II - Consumo: do Renascimento Revoluo Industrial

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Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia
Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção
Atelier: Identidades e Estilos de Vida
A mercantilização da vida social
Catarina Delaunay
I – Introdução
O processo contemporâneo de mercantilização da vida social é dominado pelas lógicas
de produção, comercialização e consumo de mercadorias, as quais possuem uma importante
componente simbólica, i.e., são alvo de um forte investimento tanto a nível individual como
colectivo. A mercadoria penetra um crescente número de esferas da sociedade e a ideologia do
mercado (em que predominam valores como a racionalidade, a eficiência, a escolha, etc.) e do
capital passa a reger ou, pelo menos, a mediar as próprias relações sociais entre os actores.
Com esta comunicação pretendemos expor, em traços largos, algumas das principais
tendências observadas actualmente no mundo ocidental em matéria de consumo, definido como
qualquer actividade envolvendo a selecção, compra, uso, manutenção, reparação e disposição de
um produto ou serviço (Colin Campbell in Miller, 1995, p. 102). Apresentaremos igualmente
resultados de uma pesquisa por nós efectuada, no sentido de evidenciar a importância da cultura
material no quotidiano de algumas famílias.
II - O Homo consumens pós-moderno
O mundo contemporâneo atravessa um conjunto de importantes transformações
políticas, sociais, económicas e culturais. Actualmente, vive-se um momento histórico
profundamente marcado pela internacionalização dos mercados, que se traduz na
universalização das trocas, da mercadoria e do capital.
A sociedade ocidental actual caracteriza-se por uma propensão para uma especialização
e investimento no consumo, o qual cada vez mais assume um papel preponderante na vivência
quotidiana dos indivíduos.
Só no século XX é que a questão do consumo alcançou uma significativa e considerável
visibilidade mediática, que se deveu maioritariamente à difusão e expansão da publicidade que,
explorando-o, o retiraram do «nicho» privado em que, por diversos séculos se havia escondido.
Este fenómeno contribuiu assim para tornar a dimensão do consumo uma parte integrante da
esfera pública, veiculando imagens da convivência familiar que até então não tinham nunca sido
expostas ou descritas. O consumo apresenta um carácter intrinsecamente contraditório: ao
mesmo tempo que assume um papel público e virado para o exterior (aquisição), remete-nos
igualmente para o íntimo, privado e quase que sacralizado (usufruto). No entanto, a sua vertente
de exterioridade é quase que compensada por um relativo anonimato, que constitui, assim, uma
espécie de protector dessa intimidade. O consumo introduz assim uma articulação ou relação
ambígua entre o espaço privado e o espaço público, devendo ser encarado enquanto fenómeno
social e problema sociológico.
Vivemos numa sociedade em que todos os sujeitos são levados a consumir, embora só
poucos sejam chamados a produzir, pois, com a evolução da tecnologia, o trabalho humano é
cada vez menos necessário para a fabricação dos bens, o que traz consigo importantes
desequilíbrios. Existe, hoje em dia, o reconhecimento do carácter universal da função de
consumo no contexto da família no Ocidente, designadamente nos tempos «pós-modernos»,
embora com variações socioeconómicas e regionais. A função de consumo é apresentada por
alguns autores como a única função que liga a família à ordem económica, já que, segundo os
mesmos, se perdeu o seu outro importante papel que era a produção. A família deixou assim de
ser simultaneamente unidade de produção e de consumo para se limitar a este último aspecto, ao
contrário do que acontecia anteriormente, em que desempenhava um papel económico global.
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A legitimação sociopolítica do reino do capital e do consumo, no mundo ocidental e não
só, constitui, pois, uma realidade inquestionável. O consumo deixa de ser encarado como um
direito ou um prazer para passar a ser um dever do cidadão. O indivíduo passa a servir o sistema
industrial não mais exclusivamente pelo fornecimento da sua força de trabalho, mas
principalmente pela capacidade de consumo dos bens produzidos, numa espécie de
responsabilidade social de consumir 1 .
