NO BALÉ DA CENTRAL: MOBILIDADE E LUGAR NOS TRENS

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
NO BALÉ DA CENTRAL: MOBILIDADE E LUGAR NOS TRENS
URBANOS DO RIO DE JANEIRO
JEAN BRUM1
NATHALIA AZEVEDO2
Resumo: Pretendemos neste trabalho explorar a Estrada de Ferro Central do Brasil a luz da
concepção fenomenológica de balé-do-lugar, buscando compreender os movimentos que participam
da criação do lugar e seus significados, construídos e reconstruídos através da experiência cotidiana.
Acreditamos que interpretar os processos que levam a construção da ferrovia deve reconhecer a
dimensão simbólica efetivada pela experiência daqueles atuam neste espaço.
Palavras-chave: Balé-do-lugar; Mobilidade; Trens Urbanos; Rio de Janeiro.
Abstract: In this paper we explore the "Estrada de Ferro Central do Brasil" based on the
phenomenological conception of Place Ballet, seeking to understand the movements that participate in
the creation of the place, constructed and reconstructed through everyday experience. We believe that
interpret the processes that lead to construction of the railway should recognize the symbolic
dimension practiced out by the experience.
Keywords: Place Ballet; Mobility; Urban Rail; Rio de Janeiro.
1 - Introdução:
Seja percorrendo o íntimo de nossos lares ou cruzando a imensidão dos
oceanos, o espaço geográfico é marcado pelo movimento. Vivemos em uma era em
que, podemos teoricamente tudo fazer sem nos deslocarmos e onde, no entanto,
nos deslocamos (AUGÉ, 2010). Migração, turismo, deslocamentos pendulares,
peregrinações religiosas; muitas são as formas através das quais a mobilidade se
realiza em nossa vida diária (SHELLER; URRY, 2006). Seja pedalando uma bicicleta
em um parque, guiando um carro em uma via expressa, caminhando em nosso
quarto ou acomodados no assento de um avião enquanto este cruza o Atlântico, nos
movemos fisicamente no espaço.
Mais do que um simples movimento em um espaço abstrato, como uma linha
traçada sobre uma folha em branco, a mobilidade se realiza em um espaço social,
envolto de relações políticas e econômicas, mas também de simbolismos e
afetividades (CRESSWELL, 2010). A partir da experiência de deslocamento, criamos
laços com os espaços que percorremos, os interiorizamos, vamos conferindo
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. E-mail de contato: [email protected]
2
Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social na Universidade
Federal do Rio de Janeiro. E-mail de contato: [email protected]
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significados que entrelaçam nossas vidas a esses espaços, eles se tornam lugares,
centros aos quais atribuímos valor (TUAN, 1983). Os lugares são conhecidos, eles
fazem parte da vida de cada um, sendo um elemento indispensável da existência de
cada indivíduo (MELLO, 1990); minha casa, minha rua, meu bairro, meus lugares de
infância, os lugares que anseio conhecer, meus lugares de trabalho e lazer. À
medida que a própria experiência é dinâmica, sempre em transformação, os lugares
também o são; diferentes movimentos se realizam no espaço, adensando nossos
laços com o lugar. O espaço percorrido e o movimento praticado são envolvidos de
valor e significado. E isto certamente tem implicações na maneira como construímos
nossos sentidos de lugar.
Essa relação entre movimento e lugar pode ocorrer em diferentes escalas e
contextos,
produzindo
lugares
dinâmicos,
marcados
pelo
entrecruzar
de
temporalidades, ritmos e percursos. Pensando sobre tais questões, o geógrafo
David Seamon propõe a noção fenomenológica de “balé-do-lugar”3, como uma das
formas pela qual essa relação entre lugar e mobilidade pode se expressar. Para
esse autor, os passos, gestos e itinerários realizados cotidianamente por uma
pessoa ou grupo são ao mesmo tempo um elemento indissociável na experiência de
lugar e uma forma de ser-estar geograficamente no mundo, de modo que a
compreensão do lugar como um fenômeno do mundo vivido demanda o
reconhecimento da mobilidade enquanto um dos elementos centrais em sua
construção.
