UNIVERSIDADES MEDIEVAIS: UMA HISTÓRIA E UMA MEMÓRIA

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1822
UNIVERSIDADES MEDIEVAIS: UMA HISTÓRIA E UMA MEMÓRIA EDUCACIONAL
Terezinha Oliveira1
Universidade Estadual de Maringá
RESUMO
Nessa comunicação apresentaremos resultados parciais de nossa pesquisa sobre a Universidade
medieval analisando essa instituição sob dois ângulos distintos, mas que se encontram unidos e
formam a idéia de totalidade da Universidade medieval. A partir do primeiro ângulo, trataremos da
origem da instituição Universidade no seio da medievalidade enquanto criação de um espaço novo
de construção e preservação dos saberes. Ela é a resposta que os homens medievais deram às novas
exigências que então lhes foram colocadas. Nesse sentido, torna-se imprescindível compreender
tanto o papel desempenhado pelos movimentos citadinos que, nessa época, davam ao mundo
medievo uma nova feição, como aquele desempenhado pelo pensamento escolástico, que adquire
sua plenitude no interior dessa instituição. A partir do segundo ângulo, consideraremos a
Universidade como um patrimônio histórico e, portanto, como uma instituição que precisa ser
preservada e lembrada. Dentro desta perspectiva, a memória tem um papel importante. De fato, a
questão não se resume apenas à preservação material, mas também retomar o sentido original da
Universidade. A memória se destaca aqui como sujeito imperativo da construção do ser pessoa, no
sentido dado por Tomás de Aquino. Assim, ao considerarmos esses dois aspectos da Universidade
no Ocidente medieval do século XIII poderemos compreender a sua importância tanto da
perspectiva histórica como da memória, retomando o sentido fundamental de pertencimento social
que ela possibilita ao dar ao saber e ao agir dos homens o sentido de universalidade. Desse modo,
história e memória se entrelaçam, possibilitando a compreensão dessa instituição como um espaço
especial do saber universal mediado pelas relações do poder político. De fato, durante a Idade
Média, a Universidade ora estava sob a chancela do poder laico, como Salerno, ora sob o poder
eclesiástico, como a de Paris. Metodologicamente falando, a noção de totalidade permeia nossa
pesquisa e exposição, pois, a nosso ver, é esse olhar que torna possível a compreensão dessa
instituição na sua essência, qual seja, a da universalidade. Para realizar essa pesquisa, estamos
trabalhando com dois corpos de documentos, como já vimos fazendo desde o nosso estágio de pósdoutorado, quando também estudamos as Universidades na Idade Média: com autoridades
medievais, especialmente Tomás de Aquino, e com historiadores contemporâneos, como Le Goff,
Pierre Nora, Jacques Verger, Jean Lauand, Pieper, entre outros. A escolha desses dois corpos nos
permite considerar a Universidade pelos dois ângulos acima mencionados: com as autoridades
medievais do século XIII, poderemos verificar o debate teórico, a produção dos saberes e as ações
dos mestres medievais e, ao mesmo tempo, o agir dos homens naquele momento, pois antes de
serem mestres universitários, esses personagens eram homens de seu tempo. Eles se tornam, a nosso
ver, o espelho dessa instituição e, por conseguinte, instrumentos fundamentais de nossa memória.
Com os autores contemporâneos, ou seja, com a historiografia, observamos como essa memória foi
retomada e construída e, fundamentalmente, em que medida a história dessas instituições colabora
para que possamos entender um pouco mais o agir humano e a produção dos saberes no âmbito da
Universidade.
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1823
TRABALHO COMPLETO
Analisaremos a Universidade medieval sob dois aspectos distintos, mas que estão unidos e
formam a idéia de totalidade desta Instituição. No primeiro, trataremos da origem da Universidade
enquanto criação de um espaço novo de construção e preservação dos saberes. É a resposta dos
homens medievais às novas exigências. No segundo, consideraremos a Universidade como um
patrimônio histórico, portanto, como uma Instituição cuja preservação e lembrança são necessárias.
Destaque-se que não estamos tratando apenas da sua preservação material, mas também da
retomada do seu sentido original. A memória, por seu turno, faz parte da construção do ser pessoa,
no sentido dado por Tomás de Aquino.
Ao considerarmos esses dois aspectos, compreenderemos a importância da Universidade, da
perspectiva histórica e da memória, retomando o seu sentido de pertencimento social que ela
possibilita ao conceder a universalidade ao saber e ao agir dos homens. História e memória se
entrelaçam, permitindo a compreensão dessa Instituição como espaço do saber universal mediado
pelas relações do poder político, já que ao longo da Idade Média a Universidade estava ora sob a
chancela do poder laico, ora do papado.
A noção de totalidade permeia, metodologicamente, a pesquisa e a exposição, pois é esse
olhar que possibilita a compreensão dessa Instituição na sua essência, a da universalidade.
Trabalhamos com dois corpos de documentos: com autoridades medievais, especialmente Tomás de
Aquino, e com historiadores contemporâneos, como Le Goff, Verger, Lauand, entre outros. Os dois
corpos permitem considerar a Universidade pelos dois aspectos. Com as autoridades medievais do
século XIII, poderemos analisar o debate teórico, a produção dos saberes e as ações dos mestres
medievais e, ao mesmo tempo, o agir dos homens, pois esses personagens eram homens de seu
tempo. Eles se tornam, o espelho dessa Instituição e instrumentos fundamentais de nossa memória.
Com os autores contemporâneos, observamos como essa memória foi retomada e construída e, em
que medida a história dessas instituições colabora para que possamos entender melhor o agir
humano e a produção dos saberes no âmbito da Universidade.
