SOBRE (A NECESSIDADE DE) O ENSINO DE GRAMÁTICA: EXPLORANDO ASPECTOS DA SINTAXE DO SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Marco Antonio Martins Universidade Federal do Rio Grande do Norte Introducão As reflexões aqui apresentadas buscam sistematizar as minhas inquietações com a questão do ensino de gramática, assim como, e principalmente, em relação ao ensino de sintaxe, nos ensinos fundamental e médio, e mesmo na formação de professores de português nos cursos de Letras. Como professor de sintaxe no curso de Letras, parece-me claro que o ensino de Língua sem gramática/sintaxe não faz o menor sentido; até mesmo porque não existe Língua humana sem gramática. No entanto, em contato direto com professores da rede dos ensino fundamental e médio no curso de Especialização em Linguística e Ensino de Língua Portuguesa da UFRN (CELE), tenho me deparado com questões que, acredito, merecem nossa atenção. Uma dessas questões (a mais geral cuja resposta muitas vezes pensamos que não se faz mais necessária porque supostamente seria “chover no molhado”) é: “devemos ensinar gramática?” Se sim, “como e quando ensinar?” A resposta, claro (para mim e para a – boa parte (acredito!) da – universidade), é óbvia: sim, devemos ensinar gramática. Devemos (e só podemos atingir nossos objetivos se o fizermos) ensinar gramática como naturalmente se reconhece e trabalha com questões/fenômenos da linguagem, com questões que envolvem o uso que qualquer criança ao entrar na escola (e mesmo antes disso) faz do conhecimento adquirido da Língua que ela domina/fala. E devemos desde muito cedo, desde sempre, ensinar gramática. A questão aqui, me parece, girar em torno do que se entende (depois de mais de 40 anos de linguística no Brasil!) por gramática. Para ilustrar a discussão, tomemos um fenômeno universal nas gramáticas das línguas humanas – a de que toda língua tem sujeito gramatical. Se toda língua tem de ter sujeito, tal fenômeno deve ser reconhecido/ensinado, porque faz parte do conhecimento linguístico que todo falante tem sobre a gramática da sua língua. A questão é: como e para quê ensinar sujeito gramatical? Vou, mais uma vez, contextualizar o destaque que darei neste capítulo à caracterização do sujeito em português e o ensino desse nos bancos escolares. Como professor do referido curso de Especialização, após apresentar um panorama da sintaxe do sujeito no Português Brasileiro, muitos alunos me questionaram sobre a direta relação desse panorama com o ensino de português nos ensinos fundamental e médio. Como a resposta me pareceria, mais uma vez, óbvia, logo respondi: “quando vocês ensinam a categoria de sujeito é assim que o fazem, certo? Ensinam sujeito nulo! Abordam a correlação entre uma definição de sujeito e ordem e concordância...” Não! Nada estava certo. Muitas foram as questões em torno de para quê e como deve ser o ensino do sujeito: “Como vamos ensinar sujeito nulo se precisamos seguir o livro didático e lá não está assim!” etc. Minha linha de argumentação aqui é a de que o aluno precisa, num primeiro momento, “aprender” as relações que, sintática e semanticamente, definem o sujeito gramatical, assim como dominar uma boa descrição do sujeito nas diferentes variedades do português. Tal conhecimento é, de fato, necessário para que ele produza/compreenda textos de diferentes situações do seu universo imediato e, muito mais importante considerando a função da escola, fora dele. A crítica aqui é em relação ao ensino de conceitos que, aplicados ao vazio, não contribuem para o efetivo uso da língua. Considerando esse quadro, divido a discussão apresentada neste capítulo em dois momentos. Em 1, apresento questões sobre o que se entende o que se deveria entender sobre gramática, e, consequentemente, sobre ensino de gramática; e, em 2, apresento questões sobre diferentes definições e classificações do sujeito em diferentes gramáticas do português, assim como um breve panorama sobre uma rica descrição do sujeito gramatical já apresentada por estudos linguísticos sobre o Português Brasileiro (PB), sobretudo nos trabalhos desenvolvidos por Eugênia L. Duarte. 