Uma praça, rua, bar, prédio de escritórios, transporte público, ou qualquer
outra situação em que algumas pessoas se reúnam regularmente, pode fornecer
uma base para a criação do balé-do-lugar (SEAMON, 1980). Neste sentido, no
espaço metropolitano do Rio de Janeiro, o meio heterogêneo dos transportes
coletivos se destaca como palco privilegiado da performance de balés-do-lugar. Um
caso específico desta relação entre movimentos regulares e a construção de
sentidos de lugar pode ser descortinada através das coreografias cotidianas que
marcam o simbólico universo dos trens da Central do Brasil.
3
Do original em inglês “Place-ballet”.
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Implantada nos finais do século XIX, a Estrada de Ferro Central do Brasil
destaca-se como uma das principais vias de circulação da região metropolitana do
Rio de Janeiro, conectando os mais diversos pontos da espraiada malha urbana
carioca ao centro da cidade. Cerca de 600 mil pessoas circulam diariamente pelos
“Trens da Central”, ao longo de cinco ramais, tendo como ponto de partida a
simbólica e agitada Estação Central do Brasil, compondo um cenário marcado pela
pluralidade de rostos e vozes, sons e texturas, e pelo dinamismo do ir-e-vir, em um
ambiente onde florescem explosivas geografias do movimento (VENEROTTI, 2012).
Na experiência de deslocamento cotidiano, a ferrovia é revestida de simbolismo,
deixando de ser uma mera via de circulação, com valor essencialmente funcional,
para se assumir enquanto uma arena de negociação de significados, construídos e
reconstruídos através da experiência intersubjetiva que cada indivíduo estabelece
em seu contato com o mundo. Diferentes olhares incidem sobre os Trens da Central,
sobre os bairros que são cortados pela linha férrea, sobre a vivência deste lugar e
sobre as pessoas que compartilham dele; agitado, caótico, sujo, inseguro,
desconfortável, seguro, confortável, rápido, eficiente, local de fé e de esperança, de
batalha e de vida.
Entender, portanto, como se estabelecem esses movimentos e qual seu papel
na criação do balé-do-lugar faz-se um desafio necessário à compreensão da
complexa experiência de transitar pelos trens urbanos do Rio de Janeiro, permitindo
um olhar que valorize não apenas as dimensões políticas e econômicas na
construção deste espaço, mas também as dimensões simbólicas e afetivas.
Pretendemos neste trabalho explorar a Estrada de Ferro Central do Brasil a
luz da concepção fenomenológica de balé-do-lugar, buscando descortinar, ainda que
de maneira geral e introdutória, os movimentos que participam da criação do lugar e
seus significados, construídos e reconstruídos através da experiência cotidiana.
Utilizamos-nos, para tanto, do “trabalho de campo experiencial” como metodologia
de pesquisa. Segundo Ballesteros (1992, p. 14), tal método “se trata de buscar o
conhecimento interpessoal através da imersão nos lugares vividos cotidianamente
por aquelas pessoas que queremos estudar”. Mergulhar na experiência do outro
demanda, em certo medida, que nós mesmos possamos participar desta
experiência, nos tornando parte desta “dança” no trem. Buscamos nos apoiar ainda
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em entrevistas de caráter informal com outros participantes desse balé-do-lugar,
sobretudo, os passageiros dos trens urbanos do Rio, a fim de uma compreensão
mais profunda dos significados de tais movimentos. Desejamos com isso contribuir
para o entendimento do universo dos trens urbanos do Rio de Janeiro,
reconhecendo o papel que a dimensão simbólica exerce na produção deste espaço.
2 – Elementos para pensar o Balé-do-lugar:
A noção de balé-do-lugar, apresentada pelo geógrafo David Seamon no final
da década de 1970, em sua obra A Geography of Lifeworld4, configura-se como um
valioso instrumento na compreensão dos diversos movimentos, fluxos e itinerários
que
compõem
o
espaço
geográfico.
Influenciado
em
larga
escala
pela
fenomenologia existencialista de Merleau-Ponty, Seamon propõe um entendimento
experiencial dos movimentos cotidianos, enfatizando o deslocamento humano como
elemento fundamental na criação dos lugares, imprimindo a estes uma coreografia
característica e única (CARVALHO, 2006).