*
Dadas as premissas acima, principiamos analisando as formulações historiográficas que
mostram a importância das Universidades medievais como Instituição que construiu e preservou o
patrimônio histórico do Ocidente, inaugurando uma nova forma do conhecimento.
Ao tratarmos da Universidade como patrimônio histórico, retomamos elementos decisivos à
construção de nossas identidades sociais. Queiramos ou não, as Universidades e outras instituições
medievais foram essenciais na construção das nações modernas, pois estas nasceram no interior das
grandes transformações do medievo. Sob este aspecto, consideramos que essas mudanças,
especialmente no âmbito do conhecimento, não devem ser analisadas e consideradas apenas em
função do Renascimento e Humanismo dos séculos XV e XVI. Trata-se de um processo mais longo,
até porque as mudanças sociais, culturais, políticas, educacionais do século XIII proporcionaram
esses dois grandes acontecimentos históricos, bem como nossas origens e tradições.
Atualmente, em função das traduções, da preocupação em retomar as origens de nossas
instituições, aproximamos-nos do legado medievo e percebemos nossa dívida aos séculos XIII e
XIV.
Até pouco tempo atrás, era comum encontrarmos análises que consideravam os teóricos
medievais como meros representantes da Igreja e do papado. Equivocadamente, demarcavam o
nascimento das ciências modernas, do empirismo, com Bacon e Descartes. Esses autores
expressaram, indubitavelmente, mudanças profundas nas ciências, mas também é inegável que não
podemos considerá-los como pioneiros do empirismo, a não ser ignorando pensadores como Roger
Bacon (1215-1294), Guilherme de Ockham (1285/90-1349), Jean de Salisbury (1120-1180), Tomás
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de Aquino (1225-1274), Alberto Magno (1193-1280).2 Estes autores se dedicaram à investigação da
natureza, da natureza das coisas, valorizaram a importância das investigações empíricas e
compreenderam que, para tratar das ciências naturais, era preciso a experiência e o conhecimento de
outras autoridades além das sagradas, como Aristóteles.
6. A experiência, através de repetidas observações, é a melhor mestra no estudo da natureza
(Sobre os animais 1. c. 19).
7. Só a experiência leva à certeza no estudo da natureza, pois que, em casos tão particulares,
não se pode provar através de silogismo (Sobre os vegetais n. 1).
[...]
Mais adiante, Alberto Magno trata das autoridades que norteavam suas investigações,
12. Tome-se pois por princípio que, em questões de fé e de bons costumes, Agostinho deve
ser preferido aos filósofos, caso haja idéias diferentes entre eles. Mas, em se tratando de
medicina, tenho mais confiança em Galeno ou Hipócrates que em Agostinho; e se ele falar
sobre ciências naturais, tomo em maior consideração a Aristóteles ou a outro especialista no
assunto (II Sent. d. 13, a. 2) (ALBERTO MAGNO, 2005, p. 173).
O autor destaca a importância da experiência como elemento essencial ao conhecimento da
natureza. Seguidor de Aristóteles, viajou por toda a Europa, analisando plantas e animais. Seu
comentário sobre Agostinho em relação às ciências revela que, sobre esse assunto, para ele, a
autoridade era Aristóteles.
As considerações não pretendem fazer comparações entre os teóricos medievais e
humanistas, pois são homens e cientistas de épocas distintas. O propósito é destacar que os mestres
medievais, especialmente os das Universidades, tinham preocupações em relação ao conhecimento.
Elas constituem o indício de quanto movimento existia no seio do medievo.
Assim, um estudo sobre as Universidades, atualmente, é uma forma de consolidarmos nossa
identidade e, também, um caminho para entendermos a construção do conhecimento, das ciências
humanas e naturais. É, enfim, entender o nosso próprio sentido de ser pessoa intelectiva.
Em fins do século XIX e início de XX, Hastings Rashdall estudou as origens da
Universidade medieval, publicando, em 1895, a primeira edição de uma das principais obras
dedicadas ao estudo dessa Instituição. Segundo ele, a Idade Média nos legou instituições
fundamentais e “imperecíveis”, sendo a Universidade uma delas.
As instituições que a Idade Média nos legou são de um valor maior e mais imperecível do que
suas catedrais. E a universidade é nitidamente uma instituição medieval – tanto quanto a
monarquia constitucional, ou os parlamentos, ou o julgamento por meio do júri. As
universidades e os produtos imediatos das suas atividades, pode ser afirmado, constituem a
grande realização da Idade Média na esfera intelectual. Sua organização, suas tradições, seus
estudos e seus exercícios influenciaram o progresso e o desenvolvimento intelectual da
Europa mais poderosamente, ou (talvez deveria ser dito) mais exclusivamente, do que
qualquer escola, com toda a probabilidade, jamais fará novamente [...] (RASHDALL, 1958,
p. 3. Trad. livre).
Duas questões destacam-se nesta passagem em relação à formação de nossa sociedade.
Primeiro, a importância de instituições oriundas no medievo e que são a espinha dorsal da sociedade
burguesa, como a monarquia constitucional, que durante séculos foi a forma de governo de nações
2
Segundo De Boni, Alberto é “o único cientista a quem se atribui a alcunha de Magno, reservada a reis e
papas.” DE BONI, 2005, p. 171.
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européias e que subsiste ainda hoje. Outro exemplo de Instituição medieval ainda existente é o júri,
para não mencionarmos os bancos, os juros, a carta de crédito.
Segundo, o estudo das Universidades medievais permite a compreensão do pensamento e
do desenvolvimento das ciências na Europa. O autor afirma, inclusive, que nenhuma outra escola
influenciou e influenciará o desenvolvimento do pensamento e das diversas áreas das ciências como
a universidade medieva.
