LIVRO DO MÊS MAIO – 2010 Direcção de Serviços de Biblioteca e Documentação Avenida das Forças Armadas 1649-026 Lisboa Tel: 217903024 Fax: 217903025 URL: http://biblioteca.iscte.pt E-mail: [email protected] NOTA INTRODUTÓRIA DA OBRA* mendicante e a uma vida sem horizontes” (p. 95). Não é, porém, dessa vida que se ocupa o livro de Filipe Verde. No capítulo “História e Fontes”, o autor explica a peculiaridade do trabalho, que apenas incluiu uma visita curta aos Por que escrevem os antropólogos tão bons livros? territórios Bororo (as últimas preciosas páginas do capítulo mostram como se A pergunta, claríssima para quem lê regularmente livros de antropologia, converteu na “experiência inesquecível” referida nos agradecimentos), durante é quase absurda para leitores portugueses. Um deplorável defeito da a qual percebeu definitivamente que o que o levava ali “não era uma cultura nacional, espelhado fielmente no mercado dos livros, é o curiosidade de etnógrafo mas de historiador” (p. 91). O interesse histórico foi o considerável alheamento do saber e dos debates antropológicos que que o antropólogo criou pela “liberdade individual e paz social” dos Bororo, pela estão no cerne da experiência moderna do mundo. Basta lembrar que “singularidade das suas ideias morais”, o fascínio “com o pensamento moral e nunca se traduziu em Portugal um dos grandes livros do século XX, “Os com as práticas pedagógicas Bororo” (p. 95) — tudo nascido da leitura dos Argonautas do Pacífico Ocidental”, de Malinowski, editado em 1922 (em abundantes textos que etnógrafos e missionários dedicaram à cultura Bororo. inglês!); ou que está por traduzir o excepcional “A África Fantasma” É esse o tema, na esteira de Lévi-Strauss e de peritos menos conhecidos na (1934), de Michel Leiris, ou até, se o tamanho for desculpa, os seus sociedade Bororo (sonhemos com o dia em que alguém edite uma tradução de breves e exemplares “Cinco Estudos de Etnologia”. “Vital Souls”, de J. C. Crocker...), do capítulo-chave desta obra, o terceiro, O livro de Filipe Verde que a Angelus Novus agora editou, “O Homem “Naturalismo Ético”. Num ataque sem atenuantes aos métodos interpretativos Livre: Mito, Moral e Carácter numa Sociedade Ameríndia”, vai decerto da antropologia clássica, com o autor de “Tristes Trópicos” a aguentar os ficar como obra maior da antropologia portuguesa — e arrisca-se a golpes mais duros da crítica, Verde propõe uma releitura do mais famoso mito passar despercebido fora do meio. Nasceu como tese académica Bororo, com cuja transcrição abre o capítulo. Trata-se de uma história de (orientada por Robert Rowland) mas é agora, como o autor quis, um livro incesto, espécie de Édipo tropical, interessante “na sua literalidade”, pelo modo que “não tem por leitores ideais antropólogos mas os que, movidos por como nela “se expressa a violação do interdito sexual e a extrema violência uma curiosidade humanística eclética, lêem romances, biografias e livros intrafamiliar que lhe é subsequente” (p. 109). Com apoio teórico de Gadamer, a sobre, por exemplo, a Igreja medieval, os Quakers, a Revolução releitura faz do mito via de acesso à cosmologia Bororo, centrada na oposição Bolchevique ou o Hinduísmo” (p. 12). entre dois tipos de espíritos, os “aroe” e os “bope”, e na noção de “raka”, força A sociedade ameríndia em causa é a dos Bororo, habitantes do sudeste natural que conduz os homens (e os “bope”) à execução dos seus objectivos do estado brasileiro do Mato Grosso, junto à fronteira com o estado de biológicos e sexuais. Goiás. Estão reduzidos a menos de mil pessoas, talvez um décimo