A imagem da Batalha de Canas em Ab Urbe Condita IC- IAC

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A imagem da Batalha de Canas em Ab Urbe Condita
DENISE DE SOUZA ABLAS
IC- IAC/FFLCH
Tito Lívio e sua obra
Tito Lívio nasceu em Pádua em 59 a.C., mas foi principalmente em Roma que trabalhou, a
partir de aproximadamente 25 a.C., na redação de sua única obra que resistiu até nossos dias: Ab
urbe condita. Lívio refuta a historiografia monográfica de Salustiano, adotando no lugar dela o
esquema analístico - segundo o qual a narrativa marcha ano a ano -, retomando de modo mais
artístico a narrativa de toda a história de Roma desde os primórdios até seus tempos. Recolhendo os
temas mais importantes de cada ano, escreveu 142 livros, abrangendo desde a fundação de Roma
até a morte de Druso em 9 aC.
Vários autores consideram que a posição de Lívio na história da cultura romana não o inclui
entre os historiadores. Lazenby1 diz que prefere confiar na narrativa de Políbio, apesar de ele
cometer alguns erros notórios; nos casos em que não dispomos da história narrada por Políbio,
Lívio pode trazer boas pistas do que aconteceu. De acordo com o autor, Lívio é o melhor historiador
depois de Políbio, no que tange à Segunda Guerra Púnica. Bickel 2 afirma que Lívio “criou uma
narração mítica do passado nacional romano, que como o firmamento de um panteão deveria
envolver o caráter romano no futuro e de tempos em tempos fornecer força e luz”, mas diz que
poucas coisas favoráveis podem ser ditas sobre a atividade puramente investigadora do autor.
Na realidade, o atual distanciamento histórico permitiu aos investigadores modernos uma
pesquisa abrangente e com todas as fontes antigas disponíveis hoje, o que propiciou uma imagem
completamente distinta da que buscava a historiografia nacional romana, sobretudo a respeito da
história primitiva de Roma. De fato, nota-se nos investigadores modernos um ceticismo frente aos
historiadores romanos. Laistner3 diz que a imagem que muitos críticos modernos criaram de Lívio
faz dele um escritor superficial e sem surpresas, que sempre segue um predecessor e
ocasionalmente acrescenta pedaços de um ou dois outros historiógrafos. De acordo com o autor,
essas afirmações são impensadas: Lívio mostra-se um grande artista e seus livros são uma grande
obra de arte, que não poderia ter sido criada por um escritor inepto e casual; o uso que fez de suas
fontes não foi superficial e nem tampouco acrítico - pelo contrário, demonstrando honestidade
intelectual, ele procura não ser dogmático e mostra-se cético diante de evidências fracas ou
1
LAZENBY, J.F. Hannibal's war: a military history of the Second Punic War. Norman:University of Oklahoma Press,
1998, p. 258.
2
BICKEL, E. Historia de la literatura romana. Trad. José Maria Díaz-Regañon López. Madrid:Gredos; 1a ed., 1987.
contraditórias.
