UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ RAFAELA MATTEVI DIREITOS INDÍGENAS: as leis, as reivindicações e o direito comunitário Biguaçu 2010 RAFAELA MATTEVI DIREITOS INDÍGENAS: as leis, as reivindicações e o direito comunitário Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharela em Direito. Orientador: Prof. Sandro Cesar Sell. Biguaçu 2010 2 Dedico este trabalho aos povos indígenas, por sua perseverança; à minha mãe maravilhosa, exemplo de dedicação e de amor incondicional; e ao Rodrigo, companheiro que escolhi para a vida. 3 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a todos das comunidades de Morro dos Cavalos e de M’Biguaçu que me receberam e que partilharam comigo suas histórias, em especial ao cacique Teófilo, ao cacique Hyral, à Nice, ao professor Adão, ao Batista, ao Márcio, ao Seu Alcindo, ao Geraldo e à Adriana. Não poderia deixar de agradecer ao meu querido orientador, Sandro, que, com sua visão pluralista, me ajudou com tudo que precisei para que bem pudesse finalizar este trabalho e muito me animou com suas palavras encorajadoras. Também devo meus profundos agradecimentos: a Dione, minha mãe maravilhosa, que me apoiou o tempo inteiro na execução deste trabalho e em todos os passos da minha vida; sem sua ajuda, sem a sua doação, não teria conseguido me concentrar para bem finalizá-lo, tampouco teria finalizado a faculdade ou seria hoje quem sou; ao Rodrigo, meu anjo, que me tranqüilizou sempre que precisei e foi paciente com meu nervosismo; à Kaká, tia, irmã e amiga, pelas sempre doces e animadoras palavras de apoio; ao meu pai, Hélio Ricardo, que me estimulou a continuar nadando, sempre com bom humor; à minha linda sogra, Elisabeth, que, além de ser uma companhia maravilhosa e de sempre dar sábios ensinamentos, me ajudou a conseguir livros fundamentais para este trabalho; a meu sogro querido, Maurílio, por sua alegria contagiante e indispensável, e também à Cla, ao Amigão e ao Bina, queridos amigos que ganhei junto com o Rodrigo; ao Herculano, figura indispensável em minha vida, sem o qual talvez nem tivesse me interessado por direito, com quem sempre tive debates jurídicos e filosóficos muito proveitosos e que também me abriu sua valiosa biblioteca; a toda a minha família e aos meus amigos, que fazem da minha vida tão especial. 4 RESUMO Desde muito antes da invasão européia no que hoje é o Brasil, os vários povos que aqui viviam tinham seu próprio direito. Neste trabalho, analisamos as principais leis estatais que lhes foram impostas até hoje, assim como suas reivindicações e seu direito comunitário. Com fundamento no pluralismo jurídico comunitário-participativo apresentado por Antonio Carlos Wolkmer, demonstra-se a importância de pensar um outro tipo de direito, que está nas próprias necessidades dos sujeitos coletivos, para a construção de uma melhor legislação para os indígenas e para a legitimação do seu direito comunitário. Para comprovar a existência do direito indígena de dentro da aldeia, realizou-se pesquisa etnográfica qualitativa, com entrevistas de profundidade, trazendo o direito indígena pelo próprio indígena. Palavras-chave: Pluralismo jurídico; direitos indígenas; leis estatais; monismo jurídico; direito comunitário; antropologia; reivindicações. 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7 1 PANORAMA GERAL DA QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL ...................... 10 2 AS LEIS SOBRE INDÍGENAS DESDE A INVASÃO EUROPÉIA .................... 25 2.1 Sobre como os europeus regulamentaram a guerra e a sua permanência .... 25 2.2 Século XIX e direitos territoriais indígenas ..................................................... 35 2.3 Origem da tutela e seus reflexos nos séculos XIX, XX e XXI ......................... 45 2.4 A criação e o fim do Serviço de Proteção ao Índio e a FUNAI ....................... 49 2.5 As primeiras constituições do século XX e os direitos indígenas ................... 54 3 OS DIREITOS INDÍGENAS VIGENTES NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.. 57 3.1 O Estatuto do Índio ainda está em vigor? ........................................................ 57 3.2 As mudanças trazidas pela Constituição Federal de 1988 .............................. 72 3.3 O Código Civil, o etnocentrismo da doutrina e da jurisprudência e a necessidade de um novo Estatuto do Índio............................................................. 84 4 UMA OUTRA VISÃO SOBRE OS DIREITOS INDÍGENAS ............................. 97 4.1 O pluralismo jurídico, as reivindicações dos povos indígenas para a lei e o direito comunitário indígena ................................................................................... 97 4.2 O direito indígena pelo indígena: um estudo de caso em duas aldeias Guarani da Grande Florianópolis ........................................................................................ 113 4.2.1 Ocupação Guarani na Grande Florianópolis ............................................. 113 4.2.2 Introdução às entrevistas etnográficas ....................................................... 117 4.2.3 Resultado das entrevistas etnográficas ....................................................... 124 CONCLUSÃO............................................................................................................. 132 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 134 6 INTRODUÇÃO Neste trabalho, percorreremos uma história dos povos indígenas brasileiros a partir de seu direito: tanto as leis escritas que portugueses e brasileiros criaram, quanto o direito de dentro da comunidade, que já existia antes da invasão portuguesa e que existe até hoje. O objetivo é trazer e criar teoria para demonstrar que existe direito além das leis, dentro das aldeias, e que esse direito é tão importante, se não mais, que o direito positivado. Além de trazer o direito de dentro e de fora da comunidade, o trabalho quer demonstrar que, para construir uma boa legislação na área dos direitos indígenas, é obrigatório ouvir os representantes dessas etnias. As leis precisam partir deste ponto: das necessidades dos povos indígenas – e não é impossível ouvi-los. Aliás, cada vez mais os índios se organizam em comissões estaduais e interestaduais, reivindicando que sejam ouvidos. A pesquisa combina doutrina jurídica e antropológica acerca da legislação brasileira indigenista e do direito comunitário indígena, além de trazer as exigências indígenas para a legislação. Essas perspectivas são analisadas com um estudo de caso nas aldeias Guarani de M’Biguaçu (Biguaçu – SC) e Itaty, mais conhecida como aldeia de Morro dos Cavalos (Palhoça – SC). As comunidades foram escolhidas, em primeiro lugar, por estarem próximas da pesquisadora, e também por serem as maiores que estão em mais contato com não-indígenas na Grande Florianópolis. O contato interétnico é algo que precisa ser muito levado em conta para a compreensão desse estudo, porque é nele que se iniciam muitos problemas de incompreensão dos não-indígenas. No primeiro capítulo será realizado um panorama geral sobre as questões indígenas no Brasil. Consideramos que por ser um assunto não muito conhecido, é importante que a questão jurídica seja analisada somente após uma primeira análise dos conflitos sociais que envolvem o tema; por isso a necessidade de um capítulo a mais, para introduzir o leitor e a leitora à temática geral do indígena no Brasil. No segundo capítulo, entramos no mundo jurídico e fazemos um histórico das principais leis indígenas desde a invasão européia. No terceiro capítulo, é feito um estudo sobre as leis vigentes. E, por fim, no quarto, a partir da teoria do pluralismo jurídico, justifica-se a importância de trazer as reivindicações indígenas para a legislação e legitima-se o direito comunitário indígena. Também neste último capítulo entramos no mundo do direito Guarani, fazendo uma introdução sobre essa etnia, para em seguida trazer os 7 dados da pesquisa qualitativa realizada nas aldeias de M’Biguaçu e de Morro dos Cavalos. As hipóteses levantadas pelo trabalho são: de que a legislação brasileira ainda é etnocêntrica e omissa, não resguardando a proteção das necessidades mais básicas de índias e índios – porque se nega, ainda, realmente escutá-los; e que a dificuldade dos povos indígenas em manter o seu direito comunitário e em fazer parte de um direito dogmático que compreenda a sua complexidade – é decorrente desse tratamento prejudicial da legislação e de sua aplicação. Sem ter garantidos os direitos mais básicos, os povos indígenas não podem viver conforme sua cultura, o seu modo de vida. Um exemplo disso está com o sempre presente impasse da maioria dos povos de conseguirem amplos espaços de terra, estando cada vez mais confinados em pequenos terrenos desfavoráveis à plantação para a subsistência – que é o caso de muitas aldeias, como as de M’Biguaçu e de Morro dos Cavalos –, impedindo sequer que se alimentem segundo suas tradições. Esta pesquisa pretende analisar os povos indígenas como sujeitos de direito. Baseando-se na definição pluralista de direito de Antonio Carlos Wolkmer, de que direitos são necessidades, seria a intenção da pesquisadora – se possível – descobrir as necessidades de todos os povos indígenas brasileiros. Somente sabendo o que os povos indígenas consideram direitos, ou seja, sabendo das suas reais necessidades, pode-se construir uma legislação verdadeiramente protetora e efetiva. Sendo, no entanto, uma pesquisa que abrangesse todos os povos indígenas brasileiros tarefa impossível para uma única acadêmica, busca-se acrescentar à totalidade teórica da temática indígena uma pesquisa etnográfica qualitativa em duas aldeias Guarani – especialmente para chamar atenção para a atitude imprescindível de ouvi-los. Esse é o principal objetivo da acadêmica com a pesquisa etnográfica, demonstrar essa obrigatoriedade de ouvi-los. As aldeias escolhidas são de índios não-isolados e situam-se às margens da rodovia BR-101, em Palhoça e em Biguaçu, na Grande Florianópolis. Aqui utiliza-se o conceito de não-isolados apenas para deixar claro que se trata de comunidades que há muito convivem com não-indígenas, mas essa classificação estática de cultura já foi muito contestada. Robert Lowie, antropólogo do século passado e aluno de Franz Boas (principal expoente do culturalismo norte-americano), já combatia na década de 1920 a idéia de isolamento de quaisquer povos, com o simples – porém eficaz – argumento de que os seres humanos existem há cerca de 100 mil anos: 8 Não é possível conceber que uma subdivisão qualquer do gênero humano, ainda que houvesse se separado das restantes durante uma décima parte desse imenso período de tempo [100 mil anos], tenha permanecido estática por completo. Existem duas razões muito convincentes para supor o contrário. Em primeiro lugar, o isolamento sempre foi relativo se consideramos grandes períodos de tempo. Em outras palavras, as influências do exterior sempre produziram alguma mudança nos costumes, nas crenças e nas artes materiais. Em segundo lugar, tais alterações acontecem - embora com maior lentidão inclusive na ausência de estímulos externos, como conseqüência das inovações realizadas com êxito a cada geração. 1 A perspectiva teórica abordada tenta trazer a compreensão da cultura como uma soma de discursos que não se anulam e que estão em constante ressignificação. Pensando nessa impossibilidade de traçar uma linha imaginária entre duas culturas, e, ainda assim, na necessidade de proteger minorias culturais que ainda tentam viver conforme algumas manifestações culturais tradicionais, como é o caso das aldeias Guarani aqui estudadas – é preciso formular uma legislação que contemple a complexidade da situação. E somente escutando a sociedade indígena será possível compreender as suas necessidades nesse mundo de interpenetrações e ressignificações culturais. Na pesquisa busca-se, então, entender como o direito pode fazer a complexa situação dos povos indígenas no Brasil melhorar. 1 LOWIE, Robert. Religiones Primitivas. Madrid: Alianza, 1983 (1925), pp. 13-14. Tradução própria. 9 1 PANORAMA GERAL DA QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL Mesmo que não haja um consenso sobre a data exata em que os seres humanos surgiram na América do Sul nem de onde exatamente vieram, sabe-se que a ocupação dessa região é muito antiga. As datas vão de 12 mil a 70 mil anos atrás, sendo que o menor número é resultado de uma teoria da década de 1950 que considerava que as migrações pré-históricas somente poderiam acontecer por terra. O humano teria passado da Ásia, por meio da Beríngia, para o Alasca, e descido, ao longo do tempo, para a América Central e do Sul. Essa teoria é contestada por não considerar a capacidade intelectual do humano de então e, além disso, por considerar que seria mais fácil criar uma tecnologia para o frio intenso do que para a navegação. Hoje se propõe que diversos grupos humanos chegaram à América por diferentes vias de acesso, marítimas e terrestres, os primeiros há 70 mil anos. 2 A região onde hoje é o Brasil já estava completamente ocupada há 12 mil anos, e surgem cada vez mais sítios arqueológicos antigos, como no sudeste do Piauí, na área arqueológica de São Raimundo Nonato, que comprova uma ocupação de pelo menos 60 mil anos. 3 A verdade é que a presença humana é antiga em todos os continentes e em todos eles povos se formaram e desenvolveram culturas complexas. Lamentavelmente, alguns se acharam no direito de subjugar, explorar e matar os demais, o que aconteceu em grande escala no continente americano a partir do século XV. Os povos nativos foram quase aniquilados porque os povos invasores queriam as riquezas de seu território: Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como conseqüência do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, o “encontro” de sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio nunca visto foi fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e microorganismos mas cujos motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição, formas culturais da expansão do que se convencionou chamar o capitalismo mercantil. Motivos mesquinhos e não uma deliberada política de extermínio conseguiram esse resultado espantoso de reduzir uma população que estava na casa dos milhões em 1500 aos parcos 200 mil índios que hoje [em 1992] habitam o Brasil. 4 2 GUIDON, Niéde. As ocupações pré-históricas do Brasil. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 3 Id., Ibd. 4 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 12, grifado. 10 Enquanto a população da Europa teria de 60 a 80 milhões de habitantes em 1500, em toda a América a cifra pode ter chegado a 100 milhões, com mais de 11 milhões somente nas terras baixas da América do Sul. Isso significa dizer que um continente logrou a façanha de, com um punhado de colonos, despovoar um continente mais habitado que o seu, com o que “esvai-se a imagem tradicional [...] de um continente pouco habitado a ser ocupado pelos europeus. Como foi dito com força por Jennings, a América não foi descoberta, foi invadida”. 5 Depois de um breve período de parceria comercial de meio século, o interesse privado de viajantes e posteriormente da Coroa portuguesa pela mão-de-obra e pelas riquezas do território indígena, além do interesse da Igreja Católica de cristianizar os nativos, iniciou um longo período de exploração, de destituição e de morte. Bartolomé de Las Casas, frei espanhol que chegou à América em 1502, foi encomendeiro 6 de índios, mas se transformou em grande defensor dos povos após presenciar inúmeros massacres da ocupação. Ele afirmava que todos os reinos americanos eram possuidores da mesma potestade dos reinos europeus, mas que nem Portugal nem Espanha reconheceram esse “poder dos reis de coroa de penas”, nem seus domínios como territórios independentes: 7 Qualquer nação e povos, por infiéis que sejam, possuidores de terras e de reinos independentes, os quais habitaram desde o princípio, são povos livres e que não reconhecem fora de si nenhum superior, exceto os seus próprios, e este superior ou estes superiores têm a mesma pleníssima potestade e os mesmo direitos do príncipe supremo em seus reinos, como os que agora possui o imperador em seu império. 8 Para Manuela Carneiro da Cunha, importante antropóloga brasileira, a política colonial portuguesa não resultou somente na eliminação física e étnica dos índios, mas também pretendeu a eliminação dos índios como sujeitos históricos. Ela ressalta que, apesar disso, os povos indígenas não foram apenas vítimas das práticas externas, foram atores políticos importantes de sua própria história. Freqüentemente, exemplifica, as mitologias indígenas explicam a desigualdade tecnológica como uma escolha dos 5 CUNHA, 2002, p. 14. Cunha menciona JENNINGS, Francis. The Invasion of America: indians, colonialism and the cant of conquest. University of North Carolina Press: Chapel Hill, 1975. 6 Este conceito se assemelha ao de comerciante e é melhor explicado na seção 1 do segundo capítulo. 7 MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 2000, p. 25. 8 MARÉS, 2000, p. 47. 11 índios, que preferiram o arco e a cuia à espingarda e ao prato. Além disso, apesar de serem exceções, houve também coalizão entre grupos indígenas e grupos europeus para guerrear com outros grupos indígenas. 9 Se por um lado sabemos que os povos indígenas tinham culturas complexas, sociedades organizadas e religião, os europeus se basearam justamente em uma suposta falta de lei e de deus para dominar o continente e tentar controlar a sua história. Antonio Carlos Wolkmer, professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina, explica que portugueses e espanhóis desconsideraram e tentaram eliminar também o direito dos povos indígenas: [...] num período de um pouco mais de três séculos, as metrópoles colonizadoras européias impuseram e consolidaram uma cultura jurídica formalista e individualista de tradição romano-canonística, inviabilizando a dinâmica espontânea e consuetudinária de um pluralismo comunitário indígena. [...] Além do desprezo e da negação às praticas plurais de um Direito nativo e de uma Justiça informal, o projeto de colonização expansionista portuguesa implementou as condições necessárias para institucionalizar uma ordem de controle e de regulamentação essencialmente formalista, elitista e segregadora. 10 Infelizmente, a postura da sociedade brasileira não diferiu muito da portuguesa. O Estatuto do Índio, da década de 1970, ainda apresenta uma missão civilizadora dos índios, e traça limites, como se fosse possível traçar linhas culturais, a partir dos quais os índios seriam ou não considerados índios. Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o sentimento era de uma nova fase para os direitos indígenas no país. Mas os poucos artigos que trazem em seu favor não são suficientes para suprir todas as necessidades de mais de 200 povos indígenas. E ainda que muitos estudiosos do tema considerem que a Constituição não recepcionou o Estatuto do Índio (ao menos a parte que se baseia na ideologia civilizatória utilizada desde a colonização), magistrados de todas as instâncias ainda decidem segundo a antiga ideologia, com uma visão completamente rasa do que é ser índio. O Judiciário demonstra ainda um total despreparo e uma total incompreensão dos povos indígenas, porque prescinde, muitas vezes, de conceitos básicos sobre como o de cultura e do conhecimento de como vivem os povos atualmente. Decisões e decisões se 9 CUNHA, 2002, pp. 18-19. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralidade jurídica na América luso-hispânica. In: WOLKMER, Antonio Carlos. (Org.) Direito e Justiça na América Indígena: da conquista à colonização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 76 e 91. 