Na passagem a seguir, Rashdall salienta outro aspecto importante da Idade Média e de suas
instituições.
[...] A universidade, não menos do que a Igreja Romana e a hierarquia feudal encabeçada pelo
Imperador Romano, representa uma tentativa de concretizar um ideal de vida em um dos seus
aspectos. Ideais convertem-se em grandes forças históricas pela sua corporificação em
instituições. O poder de corporificar seus ideais era o gênio peculiar do pensamento medieval,
assim como seu defeito mais evidente assenta-se na correspondente tendência para
materializá-los [...] Nossa atenção estará voltada em sua maior parte confinada às primeiras e
típicas universidades [...] quando nós comparamos Bolonha com Paris e Paris com Oxford e
Praga, verificamos que as universidades de todos os países e de todas as épocas são, na
realidade, adaptações, sob várias condições, de uma e mesma instituição [...] (RASHDALL,
1958, p. 3-4. Trad. livre).
Ao afirmar que as universidades corporificam os ideais dos homens medievais, Rashdall
alerta-nos para o movimento e a vida existentes no medievo. Os homens dessa época, como de
qualquer outra, erigiram suas instituições para responder às questões que surgiram, ou seja,
materializaram seus ideais em instituições para produzirem suas vidas e traçarem seus caminhos.
O importante nesse processo de corporificação de suas idéias é que elas foram tão reais e
corresponderam, significativamente, aos interesses dos homens que ainda hoje prevalecem.
Vivemos e vivenciamos em instituições cuja existência datam de mais de oito séculos, como a
Universidade. Acerca da importância e função das instituições humanas, lembremos de Guizot, ao
afirmar que as instituições e leis humanas são criadas para responder necessidades de uma
determinada época e sobrevivem enquanto as mesmas responderem a essas necessidades e
expectativas.
Se as universidades e demais instituições continuam a existir é porque ainda respondem aos
nossos anseios e problemas. Dito de outro modo, elas ainda possuem vitalidade.
Sobre a permanência e vitalidade das instituições medievais, acreditamos importante a
leitura de Tocqueville. Em sua obra Viagens à Inglaterra e à Irlanda, ele descreve a situação da
Universidade de Oxford e dos colégios. O autor não está preocupado no estudo das origens dessas
duas instituições. Antes, faz severas críticas à manutenção dos seus privilégios e direitos feudais.
No entanto, ainda os veja apenas como símbolos de poder e privilégios, revela-nos o significado
dessas instituições para a sociedade contemporânea.
Oxford é agora uma das cidades mais curiosas que existem na Europa. Dá muito bem a idéia
das cidades feudais da Idade Média. Vê-se lá reunidas numa superfície bastante estreita
dezenove faculdades, a maioria das quais conserva com exatidão a arquitetura gótica. [...] ela
me parece bastante superior, se não a arquitetura antiga, pelo menos à nossa arquitetura
moderna. Tem, além do mais, o mérito de ser original.
O primeiro sentimento que se experimenta quando se visita Oxford é um respeito involuntário
pela antigüidade que fundou estabelecimentos tão imensos a fim de facilitar o
desenvolvimento do espírito humano, e pelas instituições políticas do povo que as preservou
intactas através dos tempos. [...]
1826
As faculdades, cujo conjunto constitui a Universidade de Oxford, foram fundadas
originalmente para que nelas se pudesse adquirir toda a instrução que comportavam os
séculos que as viram nascer.
Foram ricamente dotadas no objetivo de nelas fixar os melhores mestres e oferecer
gratuitamente a melhor educação possível. Tal é, evidentemente, o objetivo e o espírito dessas
funções, várias das quais remontam aos séculos XIII e XIV. Segundo o costume dessa época,
que tinha poucos conhecimentos e prezava apenas a riqueza territorial, uma imensa extensão
de terreno foi concedida às faculdades como propriedade inalienável [...] (TOCQUEVILLE,
2000, p. 50-51).
Ao descrever as construções da Universidade de Oxford, Tocqueville mostra-nos como esse
local foi grandioso para os homens medievais. Ele destaca a originalidade e a importância destas
construções e a sua relevância como espaço para o desenvolvimento do pensamento intelectual. Sua
crítica a essas instituições diz respeito à manutenção de privilégios, à conservação do ensino nos
moldes medievais e à permanência da propriedade que essa Instituição recebeu dos desses tempos e
que se mantinham como direito inalienável.
A questão que Tocqueville coloca é a da história, especialmente a das instituições. Quando
a Universidade de Oxford foi criada, os homens tinham como bem maior a propriedade da terra. A
forma que encontraram para estimular sua fundação e conservação foi dotá-la com o que melhor
assegurava a sua existência. Com o passar do tempo e alteradas as relações sociais, a conservação
desses direitos, privilégios e do sistema de ensino que foram condições essenciais à existência da
Universidade, deixam de ser importantes e se convertem em um ônus à coletividade3.
Com efeito, independente desses dois autores tratarem a Universidade medieval com
propósitos, olhares e em épocas distintas, ambos indicam a sua importância para a construção do
pensamento ocidental.
Um outro exemplo positivo acerca das Universidades encontra-se na obra L’Univers du
Moyen Âge, de Fridrich Heer. Nela, o autor apresenta as universidades medievais de forma parecida
com Rashdall, destacando, inclusive, com maior preciosismo, sua importância e influência para a
civilização moderna.
Parmi les grandes institutions médiévales qui se sont conservées jusqu’à nos jours, à côté de
la monarchie constitutionnelle, des Parlements, des juris de cours d’assises, de l’Eglise
catholique, il faut mettre au premier plan les Universités.