Contudo, existe muito claramente a divisão, pelos estudiosos, do trabalho de Tito Lívio entre
história e literatura. Parece não haver discordância no que se refere à valoração artística da obra de
Lívio. De acordo com Bickel4, Lívio tem um talento literário de primeira ordem. Encarando a
história como uma forma de ensinar, no presente, a partir da valorização do passado, Lívio confere
um tom apologético à sua obra. Sem falsear os fatos, utilizando-se de uma linguagem sóbria e
sintética, que confere densidade à frase, soube dar elegância e colorido a seu texto. O conhecimento
da técnica da oratória se revela nos numerosos discursos simulados inseridos no texto. A
dramaticidade dá vida aos fatos vividos por figuras históricas, que, à feição das personagens
ficcionais, são tratadas psicologicamente, com grande cuidado (Cardoso5). Bignone concorda,
dizendo que aquilo que Lívio narra não se esquece jamais,
porque em suas páginas tudo se transforma em realidade viva. O que Políbio, que para a
história das guerras púnicas é a fonte principal de Lívio, indica apenas de forma
abstrata, Lívio nos faz ver e sentir, como se tudo estivesse diante de nossos olhos; ele
empresta aos fatos seu expressivo realismo que vence a distância temporal com sua
fantasia dominadora. Sua história está escrita num estilo dramático, forte, maciço,
escultórico; uma história atual, viva, que se desenvolve e move no tempo. Lívio narra
tudo com esse robusto sentido romano do concreto (em oposição ao abstrato sem cor),
pictórico, que nos faz ver o avanço das legiões entre as preces, os votos, a exaltação dos
povos; a guerra que os romanos e os cartagineses fazem mais com seu ódio que com
suas respectivas forças; Roma, que não é só cidade dos homens, mas também morada
dos deuses. Nenhum historiador, depois de Lívio, nos fez realmente ver a história, e sua
prosa narrativa não cansa jamais.6
A batalha de Canas
A Segunda Guerra Púnica teve início na insatisfação cartaginesa pelos resultados da Primeira
Guerra Púnica, vencida por Roma. De acordo com Lívio, Aníbal incitou o senado de Cartago a
permitir que ele invadisse com seu exército a cidade de Sagunto, aliada dos romanos e que ficava
numa região fronteiriça entre o território romano e o cartaginês. A invasão tinha a finalidade de
provocar, desafiar os romanos, impelindo-os a uma nova guerra. Sem esperar a reação dos romanos,
Aníbal segue em direção à Península Itálica, onde vence duas batalhas (Trébia e Lago Trasimeno).
Roma nomeia como ditador Quinto Fábio Máximo, que faz contra Aníbal uma campanha restritiva,
utilizando-se da tática de terra arrasada, impedindo o acesso a provisões por parte dos cartagineses e
recusando-se a enfrentá-los em batalhas, uma estratégia que se mostrou bastante impopular. Assim,
os cônsules do ano de 216 a.C. - Caio Terêncio Varrão e Lúcio Emílio Paulo - foram eleitos para a
função de, modificando a estratégia, comandar o exército romano na batalha que conteria de vez o
3
LAISTNER, M.L.W. The greater roman historians. Los Angeles:University of California Press. 1977, p. 78.
BICKEL, Ernst. Historia de la literatura romana.
5
CARDOSO, Z.A. A literatura latina. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1989.
4
avanço das tropas de Cartago.
Os cônsules do ano anterior, Marco Atílio e Gémino Servílio, estavam acampados nas
proximidades do acampamento de Aníbal em Gerônio, aguardando a chegada dos novos cônsules
eleitos. Eles chegam trazendo reforços para o exército, que passava agora de quatro para oito
legiões - uma quantidade sem precedentes. Os cônsules decidem pelo comando do exército em dias
alternados.
Como os alimentos naquela região começassem a escassear, Aníbal resolve dirigir-se a uma
região mais quente, onde a colheita já estivesse madura. Assim, escolhe a cidade de Canas, pelo fato
de ali haver um grande depósito de grãos, que supriria as necessidades do exército cartaginês.
Adicionalmente, apoderando-se do suprimento, Aníbal privaria os exércitos romanos de uma
importante fonte de víveres. Os romanos seguem os cartagineses de perto.
Canas situava-se numa colina próxima à planície por onde corria o Rio Áufido (Ofanto).
Quando Aníbal decide acampar à beira do rio, os cônsules fazem o mesmo. Aníbal começa a
acicatar o inimigo. Na primeira provocação, o comandante é Lúcio Emílio, que impede seus
soldados de responderem com luta. No dia seguinte, o general à frente do exército é Varrão, que
resolve aceitar a batalha, cruzando o rio com suas legiões. O que se segue, então, é a descrição de
uma batalha rápida e sangrenta, em que os cartagineses assumem a vantagem logo no início. Com a
ocorrência de uma chacina de soldados romanos, muitos começam a desertar, fugindo em várias
direções. Muitos romanos conseguem se refugiar nos dois acampamentos romanos ou na própria
cidade de Canas. Varrão e alguns cavaleiros conseguem chegar a Venúsia. Lúcio Emílio é ferido
gravemente e acaba por morrer no campo de batalha, juntamente com grande parte de seu exército.
