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Nº 06 – MAIO/2016
O MANDAMENTO DE AMAR AO PRÓXIMO COMO A SI MESMO: LIMITES,
POSSIBILIDADES E REFLEXÕES
Willibaldo Ruppenthal Neto1
RESUMO
O mandamento do amor ao próximo é elemento central na pregação de Jesus.
Ampliando e aprofundando a regra de ouro proclamada pelo judaísmo de seu tempo,
Jesus tornou o amor ao próximo como um mandamento ativo, que exige disposição,
vontade e principalmente ação. Desde a pregação de Jesus, porém, este
mandamento é objeto de reflexão e discussão, especialmente no que diz respeito
aos limites e possibilidades do mesmo. O presente artigo visa demonstrar a
essência do mandamento do amor ao próximo mediante uma breve reflexão.
Palavras-chave: Mandamento do amor; Pregação de Jesus; Ética cristã.
ABSTRACT
The commandment of love thy neighbour is central to Jesus’ preaching. Broadening
and deepening the golden rule proclaimed by the Judaism of his day, Jesus made
the love of thy neighbor as an active command, which requires disposal, will and
action. Since the preaching of Jesus, however, this commandment is the object of
reflection and discussion, especially with regard to it’s limits and possibilities. This
article seeks to demonstrate the essence of the commandment of love thy neighbor
by a brief reflection.
Key-words: Commandment of love; Jesus’ preaching; Christian ethics.
1
Graduando em Teologia pelas Faculdades Batista do Paraná (FABAPAR) e Graduando em
História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail para contato:
[email protected]
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INTRODUÇÃO
Segundo o teólogo alemão Rudolf Bultmann, “na fala de Jesus, a ocorrência
da palavra ‘amor’, e do mandamento do amor é curiosamente rara”, de tal forma
que, segundo o autor, aparece somente em dois casos: “no sermão da montanha na
forma da exigência do amor ao inimigo (Mt 5.43-48), e na resposta à pergunta pelo
maior mandamento”. Ora, compreende-se tal afirmação de Bultmann quando se
percebe que somente os evangelhos sinóticos foram utilizados no seu livro Jesus2,
origem desta citação. Para Bultmann, o Evangelho de João (onde a palavra amor
está mais presente) “seguramente não entra em cogitação como fonte da
proclamação de Jesus”3. Independente disto, uma crítica deve ser feita a Bultmann:
o valor de uma ideia não pode necessariamente ser medido pelo número de vezes
que uma palavra é utilizada.
Ao mesmo tempo que em alguns casos a repetição de uma palavra mostra
sua importância – tal como a palavra “alegria” na carta de Paulo aos Filipenses, por
exemplo –, há casos em que ideias são transmitidas sem que com isto a respectiva
palavra seja utilizada: é clássico o exemplo da “Trindade”, palavra cunhada por
Tertuliano para expressar uma realidade presente no Novo Testamento sem que
esta ocorresse no mesmo. A pregação de Jesus, apesar de serem raras as vezes
que ele utiliza esta palavra nos Sinóticos, estava fortemente direcionada para o amor
ao próximo: na capacidade para o dom (Mt 5.42), na disposição para o serviço (Mc
10.42-45; Lc 22.24-27), em diversos atos de amor (Mt 25.31-46)4, ou mesmo no
perdão (Mt 6.14-15; 18.21-22; Mc 11.25-26; Lc 17.3-4), o amor ao próximo estava
implícito. Quando Jesus manda que o jovem rico entregue o que possui aos pobres
(Mt 19.16-30; Mc 10.17-31; Lc 6.37; 18.18-30), por exemplo, demonstra que o amor
2
3
4
BULTMANN, 2005.
BULTMANN, 2005, p. 30.
JEREMIAS, 1984, p. 323.
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ao próximo, de forma prática, estava no centro de sua pregação. É claro, portanto, o
mandamento do amor ao próximo não somente na pregação de Jesus nos
sinópticos, como em todo o Novo Testamento5 e no cristianismo ao longo do tempo.
UMA INOVAÇÃO DE JESUS?
