A ORIGEM DA CRÍTICA GENÉTICA Márcia Edlene Mauriz Lima1 A origem da crítica genética é francesa e deu-se em 1968, quando Louis Hay estimulou o Centre National de La Recherche Scientifique, de Paris, a criar uma equipe de pesquisadores, germanistas ou de origem alemã. De acordo com Cecília Almeida Salles, Crítica genética: uma introdução, eles tinham o fito de organizar os manuscritos do poeta alemão Heinrich Heine, que na época, chegaram à Biblioteca Nacional. Os pesquisadores do manuscrito de Heinrich Heine passaram por dificuldades, visto ainda não ter desenvolvido uma metodologia para trabalhar com os documentos autógrafos. Mais tarde, juntamente com os pesquisadores dos acervos dos escritores franceses (Flaubert, Zola, Proust e Sartre), foi elaborado um projeto, coordenado por Louis Hay, 1982, para a criação de um laboratório próprio, o Institut de Textes et Manuscrits Modernes (ITEM). Conforme o fundador do ITEM, a crítica genética começou a se desenvolver no início dos anos de 1970, quando eram discutidas as questões relacionadas ao texto e à sua gênese, produção textual e sujeito da escritura. Nesse contexto, a crítica genética focou-se no estudo do manuscrito autógrafo, permitindo a reconstituição da gênese dos escritos. O geneticista destaca que “para seguir o caminho da crítica genética, é necessário passar primeiramente pelo manuscrito, em seguida, pela escritura, antes de reencontrar o texto ao final de uma abordagem nova”,2. Ainda sobre o nascimento da crítica genética, Grésillon diz que esta veio ocupar um novo lugar na pesquisa literária francesa, na década de 1970, indo de encontro à fixidez do estruturalismo, embora tenha herdado deste os métodos de análise e as reflexões sobre a textualidade. Essa nova visão, para a geneticista, está em uma escolha: “[...] as da produção sobre o produto, da escritura sobre o escrito, da textualização sobre o texto [...]”.3 No que tange à visão de Willemart,4 quanto ao histórico do seu advento, este ocorreu de maneira particular nos diferentes países: na Alemanha, na França e no Brasil. Segundo 1 2 HAY, Louis. A literatura sai dos arquivos. In: SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Mello (Org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 66. 3 GRÉSILLON, Almuth. Elementos da crítica genética: ler os manuscritos modernos. Tradução Cristina de Campos Velho Bick et al. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 19. esse pesquisador, alguns fatores contribuíram para o aparecimento desta especificidade: os escritores-autores, os críticos, os arquivistas e o contexto político. Para o autor, a crítica genética despontou, primeiramente, na Alemanha com Novalis, Goethe e Schlegel, que manifestaram o desejo de entrar no “atelier da escritura”. 5 De certa forma, essa inquietação dos escritores modernos com a gênese textual abriu caminhos para o nascimento dos departamentos e dos museus de literatura nas universidades. O grupo da França, no entanto, sob a coordenação de Hay, mostrou que a crítica genética não rompeu com a erudição do discurso filológico, representado por Goethe, Schille e Schlegel. Acrescenta ainda o teórico que os escritores brasileiros também tinham vontade de entrar no “ateliê da escritura”, assim como os românticos alemães. As cartas dos escritores, preservadas, são documentos que atestam tal desejo. No entanto, eles próprios não costumavam guardar os seus manuscritos. Assim, desenhar o quadro do surgimento da crítica genética, tal como foi na França, é apontar os primeiros passos do trabalho com o manuscrito. 1 A CRÍTICA GENÉTICA NO BRASIL No Brasil, esta ciência foi introduzida em 1985 pelo próprio Willemart, quando da realização do I Colóquio de Crítica Textual: o Manuscrito Moderno e as Edições, na Universidade de São Paulo – um projeto idealizado pelo pesquisador. Nesse evento, também, foi criada a Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML), responsável pela publicação da revista Manuscrítica, desde 1990, destinada à divulgação dos estudos em crítica genética. Em seguida, fundou, junto com outros professores, na USP, o Laboratório do Manuscrito Literário e o Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética (NAPCG). O NAPCG congrega as equipes da PUC-SP, da Universidade Federal de Espírito Santo e as cinco equipes da USP, duas das quais são do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e três do departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Uma das equipes de pesquisa do IEB está centrada em acervos de escritores. 