1. “Mas o que é mesmo gramática?” O título desta seção faz referência direta a um artigo de Carlos Franchi1 (de leitura obrigatória para todos aqueles que estudam – e, principalmente, que ensinam – Língua). Penso que a discussão do autor sobre a temática, realizada na década de 80 do século passado (!), é bastante atual. Com ele, assumo o que é/deveria ser fundamental na descrição gramatical: estudar a variedade dos recursos sintáticos expressivos, colocados à disposição do falante ou do escritor para a construção do sentido. Repetindo: gramática é o estudo das condições linguísticas da significação. É uma resposta sistemática e, quando possível, explícita, à questão fundamental a que já nos referimos neste texto e no início deste item: por que e como (e para quem e quando...) as expressões das línguas naturais significam tudo aquilo que significam! (FRANCHI, 2006, p.88). Ainda nas palavras do autor, Não é verdade que a gramática não tem a ver com a produção e a compreensão de textos: ela está na frasezinha mais simples que pronunciamos. Mas é preciso concebê-la de um modo diferente: como o conjunto de regras e princípios de construção e transformação das expressões de uma língua natural que as correlacionam com o seu sentido e possibilitam a interpretação. Antes de ser um livro de etiquetas sociais ou um manual descritivo, a gramática é, de início, esse saber linguístico que todo falante possui, em um elevado grau de domínio e perfeição. Em um segundo plano, a explicação formal do caráter abstrato e geral desse saber. (p. 99). Esse conhecimento linguístico que nossos alunos têm, como falantes de português, não pode ser confundido com a definição de gramática de uma teoria linguística. Observe-se que se trata de uma realidade empírica que se reflete no uso linguístico que todo falante faz, desde as primeiras fases do processo de aquisição de uma determinada língua que sabe/fala. 1 Este artigo foi publicado em um livro, com o mesmo nome, organizado por Sírio Possenti, com outros textos de Carlos Franchi (FRANCHI, NEGRÃO E MÜLLER, 2006). Precisamos ter claro, de uma vez por todas, que não existe língua sem gramática e que gramática constitui tão-somente esse conjunto de regras que articulam as línguas humanas. Não estou afirmando com isso uma definição de gramática internalizada, como proposta pelo gerativismo. Não estou me valendo de uma teoria linguística propriamente para definir gramática aqui. Acredito que as definições de gramática propostas por diferentes perspectivas teóricas, que encontramos listadas em manuais e textos mais gerais na área, mais complicam que ajudam na grande confusão que se vem fazendo com o que se deve/deveria entender por gramática. Antes disso, nos deparamos com uma confusão quando falamos em/advogamos por um ensino de gramática. Não está claro que tomamos por base a descrição/explicitação das regras que subjazem o conhecimento linguístico daqueles que sabem/falam uma língua. Uma ponto é certo e precisa ficar claro: para ensinar gramática não se precisa lançar mão de uma teoria linguística sofisticada. Até podemos fazê-lo, mas não é imprescindível. Ensinar gramática é tornar transparente o que dá suporte ao uso que fazemos da língua. Uma criança, antes mesmo de sentar nos bancos escolares, sabe perfeitamente o significa dizer para a mãe, depois de esta ver que um vaso caro da mesa da sala fora quebrado: “o vaso quebrou”. A criança conhece a estrutura argumental do verbo quebrar em português e sabe que a ergatividade desse verbo permite que o argumento que recebe o papel temático de agente pode ser omitido. Tal recurso indetermina o sujeito agente da sentença. A partícula “se” indetermina o sujeito agente sem que se usem os recursos que a criança irá aprender na escola de indeterminação em português: terceira pessoa do plural o terceira pessoa o singular mais a partícula “se”. Note-se, portanto, que uma questão é o trato com o conhecimento linguístico que um indivíduo tem quando sabe/fala uma língua – a gramática dessa língua; outra questão é o que ele irá aprender na escola sobre padrões que pertencem tão-somente à Gramática Tradicional. 