ENTREVISTAS/ENTRETIENS 44 Francisco Bethencourt, director do Centro Cultural C. Gulbenkian de Paris e historiador, revelou-nos entrevista conduzida por D. Lacerda e M. Madeira Tendo assumido recentemente a direcção deste importante centro cultural, que representa em Paris e em França, desde 1967, o principal foco irradiador da cultura lusófona, se bem que a perspectiva do Centro seja apreciada de modo controverso pela comunidade portuguesa de França, quisemos dar a conhecer as novas perspectivas trazidas pelo seu actual responsável, Dr. Francisco Bethencourt. Figura de relevo na cultura do país e historiador, confiou-nos igualmente algumas conclusões que a investigação histórica que tem empreendido lhe permitem sustentar, corringindo falsas ideias acerca do nosso passado. Latitudes— Estando há mais de um ano à frente deste importante Centro Cultural, depois de ter analisado o seu funcionamento e o seu público, quais são as novidades de actuação que lhe introduz, nos diversos domínios em que a sua rica actividade se tem feito sentir desde a sua fundação ? Francisco Bethencourt — Em primeiro lugar, cada director fez o melhor pelo Centro e enriqueceu-o com as suas perspectivas próprias e os seus conhecimentos e no domínio de actividade em que se tinha especializado. Dessas várias perspectivas resultaram benefícios claros para o Centro. Aquilo que eu estou a tentar fazer é encontrar uma nova dinamização a partir de uma base que é muito boa. Numa época de sociedade de informação, começámos por fazer um grande investimento ao nível da informatização da biblioteca e do próprio Centro. No ano passado adquirimos um novo sistema de gestão integrada da biblioteca. Todo o ficheiro bibliográfico foi digitalizado e vamos colocar toda a informação bibliográfica na internet de maneira que os universitá- rios, os particulares e todas as pessoas com curiosidade pela cultura portuguesa possam ter acesso. Os Concertos constituem uma actividade sempre bem organizada com um público próprio, que se vai renovando. O público da música, que concorre em grande número, é muito específico, estando sempre os concertos com casa cheia e até fora da sala. Pelo sector das exposições tem havido maior ou menor interesse segundo os directores, mas queremos desenvolvê-lo, atingindo seis/sete exposições por ano. Quanto a realizar catálogos depende do dinheiro disponível. Este sector tinha um orçamento reduzido e aumentei-o quando cheguei em 1999. Novo aumento ocorreu este ano, mantendo-se uma tendência de reforço do sector. Comigo as exposições têm aumentado sempre. Em relação às Conferências, a alteração é mais de lógica e coerência. Estamos a organizá-las de maneira temática, estabelecendo uma relação entre investigadores franceses que trabalham sobre Portugal e investigadores portugueses. Temos LATITUDES n° 8 - mai 2000 a ideia de convidar mais franceses do que portugueses para que o diálogo seja produtivo, de maneira a estimular o enraizamento da cultura portuguesa em França, nestas áreas envolvidas pelas conferências (história da literatura, crítica literária, história, história de arte, sociologia, psicologia, antropologia). A ideia de trazer aqui portugueses é interessante mas limitada. É necessário que os investigadores portugueses venham num contexto em que dialoguem com os seus colegas franceses. Porque, se não tivermos em França lusitanistas, a investigação sobre Portugal desaparece. pela promoção da cultura portuguesa em França) não é responder perante um contribuinte. Ao Instituto Camões, que funciona com dinheiros do contribuinte, todos os portugueses têm legitimidade de exigir satisfações. A minha responsabilidade aqui é perante a administração da Fundação. O objectivo do Centro é envolver fundamentalmente os franceses interessados na cultura portuguesa sem esquecer as novas gerações de portugueses que vivem em França, que fizeram os seus estudos e têm gosto e curiosidade pela cultura portuguesa. É para essas pessoas que nós trabalhamos. Latitudes — É um facto que ultimamente o Centro apresenta um perfil