Com o advento da geração yuppie, caracterizada por um maior poder de compra e por
um estilo de vida distinto e distintivo, assiste-se actualmente a um fascínio pelo domínio da
cultura de consumo e pela sofisticação da publicidade. Os media, sobretudo através do discurso
publicitário, foram responsáveis pela relativa unificação do campo simbólico do consumo no
mundo ocidental, por meio da difusão das mercadorias consideradas consensualmente como
objectos de desejo. Os meios de comunicação, através do condicionamento que exercem sobre
as representações, os discursos e o imaginário dos indivíduos, provocaram uma universalização
dos gostos, dos hábitos de consumo e dos estilos de vida social.
Os mecanismos publicitários são responsabilizados em parte por esse processo, embora
permaneça a discussão sobre se a publicidade cria necessidades ou apenas se limita a dar voz
aos desejos em voga e a reflectir os valores do momento. Cremos que ambas as afirmações são
verdadeiras. A todo o momento a publicidade «induz» necessidades, embora na maioria dos
casos o faça considerando o contexto económico e cultural. As necessidades criadas através da
publicidade representam, em primeiro lugar, os interesses económicos das grandes empresas e,
secundariamente, baseiam-se nos possíveis sonhos das mais diversas naturezas do denominado
público-alvo.
A publicidade é assim um dos elementos formadores dos comportamentos da nossa
época, como auxiliar nas supostas «escolhas» feitas pelos grupos socioculturais. A televisão e os
demais meios de comunicação de massa, mediante a difusão de mensagens publicitárias,
exercem uma grande pressão sobre todos os sectores sociais para que consumam, criando e
tornando natural a necessidade de adquirir bens e serviços. A publicidade institui-se assim como
entidade mediadora entre a produção e o consumo, estabelecendo regras de actuação em
sociedade e índices de auto e heterodefinição de que se encontram dependentes os processos de
construção identitária e de integração social. Todos desejam – ou necessitam desejar – a
participação neste mesmo sistema simbólico, independentemente das suas condições materiais e
do grupo a que pertencem, provocando uma quase uniformização dos padrões referenciais de
consumo. É hegemónica a sensação ilusória de que todos podem estar inseridos no sistema.
Inculca-se a percepção de que através do acesso aos mesmos bens materiais, culturais e
serviços, se alcança automaticamente uma igualdade total.
Um exemplo da ilusão de liberdade de escolha é o dos cartões de crédito, na medida em
que o facto de algumas pessoas viverem acima das suas possibilidades as conduz a uma situação
de sobreendividamento. De igual modo, o mercado informal constitui um comércio alternativo
que, ao vender mercadorias relacionadas com símbolos de status a baixo preço (embora por
vezes a proveniência seja duvidosa e sejam falsificações grosseiras), contribui para transmitir a
ideia de que todos podem ter acesso aos mesmos produtos, criando a impressão que o processo
de exclusão diminui.
III - Valor sócio-simbólico das «Coisas»
Mauss afirmou que, quando um homem dá coisas a outro «dá-se a si próprio» (1988,
p.163). Será que não poderíamos afirmar que quando um sujeito decide e adquire determinado
bem e/ou serviço, está a accionar um processo de definição de si próprio? Numa adaptação do
célebre princípio filosófico desenvolvido por Descartes não poderíamos então afirmar que
1
O próprio 13º mês trata-se essencialmente de um salário comercial que funciona como um instrumento
impulsionador do consumo. É geralmente pago nos meses de Novembro e Dezembro, que antecedem o
Natal e as festividades do fim do ano. Na época pré-natalícia, o aliciamento ao consum(ism)o e a pressão
para se fazer compras são ainda reforçados pela ampliação do horário de atendimento das lojas.
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«Consumo, logo existo»? O sujeito define-se não só para os outros, como também para si
próprio.
Segundo Colin Campbell, os bens de consumo servem para preencher uma gama
alargada de funções pessoais e sociais: satisfazer necessidades ou desejos; compensar o
indivíduo por sentimentos de inferioridade, insegurança ou perda; simbolizar realização, sucesso
ou poder; expressar distinções sociais ou reforçar relações de superioridade e inferioridade entre
indivíduos ou grupos; expressar atitudes ou estados mentais; comunicar mensagens específicas
de uma pessoa para outra; e criar ou confirmar o sentimento de Self ou identidade pessoal de um
indivíduo (in Miller, 1995, p. 111).
