MESTRADO INTEGRADO EM MEDICINA 2010/2011 Luis Carlos Dias Carvalho Inibidores selectivos da trombina, novo tratamento anticoagulante em doentes com fibrilhação auricular (Artigo de Revisão Bibliográfica) Trabalho realizado sobre a orientação de: Orientador : Dr. Paulo Palma Junho de 2011 ICBAS MESTRADO INTEGRADO EM MEDICINA 2010/2011 Luis Carlos Dias Carvalho Inibidores selectivos da trombina, novo tratamento anticoagulante em doentes com fibrilhação auricular (Artigo de Revisão Bibliográfica) Trabalho realizado sobre a orientação de: de Orientador : Dr. D Paulo Palma Junho de 2011 ICBAS Resumo A fibrilhação auricular (FA) é a arritmia cardíaca sustentada mais comum e a sua prevalência tem aumentado com o aumento da esperança média de vida. As alterações hemodinâmicas que ocorrem na FA predispõem à formação de trombos intra-cardíacos, que aumentam o risco de acidente vascular cerebral (AVC) e embolia sistémica. Até então, a profilaxia das complicações embólicas, em doentes de alto risco, fazia-se com hipocoagulação oral, que apesar de reduzir em 64% o risco de AVC em doentes com FA, apresenta muitas interacções e dificuldades posológicas. O dabigatran é um inibidor directo da trombina, que foi recentemente aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) pelas suas propriedades anticoagulantes e profilácticas de acidentes tromboembólicos em doentes com FA. A sua aprovação baseou-se essencialmente no estudo RE-LY (Randomized Evaluation of LongTerm Anticoagulation Therapy), que comparava a eficácia da terapêutica anticoagulante do dabigatran e da varfarina, em doentes com FA sem doença valvular. No estudo foram avaliadas 2 doses de dabigatran (110mg e 150mg) administradas por via oral 2 vezes por dia. Os resultados demonstraram que o dabigatran 150mg diminuiu o risco relativo de AVC ou embolia sistémica em 34%, quando comparado com a terapêutica com varfarina e que o risco de complicação por hemorragia major foi sobreponível. Já a dose de 110mg, apresentava a mesma eficácia que a varfarina na prevenção do AVC e embolia sistémica mas reduziu o risco relativo de hemorragia major em 20%. Além dos resultados promissores na prevenção das complicações tromboembólicas, o dabigatran apresenta outras vantagens, pois não necessita de controlo do INR (International Normalized Ration), tem semi-vida curta, um inicio de acção rápido e poucas interacções farmacológicas e alimentares. Os resultados apresentados são entusiasmantes e susceptíveis de alterar substancialmente o paradigma do tratamento de prevenção dos AVC`s e embolias sistémicas em doentes com FA. Palavras-chave: fibrilhação auricular, anticoagulação oral, acidente vascular cerebral, inibidores directos da trombina, dabigatran. 1 Abstract Atrial fibrillation (AF) is the most common sustained cardiac arrhythmia and it’s rising in frequency with the increase of life expectancy. The hemodynamic changes that occur in AF lead to intra-cardiac thrombus formation, which increment the risk of stroke and systemic embolism. Till now, the prophylaxis of embolic complications in high risk patients, was made with oral anticoagulation, which despite decreasing in 64% the stroke risk in patients with AF, presents many interactions and dosing difficulties. Dabigatran is a direct inhibitor of thrombin, which was recently approved by the Food and Drug Administration (FDA) for its anticoagulants and prophylatic properties of thromboembolic accidents in patients with atrial fibrillation. Its approval was mainly based on the RE-LY (Randomized Evaluation of Long-Term Anticoagulation Therapy) study, which compared the efficacy of the anticoagulant therapy of dabigatran and warfarin in patients with AF, without valvular disease. In the study two doses of dabigatran (110mg and 150mg) were analyzed and administered orally twice a day. Results showed that dabigatran 150mg decreased the relative risk of stroke or systemic embolism by 34% compared with the therapy with warfarin and the risk of major bleeding complications was similar. The dose of 110mg had the same efficacy as warfarin in preventing stroke and systemic embolism, but reduced the risk of major bleeding by 20%. Besides those promising results in prevention of thromboembolic complications, dabigatran has other advantages, it doesn’t need the control of the INR (International Normalized Ratio), it has short half-life, a rapid effect of action and few pharmacological and food products interactions. The results are exciting and capable of substantially changing the paradigm treatment for preventing strokes and systemic embolism in patients with atrial fibrillation. Keywords: atrial fibrillation, oral anticoagulation, stroke, direct inhibitor of thrombin, dabigatran. 