2. Explorando aspectos da sintaxe do sujeito no Português Brasileiro Apresento, nesta seção, uma breve discussão sobre a definição e classificação do sujeito gramatical em português, com especial atenção à expressão do sujeito pronominal no PB. 2.1 A noção de sujeito em diferentes gramáticas da Língua Portuguesa Como bem afirmam Kato e Mioto (2009, p. 24), “os conceitos de sujeito e de predicado são tão antigos quanto o próprio conceito de gramática e remontam, no Ocidente, a Aristóteles.” O conceito de sujeito para Aristóteles, e que perdura em toda a tradição gramatical greco-latina ainda presente nas Gramáticas Tradicionais (GTs), era fundamental para entender a constituição das proposições, no sentido de que é na relação sujeito-predicado que se estabelece uma proposição. São estes os “termos essenciais da oração”. Definir sujeito gramatical não é uma tarefa banal. Busquemos em algumas gramáticas (gramáticas de diferentes naturezas – normativas, descritivas) uma proposta de definição. Comecemos pelas definições da GT, aqui representadas pelas gramáticas de Celso Cunha e Lindley Sintra (edição de 2008) e de Bechara (edição de 2009). Cunha e Cintra, assim definem sujeito: “o ser sobre o qual se faz uma declaração” (CUNHA; CINTRA, 2008, p. 136). Não há uma explicitação, por parte dos gramáticos, dos critérios que estão na base dessa definição. O que se percebe, no entanto, como referem Berlinck, Duarte e Oliveira (2009), é a obediência a um critério de cunho informacional, no sentido de que será o estatuto da informação veiculada, ou a marcação do tópico conversacional, que definirá o sujeito de uma sentença. Sabe-se, no entanto, que em muitos casos essa correspondência entre sujeito gramatical e tópico conversacional não é estabelecida; ou seja, essa relação não é direta. Usemos os exemplos do NURC, apresentados por Berlinck, Duarte e Oliveira (2009), para ilustrar essa não correspondência (que se apresenta como um problema para a definição dos gramáticos!). (1) [Cada elemento, cada nódulo]... Ele possui o seu conjunto. (2) E [carne], aqui em casa nós fazemos __ de várias formas. (3) [Olinda] ninguém mora __. Ninguém diz é lá que eu moro não diz é lá que eu pernoito. (4) [Drama], já basta a vida. (5) [Filme], eu gosto mais de comédia. (BERLINCK, DUARTE E OLIVEIRA, 2009, p. 102) Como referem as autoras, nas sentenças de (1) a (5) os termos entre colchetes são aqueles sobre os quais “se diz alguma coisa”; no entanto, tais constituintes não são os sujeitos gramaticais das sentenças. Não há nesse sentido uma correspondência direta entre o tópico informacional e o sujeito gramatical. E isso significa que a definição de sujeito apresentada por Cunha e Cinta não dá conta da noção de sujeito gramatical. Para a discussão que segue, considerem-se, ainda, as seguintes sentenças: (6) ø Choveu muito em Natal em abril (7) Natal choveu muito em abril (8) Abril choveu muito em Natal Nos valendo da definição dos gramáticos, podemos depreender que em (7) e (8) os sujeitos gramaticais são, respectivamente, Natal e Abril – ambos correspondem ao tópico informacional ou “sobre o que se diz alguma coisa”. Sabemos, no entanto, que há uma outra explicação “defendida” pela GT (e mesmo para esses gramáticos) para os sujeitos em tais construções. Mais um problema para a correspondência entre as noções de sujeito gramatical e de tópico informacional. Seguindo com sua definição, Cunha e Cintra assim classificam os sujeitos gramaticais: sujeito oculto (determinado) “aquele que não está materialmente expresso na oração, mas pode ser identificado” (p. 141”); sujeito indeterminado quando “o verbo não se refere a um pessoa determinada, ou por se desconhecer quem executa a ação, ou por não haver interesse no seu conhecimento” – “põe-se o verbo: ou na 3ª pessoa do plural, ou na 3ª pessoa do singular, com o pronome se” (p. 142); oração sem sujeito “não deve ser confundido com o sujeito indeterminado, que existe, mas não se pode ou não se deseja identificar, com a inexistência do sujeito. Em orações como Chove/Anoitece/Faz frio interessa-nos o processo verbal em si, pois não o atribuímos a nenhum ser. Diz-se, então, que o verbo é impessoal; e o sujeito, inexistente.” Expressa-se “com verbos ou expressões que denotam fenômenos da natureza; com o verbo haver na acepção de existir; com os verbos haver, fazer e ir, quando indicam tempo decorrido e com o verbo ser, na indicação de tempo em geral” (p. 143-144). Fica evidente na classificação dos autores a postura da GT em relação aos sujeitos das sentenças em (7) e (8). Trata-se de um sujeito inexistente. Registre-se que em páginas anteriores assume-se que por ser um termo essencial da oração o