Seamon busca romper com o que considera “abordagens convencionais” dos
movimentos cotidianos, dentre as quais a abordagem comportamental e as teorias
da cognição espacial seriam as principais representantes. Criticando a ênfase que a
abordagem comportamental confere aos estímulos exteriores ao sujeito, onde o
movimento emerge como resposta a condições adversas do meio, e a perspectiva
subjetivista das teorias da cognição, considerando os deslocamentos como
resultado de um processo de decisão cognitiva do sujeito, o autor vai encarar a
fenomenologia como um caminho para se pensar o movimento cotidiano enquanto
um fenômeno do mundo vivido. Reconhecendo a indissociabilidade entre as
dimensões subjetivas (centradas no sujeito) e objetivas (centradas no meio
ambiente) na realização dos movimentos, Seamon argumenta que a visão
fenomenológica encara os movimentos cotidianos como experiência, revelando, de
tal modo, como eles ocorrem no seu próprio modo, com sua própria estrutura e
dinâmica (SEAMON, 1979).
4
SEAMON, D. 1979. A Geography of the Lifeworld: Movement, Rest, and Encounter. London: Croom
Helm.
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Neste caminho, o autor vai buscar nas noções de “balés-do-corpo”5 e de
“rotinas espaço-temporais”6 os elementos chave na composição do balé-do-lugar.
Para Seamon, a natureza habitual dos movimentos cotidianos surge em primeira
instância do/no corpo. O corpo, aqui entendido de modo mais amplo, não atua como
um objeto passivo ocupando um espaço abstrato, como se operasse em resposta a
estímulos externos ou servindo como um receptáculo da consciência cognitiva, mas
sim, assume um papel central nas experiências de mundo vivido, direcionando
comportamentos de modo intencional. Seamon atenta que sublinhar e guiar
movimentos cotidianos é uma força corporal intencional que se manifesta tanto de
modo automático, como de modo sensível, expressas pelo autor na utilização do
conceito de “corpo-sujeito”7. Nas palavras de Seamon:
Corpo-sujeito
é
a
inerente
capacidade
do
corpo
de
direcionar
comportamentos das pessoas inteligentemente, e então funciona como um
tipo especial de sujeito que se expressa de maneira pré-cognitiva,
usualmente descrita por palavras como „automático‟, „habitual‟, „involuntário‟,
„mecânico‟. (SEAMON,
2013, p. 10)
É a partir do corpo-sujeito que os comportamentos se desdobram no tempo e
no espaço. Tais comportamentos serão definidos pelo autor enquanto balés-docorpo, “um conjunto de comportamentos integrados que sustentam uma particular
tarefa ou meta” (ibidem, p.12), como, por exemplo, lavar pratos, caminhar ou guiar
um veículo. Assim, os balés-do-corpo podem ser traduzidos como os movimentos
inatos realizados pelo indivíduo para a execução de uma determinada atividade, a
partir de um nível de ação corporal direta que faz parte dessa conexão entre homem
e mundo.
A noção de rotinas espaço-temporais, por sua vez, similar ao balé-do-corpo,
se refere a “um conjunto de comportamentos corporais habituais que se estendem
ao longo de considerável porção de tempo” ((ibidem, p.12), como, por exemplo, o
ato de correr todos os dias de manhã em uma praia ou caminhar até a padaria na
esquina de casa ou mesmo embarcar em um transporte público em direção ao
trabalho rotineiramente. Seamon afirma, de tal modo, que a rotina espaço-temporal
5
Do original “Body ballets”.
Do original “Time-space routines”.
7
Do original “Body-subjects”.
6
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possui certo padrão que pode ser descrito como “desenrolar”, em outras palavras, é
o próprio acontecer espaço-temporal efetivado por meio dos deslocamentos
regularmente empreendidos.
Quando os balés-do-corpo e as rotinas espaço-temporais se fundem em um
meio ambiente que sustenta e é sustentado por essas ações temos ai o que
Seamon considera como “balé-do-lugar”; um espaço-ambiente dinâmico emergindo
da “interação de muitas rotinas espaço-temporais e balés-do-corpo enraizadas no
espaço” (SEAMON, 1979, p. 56) experienciado pelo complexo de itinerários, passos
e movimentos que constituem o lugar. O que o autor pretende chamar atenção com
essa noção é o fato de que o lugar, como fenômeno experiencialmente construído,
transcende a mera condição locacional; os lugares abarcam as interações entre os
vários atores que participam de sua construção. Pensar, portanto, na experiência
humana de espaço sob a perspectiva do balé-do-lugar é reconhecer que os
movimentos cotidianos, realizados de maneira autoconsciente ou não, fazem parte
da construção de lugar. Por meio de padrões habituais de encontro no tempo e no
espaço, resultado do entrecruzar dos variados movimentos empreendidos
individualmente, “uma área pode se tornar um lugar, dividido pelas pessoas que lá
entram em contato espaço-temporal” (SEAMON, 2013, p. 15).