10 12 acumulam que consideram os índios que falam português, usam roupas e celulares como índios “integrados” à sociedade e não merecedores de direitos indígenas. Clifford Geertz ensina que os humanos são animais amarrados a teias de significados que eles mesmos teceram – sendo a cultura essas teias e sua análise. Essa análise constituiria, para ele, não uma ciência em busca de leis, mas uma ciência em busca do significado, por isso uma fundamentalmente interpretativa.11 Se a cultura é formada por teias de significado tecidas pelas pessoas, então esse emaranhado de significados não podem ser pré-determinados por quem está de fora, não pode ser considerado cultura somente o que um determinado grupo o considera. A cultura é fluida, ela se transforma conforme são transformadas as teias de significado de quem a tece. A cultura indígena não deixa de ser cultura porque outros significados, construídos fora dela, são por ela aproveitados. Muitas vezes, esses significados são adaptados, ressignificados, ou seja, ganham outro significado para a cultura indígena. Ou seja, a cultura indígena, assim como qualquer outra cultura, pode manter dentro de suas teias significados que não foram “originalmente” construídos por ela, isso não a desqualifica. Muitos pensam, no entanto, que a cultura deve ser delimitada, como se precisasse se manter “pura”, de alguma forma. Para citar um exemplo recente, em fevereiro deste ano três índios da etnia Xokleng, lideranças indígenas da Terra Indígena Laklaño, em José Boiteux (SC), foram julgados pela Justiça Comum do estado de Santa Catarina e condenados a penas de até 20 anos de reclusão porque impediram que caminhões saíssem de sua reserva carregados de madeira retirada dela ilegalmente. Os índios impediram também que os caminhoneiros saíssem do local até que pagassem a quantia de mil reais em alimentos – sua forma de tentar resolver o conflito, sua jurisdição. O magistrado considerou que essa atitude nada teve a ver com a cultura indígena e, portanto, eles não deveriam ser julgados pela Justiça Federal. Ora, o primeiro e mais fundamental direito indígena é o direito territorial, sem o qual os índios não conseguem viver segundo sua cultura. Se eles estavam defendendo a sua terra, como desvincular isso de sua cultura? Simplesmente três lideranças indígenas, entre elas uma índia de 55 anos (considere-se o respeito que os povos indígenas têm pelos mais velhos), resolveram entrar para o mundo do crime praticando roubo e extorsão mediante seqüestro de caminhoneiros que estavam com toneladas de madeira extraída de sua terra ou estavam os índios defendendo o seu povo e o seu direito cultural à terra? O juiz 11 GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 15. 13 considerou, no entanto, que não havia interesse da comunidade indígena na prática do “crime”. Além disso, sequer menciona a etnia dos indígenas, cita o Estatuto do Índio e traz um recorrente argumento em decisões judiciais brasileiras, de que “o indígena apresenta-se integrado à civilização, sendo alfabetizado e sabendo falar a língua portuguesa” 12 . Interessante lembrar que os índios são obrigados a falar português, porque a maioria dos demais brasileiros não falam suas línguas; e que o Ministério da Educação exige, na formulação do currículo diferenciado das escolas indígenas, a alfabetização em português. O próprio Estatuto do Índio, quanto à educação, exige a alfabetização em português. Não que o Estatuto seja referência a ser seguida, mas é seguido em quase todas as esferas públicas. A jurisprudência segue essa linha confusa, havendo decisões que tentam inovar e outras que continuam aplicando o Estatuto do Índio, estas sendo maioria. Em especial, a aplicação dos níveis de integração do Estatuto (art. 4º.13 ) reflete a dificuldade da sociedade em compreender a complexidade do tema, uma vez que a cultura é um sistema complexo e dinâmico, nada impedindo que índios e índias tenham a sua cultura indígena, mas participem, também, de outras culturas – sem deixar de serem indígenas. Isso porque a cultura não é algo estanque, delimitável, mas resultado também da interação e da ressignificação cultural. Por isso, nessa decisão do Judiciário catarinense, percebe-se de maneira clara a definição que muitos brasileiros têm dos índios, ainda ligada à visão diacrítica do índio pelado com penacho que só vive na mata. Não lhes é permitido ter cultura própria que dinamize com outras culturas, sem que deixem de ser índios. Orivaldo Nunes Júnior, indigenista catarinense e membro da Comissão Geral de Gestão Ambiental da FUNAI em Brasília (DF), relata um caso muito interessante que exemplifica essa questão. Na sua dissertação de mestrado, ele conta o que ocorreu 12 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Comarca de Ibirama. Sentença nos autos n°. 027.06.002495-6. Juiz Jeferson Isidoro Mafra. Ibirama (SC), 12 de novembro de 2009. Disponível em: <http://ibirama.tj.sc.gov.br/cpopg/pcpoQuestConvPDFframeset.jsp?cdProcesso=0R00013R20000&cdDo c=183673&cdCategDoc=&cdModeloDoc=&OrigemDoc=3&PG=pg&cdForo=27&pdf=true>. 13 Art. 4º. Os índios são considerados: I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. 14 durante uma dinâmica de grupo na Área Tumukumaque, em Macapá (AP), quando participaram lideranças das etnias Apalai, Kaxuyana, Wayana e Tiriyó: Quando os questionei sobre a utilização destas tecnologias [eletrônicas] por povos que não as possuíam em sua história, com interesse de provocar uma discussão, um dos estudantes, chamado Aturapoty Apalai, logo colocou sua posição, com a qual todos concordaram. Disse ele: “Uma vez veio um japonês aqui em Macapá e queria conhecer um índio, eu tava por aqui e aí me chamaram. Quando ele me viu, ficou perguntando por que eu usava relógio e andava de roupa, e disse ainda que eu não era índio porque tinha perdido minha cultura. Aí nem fiquei bravo. Só perguntei pra ele de onde ele tinha vindo, e falou que era do Japão. Então fiz uma proposta pra ele. Eu tirava a roupa, me pintava, e voltava a morar no mato como antigamente se ele voltasse pro Japão e usasse de novo aquelas roupas de Samurai e fosse morar como antigamente. Depois que falei isso ele pediu desculpas, aí ficamos amigos”. 14 Não se admite que a cultura indígena se ressignifique a partir da cultura nãoindígena, como se fosse possível, em qualquer caso, delimitar culturas. Isso se reflete diretamente na formulação dos direitos dos índios e na sua garantia, resultando na sua injusta marginalização na sociedade brasileira. A grande dificuldade na construção de uma legislação para resguardar os direitos indígenas que atenda, de fato, as necessidades dos diversos povos que convivem conosco é justamente a linha imaginária que muitos acreditam existir entre cultura indígena e não-indígena. Acredita-se que se o índio cruzar essa linha em direção à uma cultura “diversa” da sua, ele perde seus direitos. É o que o antigo Estatuto indígena determinava expressamente, e é a mentalidade que se manteve. É preciso perceber que, por mais que a cultura indígena tenha se ressignificado, como a maioria das culturas de todo o mundo, inclusive a nossa, e que isso aconteça o tempo inteiro, os povos indígenas se diferenciam na medida em que ainda vivem, prioritariamente, conforme sua cosmologia extremamente ligada à natureza, à religião e à vida em comunidade. Se falam português, utilizam roupas e aparelhos eletrônicos, nada disso impede que vivam sua cultura. Para viver sua cultura, no entanto, existem necessidades fundamentais, geralmente ligadas ao direito territorial, porque os povos indígenas não conseguem viver a tradição sem um bom espaço de terra preservada. É nesse ponto que o problema 14 NUNES JÚNIOR, Orivaldo. INTERNETNICIDADE: Caminhos dos uso de Novas Tecnologias de Informação e Comunicação por Povos Indígenas. 2009. 111 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Educação, Ufsc, Florianópolis, 2009, p. 93. 15 começa, com o interesse pela terra indígena. A partir daí, constrói-se todo um discurso contrário aos povos indígenas, na tentativa de anulá-los para que se tomem suas terras. E esse discurso toma todas as esferas pensantes do país, inclusive aquelas que deveriam ser especializadas, como o Judiciário brasileiro. A imensa distância que a maioria dos juízes mantêm da realidade indígena e de suas necessidades (ou a proximidade que mantêm com os interesses contrários) é comprovada no julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), que, apesar de ter decidido a favor da demarcação contínua, elencou dezenove restrições aos direitos dos índios. 15 Entre essas restrições, os ministros do STF cometeram o absurdo de determinar a proibição de ampliação de terras indígenas já demarcadas, demonstrando que não estão interessados em defender a cultura indígena, que não pode se manter sem território amplo com natureza preservada. Além de ser uma limitação contrária à própria Constituição Federal de 1988, que protege as terras tradicionais dos índios “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art. 231, §1º.), é pior – é uma manifestação que corrobora o racismo da sociedade brasileira; principalmente porque pressupõe que a população indígena não pode e não deve crescer. O discurso hegemônico do Brasil é etnocêntrico e elitista. Esse discurso compõe o senso comum e acaba considerando como verdade que os índios são selvagens, atrapalham o progresso, desmatam a natureza, são bêbados, são aproveitadores, fingem ser índios para conseguir terras, são preguiçosos e ocupam terras grandes demais. Todos esses argumentos podem ser ouvidos na televisão, lidos nas revistas e nos jornais, sentidos nas atitudes políticas, nas omissões da legislação brasileira – e, também, no que ela determina expressamente. Podemos exemplificar isso a partir da repercussão do caso de agressão de um engenheiro da Eletrobrás por um índio Kayapó, no encontro Xingu Vivo para Sempre, de 19 a 23 de maio deste ano de 2008, em Altamira (PA) na grande mídia. Paulo Rezende discursava para índios de várias etnias, moradores da região, ambientalistas, movimentos de atingidos por barragens – cerca de mil pessoas. 15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão nos autos da Petição 3388/2005. Relator Min. Carlos Ayres Britto. “Condição” XVII da decisão. Brasília (DF), 19 de março de 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=raposa%20serra%20do%20sol& base=baseAcordaos>. 16 Enquanto falava sobre como não causaria tanto impacto na região a construção da usina hidrelétrica Belo Monte no Rio Xingu, os índios presentes o circundaram cantando e dançando. Em seguida, conta-se que alguns índios rasgaram sua camisa, jogaram-no ao chão, dando socos e um golpe de facão no braço direito. O olho da matéria da revista Época 16 é a direção da matéria: “A agressão dos índios contra um engenheiro na Amazônia é um atraso. As hidrelétricas podem ser boas para todos”. A matéria também diz que se a hidrelétrica de Belo Monte não for construída, vai faltar luz na região. Certamente inundar a região do Xingu em uma área correspondente à cidade de Curitiba pode ser maravilhoso para todos os diferentes povos indígenas que há milhares de anos estão sem luz, pobres coitados, finalmente serão iluminados pela razão ocidental! E continuam, na matéria: “A cena de barbárie fez o país acordar para algumas verdades incômodas. Primeiro, ela corrói a imagem romântica sobre os povos da floresta”. Os povos da floresta não são citados senão para relatar o episódio de 1989, em que uma mesma índia, Tuíra, presente nesta última manifestação, encostou um facão no rosto de um engenheiro da Eletronorte. José Lopes discursava, então, sobre os benefícios da mesma hidrelétrica, de nome diferente, Cararaô; que agora prevê uma área alagada maior. Em nenhum outro momento os índios são citados, tampouco para relatar os motivos do protesto, quantos povos serão atingidos pela barragem, para onde irão os índios, omissões a serviço do interesse da nação. “As cenas de um grupo de selvagens amazônicos”, como disse a revista 17 Veja , é uma afirmação eurocêntrica e que segue a lógica que divide, desde a Grécia antiga (aliás, ponto de partida da história eurocêntrica), civilizados e bárbaros. Os índios são os bárbaros menos desenvolvidos, os selvagens, desprovidos de humanidade. Por não falar do completo despreparo que levou o jornalista Ronaldo Soares (e seus comparsas editoriais) a dizer, ainda, no final da matéria, que “um policial antropólogo é o que faltava para o crime se perpetuar na Amazônia”. 16 Matéria de Juliana Arini e Mariana Sanches. Uma guerra equivocada. Revista Época. Ed. 523, 26 de maio de 2008. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG83883-6009-523,00UMA+GUERRA+EQUIVOCADA.html>. 17 Matéria de Ronaldo Soares. Um golpe de insensatez. Revista Veja. Ed. 2062, 28 de maio de 2008. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/280508/p_064.shtml>. 17 A revista Istoé 18 esquece que os povos nativos tinham o Brasil inteiro: “Muita terra para pouco índio”, diz um dos subtítulos. “A extensão das terras dos índios em Roraima é superior à área de um país como Portugal, de 92 mil quilômetros quadrados”. O box da matéria é sobre “Ameaças à Amazônia” e no primeiro quadro há a foto de índio com a seguinte descrição: “A alta concentração de terras indígenas em Roraima (46% do estado) e as unidades de conservação (27%) não deixam espaço para alavancar a economia”. Aparentemente, a revista considera que o único espaço bem aproveitado é aquele que gera capital imediato. No caso de Raposa Serra do Sol, a grande mídia propagou muitas inverdades inicialmente ditas por partes diretamente interessadas na terra: que a demarcação seria uma ameaça à soberania nacional, que os índios são manipulados por interesses estrangeiros, que a terra indígena seria grande demais (chegou-se a dizer que seria o equivalente ao tamanho de Portugal, parece haver uma fixação por essa comparação – irônico e trágico, no mínimo), que prejudicaria muitas comunidades que já moravam dentro da reserva. Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo do Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em entrevista muito interessante ao jornal O Estado de São Paulo 19 , desmonta todos esses argumentos. Sobre a soberania nacional, ele menciona outra terra indígena que fica em fronteira, a Cabeça de Cachorro, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM): “O Exército está lá, como deveria estar. A área indígena não teria como impedir a presença dos militares. O que não permite é a exploração das terras por produtores não-índios”. Para Viveiros de Castro, dizer que o Exército não pode ali atuar “é um sofisma alimentado por políticos e fazendeiros que agem de comum acordo, numa coalizão de interesses típica da região” e serve para criar pânico em quem não está lá. Inclusive ele explica que os índios foram decisivos para que o Brasil ganhasse essa área, numa disputa com a Inglaterra, sobre a região da Guiana. “Dizer que viraram ameaça significa, no mínimo, cometer uma injustiça histórica”, diz. 18 Matéria não assinada. Amazônia: a soberania está ameaçada. Muita terra para pouco índio. Revista ISTOÉ. Ed. 2012, 28 de maio de 2008. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/4261_AMAZONIA+A+SOBERANIA+ESTA+EM+XEQUE>. 19 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Jornal O Estado de São Paulo. Suplementos – Aliás, 20/04/2008. Entrevista concedida a Flávio Pinheiro e Laura Greenhalgh. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,nao-podemos-infligir-uma-segunda-derrota-aeles,159735,0.htm>. 18 Quanto aos interesses estrangeiros, Viveiros de Castro ressalta que empresas estrangeiras já são proprietárias de partes consideráveis do Brasil, detendo extensões enormes de terra e parece não haver inquietação em relação a isso. “Agora, quando os índios estão em terras da União, que lhes são dadas em usufruto, daí fala-se do risco de interesses estrangeiros”. Ele relembra que a Amazônia já está internacionalizada há muito tempo, não pelos índios, mas por grandes produtores de soja ligados a grupos estrangeiros ou pelas madeireiras da Malásia. O que não falta por lá é capital estrangeiro. “Por que então os índios incomodam? Porque suas terras, homologadas e reservadas, saem do mercado fundiário”. Sobre ser a terra indígena grande demais, ele afirma que se disseminam mentiras “como a de que a área da reserva ocupa 46% de Roraima, quando apenas ocupa 7%. As terras indígenas de Roraima, somadas, dão algo como 43% do Estado. Mas a Raposa tem 7%”. Ele acrescenta, ainda, que: As terras de índios são 43% [em Roraima] ao todo, porém, até 30, 40 anos atrás, eram 100%. E o que acontece hoje com os 57% que não são terras de índios? São ocupados por uma população muito pequena, algo em torno de 1 milhão de pessoas. O que é isso? É latifúndio. Sabe quantos são os arrozeiros que exploram terras da reserva [de Raposa Serra do Sol]? Seis. Não há dúvida de que o que se quer são poucos brancos, com muita terra. Outra inverdade: as terras da reserva são dos índios. Não são. Eles não têm a propriedade, mas o usufruto. Porque as terras são da União. E a União tem o dever constitucional de zelar por elas. Já os arrozeiros querem a propriedade. As notícias que temos são as de que, desde a homologação, produtores rurais que estão fora da lei já atacaram quatro comunidades indígenas, incendiaram 34 casas, arrebentaram postos de saúde, espancaram e balearam índios. Ou seja, toda a discussão de Raposa Serra do Sol foi gerada, essencialmente, por seis latifundiários, que conseguiram incrivelmente ganhar muito apoio da mídia, do Executivo, do Legislativo e até do Judiciário. Gilmar Mendes, antes do julgamento, afirmou ser favorável à demarcação em ilhas, afirmação que Viveiros de Castro repudia, entre outras coisas, porque não cabe ao Judiciário demarcar terras indígenas. Então dizer que existe uma manipulação no discurso propagado pela mídia não é teoria de conspiração. É possível, sim, criar um discurso que finge ser verdadeiro, mas que é composto de mentiras que soam bem aos ouvidos mais conservadores e, de fato, isso ocorre. A formulação desse discurso hegemônico no país explica por que os índios não têm apoio nem das camadas que mais deveriam se demonstrar compreensivas e favoráveis aos seus interesses. 19 Quem começou a construção desse discurso foram os europeus. Ella Shohat e Robert Stam explicam que o colonialismo e o racismo precisavam de justificativas, por isso, esses aliados utilizaram várias técnicas para estigmatizar a diferença com o propósito de legitimar vantagens injustas e abusos de poder de natureza econômica, política, cultural e psicológica. Essa construção discursiva tentava reduzir a diversidade cultural a apenas uma perspectiva paradigmática, que vê a Europa como a origem única dos significados. Surgiu como um discurso naturalizante – que finge que não é discurso, que finge ser a verdade – e normaliza relações de hierarquia geradas pelo colonialismo e pelo imperialismo, como uma epistemologia oculta, colocando o ocidente como centro do mundo e origem da história. 20 A partir desse discurso eurocêntrico, a sociedade portuguesa tentou reconstruir aqui no Brasil uma versão sua. Mas o raciocínio teve de ser repensado. Roberto Da Matta, antropólogo brasileiro, explica que a ideologia e o método da colonização tiveram que ser reformulados com a Independência, quando se “apresentou à elite nacional e local a necessidade de criar suas próprias ideologias e mecanismos de racionalização para as diferenças internas do país”. Já não se podia mais colocar a culpa em Portugal, porque a estrutura de poder tinha seu ponto final no Rio de Janeiro. A ideologia católica e o formalismo jurídico não eram mais suficientes para sustentar o sistema hierárquico. Dessa forma, com a abolição da escravatura, houve a libertação jurídica do escravo, mas não houve a libertação social e científica. Para ele, a nova justificação brasileira ao racismo veio no racismo à brasileira e na forma da fábula das três raças, que ele chama de a mais poderosa força cultural do Brasil, a ideologia dominante: “uma ideologia que permite conciliar uma série de impulsos contraditórios de nossa sociedade, sem que se crie um plano para sua transformação profunda”. A ideologia que foi utilizada para tentar criar uma identidade nacional, permitindo pensar o país como uma sociedade integrada, multicultural, multirracial e sem racismo. 21 Esse racismo à brasileira é mais perigoso que qualquer outro: é aquele que se finge não existir. Adotou-se a idéia de um país onde não haveria espaço para o racismo, uma mistura de raças e de crenças onde todos se aceitam e se amam, um lindo carnaval sem fim. Como combater o inexistente? Se não existe racismo, como acabar com ele? 20 SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosacnaify, 2006, pp. 3755. 21 DA MATTA, Roberto. Digressão: a fábula das três raças ou o problema do racismo à brasileira. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Ed. Vozes, 1983, pp. 63-64. 20 Apesar disso, se o racismo não existe, não há como explicar os dados de desigualdade social de “cor e raça” no Brasil. Se os brasileiros não são tratados de maneira diferente por questões étnicas, de modo a prejudicar negros e índios – não há como explicar por que os negros já são mais da metade da população brasileira e continuam tendo metade da renda dos brancos, nem por que somente uma fração mínima deles completa o ensino superior; não dá de explicar também por que os índios têm a maior mortalidade infantil do país. Com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008, o IBGE revelou, no ano de 2009, que pretos e pardos (que formam a parcela negra) já são mais da metade da população brasileira: 50,6%. Do total da população, no entanto, 15% das pessoas de 25 anos e mais com curso superior são brancas, e apenas 4,7% negras. Entre os 10% mais pobres do país, 74% são negros; e entre o 1% mais rico, 83% são brancos. 