latit. n°8 - Revues Plurielles

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ENTREVISTAS/ENTRETIENS
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Francisco Bethencourt,
director do Centro Cultural C. Gulbenkian
de Paris e historiador, revelou-nos
entrevista conduzida por
D. Lacerda e M. Madeira
Tendo assumido recentemente a direcção deste importante centro cultural, que representa em Paris e em
França, desde 1967, o principal foco irradiador da cultura lusófona, se bem que a perspectiva do Centro seja
apreciada de modo controverso pela comunidade portuguesa de França, quisemos dar a conhecer as novas perspectivas trazidas pelo seu actual responsável, Dr.
Francisco Bethencourt. Figura de relevo na cultura do
país e historiador, confiou-nos igualmente algumas
conclusões que a investigação histórica que tem
empreendido lhe permitem sustentar, corringindo falsas
ideias acerca do nosso passado.
Latitudes— Estando há mais de um
ano à frente deste importante
Centro Cultural, depois de ter analisado o seu funcionamento e o seu
público, quais são as novidades de
actuação que lhe introduz, nos
diversos domínios em que a sua
rica actividade se tem feito sentir
desde a sua fundação ?
Francisco Bethencourt — Em primeiro lugar, cada director fez o melhor pelo Centro e enriqueceu-o
com as suas perspectivas próprias
e os seus conhecimentos e no
domínio de actividade em que se
tinha especializado. Dessas várias
perspectivas resultaram benefícios
claros para o Centro. Aquilo que
eu estou a tentar fazer é encontrar
uma nova dinamização a partir de
uma base que é muito boa.
Numa época de sociedade de informação, começámos por fazer um
grande investimento ao nível da
informatização da biblioteca e do
próprio Centro. No ano passado
adquirimos um novo sistema de
gestão integrada da biblioteca.
Todo o ficheiro bibliográfico foi
digitalizado e vamos colocar toda a
informação bibliográfica na internet de maneira que os universitá-
rios, os particulares e todas as pessoas com curiosidade pela cultura
portuguesa possam ter acesso.
Os Concertos constituem uma actividade sempre bem organizada
com um público próprio, que se
vai renovando. O público da música, que concorre em grande número, é muito específico, estando
sempre os concertos com casa
cheia e até fora da sala.
Pelo sector das exposições tem
havido maior ou menor interesse
segundo os directores, mas queremos desenvolvê-lo, atingindo
seis/sete exposições por ano.
Quanto a realizar catálogos depende do dinheiro disponível. Este
sector tinha um orçamento reduzido e aumentei-o quando cheguei
em 1999. Novo aumento ocorreu
este ano, mantendo-se uma tendência de reforço do sector.
Comigo as exposições têm aumentado sempre.
Em relação às Conferências, a alteração é mais de lógica e coerência.
Estamos a organizá-las de maneira
temática, estabelecendo uma relação entre investigadores franceses
que trabalham sobre Portugal e
investigadores portugueses. Temos
LATITUDES
n° 8 - mai 2000
a ideia de convidar mais franceses
do que portugueses para que o diálogo seja produtivo, de maneira a
estimular o enraizamento da cultura portuguesa em França, nestas
áreas envolvidas pelas conferências
(história da literatura, crítica literária, história, história de arte, sociologia, psicologia, antropologia). A
ideia de trazer aqui portugueses é
interessante mas limitada. É
necessário que os investigadores
portugueses venham num contexto
em que dialoguem com os seus
colegas franceses. Porque, se não
tivermos em França lusitanistas, a
investigação sobre Portugal desaparece.
pela promoção da cultura portuguesa em França) não é responder
perante um contribuinte. Ao
Instituto Camões, que funciona com
dinheiros do contribuinte, todos os
portugueses têm legitimidade de
exigir satisfações. A minha responsabilidade aqui é perante a administração da Fundação.
O objectivo do Centro é envolver
fundamentalmente os franceses
interessados na cultura portuguesa
sem esquecer as novas gerações de
portugueses que vivem em França,
que fizeram os seus estudos e têm
gosto e curiosidade pela cultura
portuguesa. É para essas pessoas
que nós trabalhamos.
