- Sociedade Brasileira de Sociologia

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“Sexo cerebral” e as pesquisas biomédicas sobre gênero e sexualidade
Marina Fisher Nucci – Bolsista do CNPq
Mestranda em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social/ UERJ
Orientadora: Jane Russo IMS/ UERJ
Objetos e Objetivos
Os primeiros teóricos sobre a homossexualidade, como
Karl Ulrichs e Magnus Hirschfeld, na segunda metade do
século XIX, argumentavam contra a criminalização da
sodomia a partir da idéia de que a homossexualidade
seria da ordem da natureza e, portanto, imutável.
Segundo eles, o homem homossexual seria possuidor de
uma “alma feminina em um corpo masculino”,
pertencendo a um terceiro sexo e sendo um invertido.
Deste modo, o desejo era concebido como heterossexual,
ou seja, o desejo por homens deveria ser essencialmente
feminino: se um homem possui desejo por outros homens,
deverá ser feminino em sua essência.
A busca pela diferenciação biológica da
homossexualidade e da heterossexualidade parece estar
ligada a uma busca mais ampla, de diferenciação da
masculinidade e feminilidade. Até o século XVIII, segundo
Laqueur (2001), não existia a idéia de que homens e
mulheres pertenceriam a sexos incomensuravelmente
diferentes. Ao contrário, o que vigorava era um modelo do
sexo único, em que a diferença entre masculino e
feminino era de grau, e não de espécie. A mulher era vista
como um homem invertido e, portanto, menos perfeito e
hierarquicamente inferior. A partir do final do século XVIII,
porém, este modelo dá lugar ao modelo de dimorfismo
sexual, em que homens e mulheres são vistos como
radicalmente opostos.
Assim, este trabalho procura investigar definições na
produção científica/ biomédica atual acerca do gênero e
da sexualidade. Nosso foco é a idéia de “sexo cerebral”
que seria definido a partir da ação de hormônios sexuais
pré-natais. Segundo esta teoria há uma configuração
cerebral tipicamente masculina, e outra feminina,
responsáveis pelo comportamento de gênero e orientação
sexual. Nos artigos analisados, sexualidades e gêneros
considerados desviantes (como homossexuais e a
transexualidade) são ”explicados” a partir de possíveis
desvios desta configuração cerebral. Assim procuraremos
refletir sobre a centralidade da vinculação do cérebro à
subjetividade na sociedade contemporânea, as definições
biomédicas atuais da sexualidade “normal” e “desviante”,
e suas concepções de gênero.
Partiremos de uma perspectiva construtivista, pensando a
ciência não como neutra, mas sim como parte integrante
da sociedade, ao mesmo tempo determinando-a e sendo
determinada por ela (FLECK, 1981; LATOUR, 2000).
Metodologia
A Metodologia constitui-se de três etapas principais:
1. Levantamento de artigos na base de dados PubMed
utilizando-se as palavras-chave “prenatal androgen” e
“prenatal hormone” combinadas com “homosexuality”,
“transsexualism”, “sexual orientation”, “gender identity”,
“gender behavior” e “gender dysphoria”. Os termos
foram selecionados com o objetivo de capturar artigos
sobre “hormônios pré-natais” relacionados à identidade
de gênero e orientação sexual;
2. Mapeamento dos artigos procurando identificar em
quais periódicos foram publicados, quais as diferentes
áreas biomédicas e profissionais que publicam, e as
principais questões de pesquisa sobre o tema;
2. Leitura e análise dos artigos mais recentes,
disponíveis na Plataforma Capes;
Resultados
Foram encontrados 155 artigos, entre 1975 e 2009, sendo 73 artigos concentrados entre os anos de 2001 e 2009.
Os artigos foram publicados em variados periódicos, abarcando principalmente as áreas da endocrinologia, genética,
neurociências, psicologia, psiquiatria e sexologia. Destaca-se o periódico de sexologia “Archives of Sexual Behavior”
onde localizamos 27 artigos, e os periódicos “Hormones and Behavior” (14 artigos), “Psychoneuroendocrinology” (14
artigos) e o “Journal of Homosexuality” (10 artigos).
Os resultados deste trabalho consistem na leitura e análise de 86 artigos, do ano de 1995 a 2009.
Os artigos, de um modo geral, são bastante semelhantes, partindo sempre da extrapolação de pesquisas em animais
para seres humanos. Limitações éticas não permitem a medição do nível de hormônios pré-natais em humanos,
fazendo com que os pesquisadores se valham de duas diferentes estratégias: 1. Estudo de pessoas com alterações
hormonais congênitas, como é o caso da Hiperplasia Adrenal Congênita (CAH); 2. Estudo da “população normal”, a
partir de certos “marcadores” ou “janelas” para o desenvolvimento hormonal. Trata-se, em ambos os casos, de
pesquisas a posteriori, ou seja, investigam-se jovens ou adultos e, a partir de certas características supõem-se quais
eram os níveis hormonais durante o desenvolvimento fetal.
Interessante notar que se trata de uma escolha de supostos “marcadores do desenvolvimento hormonal”, uma vez
que não há como saber se tais traços são realmente determinados pelos hormônios pré-natais ou não. A escolha se dá
da seguinte forma: como se acredita que os hormônios pré-natais sejam responsáveis pela diferenciação entre homens
e mulheres, qualquer característica que seja (supostamente) diferente entre homens e mulheres é considerada
conseqüência dos níveis hormonais. Trata-se, portanto, de um pensamento circular que, por ser fechado sobre ele
mesmo, não pode jamais ser completamente verificado. Assim, parte-se do pressuposto de que há características (as
mais variadas possíveis, como veremos a seguir) próprias aos homens e próprias às mulheres, determinadas a partir
da ação dos hormônios pré-natais no útero; se houve algum desequilíbrio ou alteração hormonal, este poderá ser
constatado (ou, por que não dizer, provado) a partir da presença de características atípicas ao gênero. Deste modo,
o homossexual, por exemplo, por ter uma orientação sexual atípica, supostamente causada a partir do desequilíbrio
hormonal no útero, deverá, também, possuir outras características atípicas ao seu gênero.
A listagem de tais comportamentos/ características atípicas é extensa, sendo determinada por concepções de
gênero socialmente influenciadas. São alguns exemplos: a agressividade (homens são mais agressivos que mulheres);
habilidades cognitivas (homens são melhores em matemática, mulheres são melhores com palavras); e até mesmo a
escolha dos brinquedos e brincadeiras na infância (meninos brincam de carrinho, meninas brincam de bonecas); Desta
forma, espera-se que um menino que brinque de boneca na infância venha a se tornar um homossexual na vida adulta,
menos agressivo (tal como as mulheres) e não tão bom em matemática. Tudo isso, devido ao seu desenvolvimento
pré-natal hormonal. Portanto, a teoria clássica da homossexualidade no século XIX (“alma de mulher em um corpo de
homem” e vice versa), é reformulada aqui como uma inversão cerebral, a partir da mistura entre concepções de
gênero e orientação sexual. Por ter uma orientação sexual “atípica”, o homossexual deve ter uma configuração
cerebral igualmente atípica, causada por níveis hormonais atípicos. E, de outro modo, por ter uma orientação sexual
“própria ao gênero oposto” deverá, também, possuir características – hormonais, cerebrais, comportamentais –
“próprias” ao outro gênero.
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