podem ser estabelecidas. Mesmo na recente Guerra do Golfo ensinamentos colhidos com o estudo da batalha de Canas ainda resultaram úteis2. O presente trabalho consiste em duas breves notas. Na primeira são analisadas as explicações que aparecem na literatura para o posicionamento dos celtas e iberos no centro do dispositivo tático de Aníbal. Uma interpretação alternativa é, então, oferecida. Na segunda nota é feita uma crítica pontual, baseada no estudo das fontes históricas antigas, a um trabalho multidisciplinar que analisa a batalha de Canas por meio de um modelo matemático. 1ª. Nota – O posicionamento dos celtas e iberos na batalha de Canas: uma reinterpretação Em Canas, Aníbal dispôs contingentes celtas e iberos de infantaria no centro de sua linha principal de batalha. A explicação para esta decisão – encontrada com relativa frequência em obras de história de caráter geral e em alguns estudos especializados – é que estas seriam as tropas menos confiáveis e mais descartáveis de seu exército. Ou seja, Aníbal teria colocado na posição mais exposta as tropas que, por seu equipamento inferior ou treinamento insuficiente, teriam menor valia e cujas baixas seriam menos importantes, preservando os contingentes africanos, sua força de elite (DELBRÜCK, 1990, p.321; CONNOLLY, 1998, p.187; HEALY, 1994, p.77). Os autores das mencionadas obras, em geral, limitam aos gauleses essas avaliações pouco elogiosas. Alguns, entretanto, as estendem também aos espanhóis (KEPPIE, 1994, p.26; DALY, 2002, p.38). Em anos recentes, Goldsworthy propôs uma explicação diferente. Diz ele: It is probably a mistake to assume that the Gauls and Spanish were exposed in this way because they were expendable in comparison to his trained African phalanx. Only the Lybian infantry had the training necessary to wait quietly in reserve and then manoeuvre to trap the enemy (GOLDSWORTHY, 2001b, p.214). Assim, no entender do citado autor, os gauleses e espanhóis teriam sido colocados no centro porque somente as tropas africanas seriam capazes de efetuar o ataque em pinças, pelas alas, planejado por Aníbal. 2 Conforme declaração do próprio comandante da operação Tempestade no Deserto, general Norman Schwarzkopf (apud GOLDSWORTHY, 2001a, capa). 2 Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC Analisemos essas conjecturas. Em primeiro lugar, devemos notar que nem Políbios nem Tito Lívio, nossas fontes mais confiáveis, dão explicações desse gênero para o critério adotado por Aníbal quanto à distribuição de suas forças em Canas. Em Plutarco é que encontramos a menção de que o general cartaginês colocou os melhores homens nas alas e os menos capazes no centro, sem referência às suas respectivas etnias (PLUTARCO 16, 2010). Quanto à qualidade relativa das tropas de Aníbal, devemos notar que as características guerreiras dos habitantes da Península Ibérica sempre foram apreciadas pelos comandantes púnicos, que fizeram uso sistemático de combatentes espanhóis em seus exércitos desde o início das conquistas cartaginesas naquela região. Vale acrescentar que os soldados ibéricos chegados à Itália, após a longa marcha de Aníbal, devem ter sido os melhores dos que foram recrutados no início da expedição, muitos deles já veteranos das guerras travadas pelos bárcidas na Península Ibérica (POLÍBIOS 3.35, 1985). Alguns anos depois, esses combatentes espanhóis destacar-se-iam por suas ações e seriam, inclusive, citados como a força principal do exército expedicionário púnico (LÍVIO 26.5, 27.14, 1990). Mesmo sabendo que as melhores armas romanas capturadas nas batalhas do Trébia e do Trasimeno foram destinadas a reequipar os líbios, podemos deduzir que, pela quantidade de baixas dos romanos nessas batalhas, haveria, entre os despojos reutilizáveis, capacetes e pectorales suficientes para tornar o armamento defensivo de boa parte dos iberos e gauleses bem melhor do que sugere o texto de Políbios (3.114, 1985). Por tudo isso, é razoável presumir que não haveria grande diferença qualitativa entre iberos e líbios em termos de experiência, confiabilidade e capacidade combativa, quando da batalha de Canas. Em relação aos celtas, tudo faz supor que, por ocasião de seu recrutamento, fossem marcadamente inferiores aos líbios e iberos, principalmente em relação à disciplina e ao treinamento. Esta