Tróia – um grande romance da guerra

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InterBlogs - Recife - PE
21/12/2010 - 03:01
Tróia – um grande romance da guerra
Tróia – um grande romance da guerra
Homero Fonseca
É o caso de “Tróia – o romance de uma guerra” (Editora L&PM, 2004), do professor e escritor gaúcho Cláudio Moreno, que tive o
prazer de conhecer, apesar de sua meia carranca, no Sarau Elétrico, de cuja equipe ele participa com o também escritor e crítico
Luís Augusto Fischer, a apresentadora Kátia Suman e a publicitária e escritora Cláudia Tajes, no ‘cult’ Bar Ocidente, em Porto
Alegre, durante a Feira do Livro de 2008, eu como convidado.
Como vocês aí estão carecas de saber, Homero (o grego, o outro, meu xará... é brincadeira!) trata apenas de um curto período do
final da guerra entre gregos e troianos que durou 10 anos, de maneira que o professor Cláudio, doutor em Letras e Linguística,
estudioso da Grécia Antiga, teve de valer-se da bibliografia disponível , recorrendo a autores antigos e contemporâneos, para
reconstituir tanto o antes quanto o depois do que está contado na “Ilíada”. Tarefa nada fácil, levando-se em conta, por exemplo, que,
como ocorre com todo mito, a maioria dos episódios que compõem a saga comporta inúmeras versões (alguns até 12!). A tarefa,
entretanto, foi desincumbida com maestria, juntando a acurácia do pesquisador ao talento do ficcionista.
O primeiro trabalho do autor, portanto, como ele escreve numa espécie de posfácio, foi escolher uma linha narrativa e, a partir daí,
desenvolver a história, combinando, como salienta Fischer, o estilo homérico de narração com um ritmo de romance. E que ritmo! O
resultado foi um romance fluido, vibrante, emocionante, à altura da história original onde se mesclam sexo, intriga, sedução, guerra,
morte e fantasia numa escala inigualável (um borgeano incorrigível diria que toda a literatura subseqüente não é mais que a eterna
reescritura da guerra mitológica).
Uma coisa sempre me deixou espantado em Homero e outros clássicos gregos: a ausência de maniqueísmo. Não há o
acachapamento dos personagens em bons e maus, como muito depois folhetins, melodramas e, principalmente, a filmografia
majoritária de Hollywood disseminaram com tal força que se tornou um padrão do gosto popular (lembremo-nos: os poemas
homéricos e as peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, como as de Shakespeare e o “Dom Quixote”, eram populares!).
Aquiles, Ulisses, Agamênon, Heitor, Páris, Ajax, Teseu, Menelau, Príamo, apesar e talvez por isso mesmo de joguetes de forças
superiores (o destino, os deuses, as moiras), têm virtudes e defeitos, hesitam e se contradizem, oscilam, em graus variáveis, do
sublime ao sórdido.
Com o instrumental acumulado pela história literária, isto é, a evolução da forma romanesca de narração, Cláudio Moreno aprofunda
com talento e competência aquelas características humanas (que impregnam em alto grau a própria personalidade da cambada do
Olimpo), traçando retratos nuançados daqueles personagens trágicos.
As mulheres, então, ganham traços vivos que acentuam a dramaticidade e a sensualidade de sua atuação, a começar, obviamente,
pela bela Helena, seguida por todas as outras: Hécuba, vendo os filhos tombarem um a um na guerra; Clitemnestra, roída de ódio
pelo sacrifício da filha Ifigênia; Cassandra, no desespero de ser desacreditada em suas profecias; Andrômaca, preocupada em
salvar o marido e o filho...
Aqui, incorporando o espírito do tempo, o romancista dá relevo ao papel das mulheres e lhes desenha com cores mais vibrantes que
os relatos originais, vindos de um tempo em que a supremacia do macho era incontestável (tá meio reducionista esse comentário,
mas deixo assim mesmo, pois creio me fazer entender).