Ékphrasis/descriptio e enargeia/euidentia
A definição do termo grego ékphrasis e de seu equivalente latino descriptio não permaneceu a
mesma ao longo dos tempos. O conceito que atualmente é bastante utilizado nos estudos
comparados, apresenta a ékphrasis como descrição literária de uma obra de arte - ou seja, a
verbalização da arte; na Grécia antiga, contudo, o termo era bem mais abrangente e denotava
qualquer descrição poética ou retórica, traduzindo a verbalização do visual. É o que se verifica nos
quatro tratados atribuídos a Téon, Aftonio, Hermógenes e Nicolau reunidos modernamente em um
só volume de Progymnasmata.
De acordo com esses textos, ékphrasis é um discurso descritivo vívido que traz com clareza a
imagem do que é retratado para diante dos olhos; uma descrição pura e simples, sem juízo de valor
e, na maioria das vezes, sobre coisas inanimadas ou sobre as quais não temos escolha. Podem ser
retratados pessoas, feitos, eventos (guerra, paz, terremotos e assim por diante), lugares (cidades,
6
BIGNONE, E. Historia de la literatura latina. Trad. Gregorio Halperín. Buenos Aires:Losada, 1952.
ilhas, desertos) e períodos de tempo (festivais, estações do ano), objetos (armas, instrumentos,
máquinas), e essas descrições podem ser misturadas umas com as outras, como o uso de armas
(objetos) numa batalha (eventos) à noite (período de tempo). Na composição dessa descrição devem
ser incluídos também os antecedentes e as decorrências, seguindo a ordem dos acontecimentos. No
caso de pessoas, lugares e objetos, deve-se fazer um preâmbulo àquilo que vai ser descrito. As
virtudes da ékphrasis são principalmente a clareza (saphêneia) e vivacidade (enárgeia), trazendo
impressão de se estar vendo aquilo que está sendo apenas ouvido; em seguida, o uso apenas dos
dados essenciais (e não de todos os detalhes inclusive os inúteis); por fim, o estilo deve ser um
reflexo do objeto da descrição (se o que se descreve é severo, austero, as palavras escolhidas devem
sê-lo também - o estilo não deve discordar do objeto). Esse procedimento retórico difere da
narração porque esta apresenta uma simples exposição das ações, examinando as coisas como um
todo, enquanto aquela transforma ouvintes em espectadores, trazendo detalhes à exposição dos
fatos. (Téon, Hermógenes, Nicolau, Aftônio7)
Ao comentar esses exercícios de retórica, Becker8 observa que os retóricos sugerem que
linguagem da descrição não deve ser notada, para que o ouvinte possa visualizar com maior
facilidade o que está sendo exposto a ele. Então, a linguagem deve estar totalmente de acordo com o
que se descreve e ao mesmo tempo não se deve apresentar opinião sobre os fatos. Por outro lado,
qualquer descrição é necessariamente uma interpretação; é o falante quem seleciona e organiza os
aspectos daquilo que ele vai descrever, priorizando alguns dados e desprezando outros - a expressão
de emoção do orador, a inclusão da experiência humana frente ao que está sendo descrito, traria
mais vivacidade e clareza à descrição. A medida perfeita seria fazer com que o ouvinte visualizasse
ao máximo aquilo que está sendo descrito, sem ignorar que há alguém mediando aquela
visualização. Haveria, então, a percepção da dupla interação: entre o descritor e o objeto e entre o
orador/escritor e o ouvinte/leitor.
A enárgeia costuma ser associada à figura euidentia da retórica latina, e ambas são muitas
vezes usadas como sinônimos dos termos grego phantasía e latino uisio. Apesar de haver algumas
diferenças conceituais, considera-se que essas figuras são as responsáveis pela vivacidade que se
almeja na construção da ékphrasis. É a phantasía que permite a criação da imagem mental
(imaginação) daquilo que está sendo descrito. Similarmente, é a enárgeia que possibilita que o
objeto em questão se apresente diante dos olhos do interlocutor (visualização). Tudo isso tornando
mais intensa e eficiente a apresentação do fatos, seja ela oral ou escrita.
7
TÉON, HERMÓGENES, NICOLAU, AFTONIO. Progymnasmata: greek textbooks of prose composition and
rhetoric. Trad. George A. Kennedy. Lieden, Boston:Brill. 2003.