inferioridade, entretanto, após o longo período de campanhas em comum, deve ter se reduzido consideravelmente. É razoável admitir que seu desempenho, então, se aproximasse mais do padrão do restante do exército púnico. Esta é também a opinião de O’Connell: Another change had to do with the Gauls. By this time they were much more reliably integrated into the fighting force. They still fought together, to take advantage of their peculiar tactical characteristics, but at Cannae small units of Gauls were interspersed with Spaniards, indicating that their tribal allegiances had been effectively superseded by the command system that controlled the rest of the army. […] They were now not only fierce and brave individually; they were also disciplined, well trained, and above all reliable at the unit level. And as such they would play a critical role at Cannae (O’CONNELL, 2010, loc. 2715-27). 3 Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC Em Canas, fica evidente o progresso qualitativo dos guerreiros celtas. Contrariando o estereótipo tradicional que os descreve como ferozes e impetuosos, mas pouco persistentes, os combatentes gauleses, tanto da infantaria quanto da cavalaria, demonstraram por suas ações que, juntamente com os espanhóis, haviam atingido um alto grau de disciplina (POLÍBIOS 3.115-116, 1985). Vale destacar que a missão à qual foram destinados estava longe de ser secundária. No plano concebido por Aníbal para aniquilar o adversário, a função atribuída aos celtas e iberos de bloquear frontalmente o avanço romano era fundamental. Uma ruptura definitiva do centro cartaginês conduziria, na melhor das hipóteses, a uma vitória incompleta – tal como ocorreu no Trébia (POLÍBIOS 3.74, 1985; LÍVIO 21.56, 1989) – e, na pior, a uma derrota contundente, os romanos atacando com sucesso os flancos internos então gerados. Acertado, pois, está Fields ao dizer que o audacioso esquema de Aníbal, em Canas, demonstrou confiança absoluta do comandante cartaginês nas habilidades de combate de todos os contingentes de seu exército (FIELDS, 2010, p. 49). Esta confiança não poderia repousar sobre tropas de qualidade acentuadamente inferior. Frente ao exposto, parece ter pouca sustentação a teoria de que os celtas e iberos foram colocados no centro da linha de batalha apenas por se constituírem, especialmente os primeiros, nos contingentes mais descartáveis. Para analisar a sugestão de Goldsworthy de que só os líbios tinham o treinamento necessário para executar o ataque em tenazes, vamos, preliminarmente, examinar como essa manobra pode ter sido efetuada. Uma hipótese é que estivessem os africanos, já desde o início, formados em duas falanges, nos extremos da linha de infantaria cartaginesa, em reserva. Estas falanges, no momento oportuno, teriam atacado obliquamente para dentro, contra os flancos da linha de infantaria romana (DODGE, 1995, p. 368; GABRIEL, 2008, p. 47). Outra hipótese, mais provável, é que os líbios estivessem dispostos inicialmente em duas densas colunas. Quando a infantaria pesada romana avançou para o interior do dispositivo cartaginês, os combatentes das referidas colunas, com um simples movimento de volver à direita, ou à esquerda, estariam formados em falange sobre os flancos expostos do inimigo, prontos para atacá-los (DELBRÜCK, 1990, p. 316; CONNOLLY, 1998, p. 187; WARRY, 1995, p. 120; HEALY, 1994, p. 80; GOLDSWORTHY, 2001a, p. 148). Esta 4 Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC manobra, por ser mais simples que a da hipótese anterior e de execução rápida, deveria surpreender ainda mais os romanos. Ambas as hipóteses, naturalmente, têm seus partidários. Em nosso entender, a polêmica foi dirimida por Lazenby que, após o exame dos termos utilizados por Políbios no texto grego original, concluiu: The technical terms Polybius here uses (3.116.9-10) make it clear that the manoeuvre was carried out by each individual African turning to left or right, not by the whole units wheeling to left or right, something that could hardly have been done in the heat of battle ( LAZENBY, 1998, p. 83). Se aceitarmos, então, que as alas tenham sido dispostas inicialmente em colunas, fica enfraquecida a sugestão de Goldsworthy de que só a força de elite africana tinha condições de realizar a manobra de envolvimento. A