A AÇÃO PARABÓLICA DO BATISMO DE JESUS

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A AÇÃO PARABÓLICA DO BATISMO DE JESUS
(Mc 1.9-11).1
The Parabolic Action of Jesus´ Baptism
Claiton André Kunz.2
Resumo
Jesus utilizou diferentes métodos de ensino durante o seu
ministério. Um desses foi o método das ações parabólicas, nos
mesmos moldes das ações simbólicas dos profetas do Antigo
Testamento. A presente pesquisa analisa o batismo de Jesus, de
acordo com o relato do evangelista Marcos, dentro da perspectiva
de uma ação parabólica, procurando encontrar respostas à questão
da necessidade desse batismo.
Palavras chave: Ação parabólica; Jesus; Batismo.
Abstract
Jesus used different teaching methods during his
ministry. One of these was the method of parabolic actions,
in like manner the symbolic actions of the prophets of the
Old Testament. This research analyzes the baptism of Jesus,
1 Este artigo é parte integrante da tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação da Escola Superior de Teologia (São Leopoldo / RS).
2 O autor é bacharel em Teologia pela Faculdade Batista Pioneira, com revalidação
pela Faculdade Teológica Batista do Paraná, e bacharel em Filosofia pela Unijuí. É
mestre e doutorando em Teologia pela Escola Superior de Teologia (São Leopoldo /
RS). É professor e coordenador acadêmico da Faculdade Batista Pioneira e professor
convidado do programa de Mestrado Profissional em Teologia da Faculdade Teológica
Batista do Paraná. E-mail: [email protected].
8
Claiton André Kunz, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 08 - 48 | Via Teológica
according to the account of the Evangelist Mark, from the
perspective of a parabolic action and seek answers to the
question of the necessity of this baptism.
Keywords: Parabolic action; Jesus; Baptism.
INTRODUÇÃO
Alguns textos nos evangelhos trazem-nos certa hesitação
sobre o seu significado real e sua razão de ser. Dentre estes textos
que exigem um pouco mais de reflexão, podemos citar o relato
do batismo de Jesus Cristo. Ele precisava ser batizado? O que essa
ação de Jesus, embora sendo muito mais passiva do que ativa,
quer transmitir?
1. Texto do batismo de Jesus
1.1 Visão Geral do Texto
O evangelista Marcos é conhecido pela sua brevidade e
objetividade em seu texto. Seus destinatários romanos não se
prestavam a relatos pormenorizados e, por isso, Marcos sempre
vai direto ao que lhe é de maior interesse. Na narrativa do
batismo de Jesus não foi diferente. Bortolini lembra que “Marcos
omite o diálogo entre o Precursor e Jesus (Mateus 3.14-15) e vai
diretamente aos resultados do ato de Jesus descer à água e subir
dela: o céu se rasga, o Espírito desce e uma voz se manifesta”.3
Esse episódio poderia ser visto como uma “transição do
período da atividade pública de João para o tempo de vida
3 BORTOLINI, José. O evangelho de Marcos: para uma catequese com adultos. São
Paulo: Paulus, 2003. p. 26.
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pública de Jesus (cf. v. 14)”.4 Para Anderson, entretanto, seria
um engano pensar simplesmente que Marcos está pretendendo
aqui apenas um ponto histórico e cronológico de mudança,
como se o trabalho de João Batista estivesse completo e agora
o ministério público de Jesus estivesse começando. Antes, é
pontualmente a hora decretada por Deus para o aparecimento
de Jesus Cristo.5
Concordamos com Anderson: o ministério de João Batista
não se encerra com o aparecimento do Messias. Mesmo assim,
não podemos deixar de observar que, em Marcos, praticamente
“não se olha mais para João. O seu papel é totalmente secundário
depois que Jesus chega”.6 Isso se encaixa bem com a própria
indicação de João quando afirma, no verso 7, que depois dele
viria alguém mais poderoso do que ele, diante de quem não era
nem digno de curvar-se e desatar as sandálias.
Diante disso começa a surgir a primeira inquietação:
se havia uma diferença tão grande entre ambos, como Jesus se
sujeita ao batismo de João? Sem dúvida, Jesus e João conheciam-se
de antemão, mesmo que o evangelho não informe isso.7 O grau
de parentesco entre ambos, conforme Lucas 1.36, leva a crer que
eles se conheciam.
Para Mateos e Camacho, Jesus foi consciente para o batismo
4 COLLINS, Adela Yarbro. Mark: a critical and historical commentary on the Bible.
Minneapolis: Fortress, 2007. p. 147-148.
5 ANDERSON, Hugh. The gospel of Mark. Grand Rapids: Eerdmans; London:
Marshall, Morgan & Scoth, 1994. p. 75.
6 POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Tradução de Hans Udo Fuchs. Curitiba:
Esperança, 1998. p. 56.
7 CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por
versículo. São Paulo: Hagnos, 2002. Vol. 1, p. 665.
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e foi, inclusive, consciente da sua missão messiânica.8 Mas
como pode Jesus, isento de pecado, submeter-se ao “batismo de
arrependimento para remissão de pecados”?9 É muito estranho o
fato de Jesus, que batizará com o Espírito Santo, buscar o batismo
para si. Seria Jesus um pecador arrependido como os outros
batizados por João? De acordo com o prólogo de Marcos isso seria
impossível, pois Jesus é apresentado como o Cristo, o Filho de
Deus (v. 1), o Prometido (v. 2,3) e o doador do Espírito (v. 8).10
Mas, então, por que ser batizado? Seria Jesus batizado com
pecadores como o servo (Ebed) redentor (Cullmann)? Seria esse o
momento do chamado, do surgimento da consciência messiânica
(Fuller) ou da clarificação de sua pessoa e ministério (Taylor)? Ou
seria essa uma situação para revelar o messias para Israel e para
João (Lagrange) ou para dar a Jesus um sinal e um impulso para
começar o ministério (Feuillet)? Ou foi simplesmente algo criado
pela tradição para validar a filiação e o papel messiânico de Jesus
(Conzelmann, Dibelius, Schmithals) ou apenas planejado com a
intenção de ser um protótipo para o batismo cristão (Haechen)?11
Responder a essas questões requer uma análise exegética
da perícope em questão. Podemos crer que o batismo de fato
aconteceu? E, nesse caso, qual a razão de ter acontecido? E qual o
significado por trás desse acontecimento no rio Jordão?
8 MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. Marcos: texto e comentário. São Paulo:
Paulus, 1998. p. 83.
9 SCHNIEWIND, Julius. O evangelho segundo Marcos. Tradução de Ilson Kayser.
São Bento do Sul: União Cristã, 1989. p. 27.
10 MULHOLLAND, Dewey M. Marcos: introdução e comentário. Tradução de
Maria Judith Prado Menga. São Paulo: Vida Nova, [199-]. p. 34.
11 GUELICH, Robert A. Mark 1:1 – 8:26. Nashville: Thomas Nelson, 1989. p. 30.
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1.2 Delimitação do Texto
O evangelista Marcos é bastante sucinto em sua exposição
sobre o batismo de Jesus, reservando apenas poucos versos sobre
o tema, a saber, do versículo 9 ao 11. Podemos perceber que essa
perícope inicia no versículo 9 a partir dos seguintes indicadores:
a) há uma indicação de tempo logo no início da
perícope: Marcos relata que “naqueles dias” Jesus se
aproximou de onde João Batista já estava exercendo o
seu ministério;
b) há a indicação de um novo personagem: enquanto
os versos anteriores tratavam do ministério e da ação
de João Batista junto ao Rio Jordão, o versículo nove
inicia informando que Jesus entra em cena e também
passa a ser o centro desse episódio, deixando o Batista
em segundo plano;
c) também há uma indicação de novo espaço: embora João
Batista já estivesse junto ao Rio Jordão (v. 5), batizando
aqueles que confessavam os seus pecados, o versículo
nove indica que Jesus veio de Nazaré da Galileia até
João Batista, que se encontrava naquele local;
d) a mudança de prosa para narrativa, do verso 8 para
o verso 9, também pode ser indicativa de mudança
perícope.
