PRIMEIRA PARTE CAPÍTULO I O BUDISMO VISTO DO OCIDENTE Cada vez que o pensamento do Ocidente se vê enredado em contradições, perguntando-se para onde o leva a ciência, ele se volta para a Índia, mãe das mitologias e das disciplinas espirituais. Cahiers du Sud, 1940 Filosofia para uns, religião para outros – para os que o praticam no cotidiano –, o budismo é antes de mais nada uma maneira de apreender o mundo, um jeito de ser ou de vir a ser. Sua simplicidade aparente nos atrai quando o descobrimos em suas terras, a lógica de sua abordagem nos seduz, as múltiplas facetas de sua expressão artística nos fascinam. Basta cruzarmos ou encontrarmos com algumas de suas testemunhas de hoje para nosso olhar se fixar e nossa visão se alargar. Uma vereda então se desenha, mas compete a cada um deixá-la passar ou tomá-la. Já na Antigüidade, os caminhos do Oriente e do Ocidente tinham-se aproximado brevemente – brevemente demais, talvez, para se compreenderem ou se avaliarem. Pedras e fragmentos de escritos o atestam, não bastando contudo para dar uma visão do conjunto. Decerto se podem perceber sobre certos rostos ou no pregueado do traje das primeiras efígies conhecidas do Iluminado (Buda) – as de Gandhara – ecos de escultura grega, como na Perguntas do rei Milinda, datada do século II, que é a representação do diálogo entre o soberano 11 de Bactriana, Menandro, e o sábio Nagasena. As respostas do monge conduzem o rei a aderir ao dharma, a lei do Buda. I. Os batedores Seria preciso aguardar o século XIII para que o Ocidente tivesse outras notícias do budismo. Anterior em cerca de vinte anos ao épico périplo de Marco Polo, a missão exploratória de Guilherme de Robrouck desvela horizontes desconhecidos. Entre 1252 e 1255, enviado por São Luís, cuja corte ele freqüentou e com quem compartilhou do sonho cruzado1, esse franciscano erudito e poliglota deixa sua curiosidade pelos usos e costumes alheios guiá-lo até uma outra corte, a de Gengis Khan, em Karakorum. Mais observador do que embaixador, o emissário do rei da França recolhe informações, inteira-se sobre os costumes, surpreende-se com encontros inesperados – de cativos teutônicos a padres nestorianos –, perscruta os rostos e descreve os trajes, detalhando os hábitos. Em busca de “cristandades perdidas” como as arduamente procuradas no tempo das cruzadas, chega a acreditar, por um instante, ter alcançado o objetivo. Frei Guilherme é o primeiro europeu a descrever os “idólatras” e seus templos: descobre, sobre altares, lâmpadas e oferendas, “imagens assemelhadas a bispos”, e observa que eles “repetem incessantemente estas palavras: “om mani battam” que significam “Deus, você conhece” segundo a tradução que um deles lhes teria feito. Não é difícil reconhecer nessa fórmula aproximativa o grande mantra tibetano “om mani peme hum”, mesmo que o viajante não tenha descoberto muito mais coisas, pois, nota ele, “quando eu perguntava aos sarracenos sobre os ritos daquela gente, eles ficavam escandalizados”. II. Os pioneiros Menos inclinado a esse gênero de sinais, Marco Polo é também menos curioso: o veneziano contenta-se em desta1. Luís IX, rei da França, ou São Luís, organizou a sétima cruzada e participou dela, em 1248. (N.T.) 12 car sucintamente a presença de “idólatras fazedores de milagres” na corte de Kublai Khan, e sua breve observação pode fazer supor que se tratava de bonzos tibetanos. Mas ele não passa disso. No rastro dos batedores – missionários italianos, catalães ou portugueses, e mercadores, emissários de uma “nova ordem” – aventuram-se igualmente alguns excêntricos à procura de horizontes menos percorridos. E o mundo indiano fervilha de “novidades”, cada uma mais intrigante do que a outra, freqüentemente sujeitas a interpretações bastante fantasiosas. De fato, a curiosidade européia não acorda verdadeiramente senão a partir do século XVIII, com a intrusão britânica sobre o que se tornaria “a jóia da coroa”, o império da Índias. Graças ao apoio de Warren Hastings, governador geral na época, Charles Wilkin publicou, em 1783, a primeira tradução inglesa do Bhagava-Gita hindu, e William Jones, então juiz em Calcutá, fundou a famosa “Asiatic Society of Bengal”. Em 1801-1802, Anquetil Dupereyon publicou a primeira tradução francesa de uma versão persa dos Upanishad. Assim lançada, a moda propiciaria uma rica colheita. O estudo das línguas, em especial do sânscrito, é de imediato acompanhado de uma coleta febril de manuscritos, rapidamente encaminhados a Londres e Paris. Um inglês, Brian Hodgson, em viagem ao Nepal em 1820, recolhe no local antigos textos budistas, enquanto um húngaro, Alexandre