L’université et la forme d’intellectualisme qui s’y est acclimatée sont des phénomènes
spécifiquement européens. C’est de là que procèderent la civilisation scientifique du monde
moderne, ces méthodes de pensée [...] (HEER, 1970, p. 247).
Para o Heer, o desenvolvimento científico, os métodos de investigação da natureza
realizados nas Universidades medievais estão presentes e perpassam o desenvolvimento da
civilização ocidental desde o medievo até as sociedades industriais. Suas palavras expressam a
permanência de instituições medievais na construção de nossas identidades e do desenvolvimento
científico.
3
Tocqueville revela essa mesma situação de manutenção de privilégios e de ônus para a sociedade em relação
aos colégios medievais. “Enquanto o número dos fellows continuou o mesmo da Idade Média e a
incorporação a eles permaneceu submetida às mesmas regras, o número de crianças educada gratuitamente
diminuiu e foram introduzidos alunos pagantes, de maneira que os rendimentos dos felows aumentam à
medida que a subvenção se torna mais inútil”. Tocqueville, 2000, p. 52. A situação dos colégios medievais na
França é bastante distinta. Segundo Heer, na obra L’Univers du Moyen Age, a Revolução Francesa baniu estas
instituições escolares na nação.
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Depreendemos das análises desses autores que, com ou sem privilégios, estas instituições se
fazem presente no nosso universo intelectual e material e continuam como lugares de preservação,
de criação do conhecimento, da ciência e da cultura, permanecendo como patrimônios históricos.
Após essas considerações sobre o legado histórico dessas instituições, trataremos das suas
origens para que possamos compreender sua importância na construção de nossas identidades
sociais.
**
Ao analisarmos as origens das Universidades na Idade Média, dois fatos históricos se
destacam. O primeiro relaciona-se aos conflitos políticos entre os poderes laico e eclesiástico. O
segundo vincula-se à disseminação do pensamento aristotélico no Ocidente.
Os estudiosos são unânimes em afirmar que diversos acontecimentos interferiram e
estimularam o nascimento dessas instituições, como o renascimento das cidades, o desenvolvimento
das corporações de ofícios, o florescimento do comércio, o aparecimento do mercador. Existem
análises que vinculam as Universidades medievais às escolas árabes; outras afiançam que as
Universidades são filhas das escolas do século XII, dentre as quais a Vitorina e a de Pedro
Abelardo. Há outras interpretações segundo as quais as Universidades somente poderiam nascer no
século XIII, o século das corporações de ofício. Contudo, a disputa pelo poder entre a realeza e o
papado, que reivindicavam o governo da sociedade, influenciou sobremaneira o surgimento das
universidades.
No início do século XIII, o papa e os príncipes encaravam essas instituições como
importantes pontos de apoio político e cultural. Em função disso, editaram leis e bulas para as
instituir, proteger e intervir, tanto no ensino como nas relações entre estudantes e mestres e entre
estes e a comunidade.
As principais universidades do século XIII - Paris e Bolonha - foram criadas por essas
autoridades. Dois grandes exemplos da influência desses poderes na organização da Universidade
medieval são a Authentica Habita, de Frederico Barba Roxa, de 1158, e a bula de Gregório IX
intitulada Parens scientiarum universitas, de 1231. Esses dois documentos foram promulgados para
proteger a vida e os interesses dos estudantes e mestres e para organizar a vida acadêmica4.
Se as disputas políticas estimularam e asseguraram, pelas mais diversas razões, a existência
das Universidades, não menos importantes foram a introdução e a difusão das obras de Aristóteles,
no século XIII. Desde o século anterior, com as escolas parisienses, as Cruzadas e as traduções
árabes, verifica-se uma crescente e constante influência do Filósofo no Ocidente. Entretanto, foi a
partir do século XIII que suas principais obras foram traduzidas e se tornaram objetos de estudo e
pontos de referência nas investigações da natureza e da sociedade.
As mudanças teóricas trazidas pela filosofia aristotélica às investigações e saberes
provocaram um grande debate no seio da Universidade e entre os intelectuais do século XIII.
Estudiosos desse período, como Steenberghen (1991), Pieper (1973) e Gilson (1998) salientam que
existiam três grandes correntes teóricas. A primeira refutava o pensamento aristotélico e lutava pela
conservação da concepção agostiniana. A segunda pregava o abandono dos escritos sagrados e o
alinhamento radical com o pensamento do Filósofo. A terceira, finalmente, mesclava essas duas
fontes do conhecimento, procurando unir o pensamento de Aristóteles com os escritos sagrados.
Esse debate foi intenso e marcou, de maneira indelével, a trajetória intelectual de quase todo o
século XIII e as primeiras décadas do XIV.
Esse debate influenciou não apenas essa época, mas traçou o caminho teórico da
modernidade, pois foi o empirismo aristotélico que dominou os saberes da modernidade. A
4
Não analisaremos aqui esses documentos por não fazerem parte do propósito inicial. Contudo, saliente-se
que é uma discussão bastante importante para aqueles que pretendem se aprofundar no tema. Temos duas
publicações, pela Editora Mandruvá, que discorrem sobre as Universidades e sobre esta disputa política.
Consideramos, também, indispensável o artigo de Paulo Nardi Relações com a Autoridades.
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conservação radical da concepção agostiniana trouxe como resultado as lutas religiosas da Reforma:
o próprio Lutero era um seguidor desta doutrina. A concepção tomasiana de equilíbrio entre os
escritos sagrados e aristotélicos se perdeu e, junto com ela, a idéia de um equilíbrio entre as duas
correntes do pensamento. Prevalece a radicalidade dos princípios, ora religiosos, ora empiristas. A
idéia de uma totalidade do conhecimento dilui-se nas diferentes verdades dos saberes5. Essa
radicalidade no pensamento teórico definiu, inquestionavelmente, os caminhos sociais, políticos e
econômicos das nações que se formaram no final do feudalismo, bem como as colônias do novo
mundo.