8
BECKER, A.S. Reading poetry through a distant lens: ecphrasis, ancient greek rhetoricians and the pseudo-hesiodic
"shield of herakles". American Journal of Philology, 113, 5-24, 1992, pp. 10-13.
Ekphrasis da batalha de Canas - observações iniciais
Kenney & Clausen9 afirmam que Tito Lívio tem como método narrar a história a partir de
algumas personagens. De fato, verifica-se que há três personagens principais no episódio de Canas:
Caio Terêncio Varrão, Lúcio Emílio Paulo e Aníbal. Se os antecedentes do evento em questão
devem ser considerados na ékphrasis, como afirmam Téon e Hermógenes10, pode-se dizer que a
Batalha de Canas, na forma como ela é descrita por Lívio, tem início com a nomeação dos dois
cônsules eleitos, que são apresentados como antagonistas um do outro, criando uma situação de
conflito interno:
Caio Terêncio Varrão, caracterizado como um cônsul de origem plebéia, rancoroso,
precipitado, imprudente, sedento por popularidade, era publicamente agressivo contra a política de
não confrontar Aníbal diretamente e contra Lúcio Emílio, a quem chamava de medroso e inativo.
Quinto Fábio Máximo, que havia sido ditador no ano anterior e que, apesar de ter apertado o cerco
contra Aníbal, havia mantido uma campanha sem batalhas, faz uma previsão numa carta endereçada
a Lúcio Emílio: “Se, como ele [Varrão] declara, vai oferecer batalha o quanto antes, ou ignoro de
todo a arte militar [...] ou em breve teremos um sítio ainda mais famoso que o de Trasimeno na
história dos desastres romanos” (LÍVIO, 1990 - p.57). Lúcio Emílio Paulo, de origem nobre,
impopular (já havia sido cônsul anteriormente, e nessa ocasião se mostrara hostil à plebe), prudente,
honesto, bom cidadão; evitou o tempo todo dizer qualquer aspereza contra Varrão. Aníbal, por sua
vez, é apresentado como um inimigo valoroso, poderoso, sábio e grande estrategista.
Apresentados os caracteres, Lívio apresenta a situação: no momento em que é deflagrada a
Batalha de Canas, o general cartaginês encontra-se em posição delicada, com estoque de trigo para
apenas dez dias e uma multidão de mercenários querendo desertar para não morrer de fome. Aníbal
precisava de uma batalha vitoriosa não só para refrear os ânimos de seu exército, oferecendo-lhes
um belo butim, mas também para ter mais espaço para buscar víveres para seus homens. Por outro
lado, os romanos vinham sofrendo muitas derrotas e com isso já haviam perdido alguns aliados e
corriam o risco de perder vários outros. Além disso, conforme avançavam as tropas de Aníbal, o
rastro que deixavam para trás era de total destruição de cidades e plantações. Era urgente que Roma
expulsasse os cartagineses de suas terras.
Enfim, o historiador volta as atenções ao acampamento do exército romano. Quando os
cônsules chegam com o novo exército, Aníbal tenta provocar Varrão, que precipitadamente e de
maneira desordenada ataca parte do exército cartaginês. Lúcio Emílio, que comandava naquele dia,
temendo uma emboscada impede a progressão dos fatos. No dia seguinte, sabendo que era o cônsul
9
KENNEY, E.J. (ed.); CLAUSEN W.V. (ed.) The Cambrige history of classical literature. v.II: Latin Literature.
Cambrige:Cambrige University Press, 1982, p.507.
10
TÉON, HERMÓGENES, NICOLAU, AFTONIO. Progymnasmata...
"plebeu" o comandante daquele dia, Aníbal arma outra emboscada, que novamente é evitada pelos
cuidados de Lúcio Emílio. O comandante cartaginês resolve, então, dirigir-se a regiões mais
quentes, onde a colheita já estivesse madura. Os romanos seguem a trilha dos cartagineses. Lúcio
Emílio já havia avisado que “declinava antecipadamente de toda e qualquer responsabilidade”
diante de um combate irrefletido, mas não poderia deixar de apoiar a decisão de Varrão quando ele
cruza o rio e decide enfim aceitar as provocações do inimigo.