22 No último Censo Demográfico, de 2000, 734 mil brasileiros se auto-declararam indígenas, de um total de 169 milhões. Isso significa menos de 1% da população. Um pouco mais da metade dos índios declara que possui algum tipo de atividade econômica. Desses, 54% sobrevive com até meio salário mínimo e 70% com até um salário mínimo. 23 A cada mil índios que nascem, 50,4 morrem, enquanto a média brasileira é de 30,1, por mil. Ambos os números são altos e terríveis, mas percebe-se a disparidade entre eles. A mortalidade infantil indígena é a única do país considerada alta, as demais, por etnia, são todas consideradas médias. 24 As pessoas não deveriam ser tratadas de maneira diferente por causa da cor de sua pele, mas isso acontece no país e não pode ser ignorado. Não se pode dizer que um país onde negros ainda hoje têm metade da renda de brancos e onde índios têm a maior taxa de mortalidade infantil não é racista 25 . Fica ainda mais difícil mudar esses dados quando se diz que eles não são resultado do racismo. 22 IBGE. Síntese dos indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. pp. 184-187. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsoc iais2009/indic_sociais2009.pdf >. 23 IBGE. Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos censos demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2005. pp. 84-88. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tendencia_demografica/indigenas/indigenas.pdf>. 24 IBGE, 2005, Ibd. pp. 88-92. 25 O racismo pressupõe a existência de raças entre os seres humanos, conceito que foi essencialmente substituído pelo conceito de etnocentrismo, que pressupõe a existência de etnias diferentes, com culturas diferentes. Apesar de haver uma denominação que pode ser considerada mais correta, infelizmente ainda 21 O Censo Agropecuário de 2006, publicado também em 2009, traz mais uma dose da desigualdade brasileira. Da área rural total do país, somente 2,7% tem menos de 10 hectares. Mais de 43% dessas terras são latifúndios com mais de 1.000 hectares – sendo que essas terras são menos de 1% do número total de estabelecimentos. Ou seja, menos de 1% do número de propriedades rurais ocupam 43% dessas terras. Considerese que 30% dos estabelecimentos rurais têm como atividade a criação de bovinos, que é potencialmente prejudicial à natureza, ou seja, acaba com a riqueza natural que deveria ser de todos. 26 O total de terras indígenas do Brasil soma 12,5% do território: Fontes: IBGE, Diretoria de Geociências, Coordenação de Geografia e Coordenação de Cartografia, Malha Municipal do Brasil, Situação em 2001; Fundação Nacional do Índio, Diretoria de Assuntos Fundiários. 27 existem manifestações de racismo – com o sentido de discriminação de uma pessoa ou de um grupo considerados de uma “raça” inferior – no Brasil e no mundo. Considerando isso, os dois conceitos serão utilizados no trabalho, por serem praticamente sinônimos na sua prejudicialidade efetiva. 26 IBGE. Censo Agropecuário de 2006. Comentários. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. pp. 107-109. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/brasil_2006/comentarios.pdf >. 27 IBGE, 2005, Ibd., p. 15. Mapa confeccionado com dados do IBGE e da FUNAI. 22 No mapa, são 488 terras indígenas, das quais 90 ainda precisam ser declaradas, homologadas ou regularizadas. Além disso, ainda existem 123 em fase de estudo, que não foram nem delimitadas e são 20% do total de terras indígenas no país. Em estudo Delimitadas nº. de TIs 123 33 % 20,2% 5,4% hectares em revisão 1.751.576 Declaradas 30 4,9% 8.101.306 Homologadas Regularizadas TOTAL 27 398 611 4,4% 65,1% 100 3.599.921 92.219.200 105.672.003 Fonte: Fundação Nacional do Índio.Tabela adaptada retirada do site da FUNAI. 28 A elite branca detém a maior parte das terras do país, e ainda assim não se contenta. A cada demarcação de terra indígena é a mesma história: os índios têm terras demais, atrapalham o desenvolvimento econômico, invadiram terras que têm outros donos. Se essa elite não mudar essa linha de raciocínio, as injustiças contra os povos indígenas certamente não vão cessar, porque os índios não vão desaparecer, pelo contrário, a tendência é que a quantidade de brasileiros índios só aumente. A taxa de fecundidade dos índios é a maior do Brasil. O Censo de 1991 foi o primeiro que considerou a categoria indígena, quando 294 mil pessoas foram assim classificadas. Enquanto o país apresentou um ritmo de 1,6%, os indígenas teriam aumentado na proporção de 10,8%. Isso equivale a seis vezes mais que a população em geral e a 150% de aumento. O IBGE destaca que o crescimento foi percebido em todos os estados e que a taxa de fecundidade indígena é superior à da média brasileira especialmente no meio rural 29 O IBGE acredita que pessoas que se identificaram em outras categorias no Censo de 1991 passaram a se declarar como indígenas neste último recenseamento, e isso atrapalharia o resultado da verdadeira taxa de fecundidade. Mesmo que assim seja, continua sendo um crescimento, significa dizer que mais pessoas quiseram ser reconhecidas como indígenas. Essa auto-afirmação ficou mais forte após o contexto da Constituição Federal de 1988, quando comunidades indígenas que preferiam permanecer invisíveis para se proteger passaram a reivindicar seus direitos mais fortemente. O crescimento vegetativo da população indígena representa, portanto, 28 FUNAI. Tabela com a situação das terras indígenas. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/indios/terras/conteudo.htm#atual>. 29 IBGE. Tendências demográficas, 2005. 23 reconhecimento tanto da população não-indígena, quanto segurança dos índios de se afirmarem enquanto tais: Constata-se que há um crescimento vegetativo significativo, mas paralelo a isso há uma maior visibilidade, fruto de afirmação da identidade expressa na relação de alteridade, bem como na concepção de cidadania. Indivíduos e comunidades que não eram consideradas pelas estatísticas conquistaram direito e adquiriam visibilidade e iniciaram um processo de reconquista das terras, ou seja, afirmaram o desejo de viver a seu modo em espaços próprios. 30 Mesmo com a incompreensão predominante da sociedade envolvente, os povos indígenas se sentiram mais confiantes em ter seus direitos reconhecidos na Constituição Federal do Brasil. Podemos imaginar, então, o quão fortalecidos ficariam se fossem mais compreendidos pelos não-indígenas brasileiros. 30 NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe; BRIGHENTI, Clóvis Antônio. Demografia e direito indígena: uma leitura a partir do contexto catarinense. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, Volume 43, Número 1, p. 145-163, Abril de 2009, p. 161. 24 2 AS LEIS SOBRE INDÍGENAS DESDE A INVASÃO EUROPÉIA 2.1 Sobre como os europeus regulamentaram a guerra e a sua permanência A ocupação da América não foi um acontecimento isolado, fazia parte do contexto expansionista europeu do século XVI, que se baseava em critérios econômicos (a busca por metais preciosos) e político-ideológicos (cristianizar os índios e convertêlos em servos da Igreja e da Coroa). 31 A juridicidade da operação de conquista foi fixada pelos espanhóis antes mesmo da ocupação. Em 1493, o papa Alexandre VI outorgou aos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela a Bula de Participação, por meio da qual dava soberania, jurisdição e domínio à Coroa Espanhola sobre o Novo Mundo – se em contrapartida os espanhóis enviassem às novas terras homens que instruíssem os habitantes na fé católica. Portugal contestou a concessão e conseguiu, no ano seguinte, um acordo intermediado pelo papa sobre a divisão das terras, o tratado de Tordesilhas. 32 Tanto a ocupação, quanto a colonização, não foram planejadas e ordenadas detalhadamente pelo Estado, mas estabelecidas por contratos entre as coroas e expedições particulares. Isso significava que Portugal e Espanha podiam manter o controle, sem precisar se responsabilizar financeiramente por isso. Esses contratos, chamados de capitulações, foram também o início do conflito entre a coroa e os empreendedores privados, na disputa do monopólio dos lucros. As capitulações foram o primeiro esforço espanhol para legislar sobre as terras que invadiram, e nelas se estabelecia o direito da Coroa de Castela sobre os territórios e a autorização aos chefes de expedições para conquistá-lo. 33 No início, a forma de dominação das metrópoles espanhola e portuguesa foi muito distinta, já que a riqueza dos metais preciosos do México e do Peru não podiam ser comparadas à produção agrícola na colônia portuguesa. Portanto, as leis e as instituições espanholas foram muito mais complexas e formuladas de maneira mais ampla do que as portuguesas. A Espanha impôs um sistema político administrativo 31 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralidade jurídica na América luso-hispânica. In: WOLKMER, Antonio Carlos. (Org.) Direito e Justiça na América Indígena: da conquista à colonização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 76. 32 PIRES, Sérgio Luiz Fernandes. O aspecto jurídico da conquista da América pelos espanhóis e a inconformidade de Bartolomé de Las Casas. In: WOLKMER, 1998, p. 64. 33 WOLKMER, 1998, op, cit., p. 77 e pp. 81-82. 25 complexo e rígido, criando órgãos como a Casa da Contratação, que controlava as relações comerciais entre colônias e metrópole e fiscalizava o recebimento das rendas reais, e como o Conselho das Índias, que tinha autoridade para ditar leis e fazer inspeções. 34 As leis, no entanto, desde o início não foram respeitadas. Na capitulação de Colombo, por exemplo, a Igreja e a Coroa determinaram como deveriam ser tratados os habitantes das novas terras, mas o conquistador escolheu escravizar os índios por necessidade de mão-de-obra. A Corte afastou-o do empreendimento por isso, mas não continuou fiscalizando ou punindo os demais exploradores. 35 No começo, eram aplicadas as regras gerais espanholas, mas, influenciado por padres, Fernando Aragão reuniu juristas e teólogos para criar as Leis de Burgos, de 1512, com o suposto intuito de amenizar a sobrecarga sobre os índios. O rei foi pressionado, porque logo após Colombo, o novo governador das Índias instituiu o regime das encomiendas. Esse sistema funcionava da seguinte forma: para que os índios pudessem viver nas próprias terras, deveriam pagar tributos em espécie à metrópole, só assim teriam a proteção da Coroa, de quem seriam vassalos, e não escravos. Esses tributos seriam recolhidos pelos encomendeiros, que teriam a obrigação de cuidar bem dos índios fisicamente e espiritualmente. As Leis de Burgos fixavam que os índios eram livres e deveriam ser assim tratados, instruídos na fé, como mandava o papa, com toda a diligência; que a Coroa podia mandar que trabalhassem, mas sem que o trabalho fosse impedimento à instrução da fé e que fosse proveitoso aos índios e à república e o rei servido por meio de seu senhorio. 36 A última tentativa da Coroa espanhola de frear os ímpetos demolidores e individualistas dos conquistadores foram as Leis Novas, de 1542, mas houve reações políticas negativas nas colônias e a lei também não foi aplicada. Não tinha o propósito de proteger a vida dos índios, mas pretendia proibir novas conquistas e mais destruição. 37 Nenhuma das duas leis foi efetivada, virando letra morta. Isso aconteceu porque o direito espanhol aplicado em território americano permitia a utilização da “prerrogativa de não cumprir” - a fórmula “se acata, pero no se cumple” -, uma instituição jurídica segundo a qual as autoridades da colônia não precisariam cumprir as 34 WOLKMER, 1998, op. cit., pp. 77-78. PIRES, op. cit., p. 66. 36 PIRES, op. cit., pp. 67-68. 37 WOLKMER, 1998, op. cit., p. 83. 35 26 leis da metrópole em circunstâncias justificadas.38 Mais tarde, em 1681, foi publicada a Recompilação de Leis dos Reinos das Índias, com 6.377 leis, que trazia também leis sobre situação jurídica dos índios. 39 Jesus Antonio de La Torre Rangel defende que, sem o direito indígena da América espanhola, os índios não teriam sobrevivido. Para ele, foi a construção de uma legislação que tratava o índio como desigual, baseada nas diretrizes protecionistas da Igreja, que conseguiu a conservação das comunidades indígenas. Mesmo com a submissão a que eram condicionados, inclusive por lei, Rangel acredita que, sem o direito espanhol na América, teria valido apenas a máxima de que índio bom seria índio morto. Ele reconhece que em muitos casos a lei não valia e eram violados os direitos indígenas, em especial pela avareza dos conquistadores, pela falta de fiscalização da metrópole e pela docilidade dos índios. Mas, para o teórico, a lei pretendia, sim, proteger o índio e muitas vezes teve aplicação real. Ele cita alguns trechos das Leis Novas, que falava inclusive em resguardar usos e costumes indígenas, que ordenava informar a metrópole sobre maus tratos cometidos pelos particulares, que obrigava castigar os culpados que se excedessem. Se o direito indígena não tivesse se orientado nessa direção, para ele, hoje não estaríamos falando em resgate dos direitos das comunidades indígenas. 40 A Igreja Católica, no entanto, não defendia os índios apenas por compadecimento. Mais do que isso, era uma estratégia contrária à Reforma Protestante, já que a conversão de pagãos lhe parecia mais fácil que a reconversão de hereges. Para a conversão, os jesuítas se basearam nas seguintes linhas: os índios são nossos próximos; são homens; têm uma alma também criada por deus; a natureza é igual em todos os homens, apesar da diversidade de criação e meio ambiente; os índios são mais fáceis de serem convertidos que os hereges. Ao mesmo tempo, quando precisava atender a seus interesses, a Igreja encontrava argumentos para implementar a “guerra justa” contra os índios, por supostas ofensas concretas à obra de deus na terra, daí com as seguintes linhas: os índios punham empecilho à propagação da fé católica; atacavam povoados ou fazendas portuguesas; eram antropófagos; eram aliados ou inimigos dos portugueses. Mesmo com toda essa manipulação discursiva, o objetivo maior da Igreja, em conluio 38 PIRES, op. cit., p. 68. WOLKMER, 1998, op. cit., p. 82. 40 RANGEL, Jesus Antonio de La Torre. Direitos dos povos indígenas: da Nova Espanha até a Modernidade. In: WOLKMER, Antonio Carlos. (Org.) Direito e Justiça na América Indígena: da conquista à colonização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 219-225. 39 27 com o Estado, era a de justificar a obtenção de mão-de-obra índia. 41 Com a desculpa de que defendia a vida dos índios, o clero também usufruiu de sua exploração: Através dos seus representantes, que integravam o bloco de classes no poder, a Igreja Católica participava de todas as formas de exploração do produtor direto. [...] Numa economia onde preponderavam atividades agrárias, os representantes da Igreja asseguravam a propriedade do principal meio de produção, a terra. 42 Há quem diga que os primeiros contatos entre os povos nativos e os europeus foram amistosos. Relatos de Pêro Vaz de Caminha, Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio discorrem sobre a bondade e a generosidade dos povos. Apesar disso, em seus relatos eles não reconhecem qualquer forma de organização social ou de religião. Caminha acredita que os índios não tinham morada, chefes espirituais ou políticos: “esta gente é boa e de boa simplicidade e imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quisesse dar”. Colombo conta, em suas cartas ao rei da Espanha, que os índios o ajudaram a desencalhar uma nau sem nada pedir em troca: “Certifico a Vossa Alteza que em nenhuma parte de Castela se colocaria tanto cuidado em todas as coisas. [...] Acredito que não exista no mundo melhor gente e melhor terra”. Vespúcio fala da fraternidade e também da diversidade: “Eu encontrei países [...] com mais população do que conhecíamos. [...] Descobri o continente habitado pelo maior número de povos e animais que nossa Europa, ou Ásia ou mesmo África”. 43 Ao longo do século XVI, apesar de na prática ter ocorrido de modo muito diferente, firmou-se na Espanha e em Portugal a doutrina que negava o poder temporal do papa sobre os infiéis e a jurisdição européia nas terras recém-descobertas. Afirmava essa doutrina a plena soberania original das nações indígenas. 44 Desde antes da invasão, começaram a se formar duas tendências principais sobre a legitimidade dessa dominação. Como a “conquista” da América era reconhecida pelo papa, uma tendência buscava sustentação justamente na sua autoridade e na jurisdição do rei, e defendia que os valores ocidentais eram superiores aos dos aborígines, que eram bárbaros e pecadores. Assim, seria juridicamente fundamentada a 41 VIEIRA, Otávio Dutra. Colonização portuguesa, catequese jesuítica e Direito Indígena. In: WOLKMER, 1998, pp. 157-158. 42 VIEIRA, Ibd., p. 161. 43 MARÉS de Souza Filho, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 2000, p. 28-30. Tradução da autora. 44 CUNHA, Manuela Carneiro da. Terra Indígena: história da doutrina e da legislação. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org). Os Direitos do Índio: ensaios e documentos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987, pp. 53-54. 28 guerra justa contra os indígenas que não aceitassem a entrada dos conquistadores. Em contraposição a esses argumentos, surgiu uma corrente de um grupo de teólogos, moralistas e religiosos que não reconheciam o poder do papa e a pretensa jurisdição universal dos reis sobre os infiéis. Defendiam que a jurisdição dos colonizadores não poderia ser colocada além de suas fronteiras e que os indígenas possuíam dignidade e direitos humanos. Esta perspectiva foi representada pela Escola de Salamanca 45 e por seu mais ilustre professor, Francisco de Vitória, considerado um dos fundadores do direito internacional. Vitória dizia que não era justa a guerra contra os indígenas que não queriam se cristianizar. 46 O teólogo sustentava que nem o Papa, tampouco o Imperador, seriam senhores de todo o mundo, pois ninguém deteria o império da terra por direito natural; e essa idéia influenciou o conceito de soberania. A ordem internacional que Vitória preconizou era de uma sociedade de povos que não se submetem ao poder de um só senhor. Ele argumentou em favor da autonomia e dos direitos territoriais dos povos americanos. Mesmo se o Imperador fosse senhor do mundo, dizia ele, nem por isso poderia ocupar todos os territórios, estabelecer novos senhores, depor antigos e cobrar tributos. Ainda assim, Vitória reconhecia a importância da universalização da fé cristã, e a possibilidade de guerra justa se esses povos tentassem impedir a difusão da catequese. 47 Francisco de Vitória foi o jurista que com maior autoridade estabeleceu a soberania original dos povos indígenas na América. Em suas duas Relecciones, “Dos índios recém-descobertos e dos títulos não legítimos, pelos quais os bárbaros do Novo Mundo puderam passar para o poder dos espanhóis” e “Dos índios ou do direito da guerra dos espanhóis contra os bárbaros”, Vitória contesta todos os argumentos que negavam aos índios domínio e jurisdição original. Ele refuta, inclusive, a suposta falta de razão ou demência invocada para impedir o domínio indígena, escrevendo que os índios tinham sua própria razão. Para ele os índios eram os verdadeiros senhores de suas terras e isso era fundamentado no direito das gentes das Instituições de Justiniano, que determinava conceder ao ocupante da terra o que não é de ninguém. 48 45 Universidade mais antiga da Espanha e uma das mais antigas do mundo. Esse foi o seu período de maior prestígio. 46 WOLKMER, 1998, op. cit., p. 84. 47 APARICIO, Adriana Biller. Direitos Territoriais Indígenas: Diálogo entre o Direito e a Antropologia – O Caso da Terra Guarani “Morro dos Cavalos”. 134 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, UFSC, Florianópolis (SC), 2008, p. 17. 48 CUNHA, 1987, pp. 55-56. 29 O frei espanhol Bartolomé de Las Casas embarcou para a América em 1502 com o intuito de se tornar encomendeiro e chegou a guerrear contra os índios em busca de ouro. Após presenciar um dos mais cruéis massacres da ocupação na Ilha Fernandina, Las Casas ficou marcado para sempre. Voltou para a Espanha e começou uma luta pela proteção dos povos indígenas e pela reforma das leis espanholas a eles aplicada. Criou uma corrente de pensamento indigenista a que se agregaram muitos pensadores. Para ele, todos os povos tinham sido criados por deus e cumpria aos católicos apenas levar as suas revelações, sem interferir na vida, organização social, direito e propriedade dos povos; o direito natural e das gentes não dependiam, para o frei, de serem os povos fiéis ou infiéis, todos eram por ele regidos. Las Casas reconhecia que todo povo tinha direito à sua jurisdição e esse direito era preexistente ao ser humano. 