Latitudes — É um facto que ultimamente o Centro apresenta um
perfil mais atraente. Finalmente o
Instituto Camões e as instituições
como a Embaixada têm projectos
culturais mais ou menos similares
aos do Centro Gulbenkian. Da
parte da população portuguesa de
França há uma expectativa quanto
a tê-la em conta e não só aos franceses.
F. B. — Qualquer organização tem
o seu ciclos de vida, há de facto
agora uma modernização nesta
viragem de século e há capacidade
para fazer um investimento, e isso
também entusiasma as pessoas. O
Instituto Camões dedica-se mais ao
ensino da língua e o Centro tem
uma tradição específica na biblioteca e nas edições. Quanto a concertos e exposições, possuímos um
espaço com outras possibilidades.
A minha perspectiva não é a da
concorrência. O que faz sentido é
existir uma complementaridade.
Pela minha parte tenho sempre
divulgado com antecedência às
outras instituições o que faço aqui,
e procuro evitar sobreposições de
datas; espero que os outros tenham
a mesma atitude.
Seria demagógico dizer que a nossa
programação se dirige ao grande
público, porque temos uma sala
com 180 lugares. Mas devo esclarecer o seguinte: a Fundação é de
interesse público mas de direito privado. Não é constituída com fundos do contribuinte. A obrigação
da Fundação (que tem feito muito
Latitudes — O facto de a população portuguesa se não manifestar
mais culturalmente é talvez porque
não são propícios certos factores
como os modelos que temos aqui e
não haver informação do que se
propõe fazer.
F.B. — A nossa atitude é a de que
toda a pessoa interessada na cultura portuguesa é bem vinda; tudo o
que tenha qualidade e seja português ou seja relacionado com
Portugal, inclusive feito por estrangeiros. Queremos ter boas relações
com os nossos compatriotas que
estão aqui. Hoje há aqui bons pintores de origem portuguesa como
há em Portugal. Nós trabalhamos
com toda a gente. É só uma questão
de qualidade, não descriminamos
ninguém. Há uma batalha a travar:
melhorar as condições económicas
e culturais da sociedade portuguesa... O nosso público é de franceses
e portugueses residentes em França
e penso que há uma mudança
nesse público. Entre os luso-descendentes verifica-se uma evolução, há os que fizeram cursos universitários. E os que constatam que
não conhecem aspectos essenciais
da cultura portuguesa a pouco e
pouco sentem necessidade de
conhecer as suas origens e interessam-se pela cultura portuguesa.
LATITUDES
n° 8 - mai 2000
Latitudes - F. Bethencourt estudou
a Inquisição portuguesa tendo
publicado a obra “História das
Inquisições, Portugal, Espanha e
Itália”, quer em França quer em
FRANCISCO BETHENCOURT
Nascido em 1955 na Ilha da
Madeira, obteve doutoramento
no Instituto Europeu de Florença
(1992) e é hoje professor agregado em ciências sociais na
Universidade Nova de Lisboa.
Depois de ter exercido os cargos
de presidente do Instituto da
Biblioteca Nacional e do Livro e
de director da Biblioteca Nacional
de Lisboa, entre 1996 e 1998, foi
nomeado director do Centro
Cultural C. Gulbenkian de Paris
em 1998.
Publicou vários artigos e comunicações de sociologia histórica,
uma obra sobre feitiçaria e nigromância no século XI, História das
Inquisições ,Portugal, Espanha e
Itália* e co-dirige uma História
da Expansão Portuguesa em
cinco volumes.
* Edição portuguesa de Círculo dos
Leitores, Lisboa, 1994; edição francesa de Fayard, Paris, 1995.
Portugal. Uma tese apresentada em
Florença, a que deve ter dedicado
vários anos de trabalho de investigação. Como se explica que os
Inquisidores que eram pessoas de
alta cultura (bispos, teólogos, canonistas, etc.) tenham exercido uma
tão severa repressão ideológica,
diríamos agora, mas também económica, que hoje todos reconhecem ter
prejudicado imenso o desenvolvimento da sociedade portuguesa?
F. B. — O facto das pessoas serem
cultas não significa que sejam tolerantes nem gentis. Para falar do fascismo português, não vamos dizer
que as pessoas eram burras e ignorantes. Uma coisa não está ligada
com a outra. É uma questão de
valores. As pessoas podem ser
incultas e ter uma atitude inteligente e tolerante em relação às outras.