sujeito é obrigatório na sentença. Trata-se portanto do que denomino de obrigatoriedade do inexistente. Não faz o menor sentido! Voltarei a essa questão mais adiante. Passemos a palavra a outro gramático. Bechara assim define sujeito: Chama-se sujeito à unidade ou sintagma nominal que estabelece uma relação predicativa com o núcleo verbal para constituir uma oração. É, na realidade, uma explicitação léxica do sujeito gramatical que o núcleo verbal da oração normalmente inclui como morfema número-pessoal (BECHARA, 2009, p. 409). Sujeito é uma noção gramatical, e não semântica, isto é, uma referencia à realidade designada, como ocorre com as noções de agente e paciente. (p. 410). O reconhecimento seguinte do sujeito se faz pela sua posição normal à esquerda do predicado (p. 410). Note-se que a definição de sujeito, segundo esse gramático, está fragmentada no texto e contempla diferentes aspectos para além do critério informacional. A definição de Bechara apresenta fortes argumentos sintático-semânticos – relação predicativa com o núcleo verbal; relações de concordância e relação de ordenação. Observe-se que Bechara parece considerar a relação de predicação sintática entre o núcleo verbal e os seus argumentos na configuração da marcação do sujeito gramatical. Mas tal relação está posta nos termos de seleção semântica que o predicador faz dos seus argumentos. Tal visão fica evidente na classificação que o gramático estabelece das “orações sem sujeito”. Seguindo os critérios da definição apresentada, sobre “as orações sem sujeito”, Bechara assume que Em Chove, o verbo flexionado na 3ª pessoa do singular marca o sujeito gramatical, isto é, assinalado apenas gramaticalmente, mas temos uma relação predicativa não referida, pois não admite sujeito explícito. Diz-se que o verbo é impessoal e a oração e sem sujeito explícito” (p. 408). Mas o próprio Bechara assume que tendo em vista o fato de o verbo (ou a morfologia do verbo) “carregar” o sujeito oracional “não se pode falar de elipse do sujeito”. Para ele, em sentenças como (9) não se poderia falar em elipse do sujeito, uma vez que este está explícito na morfologia do verbo. Observe-se que num paradigma com morfologia verbal rica há a identificação do sujeito gramatical na desinência número-pessoal afixada ao verbo. (9) (nós) ø rezaremos para que o fim chegue (10) ø Choveu muito em Natal em abril Nas palavras do gramático, “vê-se, então, que não se pode falar, a rigor, de elipse do sujeito, quando aparece apenas o núcleo verbal da oração (estudo, brincamos), já que ele aparece sempre presente na forma verbal flexionada no morfema que representa o sujeito gramatical (1ª, 2ª e 3ª pessoas, do singular e plural). Trata-se, pelo contrário, da sua expansão ou não, mediante o sujeito explícito [...]” (p. 409). Perceba-se que o critério vale apenas para os sujeitos referenciais. Em outras palavras, o sujeito é identificado na morfologia flexional dos verbos apenas quando há a seleção semântica pelo verbo de um argumento referencial. No entanto, observe-se que tal critério deveria garantir também que o sujeito estaria expresso (mas não “explícito”) em sentenças como (10), em que a marca de 3ª pessoa do singular no verbo também expressa a relação de concordância com uma entidade não explícita na sentença. Em termos estritamente sintáticos, como nos propõe Bechara, os elementos em negrito nas sentenças em (11) e (12), a seguir, podem lexicalizar (explicitar) a relação de concordância entre as marcas desinenciais do verbo [3ª pessoa do singular] e os traços de número e pessoa do constituinte anteposto ao verbo [3ª pessoa do singular]. (11) Natal choveu muito em abril (12) Abril choveu muito em Natal Observe-se que se mantém, na definição/classificação do gramático, a postulação da obrigatoriedade do inexistente. Mira Mateus et all (2003), em uma gramática descritiva do português (europeu), sob a orientação de um quadro teórico específico – o da teoria gerativa – assim definem sujeito: Sujeito é uma das relações gramaticais centrais. Trata-se da relação gramatical do argumento do predicador a que é dada maior proeminência sintáctica. Nas frases básicas, o constituinte com a relação gramatical de sujeito é o argumento mais elevado na Hierarquia Temática (i.e, é o sujeito lógico da frase), é a expressão com a função de tópico (i.e, é o sujeito psicológico, ou seja, é o assunto acerca do qual se afirma, nega ou questiona o predicado) e é a expressão que desencadeia a concordância verbal (i.e, é o sujeito gramatical) [...]