Há que se destacar, também, um outro aspecto que resultou desse debate teórico e que
deixou marcas na modernidade, colaborando para a construção de nossas identidades sociais. Esse
aspecto relaciona-se às duas grandes universidades medievais: a de Paris e a de Oxford.
Em Paris prevaleceu o debate entre as tendências aristotélicas e agostinianas, portanto, o
debate entre teologia e filosofia: o embate teórico. Em Oxford, conservou-se o domínio das idéias
franciscanas (agostinianas), predominando o estudo da natureza, a investigação das coisas lógicas e
matemáticas, em suma, o pensamento empírico.
Essas características marcam o futuro dessas duas nações e da sociedade ocidental como um
todo. Enquanto na Inglaterra assistimos a difusão de um pensamento pragmático e objetivo (e isso
aparece explícito na história dessa nação, nos nomes que se destacaram nas ciências da natureza e
na objetividade da língua), na França, a permanência do pensamento filosófico propiciou o
surgimento do iluminismo. Nessa nação aconteceu a Revolução, expressão de um dos maiores
embates históricos, inclusive no campo das idéias, com a luta das idéias iluministas contra as
feudais6. Diante de tantas influências e lembranças, podemos afirmar que a Universidade, nascida
no século XIII, contribuiu e ainda contribui para a construção das nossas identidades coletivas.
Consideremos, a partir de alguns estudiosos, as origens dessa Instituição. Iniciemos por
Verger, que afirma:
O surgimento das primeiras universidades, na virada dos séculos XII e XIII, é um momento
capital da história cultural do Ocidente medieval [...] Pode-se compreender que ela
comportou, em relação à época precedente, elementos de continuidade e elementos de
ruptura. Os primeiros devem ser buscados na localização urbana, no conteúdo dos
ensinamentos, no papel social atribuído aos homens de saber. Os elementos de ruptura foram
inicialmente de ordem institucional. Mesmo que se imponham aproximações entre o sistema
universitário e outras formas contemporâneas de vida associativa e comunitária (confrarias,
profissões, comunas), este sistema era, no entanto, no domínio das instituições educativas,
totalmente novo e original, [...] o agrupamento dos mestres e/ou dos estudantes em
comunidades autônomas reconhecidas e protegidas pelas mais altas autoridades leigas e
religiosas daquele tempo, permitiu tanto progressos consideráveis no domínio dos métodos de
trabalho intelectual e da difusão dos conhecimentos quanto uma inserção muito mais eficiente
das pessoas de saber na sociedade da época (VERGER, 2001, p. 189-190).
Alguns aspectos destacados pelo autor são fundamentais para se entender o nascimento das
Universidades. Em primeiro lugar, seu aspecto citadino: as Universidades se caracterizam como
centros urbanos de saberes, diferentemente das escolas monacais, por exemplo. Sob este aspecto,
5
Ressaltamos que não aprofundaremos esse debate porque isso demandaria um outro encaminhamento para o
texto. Entretanto, a leitura da obra La Philosophie au XIII siècle, de Steenberghen, e a obra Filosofia
Medieval y Mundo Moderno, de Pieper, são indispensáveis.
6
Evidentemente, não iremos tratar da Revolução francesa. Pretendemos apenas mostrar quanto os debates
teóricos medievais influenciaram os destinos dessa nação na modernidade. Lembremos aqui as palavras de
Guizot acerca das causas das revoluções. “Les causes des révolutions sont toujours plus générales qu’on ne le
suppose; l’esprit le pénétrant et la plus vaste ne l’est jamais assez pour percer jusqu’à leur première origine,
et les embrasser dans toute leur étendue”. GUIZOT, 1857, p. 57.
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saliente-se que, com o renascimento comercial, a divisão do trabalho entre o campo e as comunas, a
organização do trabalho citadino sob a forma de corporação de ofício e o surgimento das ordens
religiosas mendicantes (dominicanos e franciscanos) essencialmente citadinas faz com que a vida
medieva se processe cada vez no ambiente das cidades.
Em segundo lugar, o papel social que os homens de saberes passam a desempenhar no seio
da comunidade, ora a serviço do papa, ora a serviço do príncipe. A proximidade com o poder
propiciava aos intelectuais uma inserção política e cultural significativa na sociedade, pois, em
geral, legislavam a favor ou contra as autoridades, questionavam ou assimilavam os antigos
conhecimentos sagrados ou filosóficos. Tudo isso dava uma certa autonomia às universidades com
relação à comunidade local, permitindo-lhe uma liberdade de atuação cultural, científica e política7,
o que foi fundamental para o desenvolvimento do pensamento.
Assim, verificam-se, nesse período, mudanças significativas no espírito social. Se até então
a Igreja, portanto, a religião, indicava o caminho intelectual, com o surgimento das Universidades e
desse novo intelectual modifica-se esse caminhar, colocando na ordem do dia a importância dos
saberes científicos. Não é gratuito que, no século XIII, verificamos o florescimento das
universidades, o início da formação dos estados modernos e, concomitantemente, é o século da alta
Escolástica8.
Verger salienta um aspecto que está presente, em geral, nas análises sobre as universidades
medievais: o fato de a Universidade de Paris tornar-se o foco intelectual do Ocidente medievo e
tornar-se o modelo para demais universidades.