Apesar de Jesus ter pregado o amor de forma mais clara do que era o
costume no judaísmo, o amor ao próximo como mandamento já estava presente de
forma clara no Antigo Testamento. Em Levítico duas vezes é ordenado que se ame
ao próximo como a si mesmo (Lv 19.18,34). O texto de Levítico 19.18-34, no qual o
mandamento do amor ao próximo serve como uma espécie de moldura, era até
mesmo entendido como um resumo da Lei. A interpretação deste texto apontava,
portanto, para a possibilidade de a Lei ser entendida como um conjunto de preceitos
que transmitiam uma regra maior e mais profunda.
O grande fariseu Hillel, porém, foi o responsável por levar a interpretação
deste texto adiante6, aplicando o princípio de “não fazer o mal que não se deseja a si
mesmo” como o resumo de toda a Lei. Ousadamente, Hillel declarou a um gentio
que pretendia tornar-se judeu que toda a Lei poderia ser resumida de forma breve,
tal como foi preservado no 31º Shabbat do Talmude: “Tudo o que te parece nocivo a
ti, não o faças a outrem; isto é toda a Torá. Todo o resto não passa de comentário.
Vai e aprende”7. Com esta afirmação, Hillel indica justamente que a Lei pode ser
resumida à chamada “regra de ouro”, o princípio de não se realizar ao outro o mal
que não se quer sofrer8. O “amor ao próximo”, nesta perspectiva do judaísmo, seria
justamente não cometer o mal ao próximo.
5
6
7
8
Cf. FURNISH, 1982.
SCHUBERT, 1979, p. 40.
JEREMIAS, 1984, p. 321.
A regra de ouro esteve presente nos ensinamentos de diversas religiões ao longo da história. No
budismo, é ensinado que “não fira ao outro de modo que não queira ser ferido” (Udanavarga,
5.18). No confucionismo, a regra de ouro é um guia ético (Analectos, 6.28; 15.23). Apesar da
amplitude de sua presença no mundo, as semelhanças podem levar a uma percepção
equivocada, uma vez que as diferenças devem ser percebidas, a exemplo das diferenças de
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Ora, tanto em Marcos quanto em Lucas parece haver uma concordância entre
Jesus e os representantes do judaísmo quanto aos mandamentos mais importantes.
Em Marcos (12.28-34), Jesus apresenta os dois grandes mandamentos como sendo
o amor a Deus (Dt 6.4-5) e o amor ao próximo (Lv 19.18), e o escriba concorda com
ele. Em Lucas (10.25-29), é o mestre da Lei que apresenta os dois mandamentos, e
Jesus concorda com ele9. Segundo E. P. Sanders, os evangelistas “refletem o fato
de que nenhum judeu inteligente teria discordado, e muitos teriam dado
precisamente a mesma resposta”10.
Surge aqui um problema: se o amor ao próximo estava tão destacado no meio
judaico no período de Jesus, ao ponto de ser o posicionamento dos escribas e
mestres da Lei, como Jesus pôde afirmar que estava dando a seus discípulos um
“novo mandamento” (Jo 13.34)? A afirmação de Jesus do “novo mandamento” se
justifica pelo fato de que Jesus inovou tanto na extensão quanto na dimensão deste
mandamento11. Não se pode comparar o peso do mandamento de “amar ao
próximo” no Antigo Testamento e no núcleo do cristianismo12. A distância é grande,
mesmo que tentem relativizá-la.
O mandamento de “amar ao próximo” foi completamente transformado por
Jesus quando ele demonstrou que o amor não deve conhecer limites ou ser de
forma passiva. Jesus foi, portanto, muito para além de Hillel, transformando a regra
de ouro, colocando-a em sentido positivo: não basta deixar de fazer o mal para o
próximo, mas é necessário que o bem seja realizado. A diferença é marcante, como
bem destacou Joachim Jeremias:
[…] a Regra de Ouro é expressa em forma afirmativa por Jesus e em
forma negativa por Hillel. Notável diferença. Hillel diz: “Guarda-te de
prejudicar a teu próximo”; e Jesus: “O amor que desejarias receber,
9
10
11
12
ênfase ou mesmo seu uso como conselho ao invés de regra (WATTLES, 1987, p. 106). Sobre a
regra de ouro, Cf. SPOONER, 1914. Sobre as diferenças de nível entre as regras de ouro, cf.
WATTLES, 1987.
SANDERS, 1990, p. 17.
SANDERS, 1990, p. 17.
JEREMIAS, 1984, p. 323-324.
MARÍAS, 2000, p. 87.