49 No ano de 1550, o rei espanhol mandou formar em Valladolid uma congregação de letrados, teólogos e juristas para determinar se eram justas as guerras da chamada conquista. O maior debate se deu entre Las Casas e o ferino jurista Ginés de Sepúlveda. O jurista defendeu que os reis cristãos tinham a obrigação de tirar os povos indígenas de um estado de idolatria e eram assim exortados pelas escrituras sagradas; essa obrigação daria legitimidade ao direito de conquista, estabelecido por lei. Se a lei não fosse acatada, caberia guerra justa dos reis cristãos e a avaliação de sua justeza caberia aos clérigos. A decisão da congregação foi proferida por Vitória e foi favorável a Las Casas e aos povos indígenas, por mais que não tenha se efetivado. Vitória chegou a dizer que se os espanhóis tivessem praticado a quarta parte dos princípios e normas legais que pregoavam, a América não teria sido uma colônia, mas um pequeno paraíso. 50 O direito indiano foi fortemente influenciado por esses debates. 51 Wolkmer explica que a obra de Las Casas expressou um projeto de convivência pacífica entre todos os povos, com respeito pela diversidade de raças, religiões e culturas - e que, por isso, Las Casas foi o precursor do conceito moderno de pluralismo racial, cultural, político, religioso e jurídico. 52 Portugal estava muito mais interessado nas riquezas do Oriente e reintroduziu na América o sistema das capitanias hereditárias que já havia utilizado em algumas ilhas 49 MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 2000; p. 49. 50 MARÉS DE SOUZA FILHO, p. 49. 51 Id., Ibd., p. 51. 52 WOLKMER, 1998, p. 85. 30 do Atlântico, mas como as capitanias foram um fracasso e o mercado açucareiro tornouse promissor, assim como a exploração agrícola de produtos tropicais, criou em 1548 o Governo Geral, que centralizou a administração do território invadido. A plantação açucareira constituiu a base da colonização até o século XVIII, quando ocorreu a crise na produção açucareira e Portugal se voltou para o minério. O Brasil foi edificado como uma sociedade agrária baseada no latifúndio. Prevaleceram os privilégios de uma aristocracia branca e a submissão de uma maioria despossuída e explorada como mãode-obra escrava, primeiramente de maioria indígena, e mais tarde substituída pela do negro africano, devido à dificuldade em escravizar os índios: 53 A aliança do poder aristocrático da Coroa com as elites agrárias locais permitiu construir um modelo de Estado que defenderia sempre, mesmo depois de independência os intentos de segmentos sociais donos da propriedade e dos meios de produção. Naturalmente, o aparecimento do Estado não foi resultante do amadurecimento histórico-político de uma nação unida ou de uma sociedade consciente, mas da imposição da vontade do Império colonizador. Instaura-se, assim, a tradição de um intervencionismo estatal no âmbito das instituições sociais e na dinâmica do desenvolvimento econômico. Tal referencial aproxima-se do modelo de Estado absolutista europeu, ou seja, no Brasil, o Capitalismo se desenvolveria sem o capital, como produto e recriação da acumulação exercida pelo próprio Estado.54 Na América portuguesa não existiu um direito colonial independente do direito português. O rei era auxiliado por conselhos criados para as questões coloniais, mas mesmo as questões mais específicas deviam ser aprovadas pela Coroa. Para aplicar a lei da metrópole, os governadores emitiam, aqui, Decretos, Alvarás e Bandos. 55 A coroa portuguesa não construiu nada parecido com a Lei das Índias espanhola. O Direito português, de tradição jurídica do Direito romano, e também sem descartar o Direito canônico e o germânico, foi a fonte quase exclusiva da legislação aplicada no Brasil colônia. Durante o período das capitanias hereditárias, primeira metade do século XVI, a organização da Justiça estava entregue aos senhores donatários, que eram concomitantemente os administradores, os chefes militares e os juízes. Com os governadores gerais, implementou-se um sistema de jurisdição centralizadora controlado pela Metrópole. Nos séculos XVI e XVII, os tribunais 53 WOLKMER, 1998, op. cit., pp. 77-80. WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 38-39. 55 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 115-116. 54 31 superiores ficavam em Lisboa, mas foram criados Tribunais de Relação (Bahia e Rio de Janeiro), onde atuavam funcionários civis preparados na metrópole. 56 Por mais que Portugal tenha tentado repetir o que os teóricos espanhóis diziam, o debate jurídico colonial português foi muito menos elaborado, e a preocupação principal era sobre a dificuldade dos moradores da colônia em conseguir tomar posse dos índios. A Coroa, fonte primária dessa legislação incoerente, variava entre agradar os colonos e os missionários religiosos (em especial os jesuítas), que pressionavam de cada lado para deter a maior quantidade de mão-de-obra, aqueles com o pressuposto de manter os rendimentos econômicos e estes com o pretexto de converter os gentios. 57 A legislação regulamentadora da colônia era composta por leis eclesiásticas, cartas de doação, forais, cartas-régias, alvarás e regimentos dos governadores gerais. Aos poucos, a legislação da metrópole passa a ser aplicada na colônia sem qualquer alteração em todo o território: as Ordenações Reais (Ordenações Alfonsinas, de 1446, Manuelinas, de 1521, e Filipinas, de 1603). Para tentar resolver as necessidades comerciais nas colônias também foram promulgadas Leis Extravagantes: 58 “A experiência político-jurídica colonial reforçou uma realidade que se repetiria constantemente na história do Brasil: a dissociação entre a elite governante e a imensa massa da população”. 59 As leis coloniais transformaram o Brasil num caldeirão de interesses conflitantes: “Contraditória, oscilante, hipócrita: são esses os adjetivos empregados, de forma unânime, para qualificar a legislação e a política da Coroa portuguesa em relação aos povos indígenas do Brasil Colonial”. Proibiu-se o cativeiro, liberou-se o cativeiro, proibiu-se com exceções, liberou-se novamente, às vezes não para todos os povos, agindo de forma diferente com cada um. As duas principais distinções diziam respeito a “índios amigos” e “gentios bravos”. 60 Aos índios amigos, aqueles que se submeteram aos aldeamentos, a liberdade foi garantida, legalmente falando, ao longo de toda a colonização. Eles eram “descidos”, ou seja, trazidos de suas terras no interior para junto das povoações portuguesas, catequizados, e deveriam trabalhar nas roças e nas plantações, para sustentarem a 56 WOLKMER, 1998, pp. 88-89. PERRONE-MOISÉS, p. 115-116. 58 WOLKMER, 1998, p. 89. 59 Id., 2003, p. 45. 60 PERRONE-MOISÉS, p. 115-117. 57 32 colônia, além de promoverem sua defesa, constituindo o grosso dos contingentes das tropas de guerra. 61 Os descimentos foram incentivados desde o Regimento de São Tomé de Souza (1547) até o Diretório Pombalino (1757), e consistiam em trazer povos inteiros para aldeias próximas dos estabelecimentos portugueses, por meio do convencimento de que era do interesse dos índios, teoricamente sem violência. A disputa entre missionários, especialmente os jesuítas, e colonos fez com que as leis ora atribuíssem os descimentos aos primeiros (Lei de 1587, Regimento do governador de 1588, Alvará de 1596, Carta Régia de 1653 e Regimento das Missões de 1686), ora aos administradores das aldeias (Lei de 1611). Foi proibido, por mais de uma lei, o descimento forçado e o uso de violência, mas as leis que contrariavam os interesses dos colonos raramente eram cumpridas. Os índios aldeados deveriam ser considerados senhores de suas terras, e isso foi estabelecido pela primeira vez no Alvará de 1596. A proximidade entre as aldeias e os povoamentos portugueses foi determinada pelo Alvará de 1582 e pela Provisão Régia de 1680. 62 Havia leis também para determinar sobre a criação de aldeamentos em locais estratégicos, a qualidade da terra dos aldeamentos, a garantia de posse dos índios, a preferência de aldeamentos com índios da mesma “nação”, o tamanho das aldeias e a sua transferência, a obrigatoriedade de remuneração dos índios aldeados, um mínimo de tempo para que eles pudessem trabalhar para a própria subsistência.63 A administração das aldeias era dividida entre espiritual e temporal. No começo, os jesuítas eram encarregados de toda a administração, mas várias vezes os colonos moradores conseguiram pressionar a coroa para serem legitimados do governo temporal. Os indígenas chegaram a conseguir a administração temporal (Provisão de 1653, Lei de 1663 e Lei de 1755), quando os missionários fariam o governo espiritual, mas o Diretório de 1757 considerou-os incapazes de se autogovernarem, instituindo diretores das povoações. 64 Nos séculos XVII e XVIII, Portugal estava interessado em ocupar a Amazônia e os jesuítas talharam para si um enorme território. Foi o seu século de ouro. A partir da expulsão dos jesuítas por Pombal, em 1759 e da chegada de D. João VI não havia mais 61 Id., Ibd., pp. 117-118. PERRONE-MOISÉS, pp. 117-118. 63 Id., Ibd., p. 119. 64 Id., Ibd., loc. cit. 62 33 vozes dissonantes quanto a escravizar os índios e tomar suas terras. 65 O aldeamento foi a instituição que tornou possível o projeto colonial: só assim os portugueses conseguiram a “conversão” dos indígenas, a ocupação e a defesa do território e uma constante reserva de mão-de-obra para o desenvolvimento econômico da colônia e da metrópole. 66 Interessante apontar que enquanto o trabalho servil desaparecia na Europa, os europeus recriaram a escravidão nas suas colônias. 67 Mesmo os índios amigos não eram bem tratados como determinava a lei. Escravizados, atacados, capturados, como se inimigos fossem, a Coroa decidiu acabar com a distinção entre eles e os gentios bravos, com as “grandes leis de liberdade”. Com a reação dos colonos, diversas exceções foram exigidas e viraram leis que permitiam a escravização, o ataque e a captura de índios considerados muito bárbaros, com o pretexto de que os colonos os civilizariam. 68 A escravidão era o destino dos índios inimigos e os principais casos de escravização lícita – das “justas razões de direito” mencionadas nas leis – eram o decorrente de guerra justa contra índios inimigos e do resgate de seus cativos. As causas legítimas de guerra justa foram: o impedimento à propagação da fé, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses e a quebra de pactos celebrados. A afirmação de hostilidades dos índios foi sempre a principal causa da guerra justa, e muitas guerras foram movidas por necessidades econômicas dos colonizadores, para as quais encontraram justificativas posteriormente. Diante disso, a coroa portuguesa determinou que seriam justas apenas as guerras que o rei, de próprio punho, declarasse tais (Lei de 1597 e de 1655). No entanto, muitas foram as recomendações de destruição total dos “inimigos” nos séculos XVII e XVIII e os documentos falam de guerra rigorosa, total, veemente, a ser movida cruamente, com todo dano possível, de preferência até a extinção total 69 : [O] Regimento de Tomé de Sousa, em 1548, recomenda que os Tupinambá, que atacaram os portugueses “e fizeram guerra sejam castigados com muito rigor, destruindo-lhes suas aldeias e povoações e matando e cativando aquela parte deles que vos parecer que basta para seu castigo e exemplo”. O Regimento de 24/12/1654, de uma entrada a ser feita na Bahia para castigar o gentio bárbaro por suas “insolências”, recomenda “desbaratar”, queimar e 65 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 16. 66 PERRONE-MOISÉS, p. 120. 67 WOLKMER, 2003, p. 36. 68 PERRONE-MOISÉS, pp. 122-123. 69 Id., Ibd., pp. 123-126. 34 destruir totalmente aldeias inimigas, escravizando a todos e matando a quem de algum modo resistir. Uma Carta do governador geral do Brasil sobre a assim chamada Guerra dos Bárbaros na capitania do Rio Grande, de 14/3/1688, recomenda a um dos capitães-mores que “dirija a entrada e guerra que há de fazer aos bárbaros como bem entender que possa ser mais ofensiva, degolando-os, e seguindo-os até os extinguir, de maneira que fique exemplo desse castigo a todas as mais nações que confederadas com eles não temiam as armas de sua majestade”. Em Alvará de 4/3/1690, relativo a essa mesma guerra, o governador geral do Brasil recomenda que os inimigos sejam seguidos “até lhes queimarem, e destruírem as aldeias, e eles ficarem totalmente debelados, e resultar da sua extinção não só a memória, e temor de seu castigo, mas a tranqüilidade, e segurança com que sua majestade quer que vivam e se conservem seus vassalos”. Uma Carta Régia de 25/10/1707 ordena que se faça guerra ao Gentio do Corço no Maranhão “procurando fazê-la cruamente ao tal gentio que se entende podem ser danosíssimos a essas terras, para que o temor desse destroço amoderente os mais a que se abstenham de os assaltarem”. Uma Carta do vice-rei do Brasil de 30/6/1721 diz que tendo o gentio bárbaro atacado, “é preciso procurar extingui-los, fazendo-se-lhes veemente guerra”. 70 2.2 Século XIX e direitos territoriais indígenas A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha acredita que as leis expressam por excelência o pensamento indigenista hegemônico da época. No século XIX, o interesse dominante deixa de ser a mão-de-obra indígena e vira uma questão de terras. Começando ainda nos tempos de colônia, para a chegada da família real portuguesa e o começo do Império e terminando na República Velha, neste século heterogêneo a distância ideológica entre o poder central e as necessidades locais indígenas só diminuem fisicamente. Os índios ficam completamente sem representação desde 1759 quando os jesuítas são expulsos, manifestando-se só eventualmente com rebeliões ou petições ao imperador ou na Justiça. 71 Debate-se a partir do fim do século XVIII até meados do século XIX, se se devem exterminar os índios “bravos”, “desinfestando” os sertões – solução em geral propícia aos colonos – ou se cumpre civilizá-los e incluí-los na sociedade política – solução em geral propugnada por estadistas e que supunha sua possível incorporação como mão-de-obra. 72 É no século XIX que se questiona a humanidade dos índios pela primeira vez. No século XVI, com a declaração papal de que os índios tinham alma, não se duvidava de que se tratavam de homens e mulheres. O cientificismo da primeira metade do século XIX preocupou-se em demarcar claramente humanos de “antropóides”, segundo o 70 PERRONE-MOISÉS, p. 126. CUNHA, Manuela Carneiro da. Política Indigenista no Século XIX. In: CUNHA, 2002, pp. 133-134. 72 Id., Ibd., p. 134. 71 35 critério da perfectibilidade. Outra discussão já prefigura o evolucionismo e coloca a posição dos povos indígenas na história da espécie humana. Estrangeiros como Karl Phillip Von Martius e Cornelius de Pauw acreditavam que os índios não eram perfeitos e que estavam destinados à extinção, nunca chegando a atingir a maturidade. Johann Friedrich Blumenbach, um dos fundadores da antropologia física, analisou um crânio de Botocudo e classificou-o como a meio caminho entre o orangotango e o homem. Na segunda metade do século, novas teorias afirmam que os índios são a infância da humanidade, e não sua velhice, como antes acreditaram, consagrando-os como primitivos, testemunhas de uma era pela qual os europeus já teriam passado. 73 D. João VI foi o mais célebre adepto da violência contra os índios. Assim que chegou ao Brasil, em 1808, desencadeou uma guerra ofensiva contra os genericamente chamados Botocudos, para liberar as regiões do vale do Rio Doce, no Espírito Santo, e dos campos de Garapuava, no Paraná, para a colonização. Até então, a guerra contra os índios era dada como defensiva. 74 Com a revogação do Diretório Pombalino (1750), em 1798, um regulamento que dispusesse de maneira mais geral sobre as questões indígenas só é publicado em 1845, com a votação do Regulamento das Missões, decreto 426, pelo presidente da província do Rio. Isso deixa os povos indígenas em uma espécie de vácuo legal. 75 Essa falta de leis gerais permitiu que métodos violentos fossem retomados com os índios, como as leis de D. João VI. 76 Com a independência, a ausência de uma legislação indígena bem estruturada se mantém. A Constituição de 1824 sequer menciona os índios. Marés de Souza Filho diz que os Estados latino-americanos, ao serem constituídos, esqueceram-se de seus povos indígenas. A burguesia brasileira desejava criar um só Estado, com um só Direito, de um só povo: O século XIX foi marcado na América Latina pela criação de Estados nacionais, alguns majoritariamente indígenas, mas construídos à imagem e semelhança dos antigos colonizadores: Estado único e Direito único, na boa proposta de acabar privilégios e gerar sociedades de iguais, mesmo que para isso tivesse que reprimir de forma violenta ou sutil as diferenças culturais, étnicas, raciais, de gênero, estado ou condição. 77 73 CUNHA, 2002, pp. 134-135. Id., Ibd., pp. 136-137. 75 Id., Ibd., pp. 138-139. 76 GAGLIARDI, José Mauro. O Indígena e a República. São Paulo: Ed. Hucitec, Ed USP e Sec. Estado da Cultura de SP, 1989, p. 29. 77 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, pp. 62-63, grifado. 74 36 Se antes as leis coloniais reconheciam povos diferentes, mesmo que para subjugar; a criação do Estado brasileiro pressupunha suprimir as diferenças, e a integração passava a ser o discurso oculto (ou não) das leis. “Na prática, a cordialidade da integração se transformava na crueldade da discriminação”, afirma Marés. 78 Como se sabe, o movimento que levou à independência do Brasil foi feito por poucos – e a constituinte lançou-se à obra de transformar em realidade o programa liberal destes que queriam organizar o país de forma a assegurarem o controle do poder: A política das Cortes portuguesas, revelando em 1821 a intenção de manter as restrições à liberdade de comércio e a pretensão de recolonizar o país, provocou secessão. Proprietários de terra, altos funcionários, uma parcela dos comerciantes estrangeiros e nacionais ligados ao comércio exportador procuraram no Imperador a garantia de um movimento pacífico em que ficasse assegurada a ordem interna, estabelecendo um compromisso com a tradição. 79 O sistema jurídico contemporâneo estabeleceu também uma dicotomia entre direito público e privado, sendo que um jamais poderia se confundir com o outro. Tudo que fosse de uso coletivo seria estatal; e o que não fosse, privado. Os direitos territoriais dos povos indígenas, que estariam no meio, ficaram em um limbo jurídico. O Estado moderno e suas relações internacionais não admitiam, mais, a existência de territórios sem tutela estatal, passa a ser inconcebível a existência de territórios indígenas independentes: 80 Por esta razão, a cultura constitucional clássica não podia aceitar a introdução, nas constituições, dos direitos de povos indígenas a um território e à aplicação, neste território de seu Direito próprio, porque entendia que seria um Estado dentro do Estado. 81 Os direitos indígenas não foram mencionados na primeira Constituição brasileira e uma grande legislação indigenista fica só na expectativa, com pontuais manifestações em alguns documentos do Império. Na prática, manteve-se a mesma 78 Id., Ibd., loc. cit. COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 125-126. 80 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, pp. 64-67. 81 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, p. 68. 79 37 divisão entre índios “bravos” e “domésticos ou mansos”, com o objetivo de guerrear com os primeiros e de sedentarizar os segundos sob o “suave jugo das leis”: 82 A primeira Constituição brasileira, a Constituição imperial de 1824, não se referiu a negros e índios, no pressuposto de que todos seriam livres e cidadãos, conforme o receituário da nova ordem ocidental. Era apenas discurso, como se sabe; os negros continuaram escravos e os índios jamais foram integrados como cidadãos à comunhão nacional. 83 Essa omissão não foi, no entanto, pacífica. Se nossa primeira constituição houvesse sido democrática e discutida em profundidade, e não outorgada, como foi, era muito provável que houvesse alguma disposição sobre os índios. O diário da Constituinte – que depois D. Pedro I decide fechar para outorgar a Carta – acusa discussão entre os deputados Francisco Jê Acaiaba de Montezuma e José Bonifácio de Andrada e Silva. Aquele, apesar do nome (que ele mesmo escolheu para homenagear os índios na Independência), dizia que os índios não eram brasileiros no sentido político, porque não entraria com os demais na família que constituiu o Império. 