[...] Paris tornou-se, verdadeiramente, no século XIII, um foco maior de debate intelectual e
de renovação das idéias. Centenas de jovens clérigos foram ali formados nas técnicas mais
refinadas do trabalho intelectual, segundo métodos seguros. Evidentemente, este trabalho
intelectual comportava regras às vezes rígidas, [...] mas a qualidade do ensino universitário
parisiense levou a se fazer progressos decisivos em direção à autonomia, para não se dizer, à
profissionalização, da cultura erudita. A figura ainda um pouco vaga das pessoas de saber
passou a estar associada a um tipo social bem preciso e excepcionalmente prestigioso, o
doutor. Compreender-se que a universidade de Paris tenha se tornada então um modelo que se
procuraria imitar e reproduzir em toda a parte em que se fizesse sentir a aspiração a uma
semelhante promoção da cultura (VERGER, 2001, p. 208).
A Universidade parisiense torna-se não só exemplo, mas também forma um novo
profissional, o profissional da cultura cujo trabalho é o estudo, a ciência, o saber. Ousaríamos
afirmar que se forma um novo personagem social vinculado ao saber: o doutor. Essa figura e função
continuam a existir em nossas universidades. Aliás, cada vez mais, o título de mestre é algo que
expressa somente uma formação intermédia9.
Se Verger destaca a influência da Universidade, ressaltando o seu papel político-cultural,
Lusignan chama a atenção para o aspecto original dessa instituição.
Segundo ele, o aparecimento da Universidade, no início do século XIII, na França e em
diversos outros pontos da Europa, representa uma grande “mutação” no sistema de ensino medieval.
7
Isso não significa que os universitários viviam em completa harmonia com os habitantes da cidade. Muito
pelo contrário, os documentos atestam freqüentes enfrentamentos entre as gentes das universidades e os da
comunidade. Várias universidades foram criadas em outros locais em virtude de migrações de mestres e
escolares. Contudo, mediante as restrições e controles que os homens e instituições viviam no mundo feudal,
as universidades tinham grandes espaços de liberdade científica e política.
8
Recentemente, publicamos um livro sobre a Escolástica e a sua importância para s entender o pensamento
medieval. Ainda acerca do tema Escolástica, recomendamos a leitura da obra Filosofia medieval, de Martin
Grabmann, os capítulos que tratam da temática na obra História da Educação na Idade Média, de Ruy Nunes.
9
Acerca da formação do profissional do saber é indispensável a leitura das seguintes obras: Intelectuais na
Idade Média, de Le Goff, e As Universidades na Idade Média, de Verger.
1830
Pela primeira vez, funda-se e organiza-se uma Instituição cuja identidade primeira é a dedicação ao
estudo. Enfim, assiste-se, no interior das relações medievas, a criação de um espaço social destinado
somente ao saber.
Une mutation importante s’est produite en France et ailleurs en Europe avec l’apparition des
universities à l’aube du XIII siècle. Pour la première foi l’enseignement s’organisait en
institution et s’affirmait l’idéntité propre de ceux qui se consacraient aux etudes. Depuis le
début du Moyen Age, le christianisme avait favorisé le développement d’écoles pour assurer
aux clercs la formation nécessaire à la lecture de la Bible et des Pères de l’Eglise, [...]
L’université apparaît comme une creation tout à fait neuve. Elle tenait sa première originalité
du modele corporatif, fort développé à cette époque, qu’elle emprunta pour organiser les
rapports entre les maîtres et les étudiantas et pour encadrer le déroulement des études
(LUSIGNAN, 1999, p. 9-10).
A análise de Lusignan é elucidativa. Destacando o caráter original da Universidade, chama
a atenção para o fato dela se organizar sob a forma de corporação10, como as demais atividades
citadinas. Contudo, um aspecto merece destaque: é o fato do autor afirmar que, na Idade Média, o
cristianismo sempre desenvolveu e impulsionou o desenvolvimento escolar. No entanto, a
Universidade é um locus novo, pois seu princípio não é mais o ensino no qual a religião é o seu fim,
mas, o saber. A preocupação dos homens das universidades não é somente formar o clérigo, mas
formar uma pessoa capaz de aprender e de ensinar. O saber deixa de ser um dom, uma graça divina,
como era considerado até então. Torna-se uma atividade humana que qualquer um que, possuindo
intelecto racional, pode desempenhar, ou seja, qualquer ser humano. O conhecimento, o ensino e o
saber adquirem uma dimensão nova e é essa a grande inovação da Universidade.
Dentro desse contexto, trataremos do último aspecto da nossa apresentação, a importância
da memória, da memória histórica medieval, para a construção de nossos saberes e de nossas
identidades.
***
Para tratar da importância da memória como elemento formativo do ser (nesse sentido, a
preservação da memória da Universidade medieva é importante) basear-nos-emos em dois autores
que tratam do papel da memória desta perspectiva. O primeiro é Le Goff, maior especialista
contemporâneo sobre a Idade Média. Utilizaremos o seu texto Memória-História. O segundo é a
maior autoridade da Escolástica e do pensamento medieval do século XIII, Santo Tomás de Aquino.
Citaremos três questões da parte II – II da Suma Teológica. São as questões 47, 48 e 49, que tratam
da questão da memória inserida na discussão sobre a Prudência11. Não faremos, evidentemente,
uma análise detalhada destas questões, pois isso implica um estudo de fôlego e ser o único objeto de
análise
O fato de abordarmos primeiramente a análise de Le Goff deriva do fato de tratar-se de uma
interpretação da memória medieva, apresentando-as em suas características gerais. A análise de
Santo Tomás tem como objetivo demonstrar de que maneira um dos maiores mestres da
Universidade de Paris e da Escolástica investigou e mostrou a memória como um dos elementos
fundantes da virtude da prudência e, portanto, elemento chave para o “reto agir humano”. Não
estamos analisando santo Tomás para discorrer sobre a Universidade porque suas obras já espelham
10
A descrição feita por Heer das Universidades como corporação de ofício é um testemunho a mais do
vínculo dessa Instituição com as demais atividades citadinas. “Universitas, ce mot designe d’abord au Moyen
Age un compagnonnage, une corparation comme il en existe tant dans les villes. Une guilde, un groupement
de commerçants ou d’artisans, tout petite société organisée peut s’intituler <<université>>. L’Université
proprement dite n’est rien d’autre, au départ, qu’une corporation d’étudiants et de professeurs qui se
groupent pour défendre leurs intérêts en terre étrangère (HEER, 1970, p. 254).