Mais do que simplesmente observar o padrão dos deslocamentos humanos
em determinada porção do espaço e descrevê-los em termos objetivos de
mensuração, direção e causas, um estudo que se propõe humanista em geografia
deve explorar como tais práticas compõem a experiência de mundo vivido,
escrutinando seus sentidos na criação dos lugares. Logo, quando propomos uma
leitura dos trens urbanos do Rio de Janeiro a luz da noção de balé-do-lugar, o que
pretendemos é descortinar os significados dos movimentos cotidianos que
participam da criação deste lugar.
3 – No Balé da Central:
Nos trens urbanos do Rio de Janeiro distintos balés-do-lugar se cruzam,
produzindo uma coreografia singular marcada pelo vai-e-vem entre os vagões e as
plataformas, os trilhos e as estações. Em meio a esta profusão de movimentos, o
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balé dos passageiros, entendidos aqui como aqueles indivíduos que embarcam nos
trens com o intuito de usufruírem de um serviço de transporte, possibilitando o
acesso a diferentes áreas conectadas pela ferrovia, se destaca como um elemento
chave na compreensão da construção deste espaço.
Um dos principais aspectos associados ao balé-do-lugar nos trens se refere à
noção de regularidade. Uma vez que o balé-do-lugar corresponde aos movimentos
cotidianos, a regularidade com que tais deslocamentos são realizados emerge como
tema pertinente ao que propomos explorar.
Na experiência cotidiana, reconhecer quais dias da semana, quais horários e
quais os percursos realizados pode revelar um contraste acerca do tipo de situação
que os passageiros estarão envolvidos, de modo que, diferentes sentidos de lugar
podem emergir a partir de diferentes vivências. Buscamos reforçar, de tal modo, a
ideia de que lugar extrapola a simples localização geográfica para efetivar-se
enquanto fenômeno vivido a partir das relações estabelecidas entre os sujeitos que
participam de sua construção em distintas circunstâncias (MARANDOLA JR. 2012).
Os relatos de M. e C., usuárias do ramal Deodoro exemplificam o que estamos
argumentando:
- o trem ele tem uma diferença enorme de horário, agora são duas e estamos sentados, se pegar
as seis, não dá nem pra você entrar direito, você é empurrado para o trem (M., usuária do ramal
Deodoro).
- Eu acho que o grande problema é quem precisa do trem naqueles horários que a gente sabe,
de 5:30 às 8:00. Eu vou 11:30 e volto 19:30, então eu pego tudo muito vazio. Então é muito bom,
muito bom (C., usuária do ramal Deodoro).
A regularidade se reflete ainda na própria forma de operação do serviço de
trens urbanos do Rio de Janeiro, atuando a partir de ramais definidos, com dias e
horários de funcionamento pré-estabelecidos, além de paradas e percursos
demarcados. Assim como Seamon (1980; 2013) acentua, mudanças nesta rotina
podem ocasionar desconforto e estranhamento por parte daqueles que participam
do balé-do-lugar. Durante a realização dos trabalhos de campo ficou claro uma
postura de rejeição por parte dos passageiros às alterações implementadas pela
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Supervia8 no percurso realizado pelos trens dos ramais Santa Cruz e Japeri. A
alteração, que previa uma redução do tempo de realização do trajeto dos ramais
supracitados a partir da mudança do número de paradas, causou confusão e
descontentamento por parte de alguns passageiros. Durante uma conversa informal
com um grupo de homens em uma viagem empreendida no ramal Santa Cruz, no
primeiro dia após as modificações executadas, um dos interlocutores foi bastante
enfático ao dizer: “Essas alterações só servem pra confundir nossa cabeça, na
prática não melhora nada, só piora”.
- Quando eu estudava na Fiocruz ali era conhecido como Faixa de Gaza, e a linha do trem era a
divisória de duas favelas que ficavam trocando tiros. Muitas vezes o trem parava do nada, e muitas
vezes, o pessoal já até sabia. Era tiroteio (Nicole, usuária dos ramais Saracuruna e Deodoro).
- Já passei pela situação do trem quebrar várias vezes, várias vezes, várias vezes. Então, você
ainda tem que sair com um pouco de antecipação para pegar a SuperVia. (Tiago, usuário do ramal
Deodoro).