84 José Bonifácio de Andrada e Silva chegou a elaborar um documento chamado “Apontamentos para a civilisação dos Índios bravos do Império do Brazil” para integrar a Constituição. Os apontamentos foram apresentados à Assembléia Constituinte de 1823 e receberam parecer favorável, mas ficou decidido que seriam remetidos às províncias para mais informações sobre a melhor maneira de serem executados, medida certamente protelatória e que nunca foi concluída. Mesmo sendo uma tentativa de construir uma legislação indigenista para todo o território brasileiro, os apontamentos de Andrada e Silva não fugiam à linha portuguesa: tratavam da sujeição ao jugo da lei e do trabalho e de aldeamentos. 85 José Bonifácio escreveu que muitos portugueses ainda consideravam que o índio só tinha figura humana, sem ser capaz de perfectibilidade. Foi com esse letrado brasileiro que a questão indígena volta a ser pensada dentro de um projeto político e legal mais amplo, mas ainda tratava-se de chamar os índios à sociedade civil, amalgamá-los à população livre e incorporá-los a um povo que se desejava criar. A justiça de Andrada e Silva, assim, resultaria em um etnocídio generalizado. 86 82 CUNHA, 2002, op. cit., pp. 137-138. MARÉS de Souza Filho, Carlos Frederico. Da tirania à tolerância: o direito e os índios. In: NOVAES, Adauto. (Org.). A Outra Margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 62. 84 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1999, pp. 62-63. 85 CUNHA, 2002, pp. 138-139. 86 Id., Ibd., pp. 134 e 137. 83 38 Apesar da falta de leis que tratassem sobre a questão indígena, o projeto de Andrada e Silva, mesmo não tendo sido aprovado, foi tomado como discurso oficial do Império brasileiro. Ele entendia que para construir a nação brasileira era preciso criar a idéia de um só povo e, para isso, era necessário civilizar os índios por meio dos aldeamentos e das bandeiras e estimular a miscigenação entre as raças. Nesse documento, ele também faz uma dura crítica aos brancos que usaram da violência contra os índios desde o começo da colonização, que os enganaram e roubaram suas terras, que os escravizaram ou pagaram-lhes muito mal pela mão-de-obra. Andrada e Silva acreditava no aperfeiçoamento das técnicas da colonização, com maior respeito aos índios não por questões meramente humanitárias. Para ele, era um atraso econômico para o país em formação simplesmente guerrear contra os índios; seria melhor, segundo Bonifácio, que a civilização fosse levada a eles por meio da educação. 87 Os adjetivos negativos para os índios também não foram poupados por Bonifácio: “povos vagabundos, e dados a continuas guerras, e roubos”, “entregues naturalmente á preguiça”, “conhecem que se entrarem no seio da Igreja, serão forçados a deixar suas contínuas bebedices, a polygamia em que vivem, e os divorcios voluntarios”. Para Bonifácio, o índio não tinha muitas necessidades, porque nada lhe faltava, e não tinha idéia de propriedade, “nem desejos de distincções, e vaidades sociaes, que são as molas poderosas, que poem em actividade o homem civilisado”, “uma raça de homens inconsiderada, preguiçosa, e em grande parte desagradecida e desaumada para conosco, que reputam seus inimigos” 88 . Como as leis não vieram após a Constituição imperial, cada província administrava os índios da forma como bem entendia. De fato, após a abdicação forçada de D. Pedro I em 1831, a competência legislativa das questões indígenas passa a ser das Assembléias Legislativas Provinciais, cumulativamente com o Governo Geral, conforme o ato adicional de 1843. 89 O Regulamento das Missões, de 1845, foi o único documento indigenista geral do Império. Mais um documento administrativo que político, prolongou o sistema de aldeamentos, que considerava uma transição para a assimilação completa dos índios. 87 MACHADO, Marina Monteiro. A Trajetória da Destruição: índios e terras no império do Brasil. Dissertação (Mestrado). 137 f. Programa de Pós- Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense, 2006, pp. 47-54. 88 ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. “Apontamentos para a civilisação dos Índios bravos do Império do Brazil”, 1823. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). Legislação Indigenista no Século XIX. Uma compilação: 1808-1189. São Paulo: EDUSP, 1992. Anexo. 89 CUNHA, 2002, op. cit., pp. 137-138. 39 Escolheu oficialmente, para as aldeias, a administração leiga, com a ajuda religiosa e educacional dos missionários; mas na prática havia carência de diretores leigos e muitos missionários acabaram exercendo o cargo de diretores. Os missionários perderam, apesar disso, a autonomia que tinham os jesuítas, ficando inteiramente a serviço dos interesses governamentais. 90 Esse regulamento, Decreto 426 de 24 de julho de 1845 – “Contém o Regulamento ácerca da Missões de catechese, e civilisação dos Indios” –, organizava o serviço público em relação aos índios em cada aldeia, criava cargos e funções públicas de competências específicas. Estabeleceu em cada província o cargo de Diretor Geral de Índios e em cada aldeia cargos de diretor, tesoureiro, cirurgião e missionário. Como da maioria das vezes, apesar da produção legislativa, este decreto também não foi aplicado. 91 No século XIX, o foco dos portugueses é a terra e, para isso, iniciam um longo processo de expropriação da terra indígena. Aparentemente, eram reconhecidos direitos originários dos índios sobre suas terras e havia a necessidade de tomá-las de forma legítima, a partir de previsões legais. A Carta Régia de 2/12/1808, de d. João VI, considera devolutas as terras conquistadas por meio da guerra justa. É a primeira vez que as terras indígenas conquistadas são consideradas devolutas. Para Carneiro da Cunha, isso significa dizer que os índios a quem não se declarou guerra justa teriam direitos anteriores sobre suas terras, que deveriam ser mantidos. Por outro lado, na prática parecia haver duas opções: a guerra ou o aldeamento. E dentro das aldeias os direitos territoriais foram estabelecidos sim, mas de modo a concentrar índios em pequenos espaços de terra sobre os quais não teriam a propriedade, situá-los próximos de colonos, e transformá-los em trabalhadores assalariados. 92 Carneiro da Cunha afirma que o Brasil independente marca um retrocesso nos direitos indígenas, porque é negada a soberania e a cidadania dos índios. Apesar disso, ainda se reconhecem os direitos dos índios sobre as suas terras. Em 1850, o Império promulga a Lei de Terras (Lei 601, de 18/09/1850), mandando que se reservassem das terras devolutas as necessárias para a colonização dos indígenas (art. 12, §1º.). 93 Esta Lei não era específica da questão indígena, dispondo sobre as terras devolutas do Império, conceito que apresenta no seu artigo 3º.: 90 CUNHA, 2002, pp. 139-141. MARÉS DE SOUZA FILHO, pp. 96-97. 92 CUNHA, 2002, pp. 141-142. 93 CUNHA, 1987, p. 66. 91 40 Art. 3º São terras devolutas: § 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal. § 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei. 94 Para João Mendes de Almeida Júnior, a Lei de Terras preserva o reconhecimento da propriedade indígena: Quer da letra, quer do espírito da Lei de 1850, se verifica que essa Lei nem mesmo considera devolutas as terras possuídas por hordas selvagens estáveis: essas terras são tão particulares como as possuídas por ocupação legitimável, isto é, originariamente reservadas de devolução, nos expressos termos do Alvará de 1º. de abril de 1680, que as reserva até na concessão das sesmarias. 95 Ou seja, o Alvará de 1680 determinava que os índios eram senhores de suas terras e a Lei de Terras não contrariou essa classificação. Mendes é conhecido por ter desenvolvido o conceito de indigenato, que seria um título congênito aos índios, diferentemente da ocupação, que seria direito adquirido: [...] a occupação, como título de acquisição, só pode ter por objecto as cousas que nunca tiveram dono, ou que foram abandonadas por seu antigo dono. A occupação é uma apprehensio rei nullis ou rei derelictae (...); ora, as terras de indios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res nullius 96 , nem como res derelictae 97 ; por outra, não se concebe que os indios tivessem adquirido, por simples occupação, aquillo que lhes é congenito e primário, de sorte que, relativamente aos indios estabelecidos, não ha uma simples posse, ha um título immediato de dominio; não ha, portanto, posse a legitimar, ha dominio a reconhecer e direito originario e preliminarmente reservado. 98 94 BRASIL, Lei 601, de 18/09/1850, sobre as terras devolutas do Império. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L0601-1850.htm>. 95 MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, João. Os Indígenas do Brazil, seus direitos individuaes e políticos. São Paulo: Hennies, 1912, pp. 59-60 apud CUNHA, 1987, pp. 66-67. 96 Coisa sem dono. 97 Coisa abandonada. 98 MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, p. 59 apud MONTANARI JÚNIOR, Isaías. Demarcação de Terras Indígenas na Faixa de Fronteira Sob o Enfoque da Defesa Nacional. 138 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, UFSC, Florianópolis (SC), 2005, p. 32. 41 Com esse jurista do final do século XIX, começo do XX, ficou claro que os direitos indígenas não eram adquiridos – eram originários, mesmo que não fosse essa a intenção da elite com a legislação. Essa linha conceitual perdura até hoje e está presente na atual Constituição. O decreto 1.318 de 30 de janeiro de 1854 regulamentou a Lei de Terras. Determinou que seriam reservadas terras devolutas para a colonização e aldeamento dos indígenas onde existissem “hordas selvagens”, especificou que essas terras seriam inalienáveis e de usufruto exclusivo dos índios e destinadas a ser de sua propriedade quando seu estado de civilização o permitisse. 99 Apesar da aparente regulamentação dos direitos territoriais indígenas, as próprias leis eram utilizadas em seu desfavor, e iniciou-se um processo de esbulho baseado nas próprias leis. O Regulamento das Missões permitia a remoção e a reunião das aldeias (art. 1º., §§2º. e 4º.) e isso foi feito para tomar muitas áreas originariamente indígenas. O que se fazia era reduzir cada vez mais o tamanho das aldeias ou considerar todas as áreas ocupadas por indígenas como aldeamentos, e não terras imemoriais – com o amparo no art. 12 da Lei de Terras e nos arts. 72 a 74 de seu Regulamento de 1854. As terras dentro dos aldeamentos eram aforadas com base nos §§12º. a 14º. do Regulamento das Missões. Além disso, desde o Ato Adicional de 1834 era permitido que as Assembléias Provinciais legislassem e, estando mais próximas do poder local, extinguiram sumariamente aldeias para se apropriar de suas terras. 100 Mesmo que o Regulamento das Missões e o decreto que regulamentou a Lei de Terras tenham estabelecido a propriedade dos índios sobre as terras de aldeias extintas, esse entendimento é rapidamente esquecido nas décadas seguintes. Durante algum tempo, prevalece o entendimento de que se tratam de terras devolutas (Aviso 160 de 21 de julho de 1856 e Aviso 131 de 7 de dezembro de 1858). Mas a partir de 1875 as Câmaras Municipais podem vender as terras das aldeias extintas (Decreto 2672 de 20 de outubro de 1875). E em 1887, as terras das aldeias extintas passam definitivamente ao domínio das províncias (Lei 3348 de 20 de outubro de 1887). Com a proclamação da República, a Constituição de 1891 ratifica esse posicionamento, passando aos estados as terras que eram das províncias. 101 99 CUNHA, 1987, p. 68. CUNHA, 1987, p. 69. 101 CUNHA, 2002, p. 146. 100 42 A escravidão dos índios, declarada ou não, perdurou até pelo menos 1850, apesar de ter sido “abolida várias vezes em particular no século XVII e no século XVIII: ou seja, a abolição foi várias vezes, por sua vez, abolida”. Compravam-se crianças (Circular de 9 de agosto de 1845) e adultos eram disfarçadamente escravizados, com a grande exploração por meio do trabalho (Aviso de 2 de setembro de 1845). O trabalho do índio era mal remunerado, sua produção comprada mais barata e as mercadorias lhes vendidas mais caras. Além disso, tentava-se estimular uma dependência a certos produtos, como a instrumentos, roupas e cachaça. O trabalho para particulares jamais é proibido, desde que não seja forçado. É claro que a diferença entre o trabalho e a escravidão não passava de formalidade legal e os índios eram disputados inclusive pelo Estado. Em 1854, por exemplo, permite-se o recrutamento supostamente não compulsório de índios para trabalharem por três anos nas aldeias, que só seriam pagos ao final do período (Aviso de 5 de janeiro). Aqui em Santa Catarina, os índios recémcontatados foram distribuídos diretamente para trabalhar com particulares (Aviso 8 de 20 de março de 1855). 102 A proclamação da República, em 1889, mais uma vez não mudou a situação dos índios. Como em quase todos os movimentos brasileiros de mudanças políticas significativas, esse não reuniu camada popular expressiva. Os principais responsáveis pela mudança foram os setores produtivos da sociedade que não dependiam mais de escravos e também aqueles que foram prejudicados com a abolição; e os militares. Os setores que utilizavam o trabalho livre já eram maioria e se manifestavam descontentes com a excessiva centralização da monarquia. E os militares, desde a Guerra do Paraguai, acreditavam ser a salvação do país, e foram instigados pela classe burguesa em formação a se rebelar. Mas este ano não significou uma ruptura no processo histórico brasileiro, as condições de vida da maioria da população permaneceu a mesma. 103 No início do século XX, João Mendes Júnior já aduzia que: “quer em relação a direitos individuaes e políticos, quer mesmo nas relações estrictamente administrativas, os índios, na República, não passaram por alteração alguma”. 104 102 CUNHA, 2002, pp. 146-150. COSTA, pp. 231-361. 104 MENDES JÚNIOR, João. Os indigenas do Brazil, seus direitos individuaes e políticos. São Paulo: Typ Hennies Irmãos, 1912 apud BARBOSA, Marco Antônio. Autodeterminação: direito à diferença. São Paulo: Plêiade, Fapesp, 2001. 103 43 Dessa forma, a primeira Constituição republicana brasileira, de 1891, também é omissa sobre os povos indígenas. Mas durante a sua elaboração houve divergência. O Apostolado Positivista do Brasil propôs à Assembléia Constituinte a organização do Estado brasileiro como uma confederação de estados acrescida de uma confederação dos índios que viviam no Brasil, cada qual com soberania sobre o seu território. 105 Assim era a proposta dos positivistas sobre a soberania indígena: Art. 1º. A República dos Estados Unidos do Brazil é constituída pela livre federação dos povos circunscritos dentro dos limites do extinto Império do Brazil. Compõe-se de duas sórtes de estados confederados, cujas autonomias são igualmente reconhecidas e respeitadas segundo as fórmulas convenientes a cada cazo, a saber: I. Os Estados Ocidentais Brazileiros sistematicamente confederados e que provêm da fuzão do elemento europeu com o elemento africano e o americano aborígine. II. Os Estados Americanos Brazileiros empiricamente confederados, constituídos pelas ordas fetichistas esparsas pelo território de toda a República. A federação deles limita-se à manutenção das relações amistózas hoje reconhecidas como um dever entre as nações distintas e simpáticas, por um lado; e, por outro lado, em garantir-lhes a proteção do Governo Federal contra qualquer violência, que em suas pessoas, quer em seus territórios. Estes não poderão jámais ser atravessados sem o seu prévio consentimento pacificamente solicitado e só pacificamente obtido. 106 Para os positivistas, os povos “selvagens” eram nações soberanas e livres, independentes, a quem os brasileiros deveriam respeito, e cujas terras deveriam ser demarcadas honestamente. A Constituição não acolheu qualquer ponto sugerido pelo Apostolado, sequer mencionou os índios em seu texto.107 Ao mesmo tempo, os positivistas eram evolucionistas, e, apesar de reconhecerem que o lugar dos índios na nação brasileira advinha de anterioridade histórica, seu futuro seria a incorporação física e cultural. 108 Os direitos territoriais indígenas permanecem reconhecidos, mesmo com a omissão constitucional. Apenas as terras devolutas foram passadas aos estados federados. Até tentou-se disseminar que todas as terras indígenas haviam passado para o domínio dos estados, numa tentativa permanente de espoliação – mas por determinação legal anterior não seriam consideradas devolutas as terras imemoriais indígenas e as de 105 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1999, p. 57. LEMOS, Miguel; e MENDES, R. Teixeira. Bazes de uma constituição política ditatorial federativa para a Republica Brazileira. Rio de Janeiro: Apostolado Pozitivista do Brazil, 1890 apud CUNHA, 1987, p. 72. 107 CUNHA, 1987, pp. 72-74. 108 GOMES, Mércio Pereira. Os Índios e o Brasil: Ensaio sobre um holocausto e sobre uma nova possibilidade de convivência. Petrópolis: Vozes, 1988, 122. 106 44 aldeamentos não extintos. E isso foi confirmado no Decreto 736 de 1936, que incumbe ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI) impedir que as terras habitadas por silvícolas fossem tratadas como devolutas. 109 2.3 Origem da tutela e seus reflexos nos séculos XIX, XX e XXI Após as leis de liberdade, Lei de 6 de junho de 1755 e Lei de 7 de junho de 1755 – que estabeleceram que os gentios eram livres, isentos de toda escravidão e podiam dispor de suas pessoas e bens como melhor lhes parecesse; e que a jurisdição temporal das aldeias seria exercida pelos “principais” (caciques) –, o governo tomou uma medida que deu origem ao instituto da tutela dos indígenas. Sem saber como controlar os índios após as leis de liberdade, com medo de que houvesse uma evasão dos índios libertos e a serviço dos moradores, ou seja, com medo de perder mão-deobra, o governo colocou-os sob o Regimento dos Órfãos. A justificativa de um governador da época, do Grão Pará: “A estas gentes que não têm conhecimento do bem que se segue do trabalho, se devem reputar dementes, e por isso, os pus na administração do Juiz de Órfãos”. Seriam considerados órfãos todos aqueles que não se submetessem ao trabalho na colônia. 110 “Note-se, portanto, que a tutela surgiu como uma solução para se garantir a mão-de-obra indígena em um momento de transição entre escravidão e o trabalho assalariado”, explicam Nádia Farage e Carneiro da Cunha. Apesar disso, a Carta Régia de 12 de maio de 1798 ainda manteve o estatuto de órfãos para os índios que se integrassem à sociedade. E o juiz de órfãos foi usado em todo o século XIX para controlar toda a mão-de-obra potencialmente rebelde. Juridicamente, esses juízes deveriam zelar pelos contratos de trabalho e sua remuneração, mas eram notórios seus abusos. A tutela não seria, no entanto, aos grupos indígenas em geral nem associada a uma suposta infantilidade dos índios, como ocorreu no século XX. Tratava-se de aumentar o contingente de trabalhadores livres. 111 As autoras acreditam que a origem da confusão da tutela se deu quando os juízes de órfãos foram encarregados também dos bens dos índios, pelo decreto de 3 de junho de 1833. Ou seja, além da tutela individual do contrato do trabalho, a partir desse 109 CUNHA, 1987, pp. 75-76. FARAGE, Nádia;e CUNHA, Manuela Carneiro da. Caráter da tutela do índio: origens e metamorfoses. In: CUNHA, 1987, pp. 104-108. 111 FARAGE e CUNHA, pp. 110-111. 110 45 decreto os juízes detiveram a tutela coletiva, por proteger também as suas terras. Essa determinação deveria ser transitória, mas só acabou com o decreto 5.484 de 27 de julho de 1928. 112 A lei de 27 de outubro de 1831, que revoga a Carta Régia de 1808, desonerando de servidão todos os índios que ainda se mantivessem escravos, também aplica a esses índios a tutela orfanológica. Para Marés de Souza Filho, estaria claro que a legislação do início do século XIX dava duas atribuições distintas aos juízes de órfãos: 113 1) cuidar da pessoa dos índios libertos do cativeiro gerado pelas guerras, porque a lei expressamente os colocou sob a tutela orfanológica e 2) dar jurisdição aos juízes de órfãos para proteger os bens dos índios, aqui sim, de todos os índios, inclusive dos aldeados e não contatados. 114 Ele explica que essa dupla função confundiu-se de tal forma que foi geral o entendimento de que todos os índios estariam protegidos, pessoas e bens, pela tutela orfanológica. Marés exemplifica com uma decisão de 25 de outubro de 1898 do Superior Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão que denegou um habeas corpus impetrado por Mateus de Souza Lopes em favor do índio menor de idade Antônio Solimões. O indiozinho havia fugido de estranhos a quem fora confiado por um juiz de órfãos, para voltar para sua mãe. O Tribunal de Maranhão considerou que a mãe do índio não poderia gerir sua própria vida, quanto menos a de seu filho, devendo ela mesma sujeitar-se à jurisdição do juiz de órfãos – já que ignorava completamente a língua portuguesa, cujo reconhecimento seria um dos requisitos da legislação para a entrada do índio na vida social –, devendo ele ser devolvido à casa dos estranhos. 