De um ponto de vista teórico, os actores sociais codificam as «coisas» com significado,
atribuem-lhes um sentido social, uma dimensão simbólica, para além da função utilitária que
lhes está subjacente. Os objectos e a própria cultura material são agentes de construção
permanente das próprias sociedades e não um simples reflexo ou produto das mesmas ou meros
instrumentos de «adaptação» ao meio envolvente. Então os artefactos são veículos de
transmissão de sentidos e significados, transportando em si uma espécie de «linguagem
silenciosa» que é preciso descodificar e interpretar de modo a compreender a própria vivência
em sociedade, designadamente em termos de representações e práticas sociais. No entanto, o
significado dos objectos e as práticas que lhes estão associadas podem variar ao longo da
história e consoante os contextos socioculturais, o que nos remete para uma instabilidade
semântica e para uma diversidade de apropriações simbólicas.
O consumo prende-se assim com subjectividade, significações, percepções, cultura,
estilos de vida, sentimento de liberdade, de aspiração de status e de poder pessoal. A identidade
pessoal dos indivíduos é «criada» por elementos «criados» por outros, razão pela qual a escolha
do consumo é altamente construída (Tomlinson, 1994, p. 13). Como já referimos anteriormente,
a produção em massa evolui não só no sentido de responder constantemente às necessidades de
mercado, mas também de moldar uma nova mentalidade de consumo.
O próprio consumo pode ser encarado enquanto forma de acção simbólica se
analisarmos o papel que os bens e os serviços consumíveis desempenham no sistema simbólico
(Appadurai, 1986, p.110). Neste âmbito, é pertinente distinguir entre, por um lado, bens e/ou
serviços de 1ª necessidade e, por outro, de 2ª necessidade ou mais propriamente entre
«necessidades» e «luxos», que remete para as diferentes percepções sobre o valor simbólico das
«coisas». No entanto, as necessidades de pessoas, grupos ou culturas não são coincidentes.
Assim, termos como «necessidade básica» ou «supérfluo» traduzem questões etnocêntricas. Os
critérios de classificação de bens de 1ª necessidade e de luxo são, deste modo, extremamente
subjectivos e variáveis segundo os grupos socioeconómicos e, inclusive, segundo os contextos
históricos, pois aquilo que há umas décadas atrás era considerado supérfluo, como a televisão,
pode actualmente constituir uma necessidade premente na vida de alguns indivíduos.
Tal como refere Christine Delphy (1975, pp. 23-24), o carácter flexível do consumo
diferencial remete-nos para o facto de não serem os conteúdos específicos que são definidos,
mas os princípios de atribuição. Assim, o aspecto que sobressai na hierarquia de consumo é a
necessidade simbólica de delimitar o acesso privilegiado e estatutário aos bens considerados
raros num determinado momento.
O consumo é uma das dimensões do processo comunicacional na sociedade
contemporânea, na medida em que, por meio da posse de bens materiais, os sujeitos transmitem
mensagens aos grupos socioculturais a que pertencem ou gostariam de pertencer, envolvendo
relações de inclusão e distinção social no plano simbólico.
Baudrillard (1991) foi um dos principais autores contemporâneos a abordar o problema
teórico do consumo. Para o autor, o consumo vai mais além de um simples processo de
satisfação das necessidades de uso e de troca, constituindo uma actividade do domínio da
manipulação sistemática de signos, segundo uma lógica de diferenciação estatutária. A lógica
paradoxal de apropriação dos símbolos em determinados grupos socioculturais estabelece-se
através de uma relação dialéctica entre o desejo de se tornar padrão (obedecendo a um código ao
adquirir o mesmo objecto) e o de se diferenciar (busca da individualidade através de um objecto
que seja considerado simbolicamente superior).
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O telemóvel pode ser considerado com um dos mais acessíveis instrumentos de inclusão
sócio-simbólica e um dos objectos de desejo fundamental para todas as classes sociais urbanas,
sendo identificado como um equipamento básico para a vida contemporânea. Mas apesar de ter
o mesmo valor simbólico, a diferença estabelece-se na concretização deste desejo, como seja a
possibilidade de se adquirir modelos mais sofisticados (elemento de distinção). O mercado é
assim simultaneamente divisor e igualador.
Segundo Baudrillard (1991), os objectos não estão mais associados exclusivamente à
sua utilidade (valor de uso) e sim ao prestígio simbolizado pela sua posse (valor-signo). No
entanto, a situação muda a partir da banalização do uso de um determinado objecto que, ao estar
ao alcance de todos, perde o seu valor como elemento significativo, surgindo novos bens que
passam a ser eleitos como critério de distinção social e de estatuto.