A alteração da rotina dos movimentos pode ser resultado de eventos
inesperados, de modo a afetar o pleno funcionamento do serviço de transporte
prestado pelos trens urbanos do Rio. Atrasos, acidentes na ferrovia, pane mecânica
ou
elétrica
de
algum
veículo,
situações
adversas
envolvendo
problemas
relacionados à segurança nos trens, representam alguns dos eventos inesperados
destacados nos relatos dos passageiros. Cabe ressaltar que, a despeito de
considerados como eventos inesperados, tais situações fazem parte da rotina de
transitar pela ferrovia. Deslocar-se nos trens do Rio de Janeiro é, em certa medida,
estar constantemente aberto à possibilidade do inesperado. A regularidade com que
tais situações ocorrem influencia na criação de uma imagem negativa em torno da
ferrovia, atribuindo significados de precariedade e insegurança aos trens como
tônica do balé-do-lugar.
- Tem um rapaz, que toda vez que eu pego o trem no mesmo horário, lá está ele. Agente nunca
chegou a conversar não, mas tem umas pessoas que eu vejo sempre [...] É bom, porque eu sinto que
eu tô na hora certinha, não perdi o horário [...] essas pessoas assim tornam o trem um pouco
mais familiar. (Ana, passageira do ramal Deodoro).
8
Empresa pertencente ao grupo Odebrecht responsável pela operação comercial e manutenção dos
trens urbanos de passageiros da região metropolitana do Rio de Janeiro.
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A regularidade com que os movimentos são praticados podem sugerir um
sentimento de familiaridade associado à experiência do balé-do-lugar, não apenas
no sentido de se adaptar aos ritmos do lugar, mas também na interiorização de
outros elementos que participam de sua construção. Nas palavras de Seamon, “a
familiaridade decorrente da rotina é um dos ingredientes [do balé-do-lugar]”
(SEAMON, 2013, p. 13). Habituar-se ao som das rodas de ferro correndo nos trilhos,
ao balanço do trem em movimento, aquele ambulante que todos os dias profere as
mesmas frases no exercício de seu trabalho, ao rosto de companheiros de viagem
anônimos, ao intersectar do fluxo de pessoas na hora em que as portas do trem se
abrem para o embarque/desembarque, aos muros que impedem a livre circulação
pela ferrovia, aos avisos sonoros emitidos pela voz eletrônica quando a próxima
parada está se aproximando, são apenas alguns exemplos retirados dos relatos dos
passageiros que reforçam o caráter de familiaridade construído através da
experiência cotidiana do balé-do-lugar.
- Eu odeio o trem. Eu não gosto. Mas, ele é um transporte mais rápido que o ônibus. Não fica
preso no transido, assim chega mais rápido. Às vezes, por isso que a gente aguenta o transtorno.
(Anita, passageira do ramal Japeri).
- Já ando de trem há bastante tempo e o primeiro choque que eu tive quando eu comecei a andar
de trem foi perceber o quanto ele é mais rápido em matéria de transporte do que o ônibus, que eu
tava tão acostumado. (Flávio, usuário do ramal Deodoro).
Já atentamos aqui a importância de se considerar os ritmos de uso da ferrovia
por parte dos passageiros, destacando contrastes na experiência em função dos
dias, horários e percursos realizados. Contudo, cabe ainda destacar que tais ritmos
são construídos em diferentes níveis de densidade e velocidade, sendo esses
elementos indissociáveis do balé-do-lugar nos trens do Rio de Janeiro.
Sem dúvidas, uma das justificativas mais recorrentes sobre a escolha do trem
como meio de transporte decorre de sua capacidade de conectar de maneira rápida
regiões localizadas relativamente distantes ao centro da metrópole. Mesmo com
todos os problemas apontados nos relatos dos passageiros (lotação, insegurança,
violência e precariedade do serviço), com um número de paradas programadas e
sem o constrangimento de outros veículos em seu trajeto, os trens se destacam
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como uma alternativa para os transeuntes que pretendem fugir do trânsito no
transporte rodoviário.
Contudo, a despeito da possibilidade de sua objetivação enquanto medida, a
velocidade com que os movimentos são praticados no contexto da ferrovia emerge
como forma de experiência do balé-do-lugar, sendo revestida, portanto, de
significado (CRESSWELL, 2010).