Podemos perceber também que a perícope do batismo se
encerra já no verso 11 pelos seguintes aspectos:
a) há uma diminuição de personagens quando inicia o
verso 12: João Batista desaparece momentaneamente
12
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para dar espaço a um novo momento do ministério de
Jesus, a saber, a sua tentação no deserto (v. 12);
b) do versículo 11 para o 12 há novamente uma mudança
de espaço, que indica que uma nova perícope já se inicia;
c) pode ser observado também, no decorrer da perícope
(v. 9 a 11), o que Cássio Murilo Dias da Silva chama
de “campo semântico”.12 Os termos e expressões “foi
batizado”, “rio Jordão” e “saiu da água” fazem parte
do campo semântico “batismo”.
1.3 Crítica Textual
Em relação ao texto original, a 4a edição do The Greek New
Testament não traz nenhuma leitura variante para os versículos 9 e
10, e para o versículo 11 traz as seguintes informações:
e)ge/neto e)k tw=n ou)ranw=n a² A B L (W tou=
ouranou=) D f 1 f 13 157 180 205 579 597 700 892
1006 1010 1071 1241 1243 1292 (1342) 1424 1505
2427 Byz [E F H P S] Lect (l 127 l 1841/2 tou= ouranou=)
it(a), aur, (b), (c), (f), l vg syrp, h, pal mss copsa, bo arm(mss) eth (geo2)
slav Diatessaron Jerome //
e)k tw=n ou)ranw=n h)kou/sqh Q 28 565 vgms syrpal
ms
geo1 //
e)k tw=n ouranw=n a* D itd, ff2, t
13
12 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica. São Paulo:
Paulinas, 2000. p. 74.
13 ALAND, K. et. al. (Ed.). The Greek New Testament. 4.ed. Stuttgart: United Bible
Societies, 1994. p. 118.
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13
Na primeira leitura, conforme se encontra no texto grego
do Novo Testamento, aparece a expressão e)ge/neto e)k tw=n ou)
ranw=n. A tradução da frase, nesse caso, pode ser: “(uma voz) veio
dos céus”. A leitura é atestada por vários Unciais (entre eles, a2
A B L D), vários Minúsculos, alguns lecionários e importantes
versões antigas como a Antiga Latina, Vulgata, Siríaca, Copta,
Armênia, entre outras. O Diatessaron e Jerônimo também atestam
essa leitura.
Na segunda leitura, não aparece o verbo e)ge/neto, mas
acrescenta-se o verbo h)kou/sqh (na terceira pessoa do singular
do aoristo do indicativo passivo do verbo a)kou/w). A tradução da
frase, nesse caso, poderia ser: “(uma voz) do céu foi ouvida”. Essa
leitura é atestada apenas pelo Uncial Q, pelos minúsculos 28 e
565, por alguns manuscritos da Vulgata, alguns manuscritos da
Siríaca Palestina e pela versão Georgiana.
Uma terceira leitura aparece em alguns poucos manuscritos
sem o verbo e)ge/neto, mas também sem o acréscimo do verbo
h)kou/sqh. Nesse caso, a tradução seria simplesmente “(uma voz)
do céu”. Essa leitura é atestada apenas pelos Unciais a² e D e
ainda por alguns manuscritos da versão Antiga Latina (d, ff2 e t).
Embora os editores da 4ª edição atribuam a sigla {B}
diante das variantes, que indica que a primeira leitura pode
ser considerada como original, mas com certo grau de dúvida,
entendemos que não há razões significativas para haver dúvida.
Muito provalvemente a substituição do verbo e)ge/neto pelo verbo
h)kou/sqh tenha sido apenas um polimento posterior na frase,
tendo em vista que o termo “voz” encaixa-se melhor com “foi
ouvida” do que com o verbo “veio”.
14
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1.4 Tradução do Texto
O texto grego de Marcos 1.9-11, segundo o The Greek New
Testament, é:
Kai& e)ge/neto e)n e)kei/naj tai=j h(me/raij hülqen >Ihsou=j
a)po& Nazare&t th=j Galilai/aj kai& e)bapti/sqh ei)j to&n
>Iorda/nhn u(po& >Iwa/nnou. kai& eu)qu&j a)nabai/nwn e)k
tou= uÖdatoj eiüden sxizome/nouj tou=j ou)ranou&j kai& to&
pneu=ma w(j peristera&n katabai=non ei)j au)to/n: kai&
fonh& e)ge/neto e)k tw=n ou)ranw=n, Su& eiü o( ui(o/j mou o(
a)gaphto/j, e)n soi& eu)do/khsa.14
Por questões de espaço, não será possível transcrever aqui
toda a análise léxica das palavras do texto. Portanto, será dada
apenas a tradução final:
E aconteceu que naqueles dias veio Jesus de Nazaré da Galileia
e foi batizado por João no Jordão. 10 E logo ao sair da água,
viu sendo rasgados os céus e o Espírito, como pomba, descendo
sobre Ele; 11 e uma voz veio dos céus: “Tu és o meu Filho amado;
em ti me agrado”.
9
2. Contexto do Batismo de Jesus
2.1 Contexto Histórico e Literário
Durante séculos a voz viva da profecia mantivera-se
silenciosa. Deus não mais falara diretamente por meio de uma voz
humana a fim de declarar a sua vontade ao seu povo. Surgiram
nessa época a religião dos escribas (que interpretavam a vontade
de Deus em termos de obediência à Lei) e os apocalípticos (que,
em acréscimo à Lei, incorporavam a esperança de uma salvação
futura). Entretanto, geralmente esses movimentos eram mais
rebeliões políticas e militares contra Roma, o que para eles
14 ALAND, 1994, p. 118.
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15
significava tomar uma posição a favor do Reino de Deus, pois
apenas Deus, e não Roma, deveria reinar sobre eles.
Levando em conta esse fundo histórico, de um povo que
estava gemendo sob o domínio de uma nação pagã, aguardando
ansiosamente pela vinda do Reino de Deus e que sentia que
Deus havia ficado silencioso, apareceu um novo profeta com a
proclamação: “O Reino de Deus está próximo”. João se retirara
para o deserto por anos (cf. Lc 1.80) e ao Deus se manifestar
(“veio a palavra do Senhor a João” – Lc 3.2), aparece anunciando
que o Reino de Deus estava próximo. Sua atuação foi nos moldes
da tradição profética. Anunciou que Deus iria agir decisivamente
na história e, em antecipação a isso, os homens deveriam se
arrepender. Como evidência disso, eles deveriam então submeterse ao batismo. Depois de muito tempo, Deus havia suscitado um
profeta para declarar a vontade divina ao povo (Mc 11.32). As
notícias do aparecimento desse profeta rapidamente se espalharam
por toda a Judeia (Mc 1.5).15 O próprio João Batista, entretanto,
deixava claro que ele não era o Messias, mas apenas anunciava
Aquele que viria depois dele.
Nesse momento Jesus aparece em cena e, para isso, Marcos
introduz a perícope com a expressão “naqueles dias”. Essa
expressão é a fórmula usada pelos profetas do Antigo Testamento
para anunciar a nova aliança (cf. Jr 31.31-33) e até para falar do
derramamento do Espírito (Jl 3.2), expressando a época em que
as promessas seriam cumpridas.16
Marcos relata que pessoas de vários lugares vieram até João
15 LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. Tradução de Darci Dusilek e
Jussara Marindir Pinto Simões Árias. São Paulo: Exodus, 1997. p. 33-35.
16 MATEOS; CAMACHO, 1998, p. 83.
16
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para ouvi-lo, confessarem seus pecados e serem batizadas por ele
no rio Jordão. Enquanto as multidões vinham de toda a Judeia e
especialmente de Jerusalém (v. 5), Marcos informa que Jesus veio
do norte, de uma vila chamada Nazaré.17 Pohl chama a atenção
para esse contraste quanto à origem:
Sua origem é o primeiro choque. Ele não veio da região central
do judaísmo, a Judeia, menos ainda da cidade santa com seu
templo... Ele veio de um povoado afastado, Nazaré, que só podia
ser encontrado com ajuda: da Galileia18
De acordo com o evangelho de João (1.46), o conceito
das pessoas era que de Nazaré não poderia sair nada de bom.
Além disso, “a Galileia, região norte da Palestina, há séculos era
considerada terra de gente sem valor, empobrecida e excluída”.19
Em João 7.52, podemos confirmar esse preconceito: “Examina e
verás que da Galileia não se levanta profeta”.