2 Índice Introdução 4 Fibrilhação auricular 5 Estratificação do risco de AVC em doentes com FA 7 Terapêutica antitrombótica na prevenção do AVC nos doentes com FA 9 Cascata da coagulação 12 Contributo dos inibidores directos da trombina 14 Estudo RE-LY 16 Limitações do estudo 18 Aprovação e comercialização do dabigatran 20 Propriedades farmacológicas do dabigatran 21 Propriedades farmacocinéticas do dabigatran 22 Outros novos anticoagulantes orais 24 Conclusão 25 Agradecimentos 27 Bibliografia 28 3 Introdução A FA é a arritmia cardíaca sustentada mais comum, ocorre em 1-2% da população geral e estima-se que mais de metade dos episódios não sejam detectados(1). Com o aumento gradual da esperança média de vida, a prevalência aumentará significativamente, estimandose que esteja presente em 5-15% nos indivíduos com mais de 80 anos(2). A FA aumenta 5 vezes o risco de acidente vascular cerebral (AVC), e 1 em cada 5 AVC`s é atribuído a esta arritmia, em grande parte devido à embolização de coágulos da aurícula esquerda. Os AVC`s associados à FA são frequentemente fatais, e os doentes que sobrevivem têm maior risco de recorrência e o dobro da mortalidade, comparativamente aos doentes com AVC de outra etiologia(1). Até então, o tratamento dos doentes com FA, com indicação para anticoagulação oral, consistia na administração de antagonistas da vitamina K como a varfarina ou acenocumarol, visando valores de INR entre 2 e 3. Os antagonistas da vitamina K, reduzem o risco de AVC nos doentes com FA em 64% (3), mas o seu uso tem alguns inconvenientes, como a necessidade de controlos frequentes do INR, dificuldade em manter o INR dentro dos valores desejados, labilidade do INR em consequência do padrão dietético e interacções com outros fármacos e hemorragias. Por isso, estes fármacos muitas vezes não são prescritos e quando o são a sua interrupção é frequente(4,5), levando a que muitos doentes não estejam correctamente anticoagulados. Assim, tornou-se imperioso que novos fármacos anticoagulantes, mais eficazes, seguros e fáceis de monitorizar surgissem no mercado. Recentemente, foram apresentados alguns estudos com novos inibidores directos da trombina, de onde se destaca o dabigatran. Este fármaco, dependendo da dose, demonstrou o seu potencial anticoagulante na prevenção dos AVC`s nos doentes com FA e mostrou diminuir o risco de AVC e de hemorragia, quando comparado com os doentes tratados com varfarina(21). Aliado a estes benefícios, os inibidores directos da trombina, não necessitam de controlo do INR, o que o torna uma opção muito atractiva, tanto do ponto de vista do doente como do médico. Os inibidores directos da trombina têm deixado a comunidade científica muito entusiasmada e com fortes expectativas em relação aos novos anticoagulantes orais, pois os resultados, até então, apresentados são susceptíveis de alterar substancialmente o paradigma do tratamento de prevenção dos AVC`s nos doentes com FA. 4 Fibrilhação Auricular A fibrilhação auricular (FA) é uma arritmia cada vez mais frequente(2), que está associada com o aumento do risco de AVC, embolia sistémica e insuficiência cardíaca, que acarreta aumento da mortalidade, taxa de hospitalizações, degradação da qualidade de vida e redução da capacidade física(1). A FA é uma arritmia complexa, com diversas apresentações clínicas, que acomete doentes com ou sem cardiopatia estrutural clinicamente detectável. A FA pode ser aguda, ou seja, detectada pela primeira vez, ou crónica. A FA crónica pode ser: paroxística, quando os episódios terminam espontaneamente; persistente, quando os episódios persistem até que alguma medida terapêutica os interrompa; ou permanente, quando a restauração do ritmo sinusal não é mais possível. Caracteristicamente, há uma tendência para que os episódios de FA se tornem mais frequentes e duradouros até que a arritmia se torne permanente. Essa evolução, provavelmente, resulta de alterações auriculares que facilitam a perpetuação da arritmia(6). Tipo Aguda Crónica Paroxística Persistente Permanente Característica Primeiro episódio de FA Quando há recorrência da FA Episódios terminam espontaneamente Episódios terminam após intervenção Término da FA não é mais possível Tabela 1 – Tipos de FA Embora, os mecanismos responsáveis pelo início e manutenção da FA, ainda não estejam completamente esclarecidos, parece haver uma complexa interacção entre os mecanismos que desencadeiam a FA e as alterações anatómicas auriculares que garantem a manutenção de múltiplas pequenas ondas de reentrada(7). Assim, diversas ondas de activação independentes circulam contínua e aleatoriamente através do miocárdio despolarizável. Dependendo das propriedades eletrofisiológicas do tecido auricular, essas ondas de activação poderão manter-se indefinidamente, ou, por outro lado, extinguir-se, interrompendo o processo “fibrilhatório”(7). Deste modo, a génese das arritmias cardíacas depende das interacções complexas entre as características do tecido miocárdico auricular, dos eventos desencadeantes das arritmias, mais frequentemente extrassístoles e dos factores moduladores (sistema nervoso autónomo, electrólitos, isquemia, inflamação e factores genéticos). 5 A importância clínica da FA está relacionada com a perda da contractilidade auricular, a resposta acelerada inapropriada, e a maior probabilidade de formação de trombos intraauriculares que podem embolizar e causar AVC ou embolia arterial sistémica(7). Clinicamente, os doentes com FA apresentam uma grande variabilidade. Muitos doentes são assintomáticos ou queixam-se apenas de leves palpitações ou irregularidades no pulso, mas outros podem apresentar sinais e sintomas mais graves, como palpitações incapacitantes e comprometimento hemodinâmico grave com hipotensão, congestão pulmonar e angina de peito. Em algumas ocasiões, as únicas manifestações da arritmia são as tonturas ou sincope associadas à pausa, que ocorre após o fim da FA antes da recuperação do ritmo sinusal espontaneamente(7). O electrocardiograma (ECG) é o exame auxiliar de diagnóstico mais frequentemente utilizado na FA, e o traçado característico traduz a ausência de actividade auricular organizada e irregularidade na resposta ventricular. Imagem 1 – Traçado electrocardiográfico de uma FA 6 Estratificação