Assim, os bens consumidos funcionam como signo que distingue ou filia o indivíduo
num determinado grupo socioeconómico. O desejo de diferenciação e a obediência a um código
são vividos pelo consumidor como liberdade e direito de escolha. A escolha, no entanto,
encontra-se definida a priori, i.e. formalizada em função dos bens disponíveis e oferecidos no
mercado. A escolha consiste em variar os bens de acordo com a sua posição na escala
hierárquica, aceitando o estilo de vida de determinada sociedade e desmentindo a teoria da
autonomia e soberania do consumidor.
IV – Estilos de vida
O estilo, segundo Maffesoli (1993, p. 31), é como uma espécie de língua comum
mesmo que seja só de alguns. Essa linguagem é codificada, servindo de sinal de distinção e de
reconhecimento dessa pertença ou adesão a um determinado grupo, mediante a adopção da sua
maneira de ser e/ou de pensar. O corpo social que se constrói, a aparência pessoal que se
idealiza, a arquitectura de ideias que se procura apresentar são exemplos dessa «estilização da
atitude» e «estetização da existência», para utilizar as expressões de Michel Foucault.
Podemos, assim, avançar que o estilo, embora seja difícil de definir, é facilmente
reconhecível e transporta em si um conjunto relevante de informações. O estilo desempenha um
importante papel de apresentação do Self aos outros 2 , de tomada de consciência, apreensão e
compreensão da própria sociedade. O estilo torna-se essência e a realidade aparência.
Actualmente, é dada aos indivíduos a possibilidade de escolherem a sua própria
identidade pela alteração dos seus padrões de consumo. Como bem resume Featherstone (segundo Colin Campbell in Miller, 1995, p. 112), «Everyone can be anyone». Qualquer pessoa
pode ser quem ela quiser, pois o sistema hierárquico fixo dos grupos de status social deu lugar a
um sistema completamente «aberto» em que cada indivíduo é livre e auto-consciente para
escolher qualquer um dos múltiplos «estilos de vida» disponíveis. Embora a idade, o estatuto
profissional e a fase do ciclo de vida sejam factores objectivos e discriminatórios que
influenciam o rendimento disponível e, consequentemente, o poder de compra dos sujeitos,
estes têm a possibilidade de aceder a bens ou serviços que não são os correlativos à sua posição
de classe, graças ao recurso ao crédito, ao modo de pagamento em prestações e também
mediante uma reordenação das prioridades de consumo. Convém, no entanto, esclarecer que
este aspecto não significa que os sujeitos escolhem livremente a classe socioeconómica em que
se inserem. Estamos somente a falar em termos de estilos de vida.
No caso específico da escolha do automóvel, as pessoas não compram um carro que
simbolize o seu lugar de classe, mas que represente um determinado estilo, que tem a ver com a
forma como as pessoas se vêm a si próprias e como querem ser vistas pelos outros. De qualquer
forma, pode haver situações em que o estilo de um sujeito constitua uma forma de representação
do «eu» ou do «mim» próximo do seu universo de classe.
A questão de adoptar um determinado estilo de vida e, de certa forma, «brincar» com as
identidades, é sobretudo verdadeiro para os jovens que sentem, com maior intensidade, a
2
Citando Maffesoli «le style c’est avant tout le fait de n’exister que dans et par le regard ou la parole de
l’autre» (1993, p. 31).
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necessidade de pertença e de reconhecimento por parte do grupo de pares (através, por exemplo,
do uso de roupa da moda).
Por outro lado, e sobretudo em contextos de cultura de consumo, é extremamente
importante o papel da posse ou propriedade enquanto extensões do próprio Self. O possuir algo,
o dizer que é nosso, define-nos, i.e. constitui uma expressão simbólica da própria identidade
individual.
Segundo Peter Jackson e Nigel Thrift (in Miller, 1995, p. 227), na maior parte dos
estudos sobre consumo, um ponto de partida útil é a hipótese de que as nossas identidades são
afirmadas e contestadas através de actos específicos de consumo: definimo-nos pelo que
compramos e pelo significado que atribuímos aos bens e serviços que adquirimos.