mais atraente. Finalmente o Instituto Camões e as instituições como a Embaixada têm projectos culturais mais ou menos similares aos do Centro Gulbenkian. Da parte da população portuguesa de França há uma expectativa quanto a tê-la em conta e não só aos franceses. F. B. — Qualquer organização tem o seu ciclos de vida, há de facto agora uma modernização nesta viragem de século e há capacidade para fazer um investimento, e isso também entusiasma as pessoas. O Instituto Camões dedica-se mais ao ensino da língua e o Centro tem uma tradição específica na biblioteca e nas edições. Quanto a concertos e exposições, possuímos um espaço com outras possibilidades. A minha perspectiva não é a da concorrência. O que faz sentido é existir uma complementaridade. Pela minha parte tenho sempre divulgado com antecedência às outras instituições o que faço aqui, e procuro evitar sobreposições de datas; espero que os outros tenham a mesma atitude. Seria demagógico dizer que a nossa programação se dirige ao grande público, porque temos uma sala com 180 lugares. Mas devo esclarecer o seguinte: a Fundação é de interesse público mas de direito privado. Não é constituída com fundos do contribuinte. A obrigação da Fundação (que tem feito muito Latitudes — O facto de a população portuguesa se não manifestar mais culturalmente é talvez porque não são propícios certos factores como os modelos que temos aqui e não haver informação do que se propõe fazer. F.B. — A nossa atitude é a de que toda a pessoa interessada na cultura portuguesa é bem vinda; tudo o que tenha qualidade e seja português ou seja relacionado com Portugal, inclusive feito por estrangeiros. Queremos ter boas relações com os nossos compatriotas que estão aqui. Hoje há aqui bons pintores de origem portuguesa como há em Portugal. Nós trabalhamos com toda a gente. É só uma questão de qualidade, não descriminamos ninguém. Há uma batalha a travar: melhorar as condições económicas e culturais da sociedade portuguesa... O nosso público é de franceses e portugueses residentes em França e penso que há uma mudança nesse público. Entre os luso-descendentes verifica-se uma evolução, há os que fizeram cursos universitários. E os que constatam que não conhecem aspectos essenciais da cultura portuguesa a pouco e pouco sentem necessidade de conhecer as suas origens e interessam-se pela cultura portuguesa. LATITUDES n° 8 - mai 2000 Latitudes - F. Bethencourt estudou a Inquisição portuguesa tendo publicado a obra “História das Inquisições, Portugal, Espanha e Itália”, quer em França quer em FRANCISCO BETHENCOURT Nascido em 1955 na Ilha da Madeira, obteve doutoramento no Instituto Europeu de Florença (1992) e é hoje professor agregado em ciências sociais na Universidade Nova de Lisboa. Depois de ter exercido os cargos de presidente do Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro e de director da Biblioteca Nacional de Lisboa, entre 1996 e 1998, foi nomeado director do Centro Cultural C. Gulbenkian de Paris em 1998. Publicou vários artigos e comunicações de sociologia histórica, uma obra sobre feitiçaria e nigromância no século XI, História das Inquisições ,Portugal, Espanha e Itália* e co-dirige uma História da Expansão Portuguesa em cinco volumes. * Edição portuguesa de Círculo dos Leitores, Lisboa, 1994; edição francesa de Fayard, Paris, 1995. Portugal. Uma tese apresentada em Florença, a que deve ter dedicado vários anos de trabalho de investigação. Como se explica que os Inquisidores que eram pessoas de alta cultura (bispos, teólogos, canonistas, etc.) tenham exercido uma tão severa repressão ideológica, diríamos agora, mas também económica, que hoje todos reconhecem ter prejudicado imenso o desenvolvimento da sociedade portuguesa? F. B. — O facto das pessoas serem cultas não significa que sejam tolerantes nem gentis. Para falar do fascismo português, não vamos dizer que as pessoas eram burras e ignorantes. Uma coisa não está ligada com a outra. É uma questão de valores. As pessoas podem ser incultas e ter uma atitude inteligente e tolerante em relação às