4 WILLEMART, Philippe. Crítica genética e história literária. In: ___. Manuscrítica. n. 10. São Paulo: Annablume, 2001. 173. 5 Ibid. Willemart entrou em contato com a crítica genética em 1982, no Pós-Doutorado, na França, quando lhe foram oferecidos pelo seu orientador os manuscritos de Gustave Flaubert. Adepto do estudo sobre psicanálise e literatura, entendeu que era possível estudar o funcionamento do inconsciente por intermédio do manuscrito. Para o geneticista, o crescimento da pesquisa em crítica genética no Brasil tem sido acentuado. A proposta já conta com vários pesquisadores, distribuídos em grupos acadêmicos, dentre os quais os mais representativos são: o da Universidade de São Paulo, que é o primogênito; o da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o da Universidade Federal do Espírito Santo, o da Universidade Federal de Minas Gerais, o da Universidade Federal da Paraíba, o da Universidade Federal da Bahia, o da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e o da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sem esquecer a Fundação Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Na perspectiva de Salles, a crítica genética não é a única disciplina a estudar os manuscritos, mas também a filologia e a edótica. No entanto, é com aquela que são estabelecidas as relações entre as disciplinas afins, a edição crítica e a edição genética, procurando elucidar, à luz de uma teoria, os “manuscritos modernos”. A autora, ao discutir sobre a origem da crítica genética, sugere que, para compreendê-la, é necessário saber sobre a sua história e, principalmente, definir seu conceito. Assim, crítica genética, na sua concepção teórica, é uma ciência nova que “[...] veio com um forte desejo de penetrar na razão do processo criativo e encontra-se, certamente, em pleno estado de metabolismo e crescimento”.6 Além dessa conceituação no campo de estudos sobre o processo criativo, a crítica genética ampliou seu espaço de atuação que definiu uma outra acepção. Um dos adeptos desse novo conceito é de Willemart, quando diz que: [...] a crítica genética abrange desde o universo mental do escritor até as marginalias dos livros lidos, sua correspondência passiva e ativa, os livros consultados e os estudos de exogênese em geral; em aval, a crítica genética estuda acabamento por outros da obra inacabada (a obra de Marcel Proust terminada por Roberto, seu irmão), as encenações diversas de uma peça de teatro ou as apresentações de uma mesma partitura musical, as ‘edições’ sucessivas de um texto ou de um quadro pelo autor.7 6 SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: uma introdução, fundamento dos estudos genéticos sobre os manuscritos literários. São Paulo: EDUC, 1992. p. 13. 7 WILLEMART, Philippe. Crítica genética e história literária. In: ___. Manuscrítica. n. 10. São Paulo: ANNABLUME, 2001. 167. Com essa visão da crítica genética, o autor associa aos geneticistas, os arquivistas, os filólogos, os editores críticos, os bibliotecários dos acervos, os codicologistas, os críticos literários, passando todos estes a fazer parte do amplo campo de estudos aberto pela gênese das artes. Assim, continua Willemart “[...] o olhar do pesquisador sai do foco do produto acabado para o processo que inclui esse produto considerado como uma das versões”.8 A partir desse deslocamento, foram criados novos laços com outros campos do saber que giram em torno do manuscrito e do texto: a filologia, a codicologia, a leitura ótica, a constituição do papel e da tinta, a teoria literária, a história literária, a linguística e estilística. Esses saberes devem ser levados em consideração no momento de uma análise genética. REFERÊNCIAS GRÉSILLON, Almuth. Elementos da crítica genética: ler os manuscritos modernos. Tradução Cristina de Campos Velho Bick et al. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 19. HAY, Louis. A literatura sai dos arquivos. In: SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Mello (Org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 66. PINO, Claudia Consuelo Amigo. A escritura da ficção e a ficção da escritura. 2001. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências humanas – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: uma introdução, fundamento dos estudos genéticos sobre os manuscritos literários. São Paulo: EDUC, 1992. p. 13. WILLEMART, Philippe. Crítica genética e história literária. In: ___. Manuscrítica. n. 10. São Paulo: ANNABLUME, 2001. 167. 8 Ibid., p. 168.