11
Estamos utilizando a tradução de Aquino feita por Lauand da questão da Prudência.
1831
e exemplificam suas características de mestre, mas para destacar uma questão vital que define o
comportamento e a identidade do sujeito histórico, a memória. Assim, nossa intenção é indicar
como esse mestre universitário tratou da questão da memória e demonstrou a sua importância para a
formação da pessoa.
Principiemos pelo modo como Le Goff trata da memória na época medieva.
Segundo ele, na Idade Média, a memória estava diretamente vinculada à religião. A
memória coletiva viria do cristianismo, na medida em que esta religião tinha se estabelecido como
ideologia dominante “O essencial vem da difusão do cristianismo como religião e como ideologia
dominante.” (LE GOFF, 1984, p. 24)
O domínio do cristianismo e, de uma certa forma, do judaísmo, em muito contribuiu para a
preservação da memória na Idade Média, pois, segundo o autor, são por excelência religiões de
recordação.
Pôde-se descrever o judaísmo e cristianismo, religiões radicadas histórica e teologicamente na
história como “religiões de recordação”. E isto em diferentes aspectos: porque actos divinos
de salvação situados no passado formam o conteúdo da fé e o objecto do culto, mas também
porque o livro sagrado, por um lado, a tradição histórica, por outro, insistem [...] na
necessidade de lembrança como tarefa religiosa fundamental. (LE GOFF, 1984, p. 24)
Nessas duas religiões, a lembrança é uma das suas principais bases de existência e
divulgação, já que é necessário relembrar-se dos atos divinos e das palavras sagradas para assegurar
a salvação espiritual.
Todavia, um outro aspecto da memória medieva é salientado por Le Goff. Ao lado de uma
memória vivida diariamente pelos homens comuns, existiria um desenvolvimento da memória
escrita entre os clérigos e literatos. Isto o leva a afirmar que entre o grupo dominante existia
equilíbrio entre memória escrita e oral.
Todavia, nestes tempos, o escrito desenvolve-se a par do oral e, pelo menos no grupo dos
clérigos e literatos, há um equilíbrio entre memória oral e memória escrita, intensificando-se
o recurso ao escrito como suporte da memória.
(...)
Durante muito tempo, no domínio literário, a oralidade continua ao lado da escrita e a
memória é um dos elementos constitutivos da literatura medieval” (LE GOFF, 1984, p. 29).
Assim, os homens comuns teriam acesso às canções de gesta pelo jogral, pelo canto, em
última instância, pela sua memorização oral, enquanto que a memória escrita estaria presente nos
grupos dominantes.
É precisamente por este equilíbrio, entre a memória oral e a escrita, estar vinculado a um
grupo específico que ela predomina nas escolas, principalmente nas universidades. A Escolástica
seria a expressão dessas duas memórias.
Riché afirma, sobre a Alta Idade Média: “O aluno deve registrar tudo na sua memória. Nunca
será demais insistir nesta atitude intelectual que caracteriza e caracterizará por muito tempo
ainda, não só o mundo ocidental, mas o Oriente. Tal como o jovem muçulmano ou o jovem
judeu, o estudante cristão deve saber de cor os textos sagrados.(..) Nesta época, saber de cor é
saber.”
(...)
No sistema escolástico das universidades, depois do final do século XII, o recurso à memória
continua freqüentemente a fundar-se mais na oralidade que na escrita. Apesar do aumento do
número de manuscritos escolásticos, a memorização dos cursos magistrais e dos exercícios
orais continua a ser o núcleo do trabalho dos estudantes (LE GOFF, 1984, p. 30).
1832
Assim, durante a Idade Média, a memória oral e a escrita estiveram presentes na vida dos
homens, independentemente do seu lugar social. A memória foi um dos elementos constitutivos do
intelecto medieval, seja por meio das novelas e das canções de gestas, seja pela memorização dos
textos sagrados ou teóricos que os escolares medievais precisavam reter para construírem seus
saberes.
Passemos à analise da forma como ela é considerada Tomás de Aquino.
Ao tratar da questão da Virtude da Prudência, Tomás de Aquino destaca o fato de que o
esquecimento pode interferir na prudência na medida em que os homens se esquecem de como
deveriam agir e esse esquecimento pode, muitas vezes, ser prejudicial à sociedade. Nesse sentido, a
permanência da memória, é algo fundamental para a sociedade, pois indicaria o conhecimento que
os homens têm de si mesmos ou, em oposição a isso, o desconhecimento que eles têm da sua
história, das suas leis, do seu passado.
O esquecimento diz respeito ao conhecimento e, portanto, pode-se por esquecimento perder
totalmente arte e ciência, que consistem em razão.
[...]
O esquecimento, porém, pode tornar-se um impedimento para a prudência, já que ela, para
comandar, precisa de alguns conhecimentos, que, pelo esquecimento, podem desaparecer
(TOMÁS DE AQUINO, P. II – II, Q. 47, art. 16).