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mostra-o para com teu próximo”. Oferecer amor é bem mais do que
deixar de prejudicar.13
A ideia de que não se deve somente deixar de fazer o mal, mas também
realizar o bem certamente já estava presente no Antigo Testamento. Na
Septuaginta, temos esta ideia bastante clara. Tobit, por exemplo, pressentindo sua
morte, aconselha seu filho Tobias não somente a guardar-se de “jamais fazer a
outrem o que não quererias que te fosse feito” (Tb 4.16)14, mas também a ajudar os
necessitados, seja pela esmola (4.7-12), ou pelo alimento (4.17-18) e roupas (4.17).
Estas ações de bondade, porém, não alcançam a dimensão e profundidade do amor
cristão, uma vez que são restritas: “mas não comas nem bebas na companhia dos
pecadores” (Tb 4.18b). A misericórdia é demonstrada ao pobre, mas não ao
pecador.
Somente com Jesus o mandamento é modificado a partir da transformação da
própria ideia de “amor”. Há uma conexão inegável e historicamente reconhecida
entre a regra de ouro e o mandamento do amor ao próximo15, porém há um limite
nesta relação, uma vez que o mandamento de Cristo vai muito para além de um
preceito moral. Certamente toda a Lei se resume ao mandamento do amor ao
próximo (Gl 5.14), porém o amor exigido pelo mandamento de Cristo vai para além
do respeito exigido pelo senso ético: o mais importante não é a transformação do
modo negativo da regra de ouro para seu sentido positivo 16 mas uma nova forma de
13
14
15
16
JEREMIAS, 1988, p. 8-9.
Há textos judaicos importantes que trazem a regra de ouro, a exemplo de Fílon de Alexandria
(Hypothetica 7.6). Em uma versão do Testamento de Naftali (pseudoepígrafo do período
intertestamentário) seguindo MSS do século XIII, pode-se ler “este não deve fazer ao seu próximo
o que não deseja para si mesmo” (KING, 1928, p. 270).
Cf. STANGLIN, 2005.
Havia formas “positivas” da regra de ouro no judaísmo? Há quem defenda que sim (KING, 1928).
Vejamos alguns exemplos no Talmude Babilônico: “Assim como um homem cuida de sua própria
honra, deve cuidar da honra de seu próximo” (Abot de Rabbi Nathan XV.1); “Que a propriedade de
seu próximo lhe seja preciosa a ti como é a sua própria” (Abot II.16). Apesar de estas afirmações
serem apontadas como “positivas” (KING, 1928, p. 272), não o são: o cuidado da honra, assim
como a valorização da propriedade implicam diretamente não em ações, mas em cuidados – não
se deve falar mal de seu próximo, prejudicando sua honra, nem usurpar sua propriedade: “assim
como ele não deseja que sua honra seja mal falada, que deseje não espalhar palavras negativas
sobre a honra de seu próximo” (Abot XV.1). Também o texto do Eclesiástico (31.15) apontado por
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“amor”17, uma vez que este amor não se dá baseado na justiça, mas na misericórdia,
como bem apontou A. B. Bruce: “A regra negativa nos confina à região da justiça; a
positiva nos leva à região da generosidade ou graça, e então inclui ambas, Lei e
profetas”18. Esta “graça” é evidenciada pela inovação do perdão19, elemento
essencial nesta nova forma de amor pregada por Jesus.
QUE TIPO DE AMOR?
Uma pergunta que pode surgir sobre o mandamento do amor ao próximo é
“que tipo de amor é este?”. Para responder esta questão, o livro Os quatro amores
de C. S. Lewis20 se faz muito útil. Neste livro, o autor aponta para quatro tipos
específicos de amor: 1) a afeição, o amor que as mães têm pelos seus filhos, um
amor natural que exige quase nada de quem é amado; 2) a amizade, uma forma de
amor pouco natural gerada pela cooperação e pela confiança; 3) o eros, o amor
arrebatador entre os amantes, a paixão; 4) a caridade, maior dentre os amores, é
total doação, sendo aplicável de modo completo somente a Deus. É o amor caridade
17
18
19
20
King (1928, 272) não é positivo, mas negativo, apontando para que as atitudes sejam contidas
pela reflexão e pela consciência da reciprocidade. De qualquer forma, não se pode exagerar a
importância da transformação da fórmula negativa em positiva, tal como lembra E. P. Sanders
(SANDERS, 1990, p. 14).