115 Acumular essas atribuições jurisdicionais teve efeitos nefastos na época da discussão do Código Civil, começo do século XX. Essa era uma época de um evolucionismo ingênuo, em que as sociedades indígenas eram representadas num estado “infantil” das sociedades complexas, e por isso deveriam ser tutelarmente conduzidas à civilização. A tutela foi ligada a uma suposta infantilidade dos índios e não à proteção de seus bens. 116 112 FARAGE e CUNHA, pp. 112-113. MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Tutela aos índios: proteção ou opressão? In: SANTILLI, Juliana (Coord.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Núcleo de Direitos Indígenas e Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, pp. 298-299. 114 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1993, p. 299. 115 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1993, pp. 295-300. 116 FARAGE e CUNHA, pp. 113-114. 113 46 Na segunda metade do século XX, o Código Civil brasileiro incluiu os índios entre os relativamente capazes a certos atos ou à maneira de exercê-los, remetendo à legislação especial o regime tutelar, que deveria cessar com a sua completa civilização: Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer: I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156). II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal. III. Os pródigos. IV. Os silvícolas. Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação. 117 [Parágrafo depois modificado para a seguinte redação:] Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País. 118 Clóvis Beviláqua não havia incluído os índios entre os relativamente incapazes. Durante a discussão do Código no Senado, no entanto, apresentou-se a seguinte emenda: “Os Indios que habitam o interior do paiz em tribus selvagens, os quaes, a medida de sua adaptação ficarão sujeitos ao regimen tutellar estabelecido em leis e regulamentos especiaes, tendentes a promover a sua incorporação à vida nacional”. 119 Mesmo assim, a emenda se referia aos índios que deixassem seus grupos de origem para se incorporar à sociedade envolvente – e a esses índios somente. Apesar disso, o parecer que a aprovou trouxe a justificativa de que a lei de 1831 e o decreto de 1833 já haviam estabelecido que os índios seriam “em todas as relações de direito, equiparados aos órfãos”. 120 Na verdade, essas leis haviam se referido apenas aos índios escravizados e aos bens dos índios aldeados, não a todos os índios. 121 A emenda que tornou os índios relativamente incapazes com o Código Civil de 1916 foi aprovada, então, infelizmente, segundo a interpretação errada de que todos os índios do país estariam sujeitos à tutela orfanológica. 117 BRASIL, Lei 3.071 de 1916, que estabelece o Código Civil. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=75875>. 118 BRASIL, Lei 3.071 de 1916, que estabelece o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L3071.htm>. 119 Diário do Congresso Nacional, 5 de dezembro de 1912, ano XXIII, nº. 131 apud FARAGE e CUNHA, p. 115. 120 Id., Ibd., Parecer nº. 432 apud FARAGE e CUNHA, p. 116. 121 FARA GE e CUNHA, pp. 115-116. 47 Antes de o Código Civil de 1916 ser sancionado, Clóvis Beviláqua já havia externado seu posicionamento ao então presidente Nilo Peçanha, em um parecer no qual afirmava: [...] As providências, até agora tomadas, talvez por falta de continuidade no pensamento do Govêrno, talvez por falta de convicção na sua eficácia, têm sido improfícuas. Subsiste, apenas, a idéia do dec. de 3 de Junho de 1833, mantida pelo regulamento de 15 de Março de 1842, art. 5º., §12, que, equiparando os índios selvícolas aos menores, os submete à proteção do juiz de órfãos. Mas é de esperar que a República, voltando, agora, as vistas para êsse problema, o resolva, satisfatória e definitivamente. 122 A posição de Beviláqua era de não incluir os silvícolas entre as pessoas com capacidade restrita. Ele a externou no seu Código Civil de 1916 Comentado, afirmando que sua idéia era de a situação dos índios ser regulada por leis especiais: “O pensamento do autor do Projeto, não dedicando qualquer disposição aos índios, era reservar-lhes preceitos especiais, que melhor atendessem à sua situação de indivíduos estranhos ao grêmio da civilização”. 123 Marés de Souza Filho concorda com Clóvis Beviláqua quanto ao erro de atribuir a tutela do Código Civil aos indígenas: Assiste, como de costume, total razão a este jurista brasileiro: é extremamente frágil a solução jurídica, no direito moderno, de oferecer aos índios uma tutela orfanológica, porque a tutela, desde Roma, passando pelas ordenações do Reino e chegando ao Código Civil brasileiro, é instrumento de proteção individual, incabível para uma coletividade e, muito menos, para várias coletividades cultural e etnicamente diferenciadas. Os índios necessitam de uma proteção que os garanta não só enquanto indivíduos, mas enquanto povos, na relação não só com os outros cidadãos, mas com o próprio Estado. 124 Marés explica que corresponde à incapacidade relativa do art. 6º. a Tutela e Curatela que trata do Direito de Família no Título VI do Livro I da Parte Especial do Código de 1916, arts. 406 a 485 – que, na opinião do autor, não é aproveitável às populações indígenas e tampouco faz referência expressa a elas, enquanto o faz dos outros relativamente incapazes. Para ele, a correta interpretação seria considerar que o fim da tutela orfanológica acontece com o Código Civil, já que de sua leitura 122 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado por Clóvis Beviláqua. Rio de Janeiro: Ed. Paulo de Azevedo Ltda., 1953, p. 156. 123 BEVILÁQUA, p. 156. 124 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1993, p. 302. 48 sistemática a tutela que ele mesmo disponibiliza não é suficiente para os índios, dependendo de legislação especial. 125 Apesar disso, é só com o Decreto 5.484, de 27 de junho de 1928, que se extingue expressamente a tutela orfanológica, mas não acaba completamente com a tutela, apenas transferindo-a para o Estado, por meio do Serviço de Proteção ao Índio 126 : Art. 6º Os indios de qualquer categoria não inteiramente adaptados ficam sob a tutela do Estado, que a exercerá segundo o gráo de adaptação de cada um, por intermedio dos inspectores do Serviço de Proteção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes, sendo facultado aos ditos inspectores requerer ou nomear procurador, para requerer em nome dos mesmos indios, perante as justiças e autoridades, praticando para o referido fim todos os actos permittidos em direito. 127 O decreto de 1928 cria um regime tutelar de natureza pública, ou seja, introduz no sistema jurídico brasileiro a concepção de que as relações dos índios com a sociedade é pública, e não privada. Para Marés, este instituto deveria ter ganhado nome próprio, mas foi mantido o nome “tutela”. E, no fim das contas, o suposto avanço do decreto se perdeu na corrupção brasileira, porque a tutela do SPI foi fonte de negociatas e desmandos. 128 A tutela no Estatuto do Índio será tratada no capítulo 3 deste trabalho. 2.4 A criação e o fim do Serviço de Proteção ao Índio e a FUNAI Em 1908, pela primeira vez, o Brasil foi publicamente acusado de massacrar índios. A denúncia foi feita em Viena, no XVI Congresso de Americanistas. No ano anterior começa no Brasil uma polêmica entre Hermann Von Ihering, diretor do Museu Paulista, que defendia o extermínio dos índios que resistissem à civilização, alguns setores da sociedade, em especial acadêmicos e positivistas. A saída de Nilo Peçanha foi criar, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), pelo Decreto 8.072, de 20 de junho. Ligado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, o SPI foi confiado ao general Cândido Rondon. Com a criação do SPI, Carneiro da Cunha considera que o 125 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1993, pp. 302-303. A formação do SPI é exposta no item seguinte. 127 BRASIL, Decreto 5.484, de 27 de junho de 1928. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=26194>. 128 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1993, pp. 304-305. 126 49 reconhecimento dos índios sobre suas terras ganhou um novo amparo legal, deixando de lado a fórmula do aldeamento, para respeitar as tribos com seus modos de vida. 129 O editorial do jornal “O Paíz”, no dia seguinte ao da criação do SPI, saudou a decisão governamental e chamou Rondon de “o conquistador pacífico do noroeste brasileiro”. Mas boa parte da imprensa defendeu os argumentos de Von Ihering. Além disso, foi destinada uma verba muito pequena ao órgão, ou seja, o próprio governo demonstrou um certo descrédito à atuação do SPI. 130 O Decreto que criou o SPI determinou, em seu art. 2º., que esse órgão prestaria “assistencia aos indios do Brazil, quer vivam aldeiados, reunidos em tribus, em estado nomade ou promiscuamente com civilizados”, para: §2º. garantir a efectividade da posse dos territorios occupados por indios e, conjunctamente, do que nelles se contiver, entrando em accôrdo com os governos locaes, sempre que fôr necessario; §3º. pôr em pratica os meios mais efficazes para evitar que os civilizados invadam terras dos indios e reciprocamente; §4º. fazer respeitar a organização interna das diversas tribus, sua independencia, seus habitos e instituições, não intervindo para alteral-os, sinão com brandura e consultando sempre a vontade dos respectivos chefes; [...] §12º. promover, sempre que for possivel, e pelos meios permittidos em direito, a restituição dos terrenos, que lhes tenham sido usurpados. 131 A história oficial de criação do SPI é a seguinte: O Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais nasceu, como V. Ex. sabe, do êxito dos processos praticados pelo então Tenente-Coronel Cândido Rondon, para pacificação das tribos selvícolas encontradas em seu caminho, ao fazer a travessia do Brasil central estendendo a linha telegráfica de Mato Grosso ao Amazonas [...]; e da demonstração de que se poderia conseguir com os mesmo efeitos em todas as regiões do Brasil onde ainda se encontrassem, como infelizmente se encontram, indígenas selvagens, isto é – brasileiros reduzidos à condição de brutos, inúteis a si e à coletividade e, o que é mais, entravando, em mais de um ponto, o aproveitamento da terra e das forças naturais, e sendo exterminados barbaramente, como feras, por pseudocivilizados sem consciência e sem alma, a quem o índio involuntariamente prejudicava na tranqüilidade e na cobiça. 132 Antônio Carlos de Souza Lima desmistifica a história do SPI desde a sua criação, especialmente pelo conceito que o órgão tinha de índios, como se pode ver no 129 CUNHA, 1987, pp. 78-79. GAGLIARDI, pp. 237-241. 131 BRASIL, Decreto 8.072, de 20 de junho de 1910. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=48347>. 132 BRASIL, Ministério da Agricultura, SPILTN, Relatório de Diretoria, 1917, p. 1 apud LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis (RJ): Vozes, 1995, p. 119-120, grifado. 130 50 último parágrafo. Ele explica que o SPI, que na verdade se chamava Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, foi formado para reverter a crise da agricultura pós-abolição da escravatura, desenvolvendo a mão-deobra não estrangeira. A intenção do SPI, durante toda a sua existência, segundo Lima, era de transformar os índios em pequenos produtores rurais capazes de se autosustentarem. Mesmo tendo supostamente rompido com a noção antiga de que ser indígena era um estágio transitório, o que seria uma das inovações do SPI, essa idéia ficou imbricada na prática do Serviço. A Candido Mariano da Silva Rondon, primeiro diretor do órgão e então tenente-coronel, tido como herói, seria atribuída a invenção da estratégia de pacificação dos índios. 133 Tal pacificação, no entanto, previa a homogeneização dos indígenas: “Morte física por guerra ou por pacificação, necessária redução dos efetivos humanos a quebrar solidariedades e a facilitar outro tipo de morte, a da alteridade” 134 . O SPI foi militarizado para atrair e pacificar, conquistar terras sem destruir os ocupantes indígenas, captando assim mão-de-obra. Isso era feito de acordo com os interesses nas expansões das fronteiras agrícolas, para que os indígenas se tornassem “úteis” ao país. Foi o que aconteceu na década de 1940, com a marcha para o oeste. O escritor ainda elucida que este cenário só foi possível com a formulação da capacidade civil relativa dos índios, condicionada ao seu grau de civilização. Essa fórmula foi elaborada por dois dos colaboradores mais próximos de Rondon e transformada em lei no Código Civil de 1916 e no decreto 5.484 de 1928. Dessa maneira, o SPI e, assim, a União, teria maior controle sobre as terras indígenas. 135 Apesar dos defeitos deste decreto, Marés acredita que o grande avanço que ele oferece é introduzir no sistema jurídico brasileiro a concepção de que as relações dos índios com a sociedade organizada como Estado é de natureza pública, e não privada. 136 O SPI esteve ligado a três Ministérios. Primeiro o da Agricultura, quando foi fundado, depois passou para o do Trabalho, Indústria e Comércio, em 1930, e para o da Guerra, em 1934, voltando ao Ministério da Agricultura em 1939, onde ficou até sua extinção. 137 133 LIMA, Antônio Carlos de Souza. O Governo dos Índios sob a gestão do SPI. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 156-165. 134 LIMA, 2002, p. 308. 135 LIMA, 2002, pp. 156-165. 136 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, p. 101. 137 CUNHA, 1987, p. 80. 51 Lima critica a história oficial do SPI, passada por pessoas como Darcy Ribeiro. Ribeiro acreditava que Rondon criou diretrizes que orientaram a política indigenista por décadas, fundamentadas num objetivo que não se baseasse em exterminar ou transformar o indígena, mas fazer dele melhor, dando-lhe aceso a ferramentas e a orientação adequada. A inovação principal de Rondon, segundo Ribeiro, foi o estabelecimento do direito à diferença, em lugar da proclamação da igualdade entre todos. 138 Com uma acidez extrema, Lima aponta que: Há muita leviandade em levar adiante a necessidade de cultuar heróis e precursores, tão cara à construção de histórias nacionais, ou na atitude oposta, pura fixação em destruir estes modos de representá-la [...]. Em nenhuma das duas posições há lugar para perceber a diferença entre se imiscuir nos territórios de povos nativos em estado de guerra entoando cânticos ao Deus dos cristãos; e de se imaginar que a música em geral [...] acalme os selvagens. É também muito distinto se supor que a melhor música a ser tocada é o Hino Nacional num gramophone, como o fazia Cândido Rondon desde os contatos com Parecis e Nambiquaras, antes mesmo da existência do SPILTN. 139 O antropólogo critica a construção de um poder tutelar que vincula o acesso dos povos indígenas aos direitos mais básicos, como de reconhecimento das terras que ocupam, e a direitos diferenciados, a uma suposta incapacidade civil suprida por um aparelho que os represente politicamente. 140 O Decreto 5.484, de 27 de junho de 1928 dividiu os índios em: Art. 2º. Para os effeitos da presente lei são classificados nas seguintes categorias os indios do Brasil: 1º. indios nomades; 2º. indios arranchados ou aldeiados; 3º. indios pertencentes a povoações indigenas; 4º. indios pertencentes a centros agricolas ou que vivem promiscuamente com civilisados. 141 Essa divisão fixada no decreto faz parte da ideologia do SPI, que dividia os indígenas entre aqueles em estado de guerra e aqueles amigos, mantendo a divisão criada desde o período colonial para legitimar a eliminação de povos inteiros. Rondon propunha o modo de ganhar a guerra por meio da paz e detinha o capital simbólico 138 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 132-133. LIMA, 1995,p. 72. 140 Id., Ibd., p. 75. 141 BRASIL, Decreto 5.484, de 27 de junho de 1928. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=26194>. 139 52 para aplicar tal operação. O SPI lutava pelo monopólio da assistência, ou do exercício do poder tutelar, para deter o controle sobre as populações indígenas, cujo destino inevitável deveria ser o trabalho rural e a civilização. E utilizava táticas militares de pressionamento e de definição de limites (um cerco) para isso. 142 Ainda na opinião de Marés, a partir do decreto de 1928, mesmo não tendo revogado o Código Civil, não deveria mais se falar em tutela, mas em “capacidade e nulidade de atos praticados sem a participação dos funcionários responsáveis, o que vale dizer, sem a participação do Estado”. Para ele, este instituto jurídico novo deveria ter ganhado um nome próprio no decreto de 1928, o que não foi feito 143 , mantendo a confusão (propositalmente ou não). A história oficial do fim do SPI e criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), disponível no site da FUNAI, diz que na década de 1950 o SPI entrou num processo de decadência administrativa e ideológica, enfrentando problemas com conflitos de interesses com os estados, não conseguindo barrar o avanço sobre as terras indígenas e com acusações de improbidade na administração do patrimônio indígena. Sua extinção se deu em 5 de dezembro de 1967, após a descoberta hipotética dessas irregularidades. Ainda no site, admite-se que o SPI não adotava uma política que reconhecia os índios como povos diferenciados, tendo como objetivo a assimilação dos índios. 144 É interessante notar, no entanto, que vangloriou-se, na criação do SPI, o início de uma nova visão, com a qual os índios seriam respeitados nas suas diferenças. O objetivo, como demonstramos, era o oposto. Novamente se utiliza o mesmo discurso, de um suposto respeito aos povos, para afirmar que a FUNAI vai fazer diferente. Ora, não poderia a FUNAI fazer diferente, se a própria legislação ainda não havia demonstrado compreender as necessidades indígenas. A FUNAI, como assevera Stephen Baines, institucionalizou uma forma de política indigenista almejando uma “integração acelerada”, para que as populações indígenas não impedissem o processo econômico. Foram formuladas “frentes de atração” e “frentes avançadas”, mantendo ainda o órgão indigenista a sua tradição militar, especialmente para a construção de grandes rodovias. Equipes atraíam e enclausuravam os índios, transferindo-os para onde fosse pertinente, do mesmo modo como fazia o SPI. Em 1970, o presidente Emílio Garrastazu Médici revelou que um 142 LIMA, pp. 124-126. MARÉS, 2000, p. 101. 144 FUNAI, site da Fundação Nacional do Índio, Histórico. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/quem/historia/spi.htm>. 143 53 contrato havia sido firmado com a FUNAI que previa a pacificação de 30 grupos indígenas. A COAMA (Coordenação da Amazônia), da FUNAI, recebia financiamento de uma aliança entre governo e empresas transnacionais, em colaboração com instituições bancárias internacionais – que financiavam projetos infra-estruturais com a intenção de explorarem recursos naturais. Baines ressalta o período de grandes empreendimentos na Amazônia, o que mudou seu cenário e, conseqüentemente, a vida de muitos povos indígenas da região. 145 Mais considerações sobre a FUNAI serão feitas no próximo capítulo, quando tratamos do Estatuto do Índio. 2.5 As primeiras constituições do século XX e os direitos indígenas A questão da terra indígena só passa a ser matéria constitucional em 1934, quando, no seu art. 129, a Constituição diz que “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem, permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. Outro ponto importante que foi constitucionalizado: a aprovação da competência exclusiva da União para legislar sobre questões indígenas, mais especificamente sobre “a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (art. 5º., XIX, “m”), apesar da oposição do líder da maioria da Constituinte. Uma emenda importante infelizmente não passou, que determinava: “São reconhecidas as comunidades de indígenas e a lei declarará os direitos que lhes pertencem”. 146 O reconhecimento de que as comunidades indígenas também tinham direitos teria dado uma outra direção para a legislação. Marés sustenta que a partir de 1934, com o art. 129 da Constituição, não havia mais dúvidas de que a terra indígena era uma categoria do direito brasileiro, já que a garantia da posse indígena, e não sua propriedade, determina o conteúdo da terra, sendo oponível a qualquer ato ou negócio sobre ela, inclusive de propriedade: “O velho indigenato ganhava, finalmente, ares de direito constitucional”. 147 A Constituição de 1937 mantém, em seu art. 154, a mesma disposição da carta anterior sobre as terras: “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das 145 BAINES, Stephen Grant. “É a FUNAI que sabe”: A Frente de Atração Waimiri-Atroari. Belém: MPEG, CNPq, SCT, PR, 1990, pp. 90-92. 146 CUNHA, 1987, pp. 84-87. 147 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, p. 128. 54 mesmas”. 