simplicidade da manobra indica que a mesma poderia ter sido executada por qualquer outro dos contingentes de Aníbal, de resto todos eles veteranos, nesse estágio da campanha. No caso, menos provável, da primeira hipótese ter ocorrido, ela implicou em uma ação mais complexa. Mesmo assim – frente ao que foi discutido anteriormente sobre o nível de disciplina e treinamento dos diferentes contingentes étnicos – não há porque supor que os iberos, se tivessem sido destinados a executar a citada manobra, enfrentassem maior dificuldade que os líbios. O que teria levado Aníbal, então, a distribuir seus combatentes celtas, iberos e líbios da maneira como o fez? A resposta pode estar nos números. A segurança do dispositivo cartaginês exigia que a extensão da linha de batalha de sua infantaria se equiparasse mais ou menos à da infantaria pesada dos romanos e seus aliados. Se tivesse extensão inferior poderia ser perigosamente flanqueada. Por outro lado, essa linha não poderia ser muito tênue, caso contrário seria facilmente rompida. Um recuo do centro da linha de batalha púnica com a decorrente formação de um bolsão ou concavidade seria tolerável – e até certo ponto desejável – para a consecução do plano de Aníbal. Entretanto, uma ruptura definitiva poderia trazer consequências desastrosas. A densidade da linha, pois, deveria ser tal que garantisse a sua integridade, quer pela resistência física que apresentasse, quer pela autoconfiança que infundisse nos combatentes. Isso significa que um número razoavelmente elevado de soldados de infantaria deveria ser destinado ao preenchimento desta linha central. Ora, uma vez tendo decidido Aníbal que a distribuição das tropas para os diversos setores dar-se-ia, 5 Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC preferencialmente, por afinidade étnica e sendo o contingente celta o mais numeroso, este seria o candidato natural para ocupar o centro cartaginês3. Mesmo assim, Aníbal julgou necessário reforçá-lo com os iberos. Somados, os efetivos gauleses e hispânicos da infantaria de linha ainda totalizavam, ao que parece, menos da metade dos soldados da infantaria pesada das legiões e alae sociorum. Entretanto, estimativas feitas indicam que seu número era próximo ao dos hastati (GOLDSWORTHY, 2001a, p. 142). Tal resultado não deve ser coincidência. É provável ter Aníbal considerado que a segurança mínima de seu dispositivo exigisse um equilíbrio aproximado de forças entre os combatentes de seu centro e os da primeira linha de batalha dos romanos, de forma a garantir que o segmento central de sua formação resistisse por tempo suficiente para que a manobra das alas se completasse. Em resumo, na presente interpretação, o número de celtas no exército cartaginês em Canas – e não a inferioridade dos mesmos como combatentes – foi o fator preponderante na decisão de Aníbal de alinhá-los no centro de seu dispositivo tático. Resta ainda responder por que o comandante cartaginês escolheu os líbios e não os iberos para a manobra das alas. Novamente podemos buscar a resposta nos números. O objetivo de Aníbal não era apenas bater nos flancos do adversário. Ele visava, igualmente, envolver as legiões romanas com um ataque em pinças. Assim, as tropas africanas, mais numerosas, seriam as mais indicadas para a missão. Com efeito, observa-se que, além de investir sobre os flancos da infantaria pesada romana, as forças cartaginesas das alas, desdobrando-se, atacaram o inimigo também pela retaguarda, envolvendo-o, tal como afirma literalmente Tito Lívio: “[...] mox cornua extendendo clausere et ab tergo hostes.” (LIVIVS 22.47, s. d.). Ora, quanto mais tropas tivesse Aníbal na retaguarda dos romanos, naquele momento da batalha, maior seria sua capacidade de reduzir o espaço de manobra dos mesmos e impedir sua retirada. Daí a vantagem do emprego dos africanos nas alas. Na sequência dos eventos, a cavalaria galo-hispânica comandada por Asdrúbal, reforçando o ataque dos líbios, completou o cerco do adversário (POLÍBIOS 3.116, 1985). Vemos, então, que Aníbal garantiu a segurança de seu centro com a maior economia possível de forças, guardando o contingente africano, mais numeroso que o dos espanhóis, 3 Em Canas, a infantaria cartaginesa era composta de aproximadamente 40.000 combatentes. Estima-se que estivessem assim distribuídos: cerca de 8.000 homens na infantaria ligeira (longchophoroi e fundibulários baleares) e, na infantaria de linha, 8.000 a 9.000 líbios, 3.000 a 4.000 iberos e em torno de 20.000 celtas (GOLDSWORTHY, 2001a, p.110). Outras estimativas das forças cartaginesas têm sido feitas, com algumas diferenças nos números propostos, mas que, no geral, não alteram a argumentação desenvolvida no presente trabalho. Dos cerca de 70.000 infantes romanos e aliados possivelmente presentes no campo de batalha pode-se estimar que em torno de 50.000 pertencessem à infantaria pesada. 