Certamente há debate quanto à distância entre a regra de ouro negativa e o mandamento de
Jesus do amor ao próximo. Enquanto diversos autores, tais como Gerhard Kittel defenderam que
“a fórmula negativa judaica é, certamente, algo diferente da colocação positiva de Jesus” (KITTEL
apud KING, 1928, p. 269), há quem aproxime as duas sentenças. Uma posição bastante razoável
é a de E. P. Sanders, que destaca que a unicidade da mensagem de Jesus “ame o próximo” não
está em esta ser um mandamento, mas no sentido de amor ao qual se refere. O conselho de
Epicteto para que o escravo ame seu mestre que lhe açoita, possui o sentido de prudência ou
indiferença para com as adversidades. O mandamento de Jesus, porém, deve ser entendido a
partir do Reino de Deus, que transforma as relações humanas completamente. (SANDERS, 1990,
p. 15).
BRUCE apud KING, 1928, p. 269. Cf. Mt 7.12; 22.40.
O Antigo Testamento e o judaísmo em geral seguiam a lei de Talião, “olho por olho, dente por
dente”. Cf. Êx 21.24; Lv 24.20. Era costume se ensinar que o bem deveria ser praticado a todos,
com exceção dos pecadores e inimigos. Havia, porém, aqueles como Simão, o justo, que
ensinavam a “bondade imparcial” (Mishná, Pirke Abot, I.2, Cf. MANSON, 2010, p. 46).
LEWIS, 2005b.
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o tipo de amor do cristão para com seu próximo21. É esta forma de amor que Deus
espera de quem lhe obedece. Segundo Lewis, esta última forma de amor, é um
Amor-Doação, uma vez que “em Deus não há necessidade a ser preenchida, mas
somente abundância querendo doar-se”22. Não se trata de algo, portanto, que tem
alguma vantagem para quem ama, mas é completamente voltado ao objeto amado.
É total entrega.
Uma forma de entender-se uma ideia é a partir de seu contrário. No caso do
amor a palavra mais recorrentemente apontada como seu contrário é o ódio.
Teologicamente é possível valer-se do ódio como oposto do amor? Bultmann
procede desta maneira: “Quem não ama, quem é indiferente, está preso a seus
sentimentos naturais, a seu eu natural, encontra-se no ódio”23. Outra possibilidade
de contrário ao amor, é a indiferença, sendo que a ideia de “ódio” de Bultmann
claramente se relaciona com esta ideia. Se observamos as Escrituras, percebemos
que a ideia de amor transmitida e exigida não é uma ideia de amor em sentido
platônico, abstrato, mas é algo positivo, ativo, de tal forma que se somos indiferentes
a alguém, se não fazemos o bem que sabemos que devemos fazer, nisto pecamos
(Tg 4.17), ou seja, não amamos esta pessoa – e, talvez possa mesmo se afirmar
com Bultmann, que de certa forma a “odiamos”, desde que se compreenda o ódio
como o seu contrário: agir com negatividade, ou mesmo não agir, não ajudar ao
próximo, estar de certa forma inativo para o outro.
AMAR A SI MESMO
Será que para amarmos ao próximo é necessário que amemos a nós
mesmos? Muitos defendem que o mandamento do “amar ao próximo como a si
21
22
23
Julián Marías lembra que das três principais palavras gregas para o amor – éros, philía e ágape,
“o Novo Testamento usa principalmente a última” (MARÍAS, 2000, p. 87). Se não fosse os
problemas decorrentes da alteração da palavra “caridade”, distante do termo latino caritas, se
poderia reconhecer nesta palavra o amor cristão de modo mais direto.
LEWIS, 2005b, p. 175.
BULTMANN, 2005, p. 126.
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mesmo” implica na busca do amor-próprio. Segundo Bultmann, porém, o amor ao
próximo não deve ser precedido por uma busca do amor próprio, uma vez que o
sentido da ordem é justamente o contrário: a negação de si mesmo na entrega para
o outro. Um posicionamento assim seria demasiado humanista e pouco cristão, uma
vez que o cristianismo é uma recusa do homem para se voltar a Deus. A frase de
Jesus, portanto, pode ser compreendida mais profundamente se compreendermos
que “o amor-próprio seria pressuposto”, mas pressuposto “não como algo que o ser
humano ainda tivesse de aprender, como algo que necessite ser exigido
expressamente dele, e sim como a atitude do ser humano natural que justamente
precisa ser subjugada”24. Esta ideia é proveniente de Kierkegaard, que Bultmann cita
diretamente: “Se se deve amar o próximo como a si mesmo, então o mandamento
arranca, como que com uma gazua, o fecho do egoísmo, e com isso arrebata dele o
homem”25.