O esquecimento ou falta de lembrança afetaria a virtude da prudência, pois o homem
prudente é aquele que comanda seu agir de acordo com o conhecimento. Prosseguindo na reflexão
sobre a importância da memória no agir da virtude da prudência, santo Tomás destaca que: “[...] o
conhecimento em si mesmo, que se refere ao passado, é memória; se se refere ao presente – quer se
trate de realidades contingentes ou necessárias – chama-se intelecto ou inteligência” (TOMÁS DE
AQUINO, P. II – II, Q. 48, art. único,).
Na verdade Tomás de Aquino observa que o comportamento prudente ocorre quando se usa
a reta razão e ela advém sempre do conhecimento que se processa no seio de duas demarcações
temporais: o passado e o presente. O conhecimento ocorreria quando ensinamos ou aprendemos a
partir do passado e do presente. O ensino/conhecimento do passado acontece quando nos
remetemos à memória e o ensino/conhecimento, no presente, quando usamos nosso intelecto.
A discussão da importância da memória como parte substancial da virtude da prudência fica
claramente explicitada na Questão 49, no artigo primeiro, quando argumenta e responde às objeções
que a memória não era parte da prudência.
As respostas às três objeções são uma excelente aula sobre a memória, desde o seu
exercício, passando pelo conhecimento, até quando nos ensina como podemos e devemos nos
aconselhar com as lembranças.
[...]
Contra a primeira objeção deve-se dizer que, como já mostramos, a prudência aplica o
conhecimento universal aos casos particulares, dos quais se ocupam os sentidos. Daí que a
prudência requer muito da parte sensitiva, na qual se inclui a memória.
Contra a segunda objeção deve-se dizer que a disposição para a prudência de fato nos é
conatural, mas seu desenvolvimento vem pelo exercício ou pela graça, como diz Cícero em
sua Retórica (III, 16): a memória não se desenvolve só por natureza, mas por diversas
técnicas e expedientes. E há quatro modos de aperfeiçoar a memória:
1.Estabelecer associações por semelhanças adequadas para o que se quer recordar. Mas não
semelhanças usuais, pois com o que é invulgar nos admiramos mais e assim as impressões
ficam mais fortemente gravadas: é por esta razão que nos lembramos mais das coisas que
vimos na infância. E
1833
[...]
2.É necessário organizar e dispor em ordem aquilo que se quer lembrar, de tal modo que haja
uma associação de lembranças por encadeamento.
[...]
3.É necessário que o homem tenha solicitude e afeto para com aquilo que quer recordar, pois
quanto mais gravadas fiquem as impressões em nós, menos se esvanecem. [...]
4.É necessário meditar freqüentemente sobre o que queremos guardar na memória. Daí que o
Filósofo diga (De Memória I) que as meditações preservam a memória, pois como se diz no
mesmo livro (De Memória II): “o costume é como que uma natureza”. Daí que nos
lembramos rapidamente do que muitas vezes consideramos, associando, como que
naturalmente, uma coisa e outra.
Contra a terceira objeção, deve-se dizer que devemos tomar do passado como que argumentos
para examinar situações do futuro. E, assim, a memória dos fatos passados é necessária para
bem aconselhar sobre o futuro (TOMÁS DE AQUINO, Parte II – II, Q. 49, art.1).
Ao responder e refutar os argumentos, Aquino discorre sobre os diversos aspectos do agir
humano nos quais a memória atua, de forma a contribuir e definir a prudência nos homens.
Um primeiro aspecto que deve ser considerado relaciona-se ao fato de que a memória não é
uma qualidade inata no homem. Antes, aprendemos, por meio do intelecto, a fazer uso da memória.
Um segundo aspecto relaciona-se com a nossa capacidade de associar os acontecimentos.
Exatamente por isso não nos lembramos de tudo, mas daquilo que nos remete a algo que marcou
nossas vidas. No que se refere aos acontecimentos em geral e à aprendizagem, só lembramos
daquilo que poderemos fazer uso. Estabelecemos em nossas lembranças uma seqüência de fatos que
procuramos preservar e, sob este aspecto, entramos num terceiro espaço da memória, o da
afetividade. Segundo Tomás de Aquino, sempre nos lembramos de algo que remete à afetividade.
Por isso, as lembranças da infância sempre povoam nossa memória. Um quarto aspecto vincula-se à
meditação. Seguindo os passos do Filósofo, Aquino observa que a meditação sobre algo sempre
torna esse algo mais presente em nossa memória.
Um último aspecto das respostas desse artigo remete-nos ao nosso tema, o das
Universidades medievais. De acordo com santo Tomás, lembrar-se dos fatos do passado é
importante porque esta memória nos aconselha sobre o agir presente e futuro.
Essas palavras sobre a importância da memória como elemento do agir prudente merecem
uma reflexão. Quanto mais nos afastamos das nossas lembranças, especialmente das origens da
Universidade, que é o nosso espaço do agir, pois ela é um dos locais onde ocorre o ensino e a
aprendizagem, mais nos distanciamos da virtude da prudência, porque menos nos aconselhamos
acerca do presente e do futuro do conhecimento. Sem essa preocupação mais generalizante do nosso
agir, nos reduzimos às nossas questiúnculas cotidianas e esquecemos de buscar a totalidade do
conhecimento científico e humano.
Assim, lembremos o fato de que a Universidade foi o primeiro espaço de saber
universalizante que o Ocidente construiu nos últimos dois mil anos. Universalizante no que diz
respeito ao conhecimento e no que respeita a integração das pessoas. Também esse espaço delineou
nossas identidades sociais e científicas. Por meio da sua memória poderemos, quiçá, nos
aconselharmos sobre o seu futuro. Afinal, ela pode orientar nosso caminhar e agir. Reiteramos aqui
algo já dito no início: se uma Instituição existe há 800 anos e continua atuante (evidente sob novas
características), é porque ela continua fazendo parte da história e construindo a identidade dos
homens.
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