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Exemplo nítido está no trecho a seguir, que trata do rapto de Helena, pré-adolescente, mas já belíssima e com a porção mulher,
digamos, aguçada, pelo legendário rei de Atenas, Teseu, o que havia derrotado o temível Minotauro, tornando-se um dos maiores
heróis helênicos:
“Como Helena ainda não tinha chegado à puberdade, Teseu sabia que Tíndaro [rei de Esparta] não permitiria o casamento, e
resolveu simplesmente raptá-la. Para isso, atalhou o seu caminho quando ela se dirigia ao templo, passando pelo bosque
junto ao rio Eurotas, bem próximo de onde Zeus tinha deitado com Leda. Ao ver aquele estranho surgir à sua frente, Helena
não recuou nem esboçou o menor sinal de pânico; com a grandeza de uma futura rainha, apenas estancou o passo e ficou
olhando interrogativamente para o atraente estrangeiro. Quando Teseu disse quem era, dissipou-se qualquer temor que ela
ainda pudesse sentir, pois tinha crescido admirando o nome desse herói incomparável, só inferior ao próprio Hércules. Ao
contrário; falando com ele, olhava-o fascinada, excitada porque, apesar de ser pouco mais que uma criança, tinha enxergado
nos olhos dele uma chama que ela ainda não conhecia, mas que a atraía como o fundo de um abismo. Foi só quando Teseu
lhe assegurou que não lhe faria nenhum mal, e que ela estaria segura com ele até que estivesse na idade de casar, que
Helena percebeu que ela estava sendo raptada por amor, como tantas outras jovens antes dela. Não teve medo; esta era uma
situação para a qual toda donzela tinha de estar mais ou menos preparada, e chegou até a sentir uma ponta de orgulho por
estar sendo escolhida como futura esposa de um homem como aquele.
(...)
Teseu sabia que o que estava fazendo era totalmente errado – ele próprio, como rei de Atenas, teria castigado, alguns anos
antes, alguém que praticasse em sua cidade um ato condenável como este. Mas, mesmo sentindo-se culpado, não podia
fazer outra coisa senão submeter-se a este impulso irresistível. Sabia que todos iriam criticá-lo, e certamente a família de
Tíndaro iria reagir, enviando uma expedição armada para recuperar Helena. Por isso, em vez de levá-la para Atenas, onde
temia a censura dos cidadãos, transportou-a para Afidna, outra cidade da Ática, onde a escondeu na casa de um amigo leal,
deixando-a sob os cuidados de Etra, sua própria mãe.
Um ano inteiro passou sem que nada acontecesse entre eles; fez algumas visitas a ela, que sempre o esperava, enfeitando-se
para ele como se fosse uma jovem esposa, mas ele nunca a tocou. Um dia, porém, as coisas se precipitaram: ela o tinha
esperado com uma túnica entreaberta, cujo tecido púrpura deixava entrever a curva nascente de um seio de menina.
Serviu-lhe vinho e comida como uma mulher serve ao marido. Depois, afrouxou a cinta que mantinha a túnica fechada e
deixou-a abrir-se, apertando seu corpo esguio contra o largo peito de Teseu, que tentou em vão recuar. Helena, no entanto,
era pura tentação, e beijou-lhe a boca com seus lábios ágeis, impregnando as narinas de Teseu com seu hálito de virgem. Ele
percebeu que ela estava cheia de desejo, mas estava resolvido a resistir. Explicou-lhe que tinha a esperança de obter a
permissão de Tíndaro para casar, mas isso ainda poderia demorar um par de anos. Como até lá muita coisa poderia dar
errado, ele queria que ela se mantivesse virgem e se preservasse para o futuro marido – fosse ele quem fosse. Helena, então,
que não tinha deixado de beijá-lo mesmo enquanto ele falava, deixou a túnica cair no chão, ajoelhou-se sobre o leito e olhou
para Teseu por cima do ombro, oferecendo-se a ele da mesma maneira que um jovem efebo se oferece a seu amante. Teseu
compreendeu, e sentiu que estava perdido”.
Anos depois, Helena foi libertada pelos seus irmãos Cástor e Pólux, voltando para Esparta, ainda virgem. E fico imaginando cá do
meu canto aquela cena se repetindo ao longo do largo intervalo de tempo entre o rapto e a libertação.
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