Esse é o único lugar em Marcos no qual Nazaré é mencionada,
mas Jesus é chamado de Nazareno em vários lugares (1.24; 10.47;
14.67; 16.6). De acordo com Lucas (1.26; 2.4,39,51; 4.16), esse
era o local da residência dos pais de Jesus. Mateus, entretanto,
informa que ela tornou-se a residência deles, pois inicialmente
eram da região de Belém, de tal forma que tiveram que retornar
para lá por ocasião do recenseamento.20
Era em Nazaré que José, o pai de Jesus, ocupava-se com a
profissão de carpinteiro (Mt 13.55). Foi ali que Jesus cresceu e
17 FRANCE, R. T. The gospel of Mark: a commentary on the Greek text. Grand
Rapids: Eerdmans, 2002. p. 75.
18 POHL, 1998, p. 55.
19 BORTOLINI, 2003, p. 25.
20 GOULD, Ezra P. A critical and exegetical commentary on the gospel according to
St. Mark. Edinburg: T. & T. Clark, 1969. p. 11.
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17
tornou-se conhecido como “o carpinteiro” (Mc 6.3). Com a idade
aproximada de 30 anos (Lc 3.23), Jesus deixou Nazaré e dirigiu-se
até o Jordão.21
Entretanto, nessa perícope, Marcos não nos dá nenhuma
informação pessoal sobre Jesus. Nesse evangelho, nada é dito
sobre sua idade, suas características físicas, sua personalidade, sua
família e seus status. Nem a informação sobre o vilarejo de Nazaré
nos ajuda com alguma coisa, pois era uma vila insignificante, que
nunca tinha sido mencionada no Antigo Testamento, nem por
Josefo e nem no Talmude Judaico.22
Seria o caso de Jesus ser uma pessoa qualquer que
seguia em meio aos inúmeros peregrinos para o batismo,
sem suspeitar de nada, e que voltou para casa surpreendido
pela escolha divina como Messias e Filho de Deus?23 Marcos
informa apenas: “aconteceu que naqueles dias Jesus veio de
Nazaré...” (v. 9).
A perícope do batismo de Jesus precisa ser analisada em
conjunto e em conexão com a perícope que apresenta João
Batista (1.2-8). Nelas vemos uma comparação entre os dois.
O precursor prometido (1.7-8) no Antigo Testamento (1.2-3)
oferece o pano de fundo (1.9) para a vinda dAquele que seria
mais poderoso (1.7,11), que batizaria com o Espírito trazendo
a era da Salvação (1.10-11,14-15) de acordo com a promessa de
Isaías (Mc 1.2).24
21 HENDRIKSEN, William. New Testament commentary: the gospel of Mark.
Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1976. p. 42.
22 ANDERSON, 1994, p. 76.
23 POHL, 1998, p. 56.
24 GUELICH, 1989, p. 30-31.
18
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2.2 Contexto Cultural
Além do contexto histórico do relato do batismo, precisamos
analisar o que significava a ideia de batismo na época de Jesus e
se esse conceito já existia. Inicialmente podemos perceber que o
batismo está estreitamente ligado à ideia de banhos de purificação.
Em hebraico, o termo rehfü (tāhēr) é utilizado para designar
pureza ritual ou moral. A grande ênfase desse termo é quando
ele aparece na literatura sacerdotal, como verbo ou derivados,
designando o ouro puro que é destinado à adoração. Na
Septuaginta, esse termo é traduzido por katharizō, katharos,
katharismos e outros, mas também com o sentido de “purificar”,
“puro” ou “pureza”. A palavra rehfü (tāhēr) é usada para falar tanto
da purificação pelo fogo como pela água. Como verbo é muito
usada para indicar a purificação que restaura quem ficou impuro
para uma nova situação, a de pureza. Assim o indivíduo se torna
apto para participar de rituais. Em todas as ações de purificação
– estivessem elas ligadas a questões de fluxo, a doenças como a
lepra, ao contato com mortos, a guerras ou ao cumprimento de
funções – o propósito sempre era o ensino sobre a santidade de
Deus e a pureza moral. Na purificação ritual, o destaque não era o
rito feito pelo oficiante, mas sim o perdão de Deus que deixava os
indivíduos limpos diante dele. Nesse sentido, somente Deus tem
condições de purificar.25
Quanto à questão de pureza e purificação, Champlin
25 YAMAUCHI, Edwin. rehfü (tāhēr). In: HARRIS, R. L. et. al. (Orgs). Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento. Tradução de Márcio Loureiro
Redondo, Luiz A. T. Sayão e Carlos Osvaldo Pinto. São Paulo: Vida Nova, 1998. p.
560-561.
Via Teológica | Claiton André Kunz, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 08 - 48
19
faz ainda a seguinte afirmação: “um ouro é puro quando
corretamente refinado; um homem é considerado puro quando
isento de corrupções morais”.26 Beasley-Murray fala que o sentido
de purificar já era comum antes do Novo Testamento e depois
disso o termo foi utilizado como uma forma de expressar uma
renovação total do indivíduo.27
Literalmente “batizar”, a partir do termo grego ba/ptw,
significa mergulhar, imergir, ato de mergulhar ou lavar. Na LXX,
o termo baptō traduz o hebraico do AT tābal (mergulhar). No
início da era cristã, o gentio que se convertia ao judaísmo, além de
receber a circuncisão, era submetido a um banho ritual. Esse banho
tornava-o apto para a adoração ou o sacrifício. Os textos hebraico
e aramaico, nesse caso, empregam o termo tābal. Isso se aproxima
dos escritos gregos que não utilizam baptizō para se referirem a
ritos de purificação.28 Baptizō é a forma intensiva de baptō e, ainda
que signifique imersão, também é usada de maneira figurada
para mostrar o batismo no Espírito (Mt 3.11), no sofrimento (Mc
10.38ss) ou numa nuvem (1Co 10.2).29 Champlin enfatiza que a
forma intensiva, acima citada e utilizada no Novo Testamento,
remonta aos tempos de Homero, em cujos escritos há a alusão
ao ato de mergulhar um ferro em brasa para que o mesmo fique
temperado. A partir do termo, o autor diz que somente o batismo
por imersão completa pode trazer o simbolismo de purificação do
26 CHAMPLIN, 2001, vol. 5, p. 509.
27 BEASLEY-MURRAY, G. R. Batismo. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin
(Edit.). Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. Tradução de
Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 179.
28 BEASLEY-MURRAY, 2000, p. 181.
29 WEGNER, Uwe. Batismo. In: BORTOLETO FILHO, Fernando. (Org.). Dicionário
brasileiro de teologia. São Paulo: ASTE, 2008. p. 84.
20
Claiton André Kunz, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 08 - 48 | Via Teológica
indivíduo, pois esse representa a lavagem completa dos pecados.30
Já Hodge diz que o mandamento de lavar com água é o
sinal de que a purificação ocorreu, independentemente da forma
como foi realizado, ou do modo como a água foi utilizada. Para
ele, o ato se torna significativo pelo uso da água, pois isso indica
que a alma foi purificada. Assim, a integridade da ordenança
ocorre pelo uso da água, seja qual for a maneira. Diferentemente
dos autores acima citados, o autor compreende que o uso do
termo baptō ou baptizō tanto na LXX como nos apócrifos do
Antigo Testamento, no Novo Testamento e nos escritos dos pais
gregos, assevera que não há motivos para que a ordem de batizar
seja entendida como imersão, ainda que o termo baptō signifique
imergir, pois, além dessa ideia, ele traz outras possibilidades
como “molhar, umedecer”, ou seja, não pode ser limitado ao
imergir ou afundar. 31
Para Hodge, o batismo é um sacramento em que o lavar
com água e em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo marca
a união com Cristo, bem como “a participação das bênçãos
do pacto da graça e a promessa de pertencermos ao Senhor”,32
mas para Grudem, além do batismo ser apenas um simbolismo,
somente “lavar” não revela o simbolismo da imagem de descer à
sepultura e sepultamento, bem como não mostra o simbolismo
do sair, ou seja, a imagem da ressurreição com Cristo.33
Champlin destaca ainda alguns meios dessa purificação.
30 CHAMPLIN, 2001, vol. 1, p. 460-461.
31 HODGE, Charles. Teologia sistemática. Tradução de Valter Martins. São Paulo:
Hagnos, 2001. p. 1410-1411.
32 HODGE, 2001, p. 1410.
33 GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. Tradução de Norio Yamakami, Lucy
Yamakami, Luiz Sayão e Eduardo Ferreira. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 816.