. A proeminência sintático-semântica do sujeito traduz-se: (a) relativamente à ordem de palavras, pelo facto de, nas frases básicas, o sujeito ocorrer na primeira posição argumental na frase; (b) relativamente ao controlo de processos gramaticais, pelo facto de o sujeito ser: - o controlador categórico da concordância verbal; - o controlador preferencial da anáfora frásica (intra- e interoracional) e dos pronomes anafóricos. Na definição proposta nesta gramática percebe-se um foco nos critérios sintáticos que contemplam (i) a relação gramatical estabelecida entre o constituinte sujeito e o predicador verbal da sentença – relações gramaticais aqui entendidas como aquelas de seleção semântica e sintática (ou categorial); (ii) relações hierárquicas entre o constituinte sujeito e os demais constituintes da sentença; (iii) relações de concordância. E, sobre os sujeitos nulos, as autoras afirmam que: Dado que o português é uma língua que fixa o valor positivo para o Parâmetro do Sujeito Nulo, admite sujeitos sem realização lexical em frases finitas. Assim: (a) sujeitos argumentais podem ser foneticamente nulos, como em Soube que passaste no exame. Parabéns! (b) Sujeitos expletivos (também denominados gramaticais, aparentes ou vazios) que, noutras línguas, têm realização lexical, marcando a posição de sujeito em construções com verbos impessoais (compare-se Chove torrencialmente com It rains cats and dogs), com verbos de elevação (compare-se Parece que o João já chegou com It seems John has already arrived), com sujeitos frásicos extrapostos (compare-se Surpreende-me que o João tenha chegado atrasado com It surprises me that John came late) e em construções existenciais (compare-se Há três janelas na sala com There are there Windows in the room) são sempre foneticamente nulos. Tendo em vista o mesmo quadro teórico, sistematizo no que segue a definição de sujeito delineada na gramática do Português culto falado no Brasil (KATO E MIOTO, 2009): A relação de concordância “é crucial para a definição de sujeito” “O sujeito entra em relação de concordância e recebe Caso Nominativo da Flexão”. O sujeito ocupa a posição de especificador de Flexão e o verbo flexionado ocupa a posição nuclear de Flexão. Ou seja, a noção de sujeito, além de estar vinculada à questão da concordância que se observa na relação entre especificador e núcleo de Flex, está vinculada à ordem SV, obtida nessa mesma relação. (BERLINCK, DUARTE, OLIVEIRA, 2009, p. 109, grifo meu) Note-se que nas definições apresentadas pelas gramáticas de Mira Mateus (2003) e de Kato e Mioto (2009), no capítulo escrito por Berlink, Duarte e Oliveira, estão relacionados aspectos que envolvem a relação que o constituinte sujeito estabelece com a grade argumental do verbo, com os fenômenos da ordem e da concordância. Tais propriedades não podem estar de fora na definição/classificação dos sujeitos em português. A mesma linha de raciocínio, considerando os aspectos sintáticos, porêm sob um outro aparato teórico – o da teoria multissistêmica – encontra-se na Nova Gramática do Português Brasileiro de Ataliba de Castilho (2010): Do ponto de vista sintático, considera-se sujeito o constituinte que tem as seguintes propriedades: (i) é expresso por um sintagma nominal; (ii) figura habitualmente antes do verbo; (iii) determina a concordância do verbo; (iv) é pronominalizável por ele; e (v) pode ser elidido” (p. 289). A questão aqui é: no trato com o sujeito gramatical há já sistematizadas em gramáticas normativas e descritivas do português (e do português culto do Brasil, inclusive) definições que contemplam muito mais que aspectos centrados em critérios discursivos. Tais propriedades devem ser apresentadas/discutidas/ensinadas quando se for “ensinar sujeito”. Coloco o “ensinar sujeito” aqui entre aspas porque muito mais importante do que ensinar uma definição pronta e acabada será/deveria ser um dos objetivos da escola construir com os alunos uma definição tendo em vista o conhecimento gramatical que eles já têm sobre a gramática da língua que esses tão bem usam. Nesse processo, deve ser considerado todo um panorama já sistematizado sobre a expressão do sujeito em PB, panorama esse que, muito brevemente, apresento na seção que segue. 