da Esta figura do desejo e do seu efeito anárquico deixa ler no mito a ideia de que população de há um século atrás: “São uma população assalariada ou o mundo humano está “minado por todos os lados pela desordem do desejo e completamente desocupada, onde grassa o alcoolismo a níveis do conflito” (p. 142), e de que uma “inteligência moral está presente afinal como alarmantes e que (…) perdeu o orgulho, que deu lugar a uma relação uma inteligência da natureza” (p. 146). Eis o naturalismo ético que Verde *Índice disponível em: http://biblioteca.iscte.pt/pdfs/indiceslivros/01000063939.pdf valoriza, não como curiosidade local, mas, ao contrário, enquanto NOTA BIOGRÁFICA DO AUTOR “reflexão que ultrapassa a limitação do seu horizonte cultural”. A ultrapassagem explica o último capítulo, “Moral e Responsabilidade”, que é sobretudo uma oportunidade para regressar a Freud, ao Freud da fase pós-“Totem e Tabu”. A aproximação entre Freud e a visão Bororo do mundo humano é o passo mais arriscado do livro, mas o mais revelador da sua ambição bem superior às rotinas da antropologia actual. Seria um passo impossível sem a admiração que Filipe Verde tem pela tradição intelectual da “disciplina” em que trabalha. Sê-lo-ia também sem a sua alta consciência da “componente literária que é indissociável do trabalho de descrição etnográfica” (p. 85). Porque ela afecta, no cerne, Filipe Verde nasceu em 1961, fez a sua formação em Antropologia no ISCTE. uma ideia da antropologia que não aceita menos do que chegar “a tudo o É Professor no Departamento de Antropologia do ISCTE-IUL e investigador do que é o mundo verdadeiramente humano e se expressa e encontra CRIA-CEAS. A sua pesquisa mais recente centrou-se num contexto clássico da enquanto vida” (p. 58-9). Para que o leitor entenda o que isso implica, etnografia ameríndia, os Bororo (Brasil), e na teoria e epistemologia da basta que comece o livro pelo princípio, pelo seu primeiro e Antropologia. desbragadamente literário capítulo, esquecendo, ao ler tão belas e inteligentes páginas, a deficiente revisão de texto que levemente as prejudica. Esse capítulo chama-se só “Os Bororo” e o seu nome não O OUTRO LADO… podia ser outro. Música preferida? Gustavo Rubim, Público, 2009/09/11 Clássica, Rock (Talking Heads), ou então coisas desvairadas (John Zorn). Autor preferido? NOTA BIBLIOGRÁFICA DO AUTOR* I. Berlin, M. Weber, H-G. Gadamer, J. G. Merquior, S. Freud, J. Gray. Na literatura Tolstoi, Melville, Céline. LIVROS Autoria: VERDE, Filipe - Explicação e Hermenêutica. Coimbra: Angelus Novus, 2009. Livro de referência? VERDE, Filipe - O Homem Livre: Mito, Moral e Carácter numa Sociedade Truth and Method, Mal-Estar na Civilização, Guerra e Paz, Moby Dick, Ameríndia. Coimbra: Angelus Novus, 2008. Viagem ao Fim da Noite. PUBLICAÇÕES PERIÓDICAS Pintor? Caspar David Friedrich. VERDE, Filipe - Tambores de mortos? Sobre um estudo etnográfico da democracia em Ilhéus, a antropologia feita em casa e a falácia do apelo à crença. Anuário Antropológico. (Maio 2010 - no prelo). VERDE, Filipe - O código Lévi-Strauss, ou o mundo como correlato objectivo. Antropologia Portuguesa. (2009). Clube? Benfica, claro. VERDE, Filipe - Os nativos para si, para nós e em si - Roberto Cardoso de Oliveira e o projecto de uma antropologia hermenêutica. Anuário Antropológico. (2008). Volume de Homenagem a Roberto Cardoso de Oliveira. *O levantamento bibliográfico apresentado foi seleccionado pelo autor. NOTA: Esta iniciativa só se tornou possível com a total colaboração do Doutor Filipe Verde, pela mesma a DSBD apresenta o seu agradecimento.