do risco de AVC em doentes com FA A identificação dos factores de risco de AVC em doentes com FA tem sido alvo de vários estudos e publicações, sendo que, a maioria dos estudos estratifica o risco em baixo, intermédio ou alto. A estratificação do risco, segundo o esquema CHADS2, que determina o risco, avaliando a presença de insuficiência cardíaca, hipertensão arterial, idade superior a 75 anos, diabetes e a presença de AVC prévio é um método fácil de aplicar e que tem sido amplamente aceite pela comunidade médica na prática clínica. Mais recentemente, uma actualização deste esquema de estratificação de risco para AVC nos doentes com FA sem patologia valvular, levou a algumas alterações, passando a idade a ser estratificada em 2 classes (entre os 65 e os 75 anos e ≥ 75 anos) e 2 novos factores de risco foram adicionados (sexo feminino e a história de doença vascular), dando assim, origem ao esquema CHA2DS2-VASc. O esquema CHA2DS2-VASc baseia-se num sistema de pontos, sendo a história prévia de AVC e a idade superior a 75 anos cotada com 2 pontos e os restantes factores de risco com 1. Este método de avaliação do risco pode ser usado numa avaliação inicial dos doentes com FA porque é fácil e rápido de realizar e memorizar. A validação original do esquema de CHA2DS2-VASc classifica a pontuação de 0 em baixo risco, 1 risco intermédio e igual ou superior a 2 em alto risco. Este método de avaliação apresenta uma relação clara entre os factores de risco avaliados e a probabilidade de fenómenos tromboembólicos(8) (Tabela 2). Pontuação de CHA2DS2-VASc 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Risco de AVC por ano (%) 0 1,3 2,2 3,2 4,0 6,7 9,8 9,6 6,7 15,2 Tabela 2 – Pontuação de CHA2DS2–VASc e risco de AVC nos doentes com FA sem valvulopatia 7 Devido à sua ampla aceitação, o esquema CHA2DS2-VASc foi utilizado nos guidelines europeus, publicados em 2010, para a estratificação de risco de AVC nos doentes com FA e orientação para anticoagulação oral profiláctica(1). A selecção dos doentes com FA para anticoagulação oral, não depende apenas do seu risco de AVC mas também da identificação dos factores de risco hemorrágicos. A escala de HAS-BLED é um método simples, que pode ser utilizado pelos médicos para estimar o risco hemorrágico dos doentes. Esta escala avalia os factores de risco hemorrágicos: hipertensão, função renal e hepática diminuídas, AVC anterior, história de hemorragia prévia, labilidade do INR, idade ≥ 65 anos, uso de álcool ou fármacos que aumentam o risco hemorrágico (exemplo: ácido acetilsalicílico, AINE´s). Assim, a decisão de anticoagulação profilática dos doentes com FA é sempre um desafio para o médico, que deve “pesar” bem os benefícios e os riscos da terapêutica e tomar uma decisão individualizada e consciente para cada doente. 8 Terapêutica antitrombótica na prevenção do AVC nos doentes com FA A problemática da prevenção tromboembólica em doentes com FA é, ainda, um tema controverso, apesar de existirem esquemas de classificação de risco (Tabela 2) e normas de actuação adaptadas a factores de risco(9). Alguns autores, consideram mesmo esta questão um problema de Saúde Pública, na medida em que são necessárias intervenções de tromboprofilaxia mais rigorosas e precisas para que haja um decréscimo significativo dos números de tromboembolias e AVC`s (maior causa de mortalidade por doenças cardiovasculares em Portugal)(9,10). A profilaxia do tromboembolismo deve ser realizada, de acordo, com os esquemas de classificação de risco (Tabela 2 e 3). Os antagonistas da vitamina K e o ácido acetilsalicílico eram até há bem pouco tempo, as únicas terapêuticas, recomendadas para a prevenção tromboembólica na FA. No entanto, a aprovação nos EUA, do dabigatran na prevenção de AVC`s nos doentes com FA, veio dar uma nova alternativa para a anticoagulação profiláctica. Nos doentes de baixo risco (CHA2DS2-VASc = 0) está indicada terapêutica antiagregante plaquetária com ácido acetilsalicílico (75 a 325mg por dia)(2), ou uma estratégia mais expectante, sem a utilização da terapêutica antitrombótica(1). Nos doentes com risco intermédio (CHA2DS2-VASc = 1) realiza-se antiagregação plaquetária ou anticoagulantes orais (antagonistas da vitamina K ou dabigatran), sendo anticoagulantes preferidos, por apresentarem até então resultados conclusivos na prevenção dos AVC nos doentes com FA, ao contrário da terapêutica antiagregante. Nos doentes com risco elevado (CHA2DS2-VASc ≥ 2), a terapêutica de prevenção de AVC indicada é a utilização de anticoagulantes orais. Embora, o ácido acetilsalicílico seja utilizado de uma forma generalizada, na profilaxia dos AVC nos doentes com FA, a sua eficácia ainda não está comprovada, sendo os resultados dos estudos, até então apresentados, muito discrepantes e pouco conclusivos(1). A redução conseguida nos AVC`s nestes estudos foi de apenas 19%, comparativamente com o placebo. Mostrou-se ainda, que o ácido acetilsalicílico é mais eficaz em relação ao placebo, quando utilizado em prevenção primária, que quando usado na prevenção secundária (com AIT ou AVC prévios), com uma redução do risco em 33% e 11%, respectivamente(10,11). O ácido acetilsalicílico também apresenta maior eficácia na prevenção de AVC isquémicos de origem não cardioembólica, os quais são, habitualmente, menos incapacitantes 9 pelas suas sequelas(10,11). Quanto maior for o risco de ocorrência de AVC cardioembólico incapacitante, menor é a protecção oferecida pelo ácido acetilsalicílico versus a anticoagulação