2.2 Um breve panorama sobre a expressão do sujeito no Português Brasileiro Considerando uma definição de sujeito que preconize as relações hierárquicas entre os constituintes da sentença – relações essas de ordem e concordância, por exemplo – e ainda o princípio geral de que toda sentença tem sujeito, é necessário repensar o quê, como e para quê ensinar sujeito gramatical. É necessário reconstruir uma proposta diferente daquela visão restrita (e muitas vezes equivocada) da GT. Comecemos pela necessidade premente do reconhecimento do sujeito nulo, ou não lexicalizado, em sentenças do português, como de (13) a (15). (13) (nós) ø rezaremos para que o fim chegue (14) ø Choveu muito em Natal em abril (15) ø Tem crateras na lua (16) Você tem crateras na lua Se o sujeito é o constituinte com o qual se estabelece uma relação hierarquicamente determinada com o sintagma flexional da sentença, e sua presença, por essa razão, é obrigatória/”essencial” – “não existe oração sem sujeito” –, há que se reconhecer (e ensinar) que o sujeito pode vir realizado foneticamente, ou não. Quando não está lexicalizado, o constituinte que estabelece a relação de concordância com o sintagma flexional é um pronome nulo. Observe que em (13) a morfologia do verbo garante a existência do pronome nulo. A única (e significativa) diferença entre o sujeito pronominal nulo em (13) e em (14) e (15) é que enquanto em (13) há um pronome nulo referencial, argumento selecionado pelo verbo da sentença – um sujeito com papel temático, portanto – em (14) e (15) o pronome nulo é não referencial, sem conteúdo temático – um sujeito expletivo. O pronome nulo expletivo ocorre em português porque a gramática de tal língua permite essa possibilidade. Note-se que há línguas como o inglês e o francês, nas quais a presença do sujeito, mesmo em contextos com verbos de fenômenos da natureza ou impessoais, é sempre obrigatória, conforme os exemplos a seguir. (17) It rains. (18) Il pleut. E, nesse contexto, qual a realidade do sujeito preenchido em (16)? Muitos estudos sobre o Português Brasileiro, sobretudo os de Duarte (1993, 1995, 2003, 2003, 2007, 2012), têm evidenciado que na gramática dessa língua há uma forte tendência ao preenchimento do sujeito, mesmo em construções impessoais como (16). Duarte (1993, 1995) mostrou em análise diacrônica, tendo em vista um córpus constituído por peças de teatro brasileiras dos séculos XIX e XX, e sincrônica, com amostras de fala do projeto NURC, que o PB apresenta um forte tendência ao preenchimento do sujeito pronominal, na direção da realidade encontrada na gramática de línguas como o inglês e o francês, em que a realização do sujeito é obrigatória. De acordo com os trabalhos da autora, a taxa de preenchimento do sujeito aumenta significativamente dos textos do século XIX para aquela obtida em textos do século XX. E as taxas da análise da fala culta do PB confirmam esse aumento, uma vez que apresentam também elevadas taxas de preenchimento. A pessoa gramatical figura como um forte condicionador do preenchimento, no sentido de que sujeitos de primeira e segunda pessoas gramaticais tendem a vir mais preenchidos do que sujeitos de terceira pessoa. Observem-se os exemplos a seguir, dados do Projeto Norma Urbana Culta (NURC) extraídos da gramática do português culto falado no Brasil (KATO e NASCIMENTO, 2009). (19) Realmente eu tenho muito cuidado com esse problema de alimentação porque eu tenho uma facilidade enorme para engordar, sabe? (20) Nós não temos hábito justamente por nós não termos também condições financeiras. Aqui em casa a gente não tem por hábito de fazer quatro cinco seis pratos. (21) Aí João se você justificar da maneira com, como você me respondeu, eu coloco correto. (22) ... é [a BR 262] [...] agora ø é uma estrada que tem muita curva, muita subida, muita descida, porque ø atravessa a serra do mar mesmo. (BERLINCK, DUARTE E OLIVEIRA, 2009, p. 124-129) Note-se que nos dados de fala transcritos acima, há uma tendência ao preenchimento do sujeito quando se trata das primeira e segundas pessoas gramaticais – cf. (19) a (21) – em oposição à terceira pessoa – cf. (22). Na verdade, Duarte tem mostrado que muito mais que