Reflexões sobre a crise do século 14 Ao longo da história, sempre é possível identificarmos nos textos de historiadores o conceito de “crise” ou “decadência”. Tais categorias denotam momentos de tensões, de bruscas mudanças e de dificuldades econômicas, sociais e políticas. Muitos desses historiadores que falaram sobre a crise escreveram seus trabalhos no contexto do pós-Primeira e Segunda Guerra Mundial, momentos nos quais a noção de decadência e crise estava evidenciada. Eles analisaram o passado com o olhar de suas épocas, partindo do presente tensional e conturbado, ocasionado pelas ondas de violência e destruição que inauguraram o século 20. Não queremos afirmar que não houve nenhuma mudança brusca, nenhum momento de tensão. Porém, quando abordamos a crise do século 14, temos que ter em mente que ela foi localizada e não ocorreu em toda a Europa, ao mesmo tempo. A crise do século 14 consiste em um momento de derrocada da sociedade feudal. O feudalismo, sistema de organização social e política que caracteriza o mundo medieval, para muitos autores, não ocorreu em toda a Europa. Pelo contrário, ficou restrito a algumas regiões europeias. Nesse sentido, podemos falar não apenas de uma crise do sistema feudal e do mundo medieval, mas de um momento de transformações que já haviam se iniciado antes e que não ocorreram de um dia para o outro em todos os locais da Europa. Apesar da variedade de fatores que contribuíram para essas mudanças sociais e políticas, podemos identificar alguns mais evidentes. Após as últimas invasões ocorridas no século 10, a sociedade medieval começou a ganhar certa estabilidade. Isso gerou um aumento demográfico significativo, criando a necessidade de aumento na área destinada à agricultura. Para tanto, houve a ampliação das técnicas e áreas agricultáveis. Porém um clima de instabilidade começou a surgir em muitos locais da Europa, entre os séculos 13 e 14. Apesar dos avanços na área e nos equipamentos agrícolas, a agricultura medieval passou por severas crises neste recorte, chegando a faltar as próprias sementes, comprometendo o cultivo e a alimentação da população. Outro fator importante foram as epidemias. As condições de saúde eram muito precárias, praticamente inexistentes. Não havia nenhum órgão para cuidar da saúde do povo. A sociedade vivia num sistema político descentralizado e, dessa forma, não tinha a quem recorrer. A Peste Negra, ocorrida entre 1348 e 1349, foi apenas uma das mais conhecidas ondas de morte ocasionadas por epidemias no medievo. O número de mortos foi alto, e a instabilidade só aumentava. Descontentes com a instabilidade econômica, com as doenças, com a fome e a cobrança severa de seus senhores, os camponeses, a grande massa da população, começaram a organizar diversas revoltas, ao longo do século 14. Além dessas instabilidades e revoltas, dois outros fatores, que estavam interligados, contribuíram para o processo de modificação da sociedade europeia medieval: as cruzadas e o renascimento do comércio. O aumento demográfico e a falta de terras para o cultivo impulsionaram as cruzadas, que se pautavam tanto em aspectos econômicos (conquista de terras e comércio) quanto religiosos (peregrinação aos lugares sagrados e luta contra os povos não cristãos). As cruzadas incentivaram a criação de novas relações comerciais com o Oriente, aumentando o interesse por artigos vindos de lá. O desenvolvimento do comércio fez com que, processualmente, a economia deixasse de se focar somente na agricultura, apesar desta ainda ser a atividade central. Aos poucos, as feiras comerciais e as manufaturas começaram a aparecer, modificando ainda mais a antiga sociedade medieval. O século 14 foi um momento importante na modificação dos traços medievais da sociedade, porém não podemos entendê-lo como um marco definitivo do fim da sociedade medieval. Muitas características do medievo permaneceram, ao longo da história moderna. A Idade Média, muitas vezes, foi interpretada como um momento de transição entre o mundo antigo e o Renascimento. Tal leitura descarta a ideia de que o mundo medieval foi também um local de desenvolvimento cultural, político e econômico, e não uma “idade das trevas”. Talvez essa leitura negativa das sociedades medievais tenha se baseado no olhar dos intelectuais que escreveram em momentos de grandes tensões, vivenciadas ao longo do século 20. Referências Imagem 1 – Pedro, o Eremita, mostra o caminho de Jerusalém aos cruzados (iluminura francesa, 1270): http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Roman_du_Chevalier_du_Cygne_f176v_Pierre_l%27Ermite.jp g Imagem 2 - Médico da Idade Média com máscara http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Doktorschnabel_430px.jpg protetora contra a peste: HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosac Naify, 2011. ______. O declínio da Idade Media. Lisboa; Rio de Janeiro: Ulisseia, [196-].