148 A Constituição de 1946 mantém duas indicações da Constituição de 1934. Em seu artigo 5º., inciso XV, alínea “r”, estabelece a competência federal para legislar sobre “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. E no art. 216: “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem”. Apenas houve a modificação da parte final deste artigo, aumentando a restrição de alienação para transferência. A modificação da Constituição de 1967 veio nos seguintes dois artigos: Art 4º - Incluem-se entre os bens da União: [...] IV - as terras ocupadas pelos silvícolas; [...] Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes. 149 Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, essa seria uma medida de proteção adicional aos índios, para impedir que Estados dispusessem dessas terras, alienando-as a não indígenas. 150 Apesar disso, o Brasil não seguiu a linha doutrinária internacional. A Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho, sobre a “Proteção e Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais e Semi-Tribais de Países Independentes”, de 1957, estipulou o seguinte: “O direito de propriedade, coletivo ou individual, será reconhecido aos membros das populações interessadas sobre as terras que ocupem tradicionalmente” 151 . Com a emenda constitucional de 1969, a questão do usufruto e das nulidades é desenvolvida: Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes. 148 BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. 149 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. 150 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira: emenda constitucional nº. 1, de 17 de outubro de 1969, 1º. V. São Paulo: Saraiva, p. 59. 151 Organização Internacional do Trabalho, Convenção 107, de 5 de junho de 1957. Disponível em: <http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/legislacao/legislacao-docs/convencoes-internacionais/conv_intern_02.pdf>. 55 § 1º. Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. § 2º. A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio. 152 José Cretella Júnior aduz sobre as mudanças trazidas pela Constituição de 1967 que: Rompendo a tradição constitucional de 1934, 1937 e 1946 que colocava, primeiro, a permanência, depois as conseqüências jurídicas desta, a Constituição de 1967, art. 186, inverte a situação, assegurando aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam, ou seja, os silvícolas que habitarem terras durante algum tempo – dias, meses – têm a posse dessas terras assegurada. Do mesmo modo, a Emenda nº. 1, de 1969, omitiu o atributo “permanência”, no habitat, ao assegurar aos silvícolas a posse permanente, ou contínua, das terras habitadas, embora não perenemente. 153 A interpretação de Pontes de Miranda mantinha a vulnerabilidade dos povos indígenas, já que bastava que fossem considerados integrados para não terem direito às terras a que se referia a Constituição: Terras ocupadas, e não terras dos silvícolas. Se, conforme o sistema jurídico brasileiro, o silvícola é capaz: se se incorporou à comunidade civilizada, ou se, estando em centro agrícola, se lhe outorgou posse ou posse e propriedade, conforme lei, o terreno que ele possui não é a terra ocupada de que fala a Constituição. Mais ainda: a própria Constituição de 1967, no seu art. 198, assegura aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam, com direito ao usufruto exclusivo, de modo que são seus os frutos e todas as utilidades nelas existentes. Se lá habitam, têm-na. Em conseqüência, o que se atribui à União é só o direito de propriedade, enquanto o silvícola não se integra na comunidade. Se se integra, a posse gera a propriedade, quer seja a posse que lhe advém do poder fáctico, como ocorreria com qualquer outra pessoa. 154 Se por um lado a lei constitucional parecia proteger, no fundo sua direção poderia sempre ser desvirtuada. Com os povos indígenas sempre foi assim, desde quando a colônia os dividia entre amigos e inimigos, até depois do decreto de 1928, quando foram divididos entre integrados e não integrados – linha hermenêutica que se mantêm presente até hoje, como abordaremos no próximo capítulo. Os povos eram – e são – transferidos de um grupo para o outro, dependendo dos interesses em jogo. 152 BRASIL, Emenda Constitucional nº. 1, de 17 de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. 153 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 4563. 154 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. 56 3 OS DIREITOS INDÍGENAS VIGENTES NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 3.1 O Estatuto do Índio ainda está em vigor? O primeiro artigo da Lei 6.001/1973 é muito esclarecedor do posicionamento do Estado sobre os povos indígenas, em plena década de 1970, depois de quase 500 anos de injustiças: “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” 155 . Manuela Carneiro da Cunha resume bem o contexto histórico da elaboração do Estatuto e da origem da FUNAI: Os anos 70 são os do “milagre”, dos investimentos em infra-estrutura e em prospecção mineral – é a época da Transamazônica, da barragem de Tucuruí e da de Balbina, do Projeto Carajás. Tudo cedia ante a hegemonia do “progresso”, diante do qual os índios eram empecilhos: forçava-se o contato com grupos isolados para que os tratores pudessem abrir estradas e realocavam-se os índios mais de uma vez, primeiro para afastá-los da estrada, depois para afastá-los do lago da barragem que inundava suas terras. É o caso paradigmático dos Parakanã, do Pará. Este período, crucial, [...] desembocou na militarização da questão indígena: de empecilhos, os índios passaram a ser riscos à segurança nacional. Sua presença nas fronteiras agora era um potencial perigo. É irônico que índios de Roraima, que haviam sido no século XVIII usados como “muralhas dos sertões”, garantindo as fronteiras brasileiras, fossem agora vistos como ameaças a essas mesmas fronteiras. 156 O Estatuto do Índio (EI) resultou em um regime imposto ao índio brasileiro, que (mais uma vez) não foi consultado. Uma das questões apontadas como decisivas para a aprovação dessa lei foi uma suposta preocupação do governo com sua imagem internacional, em função da divulgação na imprensa do exterior de massacres de índios. A criação da FUNAI e a decretação do EI fazem parte da mesma direção, tentando mostrar para o mundo uma face positiva do governo. O governo chegou a publicar o EI com traduções para o inglês e o francês, apesar de não ter se preocupado em traduzir 155 BRASIL, Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6001.htm>, grifado. 156 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 17. 57 para as línguas indígenas. Foram mantidos, no entanto, os conceitos legais delineados na legislação das décadas anteriores. 157 A própria FUNAI admite que, à sua fundação, seu objetivo era o que previa literalmente o Estatuto do Índio: Mesmo reconhecendo a diversidade cultural entre as muitas sociedades indígenas, a Funai tinha o papel de integrá-las, de maneira harmoniosa, à sociedade nacional. Considerava-se que essas sociedades precisavam “evoluir” rapidamente, até serem integradas à sociedade nacional, o que equivale, na prática, a negar a diversidade. 158 A Constituição Federal de 1967, com sua Emenda Constitucional de 1969, fala de silvícolas, assim como o Código Civil. É o Estatuto do Índio que estabelece o uso de “índio” como sinônimo explícito de silvícola. Cunha afirma que as definições de “índio ou silvícola” e de “comunidade indígena ou grupo tribal” são ilógicos e antropologicamente questionáveis. Para ela, o legislador, relutou em aceitar a estrita definição antropológica, sobrepondo-lhe caracterizações de senso comum. 159 Os artigos 3º. e 4º. do Estatuto trazem a definição de índios e comunidades indígenas e índios isolados, em via de integração ou integrados: Art. 3º. Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas: I - Índio ou Silvícola: É todo indivíduo de origem e ascendência précolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional; II - Comunidade Indígena ou Grupo Tribal: É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem, contudo, estarem neles integrados. Art 4º. Os índios são considerados: I – Isolados: Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II - Em vias de integração: Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; 157 OLIVEIRA, João Pacheco. Contexto e Horizonte Ideológico: Reflexões sobre o Estatuto do Índio. In: SANTOS, Silvio Coelho dos. (Org.). Sociedades Indígenas e o Direito: uma questão de Direitos Humanos. Florianópolis (SC): Ed. da UFSC, 1985, pp. 17-20. 158 FUNAI, site da Fundação Nacional do Índio, Histórica e política indigenista. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/indios/fr_conteudo.htm>. 159 CUNHA, Manuela Carneiro da. Definição de Índios e Comunidades Indígenas nos Textos Legais. In: SANTOS, 1985, pp. 31-37. 58 III – Integrados: Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. 160 Para começar a análise, o art. 3º. faz distinção entre índios e comunidades indígenas, de tal forma que algumas conclusões ilógicas podem ser atingidas. Em primeiro lugar, a lei parece diferenciar índios e indígenas, o que parece completamente absurdo. Neste caso, poderíamos ter uma comunidade de índios que não seria comunidade indígena. Além de fazer essa divisão irracional, a lei atribui a cada tipo (índio e comunidade indígena) direitos diferentes: Índios integrados, pela definição acima (art. 4º., III) são índios “incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis”. Mas esse reconhecimento do pleno exercício dos direitos civis é precisamente a emancipação (art. 7º. e art. 9º. do EI). Donde índios integrados são simplesmente índios emancipados. Critério jurídico, portanto. Como “Comunidade indígena” diz respeito expressamente a grupos não integrados, segue-se que famílias ou comunidades índias emancipadas não formam, por definição, uma comunidade indígena. No entanto, pela definição do art. 3º., I, mesmo na ausência de comunidade indígena, na acepção legal, seus membros antigos podem permanecer legalmente índios, bastando para isso que satisfaçam as condições, estas de ordem biológica e sociológica, da definição. Ou seja, chegamos ao resultado bizarro de que podemos ter grupos de índios legais formando uma comunidade que não é legalmente indígena. 161 Os problemas conceituais da lei mais apontados são essa divisão entre índios e comunidades indígenas, os próprios significados atribuídos a cada um, a idéia de integração da lei e seu efeito emancipatório, e a questão da tutela – todos extremamente interligados. Uma nomenclatura que poderia ter sido escolhida em vez de “comunidade indígena” era “povo indígena”, mas não foi ela utilizada pelo Estatuto do Índio. Como foi explicitado no capítulo anterior, na formação do Estado brasileiro, foi estabelecido que só havia um povo dentro desse Estado, esse é um dos requisitos do Direito Internacional para a formação de um Estado – “um Estado, um povo”. O Direito Internacional reconhece que, a partir do momento que um Estado é reconhecido na comunidade internacional, o direito de autodeterminação é o que regula sua relação com os demais Estados: em outras palavras, o direito de autodeterminação dos povos se transfere ao Estado no momento da sua constituição. Outra coisa é a autodeterminação 160 BRASIL, Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6001.htm>. 161 CUNHA, 1985, p. 32. 59 baseada no próprio povo, à sua vontade coletiva, com seu próprio Direito. Neste Direito estaria sua autodeterminação e também o direito de se submeterem ou não às regras dos Estados que os envolvem, “embora este direito não seja reconhecido nem pelo Estado nem pela comunidade de Estados, internacionalmente”. 162 Possibilidade de se autodeterminar significa que os povos indígenas não precisam ser determinados por outros que não eles próprios. Para Norberto Bobbio, “a liberdade como autodeterminação é geralmente atribuída, no discurso político, a uma vontade coletiva, seja essa vontade a do povo, da comunidade, da nação, do grupo étnico ou da pátria”. Atribui-se a Francisco de Vitória as origens do conceito de autodeterminação dos povos indígenas. Para ele, como vimos no capítulo anterior, os europeus não possuíam direito sobre as terras da América. A doutrina de Bobbio considera que a autodeterminação dos indígenas à época da invasão era o direito de governarem a si e ao seu território, porque os “bárbaros” seriam os donos do público e do privado nas Índias. Era com esse argumento que ele discordava do direito à guerra contra os índios. 163 Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque explica que a autodeterminação dos povos não pode ser entendida apenas em seu vínculo a nações, despreocupando-se com a autodeterminação das pessoas: 164 A autodeterminação consiste em um Direito enquanto conjunto de regras, normas, padrões e leis reconhecidas socialmente que garantem a determinados povos, segmentos ou grupos sociais o poder de decidir seu próprio modo de ser, viver e organizar-se política, econômica, social e culturalmente, sem serem subjugados ou dominados por outros grupos, segmentos, classes sociais ou povos estranhos à sua formação específica. 165 Ele argumenta, ainda, que essa autodeterminação é negada a muitos grupos por uma suposta falta de maturidade para governar, o que lhes gerou, por meio das sociedades hegemônicas que envolvem esses grupos, o instituto da tutela. 166 Ao mesmo tempo, no Brasil está se fortalecendo um movimento para a extinção da tutela dos povos indígenas – mas esse fim da tutela é perigoso e está ligado também aos interesses da elite, porque pretende acabar com todo o tipo de assistência 162 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2002, p. 78. ALBUQUERQUE, Antonio Armando Ulian do Lago. Multiculturalismo e o direito à autodeterminação dos povos indígenas. Florianópolis, 2003. 330 f. Dissertação (Mestrado). UFSC. Centro de Ciências Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito, pp. 148-151. 164 ALBUQUERQUE, pp. 152. 165 ALBUQUERQUE, p. 159. 166 ALBUQUERQUE, p. 158. 163 60 aos indígenas, não só com a capacidade civil relativa. É claro que precisa-se de uma nova nomenclatura, uma nova formulação para a tutela, para que ela de fato tutele as necessidades desses povos sem privá-los de autonomia. Para tanto, ela precisaria mudar de nome e de atributos jurídicos, desvinculando-se da idéia de capacidade civil e de tutela orfanológica. Em 1979, a Organização dos Estados Americanos autorizou os seguintes princípios indigenistas, entre eles o de autodeterminação: a) autodeterminação, como um direito dos povos indígenas de participarem nas decisões que afetam suas vidas; b) igualdade, cultural e social, em repúdio ao tratamento colonialista e discriminatório das populações indígenas; c) direito de participação nos benefícios sociais das nações, em retribuição pela contribuição histórica e atual dos povos indígenas na formação da sociedade e da cultura; d) dignidade humana, em reconhecimento da maturidade e identidade dos povos indígenas, de seus valores culturais e de sua história; e) cooperação irrestrita com os índios na recuperação e proteção de suas terras e outras riquezas naturais, obtendo assistência estatal e inclusão em programas de desenvolvimento abrangentes. 167 Para Marés, a questão que fica pendente é a de se um povo pode ter direito à autodeterminação sem desejar constituir-se em Estado: Do ponto de vista do Direito internacional parece que não. Do ponto de vista de cada povo, evidente que sim, porque a opção de não constituir-se em Estado e de viver sob outra organização estatal é uma manifestação de sua autodeterminação. Mais do que isso, os povos que vivem sem Estado, hoje, precisam apenas de Estado que os proteja do próprio Estado, das classes que têm poder no Estado e de outros Estados. 168 No Estatuto do Índio, o termo povo não foi utilizado “porque tem a conotação de autonomia, autodeterminação, guerra da independência, libertação nacional”. 169 Em vez disso, o legislador optou por dividir índios de comunidades indígenas, como se fosse possível um existir sem o outro, e continuou a confusão com os seus conceitos de integração. Segundo Cunha, só a comunidade indígena pode decidir quem é e quem não é seu membro, por isso não faz sentido o Estatuto definir primeiro quem é índio antes de definir “comunidade indígena”. Uma definição mais satisfatória seria: 167 CUNHA, 1987, p. 125. MARÉS DE SOUZA FILHO, 2002, pp. 79-80, grifado. 169 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2002, p. 154. 168 61 Comunidades indígenas são aquelas que se consideram segmentos distintos da sociedade nacional em virtude da consciência de sua continuidade histórica com sociedades pré-colombianas. É índio quem se considera pertencente a uma dessas comunidades e é por ela reconhecido como membro. Nota: Comunidades indígenas existem independentemente de sua integração, a qual não se confunde com a assimilação. 170 As três condições que o estatuto coloca para que alguém seja considerado índio (art. 3º., I) são: 1) origem e ascendência pré-colombiana, 2) auto-identificação e identificação por outros a um certo grupo étnico e 3) este grupo étnico deve ser culturalmente distinto da sociedade nacional. Da maneira como o estatuto coloca a origem e ascendência pré-colombiana, dá a entender que é referente a uma afirmação de ordem genealógica, critério biológico (“ter o mesmo sangue”) e isso não pode ser provado em qualquer grupo humano, considerando a longa história de miscigenação. Mais importante que isso, afirma Cunha, é a consciência da continuidade histórica. Se for compreendido biologicamente, esse requisito está antropologicamente incorreto, já que a ascendência pura e direta é impossível. 171 Quanto ao terceiro requisito, de o grupo ter que ser distinto da sociedade nacional, não pode ser entendido como objetivamente apreciável por um observador de fora desse grupo, deve ser o contrário – porque a cultura é o que o seu grupo étnico determina: A cultura é algo continuamente recriado em todas as sociedades, e portanto não se poderá achar na cultura de qualquer sociedade uma fidelidade objetiva a padrões ancestrais. Língua, ritos, crenças, artefatos materiais são parte de culturas vivas e como tais sujeitas a mudanças históricas dentro de lógicas que lhes são próprias. Só as línguas mortas têm, por exemplo, gramática e vocabulários fixados para sempre. Só culturas de sociedades mortas seriam perenes. Por outro lado, a cultura é um elemento de distinção, talvez o elemento por excelência de distinção: através dela, uma sociedade afirma-se diante de outras. Uma minoria étnica faz de sua cultura – original, recuperada, recriada, pouco importa – o sinal mais importante de seu confronto com a “maioria étnica”. Apega-se a suas tradições, eventualmente simplifica-as para melhor realçá-las e estabelecer assim sua identidade. 172 Ou seja, o estatuto não pode estar se referindo a uma cultura indígena como os “de fora” imaginam, mas como os indígenas a afirmam. Nesse sentido, a segunda 170 CUNHA, 1985, p. 37, grifado. CUNHA, 1985, p. 32. 172 CUNHA, 1985, p. 32-33, grifado. 171 62 condição, da auto e hetero-identificação, que está correta, engloba os outros dois requisitos, que tornam o inciso I do art. 3º. redundante. 173 Esses artigos 3º. e 4º. do estatuto derivam de classificação anteriormente feita por Darcy Ribeiro, mas o legislador fez alterações consideráveis. O conceito de integrado da Lei 6.001/1973 é de emancipado, já que, quando integrados, a lei especial não se aplicaria mais. Darcy Ribeiro, por outro lado, considerava que grupos indígenas integrados eram aqueles articulados com a esfera econômica e institucional da sociedade neo-brasileira. E ele enfaticamente distingue essa integração da assimilação ou da fusão de um grupo na sociedade mais ampla. Literalmente, essa distinção parece estar preservada na lei, já que os integrados podem ainda conservar usos, costumes e tradições. Só que a lei considera que os integrados não terão direitos indígenas, e isso significa que, mesmo que considerem usos, costumes e tradições, não poderão formar uma comunidade indígena, legalmente considerando, e não terão direitos diferenciados, como o fundamental direito à terra. 