a pessoa gramatical, são os traços de [+/- humano] e [+/- específico] que condicionam a realização do sujeito, no sentido de que quanto +humano e +específico for o referente, maior a probabilidade de o sujeito vir preenchido. Observe o preenchimento do pronome de terceira pessoa em (23), a seguir. (23) Normalmente, quando a gente pede para [uma criança], de por volta de quatro a cinco anos desenhar uma mesa, ela põe o tampo que ela sabe que existe; ela põe as pernas para todos os lados. Por quê? Ora, se ela olhar de um determinado lado, ela vê duas pernas; se ela andar meio metro, ela vê outras duas pernas. Então ela põe pernas para todos os lados, por quê? Porque ela sabe que a mesa tem um tampo, que é onde ela põe as coisas e que a mesa está apoiada em cima das pernas... Agora isso aqui ela jamais vai poder ver: essa imagem da mesa. Então é isso é o que ela sabe. Ela está desenhando o que ela tem na cabeça e não o que ela está vendo. (BERLINCK, DUARTE E OLIVEIRA, 2009, p. 128) Há o preenchimento de praticamente todos os pronomes de terceira pessoa, porque o referente é [+humano]. Essa realidade será aquela com a qual qualquer professor se deparará nos contextos de sala de aula. São necessárias ferramentas para primeiro entender o que está por trás de tanto preenchimento e então poder trabalhar a relação entre a gramática do PB e a aquisição da escrita padrão. A tendência ao preenchimento do sujeito pronominal no PB vem sendo atestada mesmo em contextos com sujeitos não referencias – como mostraram os exemplos acima. Em contextos com sujeitos de referência indeterminada (ou arbitrária), ou mesmo com sujeitos não referenciais (ou sentenças impessoais), tem-se atestado uma tendência ao preenchimento do sujeito pronominal. Na verdade, há uma tendência no PB de que a posição do sujeito, à direita do verbo, venha sempre preenchida, ou por um constituinte com a função gramatical de sujeito, ou por outro constituinte de natureza vária para tal posição movido. (24) Você tem, em época de São João em Olinda, você ainda vê fogueira e como se vê fogueira! O olindense faz fogueira até em cima do calçamento. (BERLINCK, DUARTE E OLIVEIRA, 2009, p. 136) (25) a. Lá/Em São Paulo tem chovido demais b. São Paulo chove. O rio faz sol c. O Carnaval choveu? d. Petrópolis é uma coisa! Aquilo chove demais (BERLINCK, DUARTE E OLIVEIRA, 2009, p. 128) Observe-se que (24) exemplifica a tendência ao preenchimento do sujeito pronominal no PB em contextos com referência arbitrária. Em (25) são ilustrados casos com contextos impessoais cujo recurso para o preenchimento da posição de sujeito tende a ser por meio do movimento de um sintagma adverbial, um sintagma preposicional locativo (com ou sem preposição), ou um demonstrativo para a posição de sujeito. Os resultados gerais apresentados na gramática do Português culto falado no Brasil e nos estudos de Duarte não têm apresentado uma tendência a uma ou outra forma para o preenchimento da posição do sujeito nessas construções. Há, no entanto, a forte tendência ao preenchimento de tal posição com diferentes estratégias. Ainda se tratando das construções impessoais, Duarte e seus orientandos têm apresentado o crescimento da estratégia de preenchimento do sujeito em construções com verbos de alçamento, tal como exemplificado em (27). (27) Eu pareço que ø estou peguei uma gripe Henriques (2013) tendo por base amostras extraídas de peças de teatro brasileiras e portuguesas dos séculos XIX e XX evidencia o aparecimento (e aumento) na frequência de um determinado tipo de alçamento. (28) Eu é que sei o quanto me custa dar conta de tudo. O senhor seu pai parece ø não ti reconhecer. (29) Até as coisas inanimadas parece que ø têm medo de violência. Tudo obedece ao medo. Mundo podre! (HENRIQUES, 2013, p. 93) Ainda sobre a expressão (e consequentemente conceituação) do sujeito gramatical em português, uma nota sobre a questão da ordem e da concordância deve ser feita. Em português, a função de sujeito está formalmente marcada pela ordem pela e concordância que o constituinte com a função de sujeito estabelece com o verbo: o sujeito será o constituinte que está posposto ao verbo e que estabelece uma relação de concordância com o sintagma flexional da oração. Estudos têm mostrado que a ordem (e, consequentemente, a assunção da função de