Podem ser cultas e ter uma atitude
repressiva e intolerante. No caso
da Inquisição as elites eclesiásticas
daquele tempo em Portugal e em
Espanha e também em Itália estavam envolvidas numa lógica repressiva e consideravam que uma sociedade só podia sobreviver e
funcionar em função de valores
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Francisco Bethencourt
interpretados de maneira estritamente ortodoxa por uma Igreja que
devia sindicar a toda a sociedade.
Essa lógica repressiva afectou
Portugal, Espanha e Itália. Podemos
dizer que a sociedade portuguesa
sofreu com isso porque se desenvolveu afastada dos grandes
debates desde o século XVI até ao
XVIII, debates sobre a liberdade de
consciência, a tolerância, o livrepensamento, o iluminismo. Estes
grandes debates europeus não
foram seguidos de perto pela sociedade portuguesa, (enfim, algumas
pessoas sempre foram tocadas por
eles), embora não haja repressão
que elimine a liberdade de pensamento. Mas não eram debates produtivos, não eram assumidos
porque havia esse espírito de censura e de repressão. Isso afectou a
sociedade portuguesa e permitiu a
criação de um monopólio, uma
visão estrita e ortodoxa do mundo,
impedindo o desenvolvimento da
liberdade da consciência e tolerância. Portanto, afectou o desenvolvimento dum novo sistema de valores
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em Portugal, vitorioso na Europa a
partir do século XVIII, que se vai
desenvolver com altos e baixos até
à actualidade. Nesse aspecto,
Portugal teve problemas de desenvolvimento e inclusive criou-se uma
cultura política de subserviência,
de medo, de falta de afirmação e
de falta de frontalidade que resultou dessa prática repressiva que
durou séculos e afectou a sociedade portuguesa até há pouco tempo.
Latitudes — Qual era o grau de integração na sociedade portuguesa das
populações judaicas e cristãs- novas
(falo no plural por terem origem
diversa, uma camada mais antiga
outra entrada no país no final do
séc. XV fugida de Espanha).
Constituiria ela uma ameaça à
estabilidade do país, por conservar
um projecto próprio enquanto
grupo, para D. João III ter desencadeado tantos esforços para instituir
o Tribunal do Santo Ofício?
F.B.— Penso que esse é um problema de lógica do poder. Essas
comunidades de origem judaica e
muçulmana não constituíam um
elemento de desequilíbrio ou de
tensão social. Pelo contrário, a
introdução da Inquisição criou mais
tensões sociais do que aquelas que
eventualmente ou teoricamente
pretendia resolver. Penso que a
introdução da Inquisição e a política repressiva que desenvolveu sistematicamente, de cidade em cidade, de vila em vila e de aldeia em
aldeia - a Inquisição procedia de
maneira muito sistemática e meticulosa, chegava a uma aldeia fazia
vinte, trinta, quarenta processos e
durante dois, três anos ficava ali a
reprimir - introduzia uma grande
tensão e desorganização social. Ela
mesma era um elemento de desorganização social. O que mostra o
meu livro é que a percepção das
coisas deve ser invertida: a ideia
antiga de que a Inquisição veio harmonizar o país é mentira. A
Inquisição em muitos casos veio
introduzir novas tensões.
D. João III tomou essa decisão devido a uma lógica de poder, e de grupos interessados dentro da Igreja
em criar o Tribunal da Inquisição.
Depois, a partir daí, há um desenvolvimento dessa estrutura tentacular que se vai enraizar em todo o
país, se vai estabelecer e manter. E
há toda uma lógica repressiva que
se desenvolve e se torna autónoma. É essa a lição da Inquisição: a
partir do momento em que os
meios repressivos se instalam,
criam novas formas de reprodução,
independentemente dos ambientes
sociais se alterarem ou não.
Há vários períodos em que a
Inquisição lutou para se manter,
como no reinado de D. João IV no
período da Restauração. A guerra
da Restauração é muito subsidiada
pelos cristãos-novos, inclusive os
que estão em Amesterdão, e são
esses cristãos-novos de origem
judaica que são reprimidos pela
Inquisição. Esta vai perseguir vários
banqueiros que emprestavam dinheiro a D. João IV. Mais um caso
de perturbação social, económica,
financeira e militar introduzida pela
Inquisição.