oral. CHA2DS2-VASc score 0 1 ≥2 Terapia antitrombótica recomendada Ácido acetilsalicílico 75-325mg/dia ou atitude expectante Ácido acetilsalicílico 75-325mg/dia ou anticoagulação oral (Varfarina ou Dabigatran) Anticoagulação oral (Varfarina ou Dabigatran) Tabela 3 – Tratamento antitrombótico dos doentes com FA não valvular segundo a CHA2DS2-VASc (Adaptado de 1) A anticoagulação oral com antagonistas da vitamina K, nomeadamente a varfarina, revela-se eficaz na prevenção dos AVC`s em doentes com FA não valvular. Uma metaanálise, que envolveu 6 estudos, demonstrou que existe uma redução do risco de 64%, comparativamente com o placebo(10). A anticoagulação oral está também associada a uma redução significativa – cerca de 30% – da mortalidade total em relação ao placebo(10). A terapêutica combinada de anticoagulantes orais e antiagregação plaquetária, não mostra benefícios acrescidos na profilaxia dos AVC`s em doentes com FA, sendo o aumento de hemorragias evidente(1). A superioridade da anticoagulação oral na prevenção do AVC em doentes com FA não valvular é transversal a todos os doentes com mais do que um factor de risco de AVC. No entanto, apenas metade dos doentes com FA elegíveis para anticoagulação oral são tratados com antagonistas da vitamina K ou dabigatran(9). Os antagonistas da vitamina K, eram até à aprovação do dagigatran, os únicos anticoagulantes orais aprovados na FA e ao contrário de outras terapêuticas usadas na prevenção cardiovascular, apresentam inúmeras limitações, entre as quais: início de acção lento; janela terapêutica estreita e semi-vida longa; resposta terapêutica e metabolismo com variabilidade genética; monitorização laboratorial e ajustes posológicos obrigatórios; interacção significativa com os alimentos e outros fármacos(12,13) (Tabela 4). 10 Limitações dos antagonistas da vitamina K Efeitos anticoagulantes imprevisíveis Perfil farmacocinético variável Início de acção tardio e lento Janela terapêutica estreita Necessidade de monitorização do INR Risco frequente de interacções medicamentosas e com alimentos Tabela 4 – Limitações dos antagonistas da vitamina K Estas limitações, associadas, à dificuldade em manter níveis de INR terapêuticos (INR = 2 a 3) e o risco de hemorragia grave (1% a 3% por ano), são responsáveis pela subutilização da anticoagulação oral na prevenção das complicações tromboembólicas da FA e conduziram à procura de novas estratégias antitrombóticas que fossem pelo menos tão eficientes e seguras quanto a anticoagulação oral, mas de aplicação mais fácil, dispensando monitorização laboratorial(14). Esta nova terapêutica anticoagulante surgiu no final de 2010, com a aprovação pela FDA do dabigatran, um inibidor directo da trombina. Em 2011, os guidelines para o tratamento preventivo dos AVC`s na FA em doentes sem patologia valvular foram revistos e o dabigatran foi adicionado, passando a ter com as mesmas indicações que os antagonistas da vitamina K, que até então eram os únicos anticoagulantes orais aprovados(42). 11 Cascata da coagulação As proteínas plasmáticas da coagulação (factores de coagulação) normalmente circulam no plasma nas suas formas inactivas, e a sua activação sequencial culmina na formação de fibrina. Duas vias de coagulação sanguínea foram descritas no passado: a via extrínseca ou de factor tecidual (FT) e a via intrínseca ou activação de contacto. Actualmente sabe-se que a coagulação, é essencialmente iniciada através da exposição e activação do FT, por meio da via extrínseca, mas tem uma ampliação importante através da via intrínseca(7). Na via extrínseca, o FT inicia a cadeia de eventos ao formar um complexo com o factor VII (tenase extrínseca), que, por sua vez, catalisa a conversão do factor X em factor Xa. O complexo FT/FVIIa promove ainda a activação do factor IX (da cascata intrínseca) com consequente amplificação da activação do factor X(15,16,17). A via intrínseca, além de ser activada pelo complexo FT/FVIIa, da via extrínseca, pode ser activada de forma independente, após a exposição da pré-calicreína, do cininogénio de alto peso molecular e dos factores XI e XII a uma superfície aniónica (como por exemplo dos fosfolipídeos das partículas lipoproteicas ou a superfície bacteriana) – activação de contacto – dando-se assim, a sua iniciação com a conversão da pré-calicreína em calicreína e a subsequente, activação do factor XII e, posteriormente, do factor XI, com libertação de bradicininas (a partir do cininogénio de alto peso molecular). O factor IX, uma proenzima com resíduos y-carboxiglutamato, dependentes da vitamina K, tem actividade serina-protease induzida pela fixação do Ca2+ a estes resíduos estruturais. Assim, o factor IXa, na presença de Ca2+, determina a activação do factor X em factor Xa, através da interacção com o co-factor VIII (tenase intrínseca)(15,16,17). O factor Xa constitui-se, assim, o ponto comum entre as cascatas extrínsecas e intrínsecas da coagulação e o ponto de activação da pró-trombina (factor II) em trombina (factor IIa). A activação da trombina, que ocorre na superfície das plaquetas, implica a formação do complexo da protrombinase: fosfolipídeos de origem plaquetária (fosfatidilinositol e fosfatidilserina), Ca2+ e factores Va, Xa e pró-trombina(15,16,17). A etapa final da cascata da coagulação é determinada pela acção da trombina, que exerce a sua função convertendo o fibrinogénio (factor I) em fibrina (factor Ia). Adicionalmente, a trombina catalisa a activação do factor XIII e a estabilização da rede hemostática(18) e activa ainda os factores V, VIII e XI, o que leva à amplificação da cascata da coagulação e à produção de maior quantidade de fibrina. 