sujeito) dos constituintes estão relacionados ao tipo de verbo da sentença (COELHO, 2000; BERLINCK, DUARTE E OLIVEIRA, 2009). De um modo geral, a posição do sujeito no PB – em construções com verbos tri- e biargumentais e os monoargumentais de determinada natureza (verbos que selecionam argumento externo) – é anteposta ao verbo, conforme dados de fala extraídos da gramática do português culto falado no Brasil, reproduzidos em (30). (30) a. A molecada adorou o filme b. O pessoal joga muito aquelas raquetes assim c. E agora o menino quer judô d. Elas morreram sufocada (31) a. De vez em quando aparecem as riscas no chão b. Elas se atrofiam porque não existe aqueles elementos c. Agora saíram uns temperos mais novos digamos assim d. Diminuiu as UPCs e. Ainda veio os ônibus A posposição do sujeito em português está restrita a alguns contextos sintáticos, dentre eles as construções com verbos monoargumentais que selecionam um argumento interno – verbos inacusativos – ou construções inacusativas, conforme exemplos em (31). Note-se que em decorrência da posposição não se manifesta a marcação de concordância, no verbo, dos traços de número do constituinte “sujeito”. Ou seja, não há concordância entre o verbo e o constituinte pós-verbal em tais construções.2 A posposição aliada à não concordância do constituinte pós-verbal (que nos dados apresentados na gramática do português culto falado no Brasil alcança índices de 84%) leva à defesa da hipótese de que o sujeito, em tais construções, não seja o constituinte posposto. Tal constituinte é interpretado pelos falantes como o complemento objeto do verbo. O que quero destacar aqui é a premente necessidade de se trabalhar (e ensinar) sujeito gramatical como um fenômeno da gramática dos alunos, entendendo gramática aqui enquanto o conhecimento linguístico que um indivíduo porque sabe/conhece/fala uma língua, como uma realidade linguística que determina/possibilita diferentes possibilidades de uso e de diferentes significações. As aulas sobre sujeito gramatical não podem estar restritas a uma repetição e memorização de uma lista de conceitos e classificações prescritas por uma tradição gramatical reproduzida pela GT. Conclusões 2 Na verdade, há uma relação tão estreita entre ordem e concordância, no sentido de que sujeitos pospostos tendem a não manifestar marcas de concordância e vice-versa. Não se pode ter clareza se é a posposição que determinada a não concordância ou se é a não concordância que determina a posposição. Tendo em vista a discussão aqui apresentada, volto às questões levantadas na introdução deste capítulo e as repostas seguem na mesma direção daquela dada aos alunos do curso de especialização em linguística e Ensino de Língua Portuguesa: sim! Deve-se ensinar gramática e esse ensino deve estar presente desde o ingresso (ou mesmo antes dele) dos alunos nos bancos escolares. Deve-se ensinar gramática, no entanto, deve-se fazê-lo como quem ensina as técnicas de como respirar melhor para um bom desempenho em uma corrida, ou para uma sessão de yoga. Nossos alunos, assim como respiram, dominam já a gramática da língua que usam em muitas e variadas situações comunicativas. É função da escola fazer com que ele aprenda a usar as diferentes variedades da sua língua nas mais diversificadas situações sóciocomunicativas. Em se tratando do sujeito gramatical (como um conteúdo a ser trabalhado na escola nos diferentes níveis do ensino fundamental e médio) só fará sentido se o estudo se voltar à conceituação de definição do sujeito de acordo com normas reais, efetivamente utilizadas por uma comunidade, devendo-se considerar: (i) A possibilidade de não lexicalização do sujeito – o sujeito nulo (referencial e expletivo). (ii) A expressão do sujeito cada vez mais preenchido (ou lexicalizado) na gramática do PB, considerando aspectos da gramática, tais como os traços de [+/-humano, +/- específico] do referente – assim como a relação direta entre este fenômeno na gramática do PE e o processo de aprendizagem da criança do sistema da escrita! (iii) A expressão e a relação do sujeito gramatical com os fenômenos da ordem e da concordância, necessária para a própria definição do sujeito gramatical. Referências BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 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