Latitudes — Mais recentemente, F.
Bethencourt dirigiu conjuntamente
LATITUDES
n° 8 - mai 2000
com Kirti Chaudhuri uma “História
da Expansão dos Portugueses” no
mundo em vários tomos. Digamos
que é um balanço à ideia de Império
que acabou por fazer parte da
consciência nacional. Que lição
tirou daí quanto à dinâmica social
portuguesa ? Aqui em França onde
chegou (e chega) tanto português por
achar o tal “império” incapaz de os
aceitar, sobressai a noção de que se
trata dum negócio de poderosos,
enquanto às camadas populares, o
fundo social da nação, o tal império
escapa-lhes na prática. Como articula o historiador, este paralelismo?
F. B. — O Império foi sempre
constituído por pessoas de todas as
origens sociais, mas é evidente que
quem beneficiava mais do império
eram as elites, nos séculos XV, XVI,
XVII, os cavaleiros, os fidalgos. Isso
não quer dizer que as outras camadas sociais não estivessem também
envolvidas na expansão, inclusive
o Império permitia nesse período
(do século XV ao XVIII) uma mobilidade social que não existia no território continental e que lhe dava
mais possibilidades, portanto, as
pessoas também beneficiavam do
Império. A grande lição do Império
é que os portugueses sempre emigraram e transvazaram das fronteiras do Império, isto é os portugueses emigravam
para a Índia, para
a África, para o
Brasil, mas sempre
emigraram para
fora das fronteiras
do
Império.
Mesmo na Índia os
portugueses iam
para outros locais.
Havia
comunidades portuguesas
no
golfo
de
Bengala,
em
Macássar, isto é,
em zonas fora do
controle português.
Existiam
também
na
América espanhola. A grande ideia
desta actualização
da história da
colonização portuguesa é que os
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n° 8 - mai 2000
portugueses sempre extravazaram
as fronteiras do Império e realizaram-se noutros locais, em muitos
casos integrando-se noutras comunidades mas muitas vezes mantendo a sua ligação com o país de origem. Portugal para manter uma
identidade nacional não necessitava do Império.
Esta capacidade de adaptação dos
portugueses, é a grande lição que
devemos tirar da descolonização.
Muita gente antes do 25 de Abril
achava que Portugal não sobrevivia
sem o Império, sem as colónias e
sobreviveu tranquilamente, sem as
convulsões sequer que a França
teve nos anos ‘60 com atentados e
acções terroristas. Em Portugal não
houve nada que se parecesse.
Enquanto em França por altura da
independência da Argélia, já existiam três ou quatro gerações de
franceses instalados em África que
não tinham já relações com o país
de origem, a emigração portuguesa
para África é dos anos 50 e 60.
Quando se dá o 25 de Abril, era
apenas uma geração que se achava
lá e que mantinha relações com os
familiares em Portugal. E puderam
voltar porque tinham laços ainda
frescos. Porque, ao fim de duas
gerações, perde-se esse laço familiar e, no caso português, conse-
guiram uma boa reintegração.
Latitudes — A continuação da guerras da parte do governo português
motivou uma radicalização das
relações entre os diferentes povos e
provocou o regresso massivo dos
chamados “retornados”. Também
se ocupam das consequências da
descolonização e das guerras coloniais no vosso estudo?
F. B. — O nosso estudo vai até 1998.
Há portugueses que continuaram
nos países africanos de língua oficial portuguesa, outros que querem
voltar e investir. Há uma atracção
muito grande nesses países, embora haja problemas de instabilidade
política e militar, como em Angola,
que não permite que se refaçam
essas relações. Mas numa base completamente diferente, com países
independentes em que os portugueses vão para lá como para o
Brasil ou outros países.
Não tinha qualquer cabimento prosseguir as guerras, porque todos os
países europeus estavam a descolonizar desde o final dos anos ‘40.
Salazar não só insistiu numa política colonial desfazada, fora do
tempo quando começam as guerras
em 1961, mas também insistir com
a colonização nessa época não tinha
sentido. O regime condenou-se a si
próprio com tal opção Intérieur du Centre culturel C. Gulbenkian, Paris (exposition Paula Rego)
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