6 Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC para a execução de uma manobra mais abrangente pelas alas. Dispor os líbios no centro – junto aos celtas – e usar os iberos para atingir os flancos do inimigo, teria sido uma opção provavelmente mais segura, dada a expressiva vantagem numérica dos romanos no setor central. Aníbal, entretanto, tomou a decisão que comportava maior risco, mas passível de conduzir a um resultado mais decisivo, como acabou acontecendo. 2ª. Nota – Númidas e números Em interessante artigo, publicado há algumas décadas, Maestre procurou quantificar a eficácia e a potência combativa dos diversos segmentos dos exércitos romano e cartaginês (MAESTRE, 1971). Para tanto utilizou a análise matemática da relação de forças entre dois exércitos exposta originalmente por Lanchester (1995, p.46-73). Canas é uma das pouquíssimas batalhas da antiguidade em que a confiabilidade dos dados numéricos torna possível, com alguma aproximação, este tipo de análise. Mesmo assim, como nem todos os dados estão disponíveis nos relatos antigos, algumas suposições necessariamente tiveram que ser feitas. Deixando de lado questionamentos sobre alguns aspectos metodológicos do citado trabalho, vamos nos concentrar na apreciação de certos valores numéricos postulados pela autora quando da aplicação do modelo e mostrar como eles poderiam ser melhorados pelo exame mais aprofundado das fontes históricas. Para calcular, por exemplo, a eficácia da cavalaria galo-hispânica relativamente à cavalaria romana da ala direita, bem como da cavalaria númida frente à cavalaria aliada da ala esquerda romana, são necessários os efetivos de todos estes contingentes. Como as fontes não fornecem esses números, mas apenas os valores totais – cerca de dez mil cavaleiros nas tropas de Aníbal e pouco mais de seis mil entre romanos e seus aliados (POLÍBIOS 3.113-114, 1985) – certas suposições tiveram que ser feitas. Maestre estimou o número de cavalarianos romanos em dois mil e o dos aliados em quatro mil. Podemos considerar esses valores razoáveis, embora fortemente arredondados, tendo em vista o que sabemos sobre as dotações típicas de combatentes a cavalo nas legiões e nas alae sociorum, e supondo que, devido às perdas no período de campanha anterior, os efetivos teóricos não pudessem ser alcançados. O problema surge quando Maestre (ou alguma de suas fontes), salomonicamente, atribui cinco mil homens para o contingente de númidas e outros tantos para o de cavaleiros galo-hispânicos. Com efeito, havia entre os antigos comandantes a tendência lógica de distribuir a cavalaria por ambos os flancos de forma 7 Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC equilibrada, a menos que um motivo especial indicasse a oportunidade de reforçar uma das alas, em detrimento da outra. Exemplos dessa tendência podem ser encontrados na notável simetria entre as alas do exército macedônico de Alexandre nas batalhas do Grânico e de Gaugamela (ARRIAN 1.14, 3.11-12, 1971). Da mesma forma, é possível ter Aníbal, na batalha do Trébia, distribuído a cavalaria pelos dois flancos de forma aproximadamente equitativa (LAZENBY, 1998, p.56; GOLDSWORTHY, 2001a, p.33). Esse, entretanto, não parece ter sido o caso em Canas. É o que sugere o estudo da campanha como um todo, tal como descrita nas fontes antigas. O exército expedicionário cartaginês chegou à Itália, após a travessia dos Alpes, com não mais do que seis mil cavaleiros (POLÍBIOS 3.56, 1985; LÍVIO 21.38, 1989). Para que o número de númidas em Canas fosse cinco mil, após as perdas que naturalmente ocorreram no período de campanha anterior, seria preciso que os cavaleiros hispânicos que chegaram à Itália não fossem mais do que algumas centenas de