O amor próprio deve ser contido e anulado até mesmo pelo fato de que pode
ser confundido com o amor ao próximo, uma vez que se este for fundado em
sentimentos de simpatia, ou mesmo no afeto, será na verdade uma forma diferente
de amor-próprio, uma vez que se trata de “um amor de predileção, e o critério para a
predileção e a seleção é o eu”26. Nosso egoísmo pode se fantasiar como altruísmo,
enganando a nós mesmos.
OS LIMITES DO AMOR AO PRÓXIMO
Além de se apresentar como altruísmo, o amor próprio também pode levar o
amor ao próximo a ser reduzido e limitado. Naturalmente, amando a nós mesmos,
buscamos evitar amarmos ao próximo, ou, pelo menos, buscamos amar o menos
possível. Amar é expor-se, é abrir o coração e a vida ao perigo. Freud expressou
bem o sentimento de desconforto natural que é gerado perante esta exigência cristã:
24
25
26
BULTMANN, 2005, p. 125.
KIERKEGAARD apud BULTMANN, 2005, p. 124.
BULTMANN, 2005, p. 126.
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“Por que deveríamos fazer isso? Em que nos ajudará? Sobretudo, como levar isso a
cabo? Como nos será possível? Meu amor é algo precioso para mim, algo que não
posso despender irresponsavelmente”27. Naturalmente, portanto, rejeitamos e
limitamos o amor ao próximo, reduzindo o máximo possível quem consideramos
nosso próximo.
O texto mais importante quanto aos limites do amor ao próximo é o texto de
Lucas 10.25-37, onde Jesus relata a parábola conhecida popularmente como “a
parábola do bom samaritano”. Joachim Jeremias, autoridade no que diz respeito à
pregação de Jesus e, especialmente, as parábolas de Jesus, indica algumas
questões importantes sobre este evento em seu livro As parábolas de Jesus28.
Jeremias lembra que no contexto judaico do tempo de Jesus, ninguém discutia que
se deveria amar as pessoas, mas estava sempre em questão quais seriam as
exceções para este amor. Cada grupo judaico tinha sua exceção: os fariseus
excluíam de seu amor os não-fariseus; os essênios excluíam os “filhos das trevas”;
os rabinos excluíam quem considerassem heréticos e apóstatas29. Assim, o texto de
Lucas deve ser lido a partir de Mateus 5.43: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu
próximo e odiarás30 o teu inimigo”. Quando o intérprete da Lei pergunta “quem é o
meu próximo?” (Lc 10.29), sua pergunta tem o sentido de “até onde vai a minha
obrigação?”31. A história do homem que é roubado e espancado é marcada pelo tipo
da pessoa que lhe presta ajuda: um samaritano. Não é nenhuma novidade que
27
28
29
30
31
FREUD, 2011, p. 54.
JEREMIAS, 2007.
Havia quem defendesse que a bondade deveria ser direciona aos “irmãos” israelitas. Acontece,
porém, que enquanto Lv 19.18 se referia ao amor para com outro israelita, Lv 19.34 se refere aos
estrangeiros. Cabe lembrar que Jesus aponta os samaritanos como “próximos” em Lucas 10 para
contrariar a visão vigente. Sobre a identificação dos judeus como “irmãos” e “vizinhos”, Cf.
MANSON, 2010, p. 16-17.
A palavra “odiar”, apesar de seguir adequadamente o texto grego, não transmite a ideia judaica.
Joachim Jeremias, estudioso que buscou as origens aramaicas dos Evangelhos, explicou que
neste caso, deve-se ter em mente que “nas línguas semitas, a parte negativa é com frequência
nada mais do que a negação da positiva” (JEREMIAS, 1984, p. 324, nota 44), de tal forma que o
ditado judaico deveria ser traduzido como “Tu deves amar o teu compatriota, (mas) tu não
precisas amar o teu adversário” (JEREMIAS, 1984, p. 324, nota 44).