As características de um e outro cônsul - o destemperado e o equilibrado -, assim como as do
estrategista Aníbal, são reforçadas o tempo todo por Lívio.
Tem início, enfim, a descrição da batalha propriamente dita. A frente de combate dos romanos
foi a seguinte:
Na ala direita, mais próxima ao rio, postavam-se romanos, cavaleiros seguidos de
infantes; na ala esquerda, cavaleiros aliados guarneciam a extremidade e, mais para o
meio das linhas, infantes que iam encontrar-se no centro com as legiões romanas; tropas
de arremesso, com outras auxiliares armadas à ligeira, formavam a primeira linha.
Terêncio Varrão comandava a ala esquerda, Paulo Emílio a direita, cabendo a Gémino
Servílio zelar pelo centro.11
Aníbal também cruza o rio e dispõe sua linha de batalha:
Cavaleiros gauleses e espanhóisperto do rio, na ala esquerda que fazia face à cavalaria
romana; a ala direita foi confiada aos númidas e o centro solidamente fortificado pela
infantaria, os africanos formando as alas e os espanhóis e gauleses o meio [formando
uma “barriga” projetada à frente. [...] O número total de infantes em linha chegava a
quarenta mil, o de cavaleiros a dez mil. À esquerda comandava Asdrúbal, à direita,
Maarbal; o centro, o próprio Aníbal comandava, auxiliado pelo irmão Magão.12
O sol batia lateralmente a ambas as linhas, mas o vento Volturno soprava em direção aos
romanos, cegando-os com nuvens de poeira.
O combate inicial ficou a cargo da infantaria. Os gauleses e espanhóis do exército cartaginês
imprensaram os cavaleiros romanos contra o rio, dificultando suas evoluções e forçando os
romanos a apearem, o que transformou a luta num combate de infantaria. Em dado momento, os
romanos conseguem romper a barreira da infantaria e avançam com mais rapidez ao centro da
formação cartaginesa; os africanos das alas, então, envolvem os romanos, primeiro lateralmente e
finalmente por trás.
Em certa altura da batalha, quinhentos númidas separam-se das linhas cartaginesas e
desertam, passando para o lado dos romanos. É ordenado que dirijam-se para as últimas fileiras e
ali fiquem. Dali os númidas atacam por trás, pegando os romanos desprevenidos. A batalha já não
mostrava esperança aos romanos, que começam a fugir aterrorizados; na fuga ainda são
perseguidos por númidas enviados por Asdrúbal.
11
TITO LÍVIO. História de Roma. Trad. Paulo Matos Peixoto. v.3. São Paulo:Paumape. 1990, p. 64
Lúcio Emílio é ferido gravemente e bravamente defendido por cavaleiros que dispensam seus
cavalos, já que o cônsul já não consegue equilibrar-se no seu; enfim, com o corpo trespassado após
um último ataque, acaba por morrer no campo de batalha, juntamente com quase cinquenta mil
homens, não sem antes declarar a um tribuno militar (Cneu Lêntulo):
Vai e diz publicamente aos senadores que fortifiquem Roma e guarneçam solidamente a
cidade de tropas, antes da chegada do inimigo vencedor; e em particular, diz a Quinto
Fábio que foi recordando seus preceitos que Lúcio Emílio viveu até o presente, e agora
morre. Deixa-me morrer com meus soldados massacrados aqui, para que não voltem a
me acusar ao término do consulado e eu próprio não me levante como acusador de meu
colega, na intenção de proteger minha inocência mediante aleivosias assacadas contra
outrem.13
Seguindo a prática usual entre os historiadores da época, Lívio não insere em seu texto falas
realmente ditas por suas personagens históricas. Os discursos em Lívio são dele mesmo - mas nunca
são meras declamações. Seu propósito é parcialmente trazer para diante dos olhos do leitor, tão
vividamente quanto possível, questões políticas, mas principalmente para retratar com agudeza o
caráter e a "psicologia" dos falantes.