Jogam aqui dois aspectos importantes: a funcionalidade e a culturalidade. Esta última –
que podemos designar de função segunda – remete-nos não só para um sistema de gosto, como
também para um sistema cultural de sinais de prestígio e promoção social. É o consumo como
manifestação de um gosto despoletado pela posse de um determinado capital cultural ou
simbólico objectivado, instituído e incorporado (Cf. Bourdieu, 1979).
A escolha deste ou daquele objecto de entre um leque disponível de possibilidades não
se limita a ter em conta a sua função pura e a necessidade que preenche; constitui um momento
único de demarcação da personalidade, de «personalização» do Self, que atinge o seu auge na
própria «criação» do objecto idealizado, mediante uma miscelânea de estilos estereotipados. No
nosso estudo, tal facto é manifesto no caso do mobiliário (Delaunay, 2001).
A praxis de consumo, designadamente a materialização dos desejos nos bens de
produção, constitui assim um veículo de realização pessoal, de expressão de liberdade
individual, todavia condicionadas pelas normas da ordem social. No entanto, os aspectos ou
géneros da identidade social que podem encontrar objectivação nas mercadorias não são fixos,
estáveis, imutáveis ou dados de uma vez por todas. Neste âmbito, surge como pertinente
recuperar a noção de identidade do self múltiplo, fragmentado e instável proposta por Kaufmann
(1997, p. 32).
No entanto, determinados objectos do quotidiano permanecem ao longo da vida dos
indivíduos e, na medida em que constituem uma imutável exteriorização material da própria
pessoa, conferem consistência e estabilidade à sua identidade. Um exemplo do estudo por nós
realizado sobre as famílias contemporâneas da classe média tradicional lisboeta (Delaunay,
2001, pp. 157-159) é o da secretária, que vem desde a fase de solteiros e que se mantém no
decurso da vivência conjugal, e da qual é difícil a separação pois constitui um prolongamento
identitário e remete para recordações que fazem parte do imaginário individual.
As fotografias bem como objectos herdados ou recebidos em oferta, funcionam como
instrumentos para fazer reviver as relações entre as pessoas e como veículos de comunicação
entre elas. Trata-se da personalização e objectivação da memória familiar através da relação
afectiva que os sujeitos estabelecem com as «coisas». De início os objectos são exteriores ao
sujeito, sendo depois gradualmente interiorizados, passando a fundar e a integrar a própria
identidade. Estes objectos não são funcionais; constituem objectos-significação (mediação
simbólica com o passado), contrapostos aos objectos-funcionalidade, que existem para satisfazer
uma necessidade prática do presente.
Os objectos permitem ainda, por um lado, identificar as etapas de construção da
conjugalidade (acumulação de objectos e ocupação progressiva do espaço) e, por outro,
expressam a própria dinâmica do casal (colectivização dos objectos individuais versus recusa de
conjugalização de objectos considerados pessoais, como livros ou discos).
De igual modo, é possível identificar uma relação diferencial com os objectos consoante
a identidade de género dos sujeitos, que se reflecte no modo são vividos (investidos,
consumidos, possuídos, personalizados), mas também ao nível da escolha e aquisição, com a
demarcação de áreas de competência e decisão. A título exemplificativo, podemos referir que,
no que se refere ao modo de funcionamento com os objectos tecnológicos (televisão,
aparelhagem de som, automóvel), enquanto as mulheres apenas querem saber o básico (ligar e
desligar), a vertente de reparação constitui uma competência marcadamente masculina. Quanto
aos domínios de compra, o do homem engloba os já referidos objectos tecnológicos, as bebidas
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alcoólicas e os jornais, o da mulher inclui os medicamentos, os produtos alimentares frescos e a
roupa.
Outro aspecto (Delaunay, 2001, p. 215), foi o facto do conceito de marca se encontrar
profundamente interiorizado relativamente a determinados produtos de higiene pessoal, de que
se destaca a pasta de dentes. O discurso sobre o objecto de consumo faz-se quase sempre por
referência a um «nome», símbolo de uma fidelidade quase afectiva. Os únicos que parecem
escapar completamente a esta mobilização dos rótulos – ao nominalismo das marcas – são os
produtos alimentares perecíveis. No entanto, mesmo estes podem conferir uma certa
estabilidade e continuidade à tradição familiar, mediante a manutenção de uma determinada
marca, de geração em geração. Por oposição a estes bens de grande longevidade encontramos
aqueles que são transitórios e ligados a fenómenos de moda. Existe, no entanto, por vezes a
consciência, por parte dos inquiridos, da «reincarnação» das marcas, ou melhor, do rebaptismo
dos produtos aliado a uma estratégia publicitária.