- É tipo 300, o filme. É guerra. Eu to fazendo piada, mas é guerra mesmo. Eu já vi gente cair entre o
vão, que tem entre a plataforma e o trem, porque empurraram a pessoa para entrar no trem. [...]
Nessa de empurra pra cá, empurra pra lá, empurraram a mulher entre o trem e a plataforma e
ela ficou lá no vão, meio presa, meio entalada. Eu fico muito preocupada com minha integridade
física, eu espero as pessoas correrem, depois eu entro. (Ana, usuária do ramal Deodoro).
Na criação do balé-do-lugar na ferrovia, a construção simbólica da velocidade
é efetivada ainda através de outra imagem, a “pressa”. Os movimentos que
sustentam o balé-do-lugar nos trens são marcados pelo ritmo acelerado e por vezes
acompanhados da agressividade, da competitividade e da impaciência. Nos horários
de maior fluxo de passageiros, a aproximação do trem nas estações de parada
lotadas precede um ritual marcado por empurrões e corre-corre, na tentativa de
conseguir um melhor ponto no interior dos vagões para seguir viagem, ou mesmo,
em situações mais extremas, simplesmente conseguir embarcar. Tal fato gera uma
contradição marcante no contexto dos trens urbanos do Rio de Janeiro; enquanto os
trens cruzam a cidade em alta velocidade, várias pessoas se amontoam em uma
situação de imobilidade corporal no interior dos vagões.
A noção de velocidade acompanha ainda duas outras experiências
associadas ao balé-do-lugar na ferrovia, a ideia de distância e a duração dos
movimentos. Em um estudo humanista, questionar o quão distante é um ponto de
outro ou qual a duração do deslocamento entre esses pontos deve romper com
respostas objetivas e encontrar nos significados experiencialmente construídos a
base para a interpretação dessas dimensões. Desta maneira, Tuan (1983, p.26)
pontua, “o significado de distância é tão variado quanto às maneiras de experienciála: adquirimos o sentido de distância pelo esforço de mover-nos de um lugar par ao
outro”, de modo que, a experiência de distância está diretamente relacionada ao
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tempo de duração e condição do movimento. No entanto, afirmar que quanto maior a
velocidade com que o deslocamento é realizado menor é a sensação de distância é
um tanto simplista. Oferecemos aqui dois exemplos:
- Quando eu to chegando perto de casa é um alívio, porque é longe. Principalmente se eu estiver em
pé. Quando eu to em pé parece que demora muito mais. (Anita, passageira do ramal Japeri).
- O que eu gosto de fazer é ler [...] Então eu passo praticamente a viagem toda lendo, e às vezes a
viagem passa numa velocidade muito grande. (Flávio, usuário do ramal Deodoro).
No primeiro relato, a entrevistada afirma que quando realiza o percurso em pé
a sensação de duração da viagem lhe parece maior, neste caso, seu desconforto em
permanecer sob tais condições rompe com a objetividade da medida de distância e
tempo; no segundo caso, o entrevistado revela que costuma ler durante o percurso,
como resultado, a distração com a leitura faz com que o percurso se torne nublado,
de modo que tanto a duração, quanto a distância lhe parecem menores.
4 – Conclusões:
Descortinar as relações humanas com o espaço nos leva a um incessante
reconhecimento dos elos simbólicos impostos nessas relações. O trabalho aqui
apresentado, ainda que de maneira bastante breve, buscou recuperar essa
discussão, enfatizando uma leitura do universo simbólico dos trens urbanos do Rio
de Janeiro a luz da concepção fenomenológica de balé-do-lugar.
Parece-nos certo afirmar que o trem ultrapassa a mera condição de um
veículo objetivamente funcional. Por intermédio da experiência diária, o trem é
revestido de significados, edificados pelos diferentes atores que participam de sua
criação, se tornando, portanto, um lugar; em outras palavras, um centro de valor
simbólico. Longe de ser estático, este dinâmico lugar envolve distintos balés-dolugar, coreografias construídas pelos passos, gestos e itinerários dos mais variados
sujeitos que transitam pelos trens urbanos do Rio de Janeiro.
Acreditamos que a noção de balé-do-lugar pode nos fornecer uma importante
contribuição na compreensão de um ambiente complexo como os trens urbanos do
Rio de Janeiro, recolocando o papel da experiência, dos valores, dos sentimentos e
dos significados como parte indissociável na construção deste espaço.
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