12 Via intrínseca (ou activação de contacto) F XI F XII * Via extrínseca (ou do factor tecidual) F XIa F VII Complexo FT/F VIIa F XIIa Ca 2+ F IX F VIII * F IXa Ca 2+ F VIIIa FX F Xa Ca FT - factor tecidual *reacções catalisadas pela trombina Pró-trombina Fibrinogénio Imagem 2 – Cascata da coagulação (Adaptado de 7) 13 FX 2+ F Va * FV Trombina Fibrina Contributo dos inibidores directos da trombina As limitações apresentadas pelos anticoagulantes orais clássicos, já aqui referidas, tornaram imperativo o desenvolvimento de novos fármacos que pudessem colmatar as mesmas. O anticoagulante ideal deve ter um regime posológico simples, a sua eficácia não deve ser influenciada pelas características do doente, não deve interagir significativamente com os alimentos e outros fármacos, a relação dose-efeito deve ser previsível, o início de acção deve ser rápido e a monitorização laboratorial por rotina não deve ser necessária(9). Esta procura do anticoagulante ideal levou ao desenvolvimento de novos anticoagulantes orais, nomeadamente os inibidores directos da trombina, os quais estavam já aprovados na Europa, para a prevenção da doença tromboembólica venosa em doentes submetidos a cirurgia de prótese total anca e prótese total do joelho(19,20), e foram recentemente aprovados, nos Estados Unidos, para a prevenção de AVC nos doentes com FA. Os inibidores directos da trombina, têm-se revelado promissores na prevenção do AVC em doentes com FA(21). As principais vantagens deste fármaco são a via de administração e a comodidade posológica - administrados por via oral, duas vezes por dia; a selectividade do mecanismo de acção e o rápido início de acção, constituindo uma alternativa aos anticoagulantes parentéricos e à necessidade de tratamento combinado de fármacos; e a previsibilidade do seu efeito anticoagulante, que dispensa a monitorização laboratorial. Apresentam uma semi-vida curta, o que permite o desaparecimento do efeito anticoagulante mais rapidamente do que os antagonistas da vitamina K e dispensa de “bridging” aquando dos procedimentos invasivos. As interacções medicamentosas e dietéticas são limitadas(12,14,15,22,23). Os inibidores directos da trombina, nomeadamente o dabigatran (aprovado pela FDA e EMEA) actuam directamente sobre a trombina, inibindo tanto a trombina livre como a trombina ligada à fibrina(24). Estas características conferem a estes compostos potenciais vantagens sobre os inibidores indirectos da trombina. De facto, as heparinas (HNF e HBPM) actuam, activando a antitrombina III e, consequentemente, inibindo a coagulação. As HBPM aumentam a acção da antitrombina III sobre o Factor Xa mas não a sua acção sobre a trombina, pois as moléculas são muito pequenas para se ligarem tanto à enzima quanto ao inibidor(25). Adicionalmente, os inibidores directos da trombina promovem uma resposta anticoagulante mais previsível que a HNF, pois não se ligam em grandes quantidades a 14 proteínas plasmáticas e não são neutralizadas pelo factor 4 plaquetário, uma proteína que se liga à heparina libertada durante a activação plaquetária(26). A trombina - tal como já foi referido - promove a conversão do fibrinogénio (Factor I) em fibrina (Factor Ia) e constitui, com as plaquetas, um rolhão, ao mesmo tempo que catalisa a activação do Factor XIII e a estabilização da rede hemostática com a fibrina. A evidência que suportou a trombina como alvo da terapêutica oral anticoagulante, adveio de estudos feitos com o ximelagatran, o primeiro inibidor directo da trombina a estar disponível no mercado(12). Este fármaco foi aprovado na Europa, para a prevenção da doença tromboembólica venosa em doentes sujeitos a cirurgia electiva de substituição da anca ou do joelho, mas foi retirado do mercado, devido ao seu potencial hepatotóxico no tratamento a longo prazo. O ximelagatrano foi associado a um aumento de, pelo menos, três vezes na alanina- aminotransferase, em relação ao limite superior da normal, em comparação com a varfarina(12). 15 Estudo RE-LY O dabigatran é o inibidor directo da trombina, de administração oral, actualmente aprovado, pela FDA, para a prevenção de AVC em doentes com FA. A sua aprovação apoiouse, essencialmente, no estudo RE-LY. O RE-LY envolveu 18.113 doentes com FA, de 951 centros em 44 países, com pelo menos um factor de risco para AVC que receberam, de forma cega, doses fixas de etexilato de dabigatran (110mg ou 150mg 2x/dia) ou, de forma não-cega, varfarina em doses ajustadas para manter o INR entre 2,0 e 3,0. Os pacientes foram acompanhados por um tempo mediano de 2 anos e os outcomes primários analisados foram: AVC ou embolia sistémica. Os outros outcomes foram: enfarte agudo do miocárdio, embolia pulmonar, acidente isquémico transitório e hospitalização. Dos doentes, 63% eram do sexo masculino e a idade média era de 72 anos. As taxas anuais de AVC ou embolia sistémica foram 1,69%, 1,53% e 1,11% nos grupos tratados com varfarina, dabigatran 110mg e dabigatran 150mg, respectivamente. O que significou que dabigatran 110mg foi similar à varfarina (redução estatisticamente não significativa do risco relativo de 9%), enquanto o dabigatran 150mg foi superior à varfarina (redução do risco relativo de 34%, p <0,001) na prevenção de AVC ou embolia sistémica. No que diz respeito às hemorragias major, as taxas anuais foram, significativamente, menores