JEREMIAS, 2007, p. 202.
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“reinava, de ambas as partes, ódio irreconciliável”32 entre samaritanos e judeus. O
que deve ser notado com maior atenção, porém, é o desfecho do relato: após contar
a história, Jesus não pergunta pelo objeto do amor, tal como o intérprete da Lei
(“quem é o meu próximo?”), mas pergunta pelo sujeito do amor: “Qual destes três te
parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?” (Lc
10.36). A pergunta de Jesus mostra que o grande mestre não estava preocupado
somente em mostrar o alcance do conceito de “próximo” no mandamento do amor,
mas justamente apontar para uma reflexão interna do intérprete da Lei se ele de fato
está amando as pessoas. Jesus não quis mostrar que a Lei nos obriga a amarmos
até mesmo os samaritanos – na parábola o samaritano não é o objeto de amor, mas
seu agente! –, mas quis demonstrar que talvez “até mesmo um samaritano” esteja
vivendo a Lei com mais intensidade que o “intérprete”. Diante de um questionamento
teórico de interpretação, Jesus mostra a importância prática e viva de sua
mensagem: “Vai e procede tu de igual modo” (Lc 10.37). Não basta interpretar, é
necessário viver. É por viver o que ensinava que Jesus ensinava “como quem tem
autoridade, e não como os mestres da Lei” (Mt 7.29).
A POSSIBILIDADE DE AMAR AO PRÓXIMO
Freud, o pai da psicanálise, aponta mediante sua interpretação psicanalítica
que o mandamento do amor ao próximo como a si mesmo é simplesmente
impossível33. De fato, se compreendermos o amor como um sentimento ou um
elemento volitivo, tal como o percebia Freud, trata-se de algo impossível. Ninguém
pode gerar em si mesmo um sentimento pela simples vontade de o fazer. A
possibilidade de se tentar isto, porém, nos mostra que a vontade e o sentimento não
são, portanto, idênticos. Cabe compreender-se, portanto, que o amor a Deus e ao
próximo exigidos pelos mandamentos cristãos não é referente ao sentimento, mas à
32
33
JEREMIAS, 2007, p. 203.
FREUD, 2011, p. 91. Sobre a crítica freudiana ao mandamento do amor ao próximo, cf.
WALLWORK, 1982.
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vontade, tal como destacou C. S. Lewis: “O amor cristão, seja para com Deus, seja
para com os homens, é um assunto da vontade”34. Sendo assunto da vontade, e não
do sentimento, torna-se então possível, como destacou Bultmann: “Somente quando
o amor é concebido como um sentimento torna-se absurdo ordenar que se ame; o
mandamento do amor mostra que o amor é entendido como atitude da vontade” 35.
Também Justo L. González aponta o mesmo: “Como sentimento, é impossível fazer
do amor um mandamento; mas como ação é possível” 36. Sendo assim, o
mandamento do amor ao próximo “não se refere principalmente a ter sentimentos
positivos sobre o próximo, mas antes agir em amor mesmo quando não existe o
sentimento”37.
Desta forma, pode-se entender que o amor cristão é referente à atitude38, à
ação: “se nos esforçamos para obedecer à sua vontade, estamos cumprindo o
mandamento”39. Desta forma, nota-se que neste ponto Friedrich Nietzsche, filósofo
crítico do cristianismo, acertou em cheio quando afirmou que a mensagem cristã
original é “não uma fé, mas uma ação”40. Mas qual é, então, a medida deste
esforço? A resposta para esta questão está justamente no mandamento do amor a
Deus, que não é um complemento ao mandamento do amor ao próximo, mas
justamente o que lhe dá significação.
AMAR AO PRÓXIMO E AMAR A DEUS
Certamente amar a Deus e amar ao próximo não é a mesma coisa, tal como
indiciou Bultmann: “os dois mandamentos, amar a Deus e amar o próximo, não são
34
35
36
37
38
39
40
LEWIS, 2005a, p. 177.
BULTMANN, 2005, p. 126.
GONZÁLEZ, 2009, p. 21.
GONZÁLEZ, 2009, p. 21.
Immanuel Kant já havia destacado isto em seu livro A metafísica dos costumes: “Neste contexto
[de dever], todavia o amor não é para ser entendido como sentimento (sensação) [...] tem, ao
contrário, que ser concebido como a máxima da benevolência (como prático), que resulta em
beneficência” (KANT, 2003, p. 292).