Csoma de Koros, pesquisa nos monastérios tibetanos as origens de sua própria língua. Uma parte dos documentos reunidos por Hodgson termina nas mãos de Eugène Burnouf, lingüista apaixonado e sanscritista renomado, versado em páli e em tibetano: ele traduz o “Sutra do Lótus” (O Lótus da Boa Lei) e redige, logo em seguida, uma Introdução à história do budismo indiano. A partir de então, o caminho está aberto para a satisfação de uma certa curiosidade européia e para a imaginação do público, mas igualmente para o estudo aprofundado das línguas que veiculam o budismo e os textos da doutrina. Dessa forma, as trocas começam a se estabelecer, ainda que basicamente confinadas aos meios intelectuais e cien13 tíficos; e assim é que, por volta de 1880, círculos de estudos filológicos se enraízam firmemente em inglês, francês, alemão, russo e dinamarquês. As viagens em direção às fontes indianas e cingalesas do budismo se multiplicam, bem como as buscas interiores que florescem ao longo do século XIX nos meios artísticos e literários. Eminentes lingüistas se aplicam à tradução dos textos fundadores, publicados principalmente na Inglaterra na coleção “Livros sagrados do Oriente” e pela Pali Text Society. A maior parte dessas obras ainda está disponível e continua sendo regularmente utilizada. Em paralelo, no Collège de France, os estudantes formados por Burnouf seguem-lhe os passos, e a escola indianista adquire uma boa reputação internacional. Cerca de um século mais tarde, virá a mania, de início tímida, depois numa enxurrada, dos grandes textos tibetanos e sua vulgarização comercial. O romantismo tem aí certamente um papel, o imaginário artístico faz de bom grado buscas nessas fontes longínquas, poetas encontram palavras-chave para abrir essas portas mal conhecidas. Em 1879, no retorno de uma viagem à Índia, inspirando-se em uma primeira versão inglesa da Lalitavistara, que relata os anos de juventude do Buda até o despertar, Edwin Arnold publica A luz da Ásia. O sucesso é imediato tanto na Inglaterra vitoriana quanto na América. Mais tarde, Walt Whitman e Henry Thoreau chegarão a confessar sua dívida em relação aos textos sagrados da Índia. Criada pelo coronel Henry Olcott e por Elena Blavatsky, a “Sociedade teosófica” já tinha seus adeptos, e seus fundadores tinham causado sensação, durante uma viagem ao Ceilão em 1880, ao se comprometerem, junto de um bonzo e diante de uma estátua do Despertado, a respeitar os cinco preceitos fundamentais admitidos por todos os budistas de qualquer escola ou grupo. Um detalhe histórico singular: o interesse manifestado no Ocidente pela doutrina de Buda reanimou muitas chamas vacilantes nos meios bem posicionados do Ceilão e outros lugares, gente que exibia modernidade e se reaproximava do budismo por causa da administração britânica... 14 A partir do início do século XIX, Friedrich von Schlegel e Arthur Schopenhauer, na Alemanha, mergulham nos primeiros grandes textos acessíveis, enriquecendo assim suas próprias reflexões e contribuindo para divulgar essa filosofia situada além dos clássicos europeus. Na França, se Odilon Redon assina uma tela surpreendente intitulada Bouddha, Arthur Rimbaud não faz por menos e rende homenagem “ao Oriente e à sabedoria eterna e primeira...” III. Os pesquisadores A tendência se confirma e se afirma à medida que se aproxima o século XX e se multiplicam traduções, estudos e comentários. Chicago acolhe, em 1893, o primeiro “Parlamento das religiões”, quando elos sólidos se estabelecem entre budistas japoneses ou cingaleses e os primeiros adeptos americanos ou europeus da Boa Lei. Do outro lado do mundo, nas vastas extensões mal conhecidas da Eurásia, exploradores e pesquisadores embrenham-se em territórios supostamente virgens, indo o mais longe possível, até os limites extremos da Alta Ásia, freqüentemente atraídos pela reputação de Lhasa, “cidade proibida”. Os contatos feitos durante a viagem e os relatos das loucas expedições alimentam lendas e quimeras que a atração do Oriente místico ou fabuloso não enfraquece. Mais tarde se delinearão os caminhos de Katmandu. Entretanto, apenas no século XX uma verdadeira tradição budista se implanta mais largamente no mundo dito ocidental, particularmente depois da Segunda Guerra Mundial. Como se fosse a ressonância da enigmática profecia do século VII, atribuída ao grande sábio e mágico himalaiano Padmasambhava, que teria predito: Quando o pássaro de ferro voar Quando os cavalos galoparem sobre rodas As pessoas do País de Bod estarão espalhadas através do mundo Como formigas, E o dharma abordará o continente do homem vermelho. 15