com dabigatran 110mg em relação à varfarina (2,71% versus 3,36%, redução do risco relativo de 20%, p=0,003), enquanto a taxa anual no grupo dabigatran 150mg (3,11%) não foi, estatisticamente, diferente da observada no grupo varfarina. Os resultados deste estudo, foram o ponto de partida para uma nova era na anticoagulação dos doentes com FA. Recentemente, um novo estudo demonstrou que o dabigatran pode substituir a varfarina não apenas nos doentes com FA crónica, mas também em doentes com FA de novo que serão sujeitos a cardioversão. Nos doentes com FA com duração superior a 48 horas que necessitam de anticoagulação antes de fazerem cardioversão (mecânica ou farmacológica), o dabigatran (150mg 2x/dia) administrado durante 3 semanas apresenta uma taxa de AVC`s e embolia 16 sistémica menor do que com o uso da varfarina, 0,3% e 0,6% respectivamente e uma taxa de hemorragia major similar, 0,6%(41). Assim, espera-se que a apresentação do RE-LY e da aprovação do dabigatran pela FDA, possa ser o ponto de partida para novos estudos com o objectivo de descobrir as potencialidades dos inibidores directos da trombina noutras indicações para hipocoagulação, para além da FA. 17 Limitações do estudo Apesar dos resultados promissores do estudo, algumas questões foram levantadas, pois alguns médicos permanecem um pouco sépticos em alterar o tratamento anticoagulante nos doentes com FA, que consistia, desde há décadas, nos antagonistas da vitamina K, nomeadamente a varfarina. O facto do estudo só ter a duração de 2 anos, é para alguns médicos pouco tempo de follow-up, pois alguns dos efeitos adversos dos fármacos podem só se manifestar numa fase mais tardia, tal como aconteceu, com o ximelagatran, o primeiro inibidor directo da trombina a ser comercializado, que acabou por ser retirado do mercado devido existência de um potencial de hepatotoxicidade. Permanecendo assim, a dúvida da segurança do fármaco a longo prazo. Algumas dúvidas também foram levantadas sobre a utilização do dabigatran em doentes com insuficiência renal ou hepática, pois os doentes com clearance da creatinina inferior a 30ml/min ou doença hepática activa foram excluídos do estudo, permanecendo assim, dúvidas sobre a segurança neste grupo de doentes. O RE-LY, incluiu cerca de 6000 doentes com pontuação no esquema CHA2DS2-VASc < 2, o que levanta algumas dúvidas pois, o uso de anticoagulação nos doentes com FA, sendo os guidelines actuais(1) só se deve fazer, de forma inequívoca, em doentes com pontuação ≥ 2 no índice de estratificação de risco de CHA2DS2-VASc(27). No estudo RE-LY, o único efeito adverso que foi significativamente mais comum com o dabigatran do que com a varfarina, foi a dispepsia, 11,3% e 5,3% respectivamente(21), facto que pode ser, em parte, explicado pelo facto de as cápsulas do fármaco conterem, também, um núcleo de ácido tartárico, pois o fármaco é melhor absorvido com pH baixo. Alguns autores, referem que a dispepsia, pode ser também responsável pela maior taxa de abandono verificada nos doentes a receberem dabigatran em comparação com os que recebiam varfarina, 15,5% e 10,2% no primeiro ano(21), respectivamente. Além disso, foi também proposto que, o facto do estudo ser aberto, fazia com que tanto os médicos como os doentes soubessem que estavam na presença de um novo fármaco, o que pode ter aumentado a tendência da interrupção da medicação. 18 Apesar de o risco de hemorragias major ser menor com ambas as doses de dabigatran em comparação com a varfarina, o risco de hemorragia gastrointestinal maciça foi 50% mais frequente nos doentes tratados com dabigatran 150mg, do que os tratados com a varfarina(21). No estudo apresentado verificou-se também aumento do risco de enfarte agudo do miocárdio, de 0,53% para 0,74% ao ano, para os doentes tratados com varfarina e dabigatran 150mg, respectivamente(21). Este aumento, pode ser explicado pela perda de algum do efeito protector da varfarina, na prevenção dos enfartes agudos do miocárdio nos doentes tratados com dabigatran. A hemorragia causada pela sobredosagem de varfarina, pode ser tratada com crioprecipitado, plasma fresco congelado, factor VIIa humano recombinante ou com administração de vitamina K(7). Pelo contrário, o dabigatran não apresenta “antídoto”, mas em casos de sobredosagem, a diálise pode ser uma opção para diminuir rapidamente a sua concentração plasmática(28). Alguns médicos têm levantado o problema da troca do tratamento anticoagulante em doentes bem controlados com a varfarina. Na verdade, a decisão sobre qual o tratamento a instituir, vai depender do médico e do próprio doente, cabendo ao médico explicar as vantagens e desvantagens de cada um dos tratamentos. Caso a decisão seja a troca do tratamento anticoagulante, este processo é fácil, basta para isso, que o doente tenha um INR ≤ 2, podendo interromper o tratamento com a varfarina e iniciar o dabigatran de imediato, pois este tem um início de acção entre 0,5 a 2 horas(28). 