Numa fuga desordenada, muitos homens se refugiaram nos dois acampamentos romanos ou
na própria cidade de Canas. “O outro cônsul”, junto com aproximadamente cinquenta cavaleiros,
refugiou-se em Venúsia “(por acaso ou de propósito, não se misturara a nenhum bando de
fugitivos)”. A enunciação de vários nobres mortos (senadores, magistrados, questores, tribunos,
antigos cônsules, pretores, etc.) aumenta para o leitor a percepção da tragédia: Roma perde não só
uma quantidade alarmante de soldados, mas também muitos homens de grande importância para a
política romana.
Com o fim cena da batalha, Lívio completa a caracterização dos dois cônsules: o sensato
Lúcio Emílio Paulo morre como herói em campo de batalha; Caio Terêncio Varrão, o imprudente,
consegue sobreviver à chacina que ele mesmo provocou, fugindo como um covarde.
A vitória dá novo ânimo aos cartagineses, que ganham o direito de descansar pelo resto do
dia para só ao amanhecer voltar ao campo de batalha e recolher os despojos. A visão da carnificina
mostra-se “terrível até para os inimigos”.
Jaziam ali milhares de romanos, infantes e cavaleiros, misturados conforme o acaso os
reunira durante o combate ou fuga. Alguns, levantando-se de entre os cadáveres,
sangrentos, despertados pelo frio da manhã que lhes espicaçava as feridas, foram mortos
imediatamente; outros foram achados vivos, com as coxas ou jarretes cortados:
descobriam o pescoço ou a garganta, implorando que lhes vertessem o que restava de
sangue. Muitos tinham a cabeça enfiada no chão, e percebia-se que eles próprios haviam
cavado buracos, para se sufocar com a terra retirada. O que mais chamou a atenção foi
um númida retirado com vida de sob um romano morto e com o nariz e as orelhas
12
13
TITO LÍVIO. História de Roma, pp. 64-65.
TITO LÍVIO. História de Roma, p.68.
estraçalhadas: o romano, já incapaz de segurar uma arma, expirante, mas com uma
cólera que se transformara em ira, dilacerara o inimigo com os dentes.
Aníbal ordena que se recolham os corpos dos seus para sepultamento. O corpo do cônsul
também é encontrado e enterrado. Com essa cena, Lívio também dá uma espécie de arremate para a
caracterização de Aníbal: além de ótimo comandante e estrategista, destemido e enérgico,
demonstra ter também um lado humano ao apresentar piedade e respeito pelos restos mortais não só
dos seus soldados, mas também do comandante inimigo.
Ao fim da ékphrasis, complementando a cena da batalha, Tito Lívio conta o que aconteceu
aos sobreviventes da tragédia: entre os refugiados nos acampamentos, alguns ainda conseguiram,
fugir, abrindo caminho entre os inimigos que fervilhavam no exterior do abrigo. Os soldados que,
fadigados e feridos, mantiveram-se nos acampamentos, acabaram aprisionados por Aníbal, após
negociar com o general um resgate individual a ser pedido para Roma. Todos os bens encontrados
nos acampamentos são recolhidos por Aníbal ou entregues à pilhagem.
Aqui percebe-se que Lívio estabeleceu uma espécie de hierarquia entre os guerreiros
romanos: os mais valorosos soldados preferiram “morrer ali mesmo [no campo de batalha] que
fugir”. Entre os sobreviventes (especialmente os que buscaram abrigo nos próprios acampamentos),
havia ainda os destemidos, que resolveram sair do acampamento ao invés de esperar pelo inimigo
(“os vencidos agiam assim movidos por sentimentos oriundos do acaso ou do caráter de cada um, e
não por reflexão ou ordem de alguém”). Por fim, há os covardes, que, temerosos de enfrentar mais
uma vez os cartagineses, preferiram esperar e tornar-se prisioneiros. Lívio geralmente evita as
digressões, mas a narrativa é às vezes "iluminada" ou diversificada por episódios que não são
realmente essenciais à história principal, mas que são sugeridos por ela: mais adiante, no mesmo
livro, o historiador voltará a falar desses soldados romanos cativos, para relatar seu destino: os
prisioneiros de Aníbal enviam representantes ao senado para solicitar de Roma que se pague um
resgate para reaver os soldados aprisionados. O senado se nega a pagar qualquer quantia que seja:
se eles foram suficientemente covardes para se renderem ao inimigo, que arcassem com o resultado
de suas próprias atitudes.
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