LEWIS, 2005a, p. 177.
NIETZSCHE, 1988, p. 75.
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idênticos, como se amar o próximo fosse, sem mais nem menos, amor a Deus” 41. Se
fossem a mesma coisa, Jesus não precisaria ter ensinado ambos os mandamentos,
assim como não deveria ter se referido a estes como “dois”42. Os dois
mandamentos, porém, são não somente relacionados como necessariamente
dependentes: “assim como só consigo amar o próximo se entrego minha vontade
inteiramente à vontade de Deus, assim só consigo amar a Deus querendo o que ele
quer, ou seja, amando realmente o próximo”43. Não é possível o amor a Deus sem o
amor ao próximo, pois “aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar
a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4.20). Da mesma forma que não se pode amar o
próximo sem amar a Deus, pois “o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é
nascido de Deus e conhece a Deus” (1 Jo 4.7). Amar ao próximo, portanto, é
resultado direto do amor a Deus, mediante o reconhecimento de seu amor por nós.
Amamos, então, “porque ele nos amou primeiro” (1 Jo 4.19).
Amar ao próximo não é uma atitude decorrente somente do amor a Deus,
mas é também uma forma de imitarmos o próprio Deus. Isto fica claro pelo
complemento do mandamento do amor ao próximo no Sermão do Monte: “Portanto,
sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.” (Mt 5.48). Esta “perfeição”
requerida pode ser melhor compreendida a partir de uma tradução mais correta do
ditado judaico44, presente em Lucas: “Sede misericordiosos, como também é
misericordioso vosso Pai” (Lc 6.36). Não se trata, portanto, de um ideal grego e
abstrato de perfeição, mas carrega consigo uma ideia judaica e prática de vida
41
42
43
44
BULTMANN, 2005, p. 122.
João trabalha sobre a perspectiva de apenas um mandamento: Jesus ensina um mandamento
novo (Jo 13.34), que é o amor ao próximo, de modo que “temos, da parte dele, este mandamento:
que aquele que ama a Deus ame também a seu irmão” (1 Jo 4.21).
BULTMANN, 2005, p. 123.
Jeremias demonstrou que ambos os textos se referem a um ditado judaico amplamente conhecido
no tempo de Jesus (Targum de Jerusalém I Lev. 22.28 par. J. Ber. 9c 21s; j. Meg. 75c 12, Cf.
JEREMIAS, 1984, p. 322, nota 39). Apesar de Bultmann trabalhar sobre uma perspectiva
diferente, segundo a qual o texto de Mateus seria mais antigo que o de Lucas e mais próximo do
original, avisa seus leitores que, sendo uma tradução de algo dito em aramaico e não em grego,
deve-se tomar o cuidado para “não introduzir nela o conceito grego de perfeição” (BULTMANN,
2005, p. 127).
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íntegra, de amor em sentido prático, da misericórdia como reflexo direto de Deus na
vida do crente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto não teve a pretensão de ser uma exposição carregada de
referências e material bibliográfico. Trata-se de um trabalho teológico pouco
científico45, porém tal caráter se dá justamente pelo objeto estudado. A parábola do
bom samaritano enquanto resposta à interrogação de um “teólogo estudado” a
Jesus sobre “quem é seu próximo”, indica, tal como bem apontou Joachim Jeremias,
que “todo conhecimento teológico de nada serve, se o amor para com Deus e para
com o próximo não determinar a direção da vida”46. À uma pergunta teórica e
teológica, Jesus traz uma resposta completamente prática e concreta. Não se
poderia, portanto, trabalhar de modo demasiadamente abstrato e distante uma
questão tão pessoal e existencial. Certamente trabalhos exegéticos dos textos de
Mateus 5 e Lucas 10 acrescentariam muito à discussão, porém uma reflexão mais
livre, menos científica e mais vital se fez necessária pelo próprio tema. Não se
pretende com este texto também esgotar a questão, senão gerar uma reflexão no
leitor a partir da palavra que melhor expressa humanamente a pessoa de Deus, o
amor.
45
46
Este estudo é resultado do estudo preparatório para uma pregação aos adolescentes
(CrossTeens) da Igreja Batista em Lindóia (Curitiba, PR), ministrada no dia 29 de agosto de 2015.
JEREMIAS, 2007, p. 202.
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