homens. Ora, além de não haver nenhuma referência nas fontes sugerindo uma presença tão baixa de cavaleiros espanhóis nas forças púnicas, a participação destes na batalha equestre do Ticino parece indicar um número mais elevado para os mesmos. Nessa batalha, Aníbal dispôs a cavalaria pesada no centro de sua formação, destinando-a ao choque frontal com os romanos enquanto os númidas, nas alas, deveriam envolver os adversários. Como a adesão significativa dos gauleses a Aníbal só começou após essa batalha (POLÍBIOS 3.60, 3.66, 1985) é seguro afirmar que os cavaleiros dispostos no centro cartaginês eram predominantemente, senão exclusivamente, hispânicos (NIEBUHR, 1852-53, p.93). Segundo Políbios e Tito Lívio eles se empenharam em um combate frontal e equilibrado com os adversários que durou muito tempo, até que a chegada dos númidas pela retaguarda inclinou a luta em favor de Aníbal (POLÍBIOS 3.65, 1985; LÍVIO 21.46, 1989). Da duração e equilíbrio do combate contra um inimigo numericamente importante – tratavase da cavalaria de todo um exército consular apoiada por cavaleiros gauleses auxiliares e pela infantaria ligeira4 – podemos deduzir ser pouco provável que o número dos ginetes espanhóis se resumisse a algumas centenas5. 4 No total, cerca de dois mil cavaleiros (GAEBEL, 2002, p.267), acompanhados por uns poucos milhares de soldados de infantaria ligeira. 5 O número de cavaleiros hispânicos no exército de Aníbal tem sido estimado em aproximadamente dois mil por alguns autores, entre estes Warry (1995, p.120), Daly (2002, p.32, 100) e Strauss (2012, loc.2763-76), sem que, entretanto, justifiquem tal estimativa. Aparentemente, tais autores tem considerado a proporção entre espanhóis e africanos na cavalaria como semelhante à observada na infantaria, quando da chegada em solo italiano. 8 Anais do XIV Encontro Estadual de História – Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC Uma estimativa precisa do número de cavaleiros dispostos em cada uma das alas do exército cartaginês em Canas é praticamente impossível. A revisão do assunto em algumas das principais obras conduz a valores diversos, mas que nunca ultrapassam quatro mil para os númidas (DODGE, 1995, p.369; DEBEER, 1969, p.214; WARRY, 1995, p. 120; LANCEL, 1999, p.107; DALY, 2002, p.92 e p.182). Em geral os autores não informam como chegaram a esses valores, o que dificulta uma escolha. Exceções à regra, Connolly e Goldsworthy justificam suas estimativas e postulam que, como os númidas foram destinados a manter em xeque os cavalarianos aliados de Roma, seu número deveria ser, em uma aproximação grosseira, semelhante ao destes (CONNOLLY, 1998, p.187; GOLDSWORTHY, 2001a, p. 108). O último autor estima o total dos cavaleiros africanos entre três e quatro mil; os ginetes espanhóis e gauleses somariam, então, os seis a sete mil restantes. Números intermediários entre esses extremos parecem ser a melhor aproximação que se pode obter para emprego no citado modelo matemático. Se utilizados nos cálculos, devem produzir resultados um pouco mais realistas de eficácia e potência combativa que os encontrados no trabalho original. O trabalho de Maestre pode ser considerado um dos esforços pioneiros de aplicação de modelos matemáticos no exame de batalhas da antiguidade. Diversos modelos matemáticos que aperfeiçoam o trabalho de Lanchester, entretanto, têm sido propostos e alguns destes poderiam ser utilizados para o mesmo fim. No entanto, é necessário que, na aplicação do modelo, a análise histórica receba cuidado semelhante ao empregado nos cálculos matemáticos. Esta análise deve basear-se não apenas nos dados provenientes da descrição da batalha objeto do estudo, mas, igualmente, nas informações oriundas de toda a campanha na qual a mesma se insere. É o que a presente nota tem a intenção de enfatizar. Referências AMMIANUS MARCELLINUS. The Later Roman Empire. Translated by Walter Hamilton. London: Penguin Books, 1986. ARRIAN. The Campaigns of Alexander. Translated by Aubrey de Sélincourt. Harmondsworth: Penguin Books, 1971. CONNOLLY, Peter. Greece and Rome at War. London: Greenhill Books, 1998. DALY, Gregory. Cannae: The Experience of Battle in the Second Punic War. London and New York: Routledge, 2002. DEBEER, Gavin. Hannibal. 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