19 Aprovação e comercialização do dabigatran Apesar das suas limitações, o RE-LY demonstrou-se um passo muito importante na aprovação do dabigatran, como o primeiro anticoagulante oral inibidor directo da trombina na prevenção de tromboembolismo em doentes com FA. A FDA aprovou duas dosagens diferentes, 75mg e 150mg do dabigatran para a prevenção dos AVC nos doentes com FA. Apesar de a dose inferior (75mg) não ter sido estudada, o dabigatran demonstrou ser um fármaco seguro, assim uma dose menor foi aprovada para os doentes com clearance de creatinina entre 15 e 30ml/min, aumentando o leque de doentes, com insuficiência renal, que podem beneficiar deste novo tratamento(28). Se ao início o preço do dabigatran pudesse ser um entrave à sua comercialização, a farmacêutica alemã Boehringer Ingelheim International, que detêm a patente do fármaco, fez saber que preço diário do tratamento para a prevenção dos AVC`s nos doentes com FA, será 5€. Em Portugal, o fármaco já é comercializado no tratamento anticoagulante após cirurgias ortopédicas, e com a comparticipação actual do Estado, o tratamento ficará por 1,5€ diários, ou seja 46€ mensais. A avaliação custo-benefício, da terapêutica anticoagulante foi apresentada num estudo que comparava os custos do dabigatran com a varfarina na prevenção do AVC em doentes com FA. O estudo concluiu que em doentes com mais de 65 anos, com FA não valvular e risco aumentado de AVC (CHA2DS2-VASc ≥ 1), o dabigatran pode ser uma boa alternativa à varfarina(29). A aprovação do dabigatran na Europa, para a profilaxia tromboembólica nos doentes com FA, parece estar para breve, o que será um passo importante para o tratamento anticoagulante dos doentes com esta arritmia. 20 Propriedades farmacológicas do dabigatran O dabigatran é um potente inibidor directo, competitivo e reversível, da serina protease α-trombina. Este fármaco foi desenvolvido naphtlysulphonylglycyl-4-amid-ino-phenyl a partir (N-α-NAPAP) e, do composto incorpora líder uma N-α- estrutura benzamidina, essencial na ligação reversível ao local activo da trombina. O anel piridínico interactua com elevada afinidade com a bolsa D da trombina, enquanto que o ácido propiónico, substituinte no átomo de azoto da amida, se projecta para o exterior sem estabelecer interacções com a proteína(30) (Imagem 3 e 4). O pró-fármaco - dabigatran etexilato - resulta da adição de dois grupos Ncarboxialquilo, localizados nas extremidades laterais da molécula, os quais contribuem para a elevada biodisponibilidade e perfil de absorção oral(15). Imagem 4 – Local de fixação do etexilato dabigatrano ao centro activo da trombina Imagem 3 – Estrutura química do dabigatran 21 Propriedades farmacocinéticas do dabigatran Após administração oral, o etexilato de dabigatran é rápido e completamente convertido em dabigatran, que é a forma plasmática activa. A clivagem do pró-fármaco, etexilato de dabigatran, por hidrólise, catalisada pela esterase no princípio activo dabigatran, é a reacção metabólica predominante(31,32). Após administração do etexilato de dabigatran em voluntários saudáveis, o perfil farmacocinético do dabigatran no plasma é caracterizado por um rápido aumento nas concentrações plasmáticas, sendo a concentração máxima alcançada 0.5 a 2.0 horas após administração(33). A ingestão de alimentos não afecta a biodisponibilidade do dabigatran etexilato mas aumenta, em 2 horas, o tempo para atingir as concentrações plasmáticas máximas(15). Cerca de 30-35% do fármaco permanece ligado às proteínas plasmáticas, indicando uma distribuição tecidular moderada. A Cmax é proporcional à dose. As concentrações plasmáticas de dabigatran atingem um declínio biexponencial, com uma semi-vida terminal média de 7-17 horas. A semi-vida é curta e independente da dose(34). O dabigatran é, maioritariamente, eliminado na urina (95%), na sua forma inalterada, a uma taxa aproximada de 100ml/min, que corresponde à taxa de filtração glomerular. A excreção fecal é responsável pela eliminação de cerca de 5% da dose administrada(32). Os estudos de interacção in vitro não demonstraram qualquer inibição ou indução das principais isoenzimas do cit P450. Este facto, foi confirmado por estudos in vivo com voluntários saudáveis que não revelaram qualquer interacção entre este tratamento e as seguintes substâncias activas: atorvastatina (CYP3A4 e interacção com o transportador da glicoproteína P), diclofenac (CYP2C9) e digoxina (interacção com o transportador da glicoproteína P)(15). No entanto, o dabigatran deverá ser usado com precaução em doentes a receber tratamento sistémico concomitante com amiodarona, verapamil e claritromicina; dado que estes fármacos são inibidores do transportador de efluxo glicoproteína P (sendo o dabigatran um substrato deste transportador), e, por este motivo, podem aumentar as concentrações plasmáticas de dabigatran, com eventual risco hemorrágico(32). Deste modo, é necessária uma monitorização clínica apertada (com pesquisa de sinais de hemorragia e anemia) quando o dabigatran é co-administrado com os referidos fármacos. 22 O uso concomitante com quinidina, um inibidor potente da glicoproteína P, é contraindicada(32). De sentido contrário, o uso concomitante de indutores da glicoproteína P, tais como a rifampicina ou hipericão (Hypericum perforatum) poderão diminuir a exposição sistémica do dabigatran. Aconselha-se precaução aquando da co-administração destes fármacos(32). A biodisponibilidade oral do dabigatran diminui cerca de 20-30%, quando é coadministrado com pantoprazol, o que indica que a biodisponibilidade do fármaco diminui com o aumento do pH gástrico(35). 