Segundo Baudrillard (1991), no contexto do que designa de «sociedade de consumo», o
desenvolvimento faz-se através da incessante produção dos chamados bens de consumo nãoduráveis. Embora estes produtos tenham actualmente uma qualidade maior, é uma exigência do
sistema que possuam fragilidade ou obsolescência calculada para que sejam novamente
adquiridos e substituídos ciclicamente. O facto das mercadorias constituírem o fundamento da
existência do consumo, faz com que elas sejam criadas ad infinita, pois serão logo destruídas e
substituídas.
A dimensão tempo marca assim a geração actual de objectos: dado o curto ciclo de vida
dos objectos, o seu carácter efémero traduz-se numa substituição a um ritmo acelerado.
Adquire-se um bem e imediatamente ocorre uma desvalorização, não só em termos de valor
monetário como também afectivo. É a era da ética utilitarista do prazer, dos interesses
pragmáticos e das necessidades imediatas (do aqui e agora) dos sujeitos, com a consequente
valorização do efémero, do descartável, do transitório e das decisões individuais.
V - Individualismo versus cidadania
Vários factores contribuíram para a ampla difusão e forte impulsão da ideologia do
consumo e para a consolidação internacional do capitalismo.
Em primeiro lugar, a diminuição da participação política e da vida comunitária (com
excepção dos bairros mais desfavorecidos) e a descrença nas instituições sociais conduzem a um
isolamento do indivíduo, ao seu encerramento no espaço privado das residências
(enclausuramento doméstico) e, consequentemente, à diminuição do grau de interacção e
comunicação entre as pessoas. A maioria não está interessada em projectos colectivos, que
tenham por finalidade questionar a ordem sócio-simbólica em vigor ou a modificação das
estruturas socioeconómicas existentes. Consequentemente, passou a preocupar-se mais com o
que pode comprar, ou seja, com a sua capacidade aquisitiva.
Se considerarmos o conceito clássico de cidadania, relacionando-o com a ampliação da
participação cívica e política, verificamos que se assiste actualmente a uma diminuição do seu
exercício, por contraponto a uma afirmação do individualismo. No entanto, para alguns autores,
ao consumir-se também se pensa, i.e. escolhe-se e reelabora-se o sentido social das coisas,
constituindo uma nova forma de exercício de cidadania.
Outro elemento fundamental é a dessacralização da sociedade. Nas últimas décadas,
assistiu-se a uma diminuição significativa do poder simbólico da Igreja Católica, deixando de
ser o referencial místico hegemónico ao nível dos grandes aglomerados urbanos. Assim, ocorre,
ao nível das classes médias, a substituição das idas à Igreja ao domingo (dia voltado para o
descanso e culto, segundo a liturgia cristã) pelas «peregrinações» aos centros comerciais,
considerados «catedrais» do consumo.
Um terceiro aspecto é a derrocada do «socialismo real», exemplificado pela queda do
muro de Berlim e o fim da União Soviética. Este acontecimento levou a que alguns sectores
sociais do Leste Europeu manifestassem o desejo de acederem às chamadas «maravilhas do
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consumo». No entanto, este movimento teve como contrapartida o aumento do desemprego, da
exclusão, da corrupção, do crime organizado sem fronteiras e do luxo e opulência de alguns.
VI – Em jeito de conclusão
Podemos então concluir que o desenvolvimento do processo civilizacional conduziu ao
aparecimento de sociedades profundamente marcadas pela mundialização do capital e pela
mercantilização do social. O princípio axial é a globalização e unificação dos mercados e um
modelo de civilização que tende a apresentar-se como alternativa hegemónica a nível planetário.
No entanto, a massificação dos padrões de consumo e estilos de vida ocidentais não é viável na
medida em que produz, como reverso da medalha, a delapidação do ecossistema planetário, com
o consequente esgotamento das reservas de recursos naturais não renováveis e aumento dos
resíduos poluentes lançados no meio ambiente.
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