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21
Para ele, tanto a fé hebraica como a cristã destacam a necessidade
de pureza moral e espiritual. Isso tem relação direta com a
santificação e a regeneração, algo que somente o Espírito de Deus
faz. Champlin ainda compreende que a pureza moral e espiritual
era fundamental, em todo Antigo Testamento, para se ter uma
espiritualidade genuína. Além da pureza espiritual, também é
destacada a purificação pelo fogo, meio este que veio a dar a ideia
de julgamento, e por água, segundo o autor, o principal meio de
limpeza que deu origem metaforicamente ao batismo. 34
A pureza é enfatizada no Novo Testamento por Cristo e
pelos apóstolos. Jesus falou, por exemplo, dos limpos de coração
que poderão ver a Deus (Mt 5.8). O texto de 2 Co 6.4-6 referese aos servos que precisam ser puros. Tiago exorta os crentes a
buscarem a pureza (Tg 1.27; 4.8). Pedro destaca a necessidade da
alma ser purificada (1Pe 1.22). Assim, a pureza é vista como uma
forma de “renúncia e sujeição a Cristo”. Ela inicia no interior do
ser humano e atinge a totalidade da sua vida.35
O batismo de João relacionava-se diretamente com esta
ideia. João batizava para arrependimento e remissão dos pecados
(Mc 1.4), diferente do batismo exercido pelo Messias (Mt 3.10).
Nesse sentido, o batismo de João enfatizava a volta de um judeu
para Deus. Essa volta é ilustrada por determinados grupos judaicos
como um meio através do qual seriam cumpridas as profecias do
Antigo Testamento que dizem respeito à purificação dos tempos
finais. Assim, o rito era considerado “um modo comparável com
os atos de simbolismo profético cumpridos pelos profetas que
34 CHAMPLIN, 2001, vol. 5, p. 509.
35 CHAMPLIN, 2001, vol. 5, p. 509.
22
Claiton André Kunz, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 08 - 48 | Via Teológica
vinham antes dele”.36 Ele se aproxima do batismo cristão por ser
um “ato único, realizado com vistas ao arrependimento diante da
necessidade de libertação do juízo vindouro”.37
Provavelmente João fez uso da ideia do batismo judaico de
prosélitos. Um convertido ao judaísmo realizava a imersão em
água como indício de estar purificado da idolatria. Nesse ritual,
líderes judeus recitavam a Torá, o que trazia a indicação de que tal
indivíduo, a partir de então, assumia a obrigação de cumprimento
da lei.38 O motivo de João realizar essa forma de batismo era devido
ao fato de tratar os judeus como pagãos. Assim, o batismo indicava
que o judeu também estava iniciando uma nova caminhada com
Deus. Ao mesmo tempo, João enfatizava que a espiritualidade não
estava ligada a legalismos nem à nacionalidade. João não estava
rompendo com um antigo sistema, mas dando início a um novo,
que estaria fundamentado em Cristo. 39
Ainda quanto ao banho ritual dos prosélitos, destaca-se
que esses eram pagãos convertidos ao judaísmo, diferentes dos
chamados “tementes a Deus”, que aceitavam somente a profissão
de fé monoteísta e a observância de parte das leis cerimoniais
e, por isso, não eram totalmente convertidos ao judaísmo. Há
dois grupos que diferiam na aceitação do banho ritual dos
prosélitos, a saber, os shamaítas (que aceitavam o rito no dia da
circuncisão) e os hilelitas (que exigiam um intervalo de sete dias
entre a circuncisão e o banho ritual). Um prosélito convertido
não desfrutava dos mesmos direitos e privilégios que um cidadão
36 BEASLEY-MURRAY, 2000, p.182.
37 WEGNER, 2008, p. 84.
38 CHAMPLIN, 2001, vol. 1, p. 457.
39 CHAMPLIN, 2001, vol. 1, p. 463.
Via Teológica | Claiton André Kunz, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 08 - 48
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israelita possuía; mesmo assim, ele era obrigado a observar a lei
em toda a sua amplitude.40
Além dos prosélitos que se convertiam, ainda havia os
escravos pagãos libertos. Esse era um grupo que havia se submetido
ao seu senhor judeu como sua propriedade e, além disso, também
à circuncisão e ao banho ritual. Havia ainda os escravos pagãos
que quando passavam a ser propriedade de um judeu eram
“obrigados a tomar um banho ritual”. Se fosse uma mulher, tal
banho significava a conversão ao judaísmo e, no caso dos homens,
além do banho ainda deveriam submeter-se à circuncisão.41
Vale considerar que João Batista também procurou
preparar os judeus para a chegada do Messias e, por isso,
enfatizou a purificação interna junto com a externa. Ele,
como acima citado, mostrou a necessidade de a pessoa aceitar
o batismo em água como forma de mostrar arrependimento e
mudança de vida (Mt 3.11-12).42
Queremos ainda destacar o uso da água nesse contexto.
Desde os tempos antigos, ela tem servido como sinal de
purificação nos ritos do povo de Israel. Isso pode ser verificado
em casos tais como:43
a) sacrifícios e abluções ligados com questões de pureza
e impureza onde a água servia para “suprimir um contágio do
40 JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história
econômico-social no período neotestamentário. Tradução de M. Cecília de M. Duprat.
3.ed. São Paulo: Paulus, 1983. p. 423-428.
41 JEREMIAS, 1983, p. 442-445.
42 BROMILEY, G. W. Batismo. In: ELWELL, Walter, A. (Edit). Enciclopédia
histórico-teológica da igreja cristã. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Vida
Nova, 1993. Vol.1, p. 153.
43 VAUX, R. de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. Tradução de Daniel de
Oliveira. São Paulo: Teológica, 2003. p. 499.
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sagrado”. Abluções eram realizadas para purificação de vasos,
roupas ou pessoas contaminadas por algum contato de impureza
(Lv 11.24-25,28,32,40); no retorno da guerra santa, os guerreiros
deveriam se retirar do acampamento por alguns dias e lavar suas
roupas, bem como os despojos conquistados;
b) no ritual das cinzas da vaca vermelha, por meio do qual se
preparava a água purificadora, ou seja, após a vaca ser imolada e
totalmente queimada, suas cinzas eram colocadas num vaso e se
derramava água de uma fonte em cima. Tal água tinha a finalidade
de purificar quem tocasse em cadáveres, túmulos, ossadas, etc;
c) no ritual da lepra, ou seja, quando o leproso era tido como
curado, havia um ritual no qual uma ave era imolada em cima de
um vaso com água tirada de uma fonte; outra ave viva deveria ser
mergulhada nessa água junto com alguns materiais e depois solta
novamente. O leproso aspergido era declarado puro; entretanto,
após sete dias ele ainda deveria tomar um banho e no oitavo dia
ainda seguia o ritual.
Esses ritos de purificação que o povo de Israel mantinha
serviram para separá-lo do povo pagão, bem como para mostrar
que a santidade do Senhor transcendia a do povo. No judaísmo
pós-exílico, estes ritos que expressavam a santidade de Deus e de
seu povo acabaram se tornando um formalismo e um jugo. Jesus
condenou tanto os escribas como os fariseus que impuseram
fardos a outros e “fecharam aos homens o Reino dos céus (Mt
23.13)”. Ele proclamou que “a impureza que mancha é a impureza
moral (Mt 15.10-20)”.44
Questões ligadas a ritos que continham o lavar eram tão
44 VAUX, 2003, p. 498-501.
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necessárias que os sacerdotes tinham bacias nas quais eram
lavados os objetos utilizados nas celebrações. Não somente a
pureza moral era importante aos hebreus: a física também era,
por isso as pessoas doentes e os objetos por elas tocados eram
considerados contaminados (Lv 15.22).45
Turo isso revela também questões de higiene e limpeza.
“Os israelitas eram muito limpos. A ‘limpeza’ não é apenas uma
vizinha próxima da piedade, mas parte integrante dela e uma parte
muito importante mesmo”.46 A limpeza era algo que fazia parte da
lei. Algumas coisas eram imprescindíveis ou consideradas pecado
caso não fossem cumpridas, como, por exemplo, lavar as mãos
antes de comer. Era até mesmo proibido viver onde não havia
local para banho. As casas de banho eram comuns e apreciadas
em vários períodos da história – a arqueologia demonstra isso.