174 No caso dos índios, os conceitos parecem sempre ser confundidos de modo a desmerecê-los. Sobre essa confusão entre integração e assimilação, Pedro Agostinho defende que a integração não implica a completa supressão da cultura indígena nem a perda da qualidade de índio. Na visão de Agostinho, no entanto, a confusão é feita pelo senso comum, e não parte da própria Lei 6.001/1973. Apesar de o estatuto trazer como conceito de integração o reconhecimento do pleno exercício dos direitos civis (art. 4º., III), reconhece que esses índios ainda podem conservar seus usos, costumes e tradições, em outras palavras, não exclui a persistência de alteridade étnica: 175 Quer isto dizer que, na Lei nº. 6.001 de 19/12/1973, o conceito de integração refere-se ao que os antropólogos entendem como tal, e ainda à conseqüência dos atos jurídicos que levam ao “pleno exercício dos direitos civis”, mas não invade o campo semântico correspondente ao conceito de assimilação. Com este, seria incompatível aquela conservação de características culturais (art. 4º., III), e, se a conservação é admitida nos índios classificados como integrados, significa que, na lei como na ciência, integração se mantém como conceito distinto da assimilação. 176 Na opinião de Agostinho, o estatuto proíbe a assimilação. É assim que ele lê o artigo 1º. em conjunto com os incisos V, VI, e IX do art. 2º. 173 CUNHA, 1985, p. 34. CUNHA, 1985, pp. 35-36. 175 AGOSTINHO, Pedro. Incapacidade Civil Relativa e Tutela do Índio. In: SANTOS, Silvio Coelho. (Org.). O índio perante o direito. Florianópolis (SC): Ed. UFSC, 1982, pp. 62-63. 176 AGOSTINHO, 1982, pp. 68-69. 174 63 Diz o art. 2º.: Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos: I - estender aos índios os benefícios da legislação comum, sempre que possível a sua aplicação; II - prestar assistência aos índios e às comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional; III - respeitar, ao proporcionar aos índios meios para o seu desenvolvimento, as peculiaridades inerentes à sua condição; IV - assegurar aos índios a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência; V - garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat , proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso; VI - respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes; VII - executar, sempre que possível mediante a colaboração dos índios, os programas e projetos tendentes a beneficiar as comunidades indígenas; VIII - utilizar a cooperação, o espírito de iniciativa e as qualidades pessoais do índio, tendo em vista a melhoria de suas condições de vida e a sua integração no processo de desenvolvimento; IX - garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes; X - garantir aos índios o pleno exercício dos direitos civis e políticos que em face da legislação lhes couberem. 177 Orlando Sampaio Silva, por sua vez, afirma que o art. 1º. do estatuto se contradiz: ao mesmo tempo manifesta como propósito a preservação da cultura indígena e objetiva sua integração à comunhão nacional. Por integração, ele entende o estímulo ao contato. De fato, era uma linha adotada pela própria FUNAI, com suas frentes de atração. 178 Mesmo que Agostinho considere que o estatuto não está falando em assimilação, ele acredita que o conceito de integração da lei deixa prevalecer seu critério jurídico sobre o sociológico. No sociológico, o índio estará integrado a partir de um estabelecimento de um sistema de relações sociais entre o subsistema indígena ao qual pertence e o subsistema nacional, ou seja, o critério sociológico considera que a integração é uma relação de sistemas entre a sociedade nacional e a sociedade indígena. Já o critério jurídico que está contido na lei é a capacidade civil: a integração estaria caracterizada quando o índio exercesse plenamente seus direitos civis. Para 177 BRASIL, Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6001.htm>. 178 SAMPAIO SILVA, Orlando. O Índio Perante o Direito. In: SANTOS, 1982, p. 40. 64 cruzar a fronteira da integração, a própria lei estabelece que o índio tenha 21 anos, conhecimento do português, habilitação para atividade útil no sistema nacional e aculturação que faculte razoável compreensão dos usos e costumes nacionais (art. 9º.); além disso, o índio deve obter, por requerimento próprio, sentença judicial liberando-o da tutela e reconhecendo formalmente a sua condição de integrado (art. 9º., § único e art. 10). 179 Assim, para Agostinho, mais correto seria dizer que: Integrado é, para o Estatuto do Índio, o grupo indígena e qualquer de seus membros que, inseridos em sistemas interétnicos e tendo alcançado a etapa de integração, sem com isso se assimilarem à sociedade nacional, foram por esta legalmente investidos e reconhecidos na plenitude da capacidade civil e de seu exercício. 180 Isso é só porque ele entende por integração a mera relação que se estabelece entre a sociedade indígena e a não-indígena. Ele faz isso utilizando conceitos da sociologia e da antropologia, mas a própria Lei 6.001/1973 associa integração com emancipação – e a conseqüente perda de direitos especiais. Acrescente-se a isso o fato de que a própria FUNAI utilizou o estatuto para estabelecer frentes de atração e estimular o contato com grupos isolados – e temos que o estatuto, desde o seu primeiro artigo, foi interpretado pela maioria como instrumento de aniquilação de povos indígenas. A linha geral do Estatuto seria, então: índios precisam deixar de ser índios para se incorporarem na sociedade nacional, o que faria, no momento da incorporação, que perdessem os direitos especiais e a tutela que lhes são conferidos enquanto índios; e ganhassem a emancipação. Darcy Ribeiro dividiu as populações indígenas em quatro categorias: isolados, em contato intermitente, em contato permanente e integrados. Para ele, os integrados representariam aqueles grupos que “conseguiram sobreviver, chegando a nossos dias ilhados em meio à população nacional, a cuja vida econômica se vão incorporando como reserva de mão-de-obra ou como produtores especializados em certos artigos”. Esses grupos estão certos de que constituem um povo à parte por si e são vistos como índios pela população circundante. Ribeiro distingue expressamente a assimilação da integração, diz que a “integração não corresponde à fusão dos grupos indígenas na sociedade nacional como parte indistinguível dela”. A integração teria a ver com a 179 180 AGOSTINHO, p. 68. AGOSTINHO, p. 70. 65 crescente participação na vida econômica e nas esferas de comportamento, gerando uma reconfiguração dos grupos, que seria uma transfiguração cultural, ou seja, o processo em que culturas que entram em contato se contagiam reciprocamente, culturalmente falando. Ribeiro considerava, no entanto, que o contato poderia gerar profunda descaracterização lingüística e cultural – e que a aculturação poderia ser possível, extinguindo culturas a partir de um longo processo que se inicia com o contato. 181 Roberto Cardoso de Oliveira sugere que o contato interétnico pode ser melhor entendido focalizando as relações interétnicas enquanto relações de “fricção”. Ele explica que no Brasil as teorias de aculturação prevaleceram, teorias que consideram que quando uma cultura entra em contato com outra, uma das duas desaparecerá, notavelmente a menos complexa. 182 Cardoso de Oliveira, por outro lado, vê o contato internétnico entre duas populações como um sistema: As relações entre essas populações significam mais do que uma mera cooperação, competição e conflito entre sociedades em conjunção. Trata-se – como tenho assinalado – de uma oposição ou, mesmo, uma contradição entre os sistemas societários em interação que, entretanto, passam a constituir subsistemas de um mais inclusivo que se pode chamar de sistema interétnico. Pretendo que os subsistemas (no caso o tribal e o nacional) tenham entre si e entre o sistema internétnico inclusivo a mesma correspondência lógica que têm entre si as classes sociais e a sociedade global brasileira. Do mesmo modo que, por exemplo, a sociedade nacional é uma sistema social suscetível de ser analisado através de sua estrutura de classes, a situação de contato, graças ao sistema de relações que lhe é inerente, pode ser analisada mediante o que denominei fricção interétnica – o que seria equivalente lógico (mas não ontológico) do que os sociólogos chamam de luta de classes. 183 Contrariando a tendência internacional da autonomia e da autodeterminação dos povos, com o Estatuto do Índio, a questão da tutela, cuja origem foi explicada no capítulo anterior, volta a ser objeto de dúvida e instrumento de opressão. Essa lei, para Carlos Frederico Marés de Souza Filho, foi um retrocesso e não compreendeu a profunda extensão de uma tutela de direito público. Por ser uma regulamentação do regime tutelar previsto no Código Civil (onde os indígenas foram enquadrados como relativamente incapazes), revoga o decreto de 1928 (que acabava com a tutela orfanológica). Ao mesmo tempo, o estatuto fez o que nem o Código Civil de 1916 e o decreto de 1928 fizeram: determinou, no que coubesse, a aplicação dos princípios da 181 RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 489-490 e 245-246. 182 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O índio e o mundo dos brancos. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1996, pp. 33 e 42. 183 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A sociologia do Brasil indígena. Brasília: UnB, 1978, p. 85. 66 tutela de direito comum (art. 7º., §1º.). “Deveria ter determinado a aplicação dos princípios do direito público”, na opinião do jurista, para quem o capítulo “Da Assistência ou Tutela”, do estatuto, revela uma possível intenção do regime militar do retorno à tutela orfanológica. 184 Para Marés, tutela é um termo tecnicamente problemático, porque não há divergências conceituais a respeito de ser este um instituto do direito de família desde o direito romano, ou seja, como uma proteção substitutiva do pátrio poder, como meio jurídico de proteger uma incapacidade individual. “Assim, é muito diferente dizer que o Estado exerce uma tutela orfanológica como o diz a lei 6.001/1973, do que dizer que não existe tutela orfanológica, mas o Estado tutela a pessoa e os bens dos índios”, como fazia o decreto de 1928. No decreto, os índios tinham a faculdade para dispor de seus bens (art. 3º.), o Estado só prestaria uma assistência nas suas relações com nãoindígenas; e o Estatuto do Índio devolve a administração dos bens e rendas do patrimônio indígena ao Estado, que está livre para utilizar a renda como lhe parecer mais oportuno (art. 43). 185 Marés ainda afirma que a interpretação da tutela do Estatuto é ligada ao conceito de integração em decorrência da ganância pelas terras indígenas: Contido neste conceito está a idéia de que os índios em algum tempo não necessitarão mais sequer serem chamados de índios, porque estarão integrados à sociedade nacional, então as garantias a seus direitos estarão equiparadas às garantias de todos os outros cidadãos, e suas terras deixarão de ser suas, para serem devolvidas ao domínio público como terras da União. 186 Não é à toa que foi tão fácil desvirtuar o Estatuto do Índio. Só com um esforço hermenêutico interdisciplinar muito grande para interpretá-lo a favor dos povos indígenas. A partir de tantos problemas conceituais, o estatuto foi mais uma arma do senso comum e de interesses políticos para atropelar os direitos indígenas. Na seção 3.3 deste capítulo, damos alguns exemplos sobre como esse ponto específico da lei é mal interpretado por diversos juízes, que – apesar de terem a obrigação de se diferenciarem do senso comum – realmente acreditam que existe uma fronteira que o indígena cruza ao aprender o português e utilizar roupas, só para citar os argumentos mais recorrentes 184 MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Tutela aos índios: proteção ou opressão? In: SANTILLI, Juliana (Coord.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Núcleo de Direitos Indígenas e Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, pp. 306-307. 185 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1993, p. 307-308. 186 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1993, pp. 306-307. 67 entre os magistrados, o que o torna “integrado” automaticamente e elimina seus direitos diferenciados. Para Oliveira, basta focalizar em dois pontos do Estatuto para lembrar da instituição da tutela: a visão do indígena como transitória, “o índio só é protegido e reconhecido enquanto em marcha para o ‘não índio’”, objetivando-se uma aculturação sem traumas (!); e o outro ponto é relativo ao Estatuto só reconhecer a propriedade para o índio integrado e apenas individualmente, as comunidades não teriam direito à propriedade, que seria da União. 187 Eduardo Viveiros de Castro critica a FUNAI que, para ele, tem como conceito de integração justamente o do senso comum, de que falam o português, usam roupas e estão no mercado de trabalho brasileiro. Ele ainda diz ferinamente: Se por “integração”, entendermos, porém, o fato de que as terras que lhes restam estão invadidas ou são objeto de cobiça incontrolável de fazendeiros, madeireiros e grandes empresas angroindustriais; que suas condições econômicas são miseráveis; que sua possibilidade de representação política é nula – bem, aí será preciso reconhecer que de fato estes são “índios integrados”: são mesmo bem brasileiros. 188 Agostinho explica que a terra indígena não é só uma mercadoria, é um território, ou seja, uma dimensão espacial sem a qual a viabilidade de uma população humana socialmente organizada é impensável. O território é fator básico do meio de produção e de reprodução material e simbólica dessas minorias étnicas e não pode ser arbitrariamente fragmentado. É essa realidade e unidade territorial que a lei assegura, ao determinar a inalienabilidade das suas terras e permitir a vigência, nelas, do direito comunitário dos índios. E ao obrigar o órgão de tutela à defesa dos direitos reais dos indígenas quanto às terras estipuladas como deles, sem que nessa obrigação influa o grau de integração (Estatuto do Índio, arts. 34 a 36; 17; 2º., II). 189 A partir dos anos 1960, as Nações Unidas dedicaram mais atenção às minorias. Em 1977, a Conferência Internacional sobre Discriminação conta as Populações Indígenas das Américas, realizada em Genebra, elaborou um documento que declarava, sobre os direitos territoriais: “Nenhum estado pode reivindicar ou possuir, por direito de descoberta ou outro, os territórios de uma nação ou grupo indígena, exceto quando as 187 OLIVEIRA, pp. 25-26. CASTRO, Eduardo Viveiros de. Índios, leis e políticas. In: SANTOS, 1982, p. 33. 189 AGOSTINHO, pp. 63-64. 188 68 terras tenham sido legalmente adquiridas”. Em 1982, uma Comissão Jurídica da ONU declarou que: A Comissão reafirma que os povos indígenas [...] têm o direito natural e original de viver livremente em seus próprios territórios. Reiteradas vezes foi dito que a estreita relação que os povos indígenas mantêm com a terra deveria ser compreendida como a base fundamental de suas cultuas, sua vida espiritual, sua integridade enquanto povos e sua sobrevivência econômica. 190 As medidas protecionistas do Estado, por meio da FUNAI, foram bem definidas na parte referente às terras indígenas: 22 dos 68 artigos do Estatuto estão diretamente relacionados a isso. João Pacheco de Oliveira lamenta, por outro lado, que a existência da lei não foi garantia de sua aplicação: É ponto pacífico entre indigenistas e antropólogos que o Estatuto do Índio não tem sido aplicado como deveria. Mas considerando o contexto histórico e a função que assumiu, cabe indagar se isso era efetivamente uma preocupação central para os que o elaboraram e aprovaram. O pouco que chegou a ser realizado decorre, sem dúvida, do ânimo de alguns funcionários que tentaram acelerar as demarcações, elevar o nível técnico dos quadros e imprimir novas metas aos projetos. 191 Com todos esses problemas poderíamos pensar que o Estatuto do Índio não foi recepcionado pela Constituição de 1988, mas a verdade é que não houve revogação expressa e ele continua sendo utilizado por ampla parte dos magistrados, inclusive com seus conceitos desvirtuados de integração e de emancipação. Alguns autores se questionam se parte do estatuto não foi recepcionada, especialmente quanto à questão da integração e da tutela, mas chegam à conclusão de que esses conceitos do Estatuto do Índio ganharam nova interpretação com a Constituição de 1988. Marés de Souza Filho acredita que a Constituição exige a proteção dos bens indígenas pelo Estado e, em sua opinião, “essa proteção pode ser efetivada pelo caminho do regime tutelar exposto no Código Civil [de 1916] e regulamentado pelo Estatuto”. Também foi recepcionada, segundo ele, a norma que dá a administração do patrimônio indígena à FUNAI – e é realmente o que podemos ver na prática. Sua ressalva sobre os abusos que esse tipo de tutela possibilita é de que, se eram ilegais, 190 191 CUNHA, 1987, pp. 121-122. OLIVEIRA, pp. 21-22. 69 agora são inconstitucionais. Apesar disso, o jurista considera que a norma do estatuto recepcionada é insuficiente: Em primeiro lugar deve-se retomar a definição de 1928, afastando desde logo a tutela orfanológica e qualquer menção ou aplicação, mesmo que subsidiária, da legislação privada,deixando claro que aqui não se trata de Direito Privado de Família, e, sim, de Direito Público. Em segundo lugar, deve ser entregue a administração dos bens aos próprios índios, segundo seus usos, costumes e tradições, mantendo a intervenção do Estado sempre que houver negócio jurídico com não índios, mas agregando a responsabilidade objetiva do Estado sempre que, em havendo sua participação, houver prejuízo ao patrimônio indígena. 192 Para Alvaro Reinaldo de Souza, a tutela especial do Estatuto do Índio, aplicada pelo Estado por meio da FUNAI, foi exercida como representação, e não como assistência aos povos indígenas, ou seja, na tentativa permanente de substituir a vontade do índio. Ele afirma que, ainda por cima, a assistência da FUNAI foi fraudada, porque não só tomou o lugar dos indígenas nas suas decisões, mas também foi realizada contra a sua vontade. É dessa forma que o autor conclui que a tutela não garantiu o exercício dos novos direitos constitucionais dos povos indígenas, “porque praticada pelo órgão dito tutor, em nome do Estado brasileiro, não como assistência, mas como representação, substituindo-se à vontade dos índio”. 193 A interpretação de Reinaldo de Souza é de que o tipo de tutela apresentado no Estatuto do Índio foi derrogado pela Constituição Federal de 1988: “Em resumo, a tutela especial foi derrogada pelo texto constitucional, mas subsiste a obrigação da assistência pelo órgão tutor”. 194 Em outras palavras, ele concorda com o autor Marés de Souza Filho, quando este assevera que a tutela não pode ser pensada simplesmente como a coloca o Estatuto do Índio, como tutela do direito privado, ou seja, a antiga tutela orfanológica, estabelecida no Código Civil, mas com a nova linha conceitual estabelecida pela Constituição de tutela como proteção. A despeito de tudo que foi dito, é perigoso dizer que a tutela deve ser extinta. Muitos setores da sociedade, em especial os formados pela elite, podem se aproveitar do discurso da necessidade de um outro tipo de tutela, como defendem juristas e antropólogos especialistas no assunto – para dizer que a tutela é uma injustiça, um 192 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, p. 108. REINALDO DE SOUZA, Alvaro. Os povos indígenas: minorias étnicas e a eficácia dos direitos constitucionais no Brasil. Florianópolis, 2002. Tese (Doutorado). UFSC, Centro de Ciências Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito, p. 114. 194 REINALDO DE SOUZA, p. 114. 193 70 absurdo – e conseguir acabar com o tipo de proteção especial que necessitam os povos indígenas. O Instituto Sócio Ambiental, em reunião realizada no ano de 1999 para pensar uma nova política indigenista, concorda que a tutela não deve substituir a vontade dos indígenas e acredita que melhor palavra para defini-la seria fomento: Às vésperas do terceiro milênio, soa ridículo que índios sejam considerados “relativamente capazes” e, sobretudo, que um órgão de estado seja tutor das 215 etnias que habitam o território brasileiro, intermediando (autorizando e desautorizando) as inúmeras relações de contato em que se encontram envolvidas. Por outro lado, a condição de tutelados cerceia a sua livre expressão política, a administração direta dos seus territórios, o seu acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho, às linhas oficiais de crédito, etc. Além de reduzir a capacidade civil dos índios, a tutela é um obstáculo à autogestão das terras e dos projetos de futuro dos povos indígenas. A “proteção” da tutela deve ser substituída por outros instrumentos de apoio o poder público aos povos indígenas. O Estado não deve pretender substituí-los como sujeitos políticos no exercício direto dos seus direitos e das suas relações. Um novo estatuto deve regular estas relações e ao Estado deve caber o papel de viabilizar serviços básicos (educação, saúde) e fomentar os projetos culturais, econômicos, ambientais indígenas. O conceito de fomento é muito mais apropriado que o de tutela para definir o papel atual e futuro que os povos indígenas devem reivindicar do Estado. 195 O antropólogo Rafael José de Menezes Bastos aponta, com razão