7,2% Biodisponibilidade oral Tempo para alcançar a concentração máxima Tempo de semi-vida Fracção ligada às proteínas plasmáticas 0,5 a 2 horas 7-17 horas 30-35% 90-95% renal 5-10% biliar/fecal Via de eliminação Tabela 5 – Propriedade farmacocinéticas do dabigatran 23 Outros novos anticoagulantes orais As limitações dos anticoagulantes orais usados actualmente, nomeadamente a varfarina, têm levado a que outros fármacos, além dos inibidores selectivos da trombina, com mecanismos de acção diferentes, sejam pesquisados como possíveis substitutos dos antagonistas da vitamina K, na anticoagulação dos doentes com FA. Os inibidores directos do factor Xa, que se ligam directamente ao centro activo do FXa e bloqueiam a interacção com o seu substrato(23,36), são fármacos que também têm sido pesquisados na prevenção dos AVC`s nos doentes com FA. O factor Xa, tal como referido anteriormente, é o ponto de junção das vias intrínsecas e extrínsecas da cascata de coagulação e o ponto de amplificação da mesma: uma molécula de factor Xa é responsável pela geração de mais de 1000 moléculas de trombina(12). Assim sendo, a inibição do factor Xa atenua a formação de trombina mas deixa indemne a trombina existente, a qual permanece capaz de manter a hemóstase primária. A inibição do FXa previne a conversão de fibrinogénio em fibrina(9). O rivaroxabano, um inibidor directo do factor Xa, é um anticoagulante oral, validado na prevenção de tromboembolismo venoso em doentes submetidos a cirurgia ortopédica(37,38), foi aprovado no Canadá e na Europa(39). Estudos apresentados recentemente, têm demonstrado eficácia, também deste fármaco, na prevenção dos AVC`s nos doentes com FA, e pensa-se que possa ser uma terapêutica importante nos doentes que não toleram o dabigatran ou que têm alguma contra-indicação para o seu uso(40). Outros inibidores directos do factor Xa, como o apaxiban, o edoxaban ou o betrixaban estão em estudo. 24 Conclusão A FA é a arritmia cardíaca sustentada mais comum e a sua prevalência tem aumentado com o aumento da esperança média de vida. As alterações hemodinâmicas que ocorrem na FA predispõem à formação de trombos intracardíacos, que devido ao seu potencial embólico devem ser prevenidas. A profilaxia das complicações embólicas faz-se com hipocoagulação oral, sendo decisão de hipocoagular os doentes com FA baseada no risco de AVC (CHA2DS2VASc) e no risco hemorrágico (HAS-BLED), cabendo ao médico fazer um balanço entre os risco e os benefícios da terapêutica hipocoagulante. A hipocoagulação oral, nos doentes com FA, era até 2010, feita apenas com antagonistas da vitamina K, que apesar de ser eficaz apresentava muitas limitações, como: início de acção lento, janela terapêutica estreita, semi-vida longa, resposta terapêutica e metabolismo com variabilidade genética, necessidade de monitorização laboratorial, ajustes posológicos obrigatórios e interacções significativas com os alimentos e outros fármacos. Estas limitações são responsáveis pela subutilização da anticoagulação nos doentes com FA e conduziram à procura de novas estratégias antitrombóticas que fossem pelo menos tão eficientes e seguras quanto a anticoagulação oral, mas de aplicação mais fácil, dispensando monitorização laboratorial. O RE-LY, um estudo publicado em 2009, que comparava a eficácia da terapêutica anticoagulante do dabigatran, um inibidor directo da trombina, com a varfarina, em doentes com FA sem doença valvular, demonstrou que este novo fármaco era uma boa alternativa aos anticoagulantes orais clássicos, usados até então. No estudo foram avaliadas 2 doses de dabigatran (110mg e 150mg) administradas por via oral 2 vezes por dia. Os resultados demonstraram que o dabigatran 150mg diminuiu o risco relativo de AVC ou embolia sistémica em 34%, quando comparado com a terapêutica com varfarina e que o risco de complicação por hemorragia major foi sobreponível. Já a dose de 110mg, apresentava a mesma eficácia que a varfarina na prevenção do AVC e embolia sistémica mas reduziu o risco relativo de hemorragia major em 20%. Além dos resultados promissores na prevenção das complicações tromboembólicas, o dabigatran apresenta muitas vantagens sobre a varfarina pois não necessita de controlo do INR, tem poucas interacções farmacológicas e alimentares, tem uma semi-vida curta e um inicio de acção rápido. 25 Após a publicação do RE-LY, a FDA aprovou a dabigatran como terapêutica anticoagulante nos doentes com FA. Os guidelines para o tratamento dos doentes com FA foram actualizados em 2011, e o dabigatran foi introduzido como anticoagulante alternativo aos antagonistas da vitamina K que, até então, eram os únicos anticoagulantes orais utilizados. Na Europa, o dabigatran ainda aguarda aprovação para os doentes com FA, apesar de já estar disponível no mercado, pois está indicado na anticoagulação dos doentes submetidos a cirurgias ortopédicas do membro inferior. Outros anticoagulantes orais, alem do dabigatran, têm sido estudados, esperando-se que no futuro possam surgir outros fármacos alternativos, com mecanismos de acção diferentes (exemplo: inibidores directos do factor Xa) no tratamento antitrombótico dos doentes com FA. Concluindo, o dabigatran é um fármaco anticoagulante novo, seguro, com um mecanismo de acção inovador e com poucos efeitos laterais, que pode mudar o paradigma do tratamento profilático tromboembólico nos doentes com FA que, desde há décadas, era feito apenas com os antagonistas da vitamina K. 26 Agradecimentos Queria agradecer a todos os que directa ou directamente contribuíram e tornaram possível a elaboração deste trabalho, em especial ao Dr. Paulo Palma por toda a ajuda, disponibilidade e conselhos prestados. A todos, muito obrigado. 27 Bibliografia 1 – Camm A.J., Kirchhof P., et al. Guidelines for the management of atrial fibrillation. European Heart Journal (2010) 31, 2369–2429. 2 – Jara A., et al. 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