Esses banhos beneficiavam a higiene pessoal do povo.47 Higiene
e saúde eram resultado de um clima e uma alimentação saudável
e limpeza geral. Os banhos e abluções eram inclusive exigidos
pela lei, pelo fato de o corpo ser visto como “criado à imagem de
Deus” (cf. Hillel). Assim, muitas das obrigações estavam ligadas
à higiene. Todas essas questões diziam respeito ao estilo de vida
dos israelitas e eram obedecidas inclusive pelos judeus dos dias
de Cristo. Vale enfatizar que as medidas ligadas à saúde também
estavam sob controle da religião.48
Já quando se fala de batismo cristão, a ideia está sempre
45 PACKER, James I.; TENNEY, Merrill C.; WHITE, William. Vida cotidiana nos
tempos bíblicos. Tradução de Luiz Aparecido Caruso. Miami: Vida, 1984. p. 168.
46 DANIEL-ROPS, Henry. A vida diária nos tempos de Jesus. Tradução de Neyd
Siqueira. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 1997. p. 196.
47 DANIEL-ROPS, 1997, p. 196.
48 DANIEL-ROPS, 1997, p. 208-209.
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ligada ao ato de Jesus. Sua ação demonstrou sua solidariedade para
com os indivíduos pecadores, e a resposta dos céus foi uma forma
de aprovação e deu início à promessa de revelação do reino.49 Não
é possível saber se Jesus realizou o batismo de seus discípulos, mas
a tarefa de realizar tal “ato simbólico” foi passada a eles. 50
Champlin comenta que o batismo traz um aspecto que
mostra que o batizando abandonou a velha vida e começa uma
nova, e isso foi o que Jesus demonstrou, ou seja, ele estava
indicando uma nova vida com uma missão que seria dirigida pelo
Espírito.51 Na sua submissão ao batismo de João, Jesus mostrou a
obrigação dessa ordenança (Mt 3.14-17) e também que essa obra
deveria durar até o fim dos tempos, por meio da ordem deixada
aos seus discípulos (Mt 28.19-20).52
Na igreja primitiva, o batismo estava presente na
proclamação do evangelho. Lucas, por exemplo, fala do batismo
para conversão e perdão dos pecados, após a invocação do nome
de Cristo (At 22.16). Paulo relaciona o batismo a Cristo, ou seja, o
batismo é “em Cristo”. Para Paulo tudo parte desse ponto. Assim,
o batismo faz a ligação do crente com a ação redentora de Cristo,
e para o crente dá-se início à vida em Cristo. O batismo em Cristo
significa fazer parte do corpo de Cristo. Ele também está ligado
à regeneração, pois a submissão ao batismo por meio da obra
do Espírito Santo mostra um novo início vindo de Deus. No
momento do batismo tanto o elemento divino como o humano
49 BEASLEY-MURRAY, 2000, p. 182.
50 CHAMPLIN, 2001, vol. 1, p. 457.
51 CHAMPLIN, 2001, vol. 1, p. 463.
52 STRONG, Augustus Hopkins. Teologia sistemática. Tradução de Augusto
Victorino. São Paulo: Hagnos, 2003. p. 699-700.
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recebem ênfase, pois ele significa a união com Cristo (Gl 3.27)
na sua morte e ressurreição (Rm 6.1ss), perdão dos pecados e
purificação dos mesmos (At 2.38). Esse é o momento em que se
destaca o encontro do Redentor com o arrependido.53
Neste sentido, Wegner afirma que o batismo cristão é “um
rito de iniciação ao corpo de Cristo, a igreja; ...é praticado ‘em
nome de Jesus’; ...concede a remissão dos pecados; ...e leva a
pessoa crente à experiência do poder do Espírito”.54 Wegner
mostra ainda que para a compreensão do batismo cristão é
importante a verificação das práticas de banhos rituais, do
batismo judeu de prosélitos, das abluções diárias de purificação
e do batismo de João.55
A partir das descrições acima, a compreensão é do batismo
como uma ação com o uso de água, por imersão ou aspersão, que
visa a um determinado propósito, que pode ser tanto um rito de
iniciação, como um ato de purificação cerimonial, um símbolo da
união com Cristo ou um indício de obediência ao evangelho. Fica
a evidência de que para compreender o batismo nos primórdios do
cristianismo é necessária a compreensão da cerimônia judaica.56
Também há evidências de que a prática original era por imersão e
assim seguiu até a Idade Média.57
No batismo, em alguns meios, é enfatizado não o rito, mas
o que é simbolizado pelo rito. Nessa perspectiva, a água é símbolo
das ações do Espírito e não a causa dessas ações. Textos como
53 BEASLEY-MURRAY, 2000, p. 182-184.
54 WEGNER, 2008, p. 84.
55 WEGNER, 2008, p. 84.
56 CHAMPLIN, 2001, vol. 1, p. 456-457.
57 BROMILEY, 1993, vol. 1, p. 148.
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Rm 6.3 são utilizados para dar tal ênfase, como a questão de que
o mergulho simboliza a descida à sepultura, e a volta simboliza a
ressurreição dentre os mortos. De forma espiritualizada significa
a união com Cristo em sua morte e ressurreição. Tal união
deve resultar em uma nova forma de viver no que diz respeito à
santidade e ao desenvolvimento espiritual. O ponto alto é que
essa explicação do batismo não promove os ritos e cerimônias
como se esses tivessem poder em si mesmos. O batismo simboliza
outras coisas, conforme o Novo Testamento.58 Para Grudem,
todo simbolismo da união com Cristo, apresentado no texto de
Rm 6 e Cl 2.12, também traz a ideia de exigência de batismo
por imersão.59 Já Bromiley é da opinião que o tipo de água e as
“circunstâncias da administração não são importantes, embora
pareça necessário que haja uma pregação e confissão de Cristo
como partes integrantes (cf. At 8.37)”.60
Conforme Grudem, no Novo Testamento, o batismo era
realizado por imersão. A conclusão do autor é a partir do termo
original grego, citado anteriormente. Para ele, esse é o sentido que
se apresenta nos textos do Novo Testamento como, por exemplo,
Marcos 1.5 e 1.10, nos quais é enfatizado que Jesus saiu da água; o
texto grego especifica que Ele saiu “para fora da” água, devido ao
uso da preposição ‘ek’. Também o fato de João e Jesus entrarem
no rio e saírem do mesmo evidencia a ideia de imersão. São
enfatizados ainda pelo autor outros textos, como Atos 8.36, no
qual Filipe e o eunuco esperaram encontrar água para realizar o
batismo, ou seja, o batismo neste caso específico também não foi
58 CHAMPLIN, 2001, vol.1, p. 459-560.
59 GRUDEM, 1999, p. 815-816.
60 BROMILEY, 1993, vol. 1, p. 149.
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feito com água que eles deveriam estar carregando junto.61
O batismo foi praticado na igreja neotestamentária e
preservado nas ramificações da igreja. Consistia na aplicação de
água no corpo do indivíduo.62 A água é um importante elemento,
pois é símbolo de purificação dos pecados e da morte e ressurreição
com Cristo. Assim, a água e a figura do batismo mostram muito
mais do que purificação.63 Bromiley enfatiza que as origens do
batismo têm remetido às purificações no AT, ainda que o batismo
da forma conhecida na atualidade tenha seu início em João.64
3. Análise do Texto do Batismo de Jesus
Bultmann analisa a perícope do batismo de Jesus como
uma lenda, por relatar a consagração de Jesus como o Messias.
Para ele, esse relato originou-se, sem dúvida, na tradição oral da
igreja primitiva e poderia ser considerado uma lenda biográfica.65
Schweizer também levanta o questionamento sobre a historicidade
do batismo pelo fato de que, segundo ele, muitos detalhes
históricos do relato ficarem sem explicação.66
Para Anderson, entretanto, o batismo de Jesus por João é
um dos acontecimentos mais certos da sua vida, mesmo que isso
cause certa perplexidade. A conclusão surge justamente do fato
61 GRUDEM, 1999, p. 815.
62 YOUNGBLOOD, Ronald F. (Edit.). Dicionário ilustrado da Bíblia. Tradução de
Lucília Marques Pereira da Silva, Sônia Freire Lula Almeida, Bruno G. Destefani,
Hander Heim, Marisa de Siqueira Lopes e Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova,
2004. p. 181
63 GRUDEM, 1999, p. 816.
64 BROMILEY, 1993, vol. 1, p. 148.
65 BULTMANN, Rudolf. The history of the synoptic tradition. New York: Harper and
Row, 1963. p. 247-248.