outras. Podem ser cultas e ter uma atitude repressiva e intolerante. No caso da Inquisição as elites eclesiásticas daquele tempo em Portugal e em Espanha e também em Itália estavam envolvidas numa lógica repressiva e consideravam que uma sociedade só podia sobreviver e funcionar em função de valores 45 Francisco Bethencourt interpretados de maneira estritamente ortodoxa por uma Igreja que devia sindicar a toda a sociedade. Essa lógica repressiva afectou Portugal, Espanha e Itália. Podemos dizer que a sociedade portuguesa sofreu com isso porque se desenvolveu afastada dos grandes debates desde o século XVI até ao XVIII, debates sobre a liberdade de consciência, a tolerância, o livrepensamento, o iluminismo. Estes grandes debates europeus não foram seguidos de perto pela sociedade portuguesa, (enfim, algumas pessoas sempre foram tocadas por eles), embora não haja repressão que elimine a liberdade de pensamento. Mas não eram debates produtivos, não eram assumidos porque havia esse espírito de censura e de repressão. Isso afectou a sociedade portuguesa e permitiu a criação de um monopólio, uma visão estrita e ortodoxa do mundo, impedindo o desenvolvimento da liberdade da consciência e tolerância. Portanto, afectou o desenvolvimento dum novo sistema de valores 46 em Portugal, vitorioso na Europa a partir do século XVIII, que se vai desenvolver com altos e baixos até à actualidade. Nesse aspecto, Portugal teve problemas de desenvolvimento e inclusive criou-se uma cultura política de subserviência, de medo, de falta de afirmação e de falta de frontalidade que resultou dessa prática repressiva que durou séculos e afectou a sociedade portuguesa até há pouco tempo. Latitudes — Qual era o grau de integração na sociedade portuguesa das populações judaicas e cristãs- novas (falo no plural por terem origem diversa, uma camada mais antiga outra entrada no país no final do séc. XV fugida de Espanha). Constituiria ela uma ameaça à estabilidade do país, por conservar um projecto próprio enquanto grupo, para D. João III ter desencadeado tantos esforços para instituir o Tribunal do Santo Ofício? F.B.— Penso que esse é um problema de lógica do poder. Essas comunidades de origem judaica e muçulmana não constituíam um elemento de desequilíbrio ou de tensão social. Pelo contrário, a introdução da Inquisição criou mais tensões sociais do que aquelas que eventualmente ou teoricamente pretendia resolver. Penso que a introdução da Inquisição e a política repressiva que desenvolveu sistematicamente, de cidade em cidade, de vila em vila e de aldeia em aldeia - a Inquisição procedia de maneira muito sistemática e meticulosa, chegava a uma aldeia fazia vinte, trinta, quarenta processos e durante dois, três anos ficava ali a reprimir - introduzia uma grande tensão e desorganização social. Ela mesma era um elemento de desorganização social. O que mostra o meu livro é que a percepção das coisas deve ser invertida: a ideia antiga de que a Inquisição veio harmonizar o país é mentira. A Inquisição em muitos casos veio introduzir novas tensões. D. João III tomou essa decisão devido a uma lógica de poder, e de grupos interessados dentro da Igreja em criar o Tribunal da Inquisição. Depois, a partir daí, há um desenvolvimento dessa estrutura tentacular que se vai enraizar em todo o país, se vai estabelecer e manter. E há toda uma lógica repressiva que se desenvolve e se torna autónoma. É essa a lição da Inquisição: a partir do momento em que os meios repressivos se instalam, criam novas formas de reprodução, independentemente dos ambientes sociais se alterarem ou não. Há vários períodos em que a Inquisição lutou para se manter, como no reinado de D. João IV no período da Restauração. A guerra da Restauração é muito subsidiada pelos cristãos-novos, inclusive os que estão em Amesterdão, e são esses cristãos-novos de origem judaica que são reprimidos pela Inquisição. Esta vai perseguir vários banqueiros que emprestavam dinheiro a D. João IV. Mais um caso de perturbação social, económica, financeira e militar introduzida pela Inquisição. Latitudes — Mais recentemente, F. Bethencourt dirigiu conjuntamente LATITUDES n° 8 - mai 2000 com Kirti Chaudhuri uma “História da Expansão dos Portugueses” no mundo em vários tomos. Digamos que é um balanço à ideia de Império que acabou por fazer parte da consciência nacional. Que lição tirou daí quanto à dinâmica social portuguesa ? Aqui em França onde chegou (e chega) tanto português por achar o tal “império” incapaz de os aceitar, sobressai a noção de que se trata dum negócio de poderosos, enquanto às camadas populares, o fundo social da nação, o tal império escapa-lhes na prática. Como articula o historiador, este paralelismo? F. B. — O Império foi sempre constituído por pessoas de todas as origens sociais, mas é evidente que quem beneficiava mais do império eram as elites, nos séculos XV, XVI, XVII, os cavaleiros, os fidalgos. Isso não quer dizer que as outras camadas sociais não estivessem também envolvidas na expansão, inclusive o Império permitia nesse período (do século XV ao XVIII) uma mobilidade social que não existia no território continental e que lhe dava mais possibilidades, portanto, as pessoas também beneficiavam do Império. A grande lição do Império é que os portugueses sempre emigraram e transvazaram das fronteiras do Império, isto é os portugueses emigravam para a Índia, para a África, para o Brasil, mas sempre emigraram para fora das fronteiras do Império. Mesmo na Índia os portugueses iam para outros locais. Havia comunidades portuguesas no golfo de Bengala, em Macássar, isto é, em zonas fora do controle português. Existiam também na América espanhola. A grande ideia desta actualização da história da colonização portuguesa é que os LATITUDES n° 8 - mai 2000 portugueses sempre extravazaram as fronteiras do Império e realizaram-se noutros locais, em muitos casos integrando-se noutras comunidades mas muitas vezes mantendo a sua ligação com o país de origem. Portugal para manter uma identidade nacional não necessitava do Império. Esta capacidade de adaptação dos portugueses, é a grande lição que devemos tirar da descolonização. Muita gente antes do 25 de Abril achava que Portugal não sobrevivia sem o Império, sem as colónias e sobreviveu tranquilamente, sem as convulsões sequer que a França teve nos anos ‘60 com atentados e acções terroristas. Em Portugal não houve nada que se parecesse. Enquanto em França por altura da independência da Argélia, já existiam três ou quatro gerações de franceses instalados em África que não tinham já relações com o país de origem, a emigração portuguesa para África é dos anos 50 e 60. Quando se dá o 25 de Abril, era apenas uma geração que se achava lá e que mantinha relações com os familiares em Portugal. E puderam voltar porque tinham laços ainda frescos. Porque, ao fim de duas gerações, perde-se esse laço familiar e, no caso português, conse- guiram uma boa reintegração. Latitudes — A continuação da guerras da parte do governo português motivou uma radicalização das relações entre os diferentes povos e provocou o regresso massivo dos chamados “retornados”. Também se ocupam das consequências da descolonização e das guerras coloniais no vosso estudo? F. B. — O nosso estudo vai até 1998. Há portugueses que continuaram nos países africanos de língua oficial portuguesa, outros que querem voltar e investir. Há uma atracção muito grande nesses países, embora haja problemas de instabilidade política e militar, como em Angola, que não permite que se refaçam essas relações. Mas numa base completamente diferente, com países independentes em que os portugueses vão para lá como para o Brasil ou outros países. Não tinha qualquer cabimento prosseguir as guerras, porque todos os países europeus estavam a descolonizar desde o final dos anos ‘40. Salazar não só insistiu numa política colonial desfazada, fora do tempo quando começam as guerras em 1961, mas também insistir com a colonização nessa época não tinha sentido. O regime condenou-se a si próprio com tal opção Intérieur du Centre culturel C. Gulbenkian, Paris (exposition Paula Rego) 47