66 SCHWEIZER, Eduard. The Good news according to Mark. Atlanta: John Konx
Press, c1970. p. 37.
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de que a igreja não teria inventado uma história que ocasionaria
tanta dificuldade teológica para si mesma.67 Concordamos com
Anderson, lembrando ainda que o fato é relatado pelos quatro
evangelistas; com mais ou menos detalhes, todos os evangelistas
atestam a historicidade do batismo.
Nesse acontecimento, João é posicionado entre a antiga e
a nova aliança, da mesma forma como Jesus é colocado como o
intermediário entre Deus e os homens, representando um diante
do outro. Pelo batismo, segundo Mulholland, Jesus toma para si
mesmo o julgamento de Deus em relação ao pecado, mesmo ele
não tendo pecado algum. Assim, nesse ato, ele toma o primeiro
passo para identificar-se com os pecadores.68
Chama a atenção que na perícope não são dadas informações
biográficas sobre a vida de Jesus nessa sua aparição junto ao rio
Jordão. “Tudo o que temos é o seu nome. A referência sobre a sua
terra natal serve para a mesma função que os nossos nomes de
família, e Nazaré é tão insignificante que não é mencionada em
nenhuma outra fonte”.69 Sankey observa também que distante de
uma aparição pública, visível e dramática no templo, o Messias
“apresenta-se solitário e anônimo, como um peregrino fazendo
seu caminho de Nazaré ao Jordão”.70
Obviamente, o evangelista Marcos presume que os seus
leitores tinham familiaridade suficiente com a identidade de
67 ANDERSON, 1994, p. 74-75.
68 MULHOLLAND, [199-], p. 34.
69 SCHWEIZER, 1994, p. 39. Schweizer informa ainda que nada é dito sobre a idade,
aparência ou status familiar de Jesus. É especialmente surpreendente o fato de que
eram muito raros os casos de homens solteiros naqueles dias (p. 39).
70 SANKEY, P. J. Promise and fulfilment: reader-response to Mark 1.1-15. In: Journal
for the study of the New Testament. England, vol. 17, n° 58, p. 11.
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Jesus (cf. 1.1) e, por isso, ele teria iniciado sem essas informações
biográficas.71 Joel Marcus observa que antes do batismo tudo está
na obscuridade, pois Jesus ainda não existia como uma pessoa
pública. Depois do batismo, ele repentinamente aparece com
grande proeminência. Alguma coisa muito dramática teria que
ter acontecido naquela ocasião junto ao Jordão.72
O batismo de Jesus, como já observado anteriormente,
é uma situação intrigante. Como afirma Pohl: “Está tudo de
cabeça para baixo: João precisava mais do batismo do Espírito de
Jesus, mas Jesus solicitou o batismo de água de João. O portador
do Espírito está na fila entre os candidatos ao batismo carentes
de conversão”.73
João havia proclamado sobre Aquele que viria depois dele
e seria o próprio “batizador” (v. 8) e, sem dúvida, com um tipo de
batismo que João não poderia batizar. Agora Ele está aqui para
ser batizado por João. O texto de Mt 3.14-15 tenta solucionar esse
quebra-cabeças, mas Marcos está satisfeito em deixar o paradoxo
abruptamente por meio da justaposição dos versos 8 e 9, sem
qualquer explicação.74
“Jesus foi batizado no Jordão por João” (v. 9b). O verbo
e)bapti/sqh no passivo e o genitivo da ação direta (u(po& >Iwa/nnou)
implica que Jesus foi imerso por João no Jordão como agente do
batismo e não simplesmente como testemunha do batismo, como
alguns pretendem afirmar.75
71 GUELICH, 1989, p. 31.
72 MARCUS, Joel. Jesus´ baptismal vision. In: New Testament studies. Cambridge,
vol. 41, 1995, p. 513.
73 POHL, 1998, p. 56.
74 FRANCE, 2002, p. 75.
75 GUELICH, 1989, p. 31.
32
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“E logo que saiu da água, viu os céus sendo rasgados...” (v.
10). A imagem em Marcos é mais vívida do que em Mateus (3.16)
e Lucas (3.21) que simplesmente informam que os céus estavam
abertos.76 Rienecker informa que o verbo sxizome/nouj pode
ser traduzido por “dividir” ou “rasgar”, e a ideia do particípio
presente é a de uma “separação fixa entre o céu e a terra, que
somente em circunstâncias especiais pode ser rompida”.77
Para Storniolo, Marcos utiliza esse verbo por pretender
aludir à história do Antigo Testamento. Com a destruição de
Jerusalém, a glória de Deus deixa o templo (Ez 10.18-22; 11.2223) e retorna para o céu. Após o exílio, o profeta Ezequiel clama
a Deus para que volte para o seu povo. Para este autor, a súplica
do profeta está sendo atendida agora, no batismo: Deus voltou na
pessoa e na ação de Jesus.78
O verbo usado para expressar a ideia de “rasgar” é o mesmo
que Marcos utiliza em 15.38 (quando fala do véu do templo),
onde o verbo sxi/zw tem o mesmo sentido. Pohl observa ainda
que, em ambos os casos, segue uma confissão de que Jesus é o
Filho de Deus.79
Da mesma forma que Jesus “viu” os céus se rasgarem, o
texto também afirma que Ele viu o Espírito descer como uma
pomba sobre ele. Embora Marcos use os termos ei)j au)to/n, que
76 ROBERTSON, Archibald Thomas. Imágenes verbales en el Nuevo Testamento:
Mateo y Marcos. Terrassa (Barcelona): CLIE, 1988. Vol. 1, p. 266.
77 RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento
grego. Tradução de Gordon Chown e Júlio P. T. Zabatiero. São Paulo: Vida Nova,
1988. p. 66. Gould informa ainda que o “particípio presente denota uma ação em
progresso, e não uma ação completada” (GOULD, 1969, p. 11).
78 STORNIOLO, Ivo. Batismo de Jesus: Deus mostra a missão de Jesus. In: Vida
pastoral, São Paulo, vol./n°. 120, 1985, p. 43.
79 POHL, 1998, p. 56.
Via Teológica | Claiton André Kunz, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 08 - 48
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poderiam ser traduzidos por “para dentro dele”, parece não ser
o caso aqui. Segundo Pohl, um “pássaro não voa para dentro de
uma pessoa, mas pode pousar sobre a sua cabeça ou seu ombro”.
Este autor informa ainda que o evangelista João usa a expressão
e)p> au)to/n, “sobre ele” (1.32), deixando a ideia mais clara.80
Mas o que a pomba estaria simbolizando nessa passagem?
Schniewind afirma que “o conteúdo, visto aqui em figura, é o
Espírito”, embora não se possa explicar com segurança até que
ponto a pomba é comparável ao Espírito.81
Segundo Joel Marcus, citando Pesch, a pomba cria um
símbolo apropriado para o Espírito, por ela poder cruzar a barreira
entre o céu e a terra. Entretanto, ele mesmo argumenta que essa
explicação não esclarece porque foi usada a pomba e não outra ave
qualquer.82 Sobre isso Schweizer pergunta: “que pássaro seria tão
apropriado como a pomba, pura e inocente (Mt 10.16) e o único
pássaro adequado para sacrifícios (Lv 1.14)?” Entretanto, para este
autor, Marcos tem em mente sua audiência gentílica, para a qual a
pomba é tida como uma ave divina no mundo helenístico.83
Outro fato interessante que podemos relacionar é que assim
como o princípio do Evangelho de Marcos (1.1) remete-nos ao
princípio da criação (Gn 1.1s), quando o Espírito de Deus pairava
sobre a face das águas, assim aqui o “Espírito vem sobre Jesus,
no princípio da nova criação, como uma pomba que desce, paira
80 POHL, 1998, p. 55.
81 SCHNIEWIND, 1989, p. 28.
82 MARCUS, 2000, p. 159. Sugerimos ainda a leitura do artigo Jesus´ baptismal
vision, de Joel Marcus, no qual ele relaciona a visão de Jesus no batismo com a visão
de Satanás caindo do céu como relâmpago, em Lucas 10.18 (In: New Testament
studies. Cambridge, vol. 41, 1995, p. 512-521).
83 SCHWEIZER, 1992, p. 49.
34
Claiton André Kunz, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 08 - 48 | Via Teológica
e pousa”.84 Parece que Marcos faz uma conexão com o texto de
Gênesis. Além disso, podemos acrescentar ainda que na profecia
sobre o ramo que surgirá do tronco de Jessé, em Isaías 11.2, lemos
que “o Espírito repousará sobre ele, o Espírito que dá sabedoria
e entendimento, o Espírito que traz conselho e poder, o Espírito
que dá conhecimento e temor do Senhor”.85
No judaísmo predominava a ideia de que só alguns
escolhidos tinham o Espírito e que esse se apagara totalmente
depois de Malaquias. Pensava-se também que um tempo sem o
Espírito era um tempo de julgamento. Mas agora a descida do
Espírito sobre Jesus simboliza que esse tempo está no fim. No
momento em que o Espírito desceu e a voz do céu ressoou,
irrompeu novamente o tempo de salvação.86
Aqui precisamos levantar mais um questionamento:
de que forma Aquele que é apontado como o que batiza
com o Espírito Santo (v. 8) é transformado em alguém que
carece desse Espírito? Cerinto, um gnóstico do primeiro
século, defendia, por exemplo, a ideia de separação entre o
Cristo divino e o homem Jesus, afirmando que foi apenas no
momento do batismo que o Espírito (ou o Cristo) veio sobre
Jesus.87 Pohl enfatiza, entretanto, que a voz vinda do céu deixa
84 MULHOLLAND, [199-], p. 34.
85 Stephen Gero fez uma análise da questão da descida do Espírito em forma de
“pomba”, afirmando que o redator do evangelho de Marcos possa ter tido como uma
de suas fontes a 24ª Ode de Salomão, que diz: “A pomba voou sobre a cabeça de nosso
Senhor o Messias…” (GERO, Stephen. The spirit as a dove at the baptism of Jesus.
In: Novum Testamentum: an international quarterly for New Testament and related
studies, Leiden, vol. 18, n° 1, 1976, p. 17-35).
86 POHL, 1998, p. 57.
87 CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento.
Tradução de Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1997. p. 503.
Via Teológica | Claiton André Kunz, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 08 - 48
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claro que o Espírito não veio do céu para efetuar algo sobre
Jesus, mas veio para “demonstrar algo, expressar algo oculto e
autenticar”.88
Na Bíblia, a associação do Espírito de Deus com o ser
humano tem diferentes conotações, dependendo do seu contexto.
Collins faz as seguintes observações:
O Espírito pode dar um força física extraordinária para um
homem (Jz 14.6,19), pode induzir ao êxtase (Nm 11.25; 1
Sm 10.6,10), transportar uma pessoa de um lugar para outro
miraculosamente (1 Rs 18.12; 2 Rs 2.16; Ez 3.12,14; 8.3; 11.1,24;
43.5) ou dar uma habilidade especial de liderança (Jz 3.10; 1
Sm 16.13). O Espírito de Deus também está associado com a
habilidade do profeta (Mq 3.8; Ne 9.30) e com as qualidades do
rei ideal (Is 11.1-9, esp. v. 2). O contexto narrativo de Marcos,
entretanto, aponta para Isaías 61.1-2 como um precedente
importante para Marcos 1.10, e sugere uma relação intertextual.89
Após a descida da pomba, vem então a voz do céu: “Tu és o
meu Filho amado; em ti me agrado” (v. 11). No momento, Jesus
foi aclamado por uma voz dos céus como o Filho de Deus90 e o
Messias escolhido. A frase é uma conjunção de duas passagens
do Antigo Testamento: Salmo 2.7 e Isaías 42.1. Para Ladd, “o
significado da cena é o ato de eleição da parte de Deus, a saber,
88 POHL, 1998, p. 57;
89 COLLINS, 2007, p. 148-149.
90 Sobre a expressão “Filho de Deus”, sugerimos a leitura de três obras importantes
que reservam capítulos específicos sobre o tema, que não pode ser aqui aprofundado
por razões de tempo e espaço: a) O capítulo 2, “Jesus, o Filho de Deus”, da parte 4
de CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. Tradução de Daniel de
Oliveira e Daniel Costa. São Paulo: Custom, 2002. p. 353-398. b) O capítulo 12,
“Kyrios e Filho de Deus”, de BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento.
Tradução de Ilson Kayser. São Paulo: Teológica, 2004. p. 170-182. c) O capítulo
12, “O Filho de Deus”. de LADD, George. Teologia do Novo Testamento. Tradução
de Darci Dusilek e Jussara Marindir Pinto Simões Árias. São Paulo: Exodus, 1997.
p. 151-162.
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a eleição do Filho, que inclui Sua missão e Sua nomeação para o
ofício real do Messias”.91 Entendemos, entretanto, que esse não
é o momento da eleição em si, mas uma confirmação da mesma,
que já aconteceu antes da fundação do mundo (cf. Jo 17.24; 1Pe
1.20; Ap 13.8; etc).
O filho é chamado de a)gaphto/j (“amado”). Essa palavra
é usada pela Septuaginta para traduzir jechied. Esse vocábulo
significa, na verdade, mais do que “amado”, ou seja, “o mais
amado, privilegiado, escolhido” (cf. Gn 22.2,12,16; cf. Is 42.1s).
Trata-se, portanto, de um filho em sentido exclusivo, privilegiado
em sentido incomparável. Para Pohl, esse sentido especial pode
ser visto também na parábola dos Lavradores (Mc 12.1-12), onde
o Filho também recebe o adjetivo a)gaphto/j (v. 6).92
Para Guelich, a voz dos céus aparentemente dá um duplo
sinal. Ela começa com a designação messiânica real do filho, de
acordo com Salmo 2.7 e conclui com o tema do servo de Isaías
42.1. Parece que Marcos faz, nesse prólogo, um alinhamento de
temas de Isaías: a voz do profeta introduz João (1.2-8) como o
precursor prometido e introduz Jesus como aquele que traz a era
da salvação por estar equipado com o Espírito (1.9-11).93
De acordo com Marcos, embora Jesus tenha sido batizado na
presença de muitas pessoas, parece que “somente Deus o Pai, o
Filho e o Espírito Santo eram conhecedores do que realmente
ocorreu naquela ocasião”.94 Mas no evangelho de João, lemos que
João Batista também testemunhou esse fato.
91 LADD, 1997, p. 155.
92 POHL, 1998, p. 58.
93 GUELICH, 1989, p. 35-36.
94 MULHOLLAND, [199-], p. 36.
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4. Síntese do Texto do Batismo de Jesus
O que o batismo de Jesus significa? O que Jesus pretende
transmitir com essa ação? Podemos classificá-la como uma ação
parabólica? France informa que no verso 9 um “novo ator entra
em cena”.95 Gallardo afirma que algumas coisas “só podem ser
transmitidas através de figuras” e depois as chama de “símbolos”.96
Anderson fala da “grande sutileza simbólica” do fato.97 Sankey
lembra, entretanto, que muito mais do que um participante ativo,
Jesus é um recipiente passivo da ação de outros nesse episódio.98
Mesmo assim, apesar de vários verbos da perícope aparecerem na
voz passiva, não podemos afirmar que Jesus não estava agindo
nessa ocasião e podemos, então, classificar o fato como uma ação
parabólica. Podemos observar no texto os seguintes aspectos:99
a) Estilo: essa ação parabólica apresenta uma mescla de
narrativa e diálogo. Há um relato inicial, apresentando a situação
e, em seguida, uma interação entre os personagens apresentados.
Nesse caso, a fala não é de Jesus, por ser o agente passivo da ação,
mas de Deus em relação a Jesus. A narrativa pode ser vista nos
versos 9, 10 e 11a, e o diálogo pode ser visto no verso 11b.
b) Pessoa gramatical: a partir da divisão em narrativa e
diálogo, percebemos que, na ação parabólica, a terceira pessoa
é predominante na narrativa, e a interação entre primeira e
segunda pessoa, é apresentada no diálogo. Embora isso seja um
95 FRANCE, 2002, p. 75.
96 GALLARDO, Carlos Bravo. Galileia ano 30: para ler o Evangelho de Marcos.
Tradução de Roberto Tápia Vidal. São Paulo: Paulinas, 1996. p. 15.
97 ANDERSON, 1994, p. 78.
98 SANKEY, 1995, p. 12.
99 Cf. KUNZ, Claiton André. Ações parabólicas: uma análise do ensino de Jesus
através de suas ações. São Leopoldo: EST; Sinodal, 2007. 83 p.
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tanto óbvio, é um aspecto característico da ação parabólica.
c) Tempo verbal: na parte narrativa da ação parabólica,
como se devia esperar, aparecem principalmente tempos no
passado; mas chama a atenção a quantidade de verbos no tempo
aoristo: de 8 verbos, 5 estão no aoristo.
d) Tipos de frase: nas ações parabólicas, normalmente
aparece uma pergunta retórica e/ou uma sentença declarativa. Nessa
perícope aparece apenas a sentença declarativa, dita não por
Jesus, mas a respeito de Jesus: “Tu és o meu Filho amado, em ti
me agrado” (v. 11b).
e) Semântica: a semântica sempre se relaciona a cada relato
de ação parabólica, mas pode-se perceber a presença de verbos
que denotam movimento, especialmente na parte narrativa,
como por exemplo eörxomai, bapti/zw, a)nabai/nw e katabai/
nw, e outros. A conjunção kai/ também é muito frequente na
parte narrativa das ações parabólicas. Nesse texto de apenas 3
versículos, ela aparece 5 vezes; essa conjunção ajuda na estrutura
interna da narrativa da ação e dá a ideia de movimento.
f) Metaníveis: segundo Stählin, as ações parabólicas têm
mais de uma função, o que faz parte da sua essência. É justamente
esse o ponto central da questão em estudo, ou seja, a descoberta
do significado especial do texto.100 A pergunta é qual o sentido
dessa ação de Jesus? Quando ele se submete ao batismo, o que ele
pretende com essa ação?
Bortolini é da opinião de que no batismo Jesus veio para
100 STÄHLIN, G. Die Gleichnishandlungen Jesu. In: KOSMOS und Ekklesia:
Festchrift fuer Wilhelm Staehlin zu seinem siebzigsten Geburtstag. 24/09/1953.
Tradução de Heinz Dietrich Wendland. Kassel: Johannes Stauda Verlag, 1953. 277 p.
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se “solidarizar com a humanidade”.101 Para Camacho, está claro
que o batismo de Jesus não significa, como o da multidão, uma
morte ao passado, pois não há confissão de pecados, mas um
compromisso de entrega pelo bem da humanidade, que inclui
a disposição para dar a vida para alcançar esse compromisso (cf.
10.38s). Esse compromisso provoca uma resposta celeste imediata,
descrita por Marcos em traços figurados (céus rasgados, descida
do Espírito como uma pomba e voz divina).102
Concordando com isso, Bortolini também afirma que o
verdadeiro batismo de Jesus não é o de João Batista, na água,
mas o do Espírito Santo que desce sobre ele e o conduz para a
missão.103 Para Gould, o batismo real de Jesus também foi o do
Espírito, e o batismo de João foi apenas um “sinal”.104
Para Pohl, o batismo de Jesus também foi um sinal, de
modo público e comprometido, do início da sua missão. Seria
uma espécie de “primeiro passo por nós”. Ele complementa:
Desde este batismo até seu último batismo, de que ele fala em
10.38, andará por ele. Neste caminho ele se tornou aquele que
batiza com o Espírito, depois da ressurreição, em Pentecostes.
Fica bem claro que Jesus recebeu a revelação do verso 10s porque
já era Filho, já vivia no mistério do Espírito Santo, e o tinha
documentado com sua obediência no batismo. Não foi a voz do
céu que estabeleceu a ligação entre Deus e Jesus aqui, tampouco
em 9.7; ela só tornou visível e audível a realidade desta ligação.105
No batismo de Jesus, de acordo com a combinação dos
101 BORTOLINI, José. Batismo de Jesus: batismo e missão. In: Vida pastoral, São
Paulo, vol./n°. 162, 1992, p. 38.
102 MATEOS; CAMACHO, 1998, p. 83-84.
103 BORTOLINI, 2003, p. 26.
104 GOULD, 1969, p. 12.
105 POHL, 1998, p. 59.
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textos de Salmo 2.7 e Isaías 42,1, ele é então designado como
“Messias-Rei cuja tarefa é radicalmente reinterpretada em termos
da missão do Servo Sofredor de Deus”.106
Para Sankey, o batismo de João significa arrependimento.
Os outros judeus foram batizados, confessando seus pecados, para
remissão dos mesmos. Mas com o batismo de Jesus é diferente.
Para este autor, o batismo de Jesus é um reconhecimento do
julgamento divino sobre Israel bem como uma indicação de que
na missão de Jesus esse julgamento será prolongado. Embora a
ideia pareça ser complexa, e talvez até incompreensível para os
que estavam presentes no batismo, ela se encaixa com o contexto
mais amplo, especialmente com a indicação que Marcos faz mais
adiante da morte de Jesus como um batismo (10.39).107
Culmann concorda com essa ideia e afirma que é nessa perspectiva que devemos compreender a palavra referente ao “cumprimento
de toda a justiça”, de Mateus 3.15. Culmann complementa:
Isso significa, pois, que Jesus foi batizado em vista de sua morte,
e que, ao morrer, levaria o seu povo inteiro num batismo. Ele
carrega, de certo modo, sobre si todos os pecados que os judeus
levam ao Jordão. Ou seja, no instante de seu batismo ele recebe,
ao mesmo tempo, o “programa” do papel que deve desempenhar
na história da salvação.108
Essa explicação é confirmada pelo fato de que nas duas
únicas declarações de Jesus que contêm o verbo baptisqh=nai
(Mc 10.38b e Lc 12.50), a expressão “ser batizado” é sinônima de
106 MULHOLLAND, [199-], p. 35. Collins concorda que esses dois textos do Antigo
Testamento interpretam Jesus como o Messias e como o Servo do Senhor (COLLINS,
2007, p. 150.)
107 SANKEY, 1995, p. 12.
108 CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. Tradução de Daniel de
Oliveira e Daniel Costa. São Paulo: Custom, 2002. p. 94-95.
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“morrer”. É por essa razão que Jesus, a partir do momento em que
começou a agir independentemente do Batista, não batizou mais
com água. Depois de ouvir a voz divina, não havia para ele mais
do que um só batismo: sua morte.109
France faz uma observação interessante de um paralelo que
pode ser traçado entre os versículos 5 e 9, que indicam justamente
que Jesus não necessitava do batismo nos mesmos moldes dos
demais que vieram a João. Este autor afirma que Lohmeyer
observou que esses dois versos foram construídos exatamente
com a mesma estrutura (“genau gleich gebaut”).110 Com algumas
adaptações podemos fazer o seguinte paralelo:
Paralelo
Verso 5
Verso 9
Verbo de
movimento
Vinha
Veio
Personagem
Povo
Jesus
Origem
da Judeia e de Jerusalém
de Nazaré da Galileia
Motivação
confessando os seus pecados
???
Ação Passiva
eram batizados
foi batizado
Batizador
por ele (João)
por João
Local
no rio Jordão
no Jordão
A partir dessa comparação, podemos afirmar com segurança
que Jesus não necessitava do batismo, diferente dos demais que
ali foram batizados. Ele era sem pecado, mas carregou sobre si
os pecados daqueles que ali estavam e de todos os que viriam
depois deles. Nessa ação parabólica, Jesus foi batizado como
109 CULLMANN, 2002, p. 94-95.
110 FRANCE, 2002, p. 76.
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um símbolo de identificação com os seres humanos pecadores,
e também como uma indicação do início efetivo da sua missão
de resgate desses pecadores. A descida do Espírito sobre Jesus na
forma de uma pomba também é simbólica, pois Aquele que é
indicado como sendo poderoso para batizar com o Espírito não
pode ser carente do mesmo. Finalmente, a voz divina que o indica
como Filho de Deus também é um reconhecimento do que já era
real e de modo algum quer demonstrar que tal relação estivesse
iniciando ali.
Assim, podemos afirmar que, com essa ação parabólica,
Jesus foi identificado com os seres humanos, autenticado pelo
Espírito e reconhecido pelo Pai. A partir do batismo, Jesus passa a
executar de forma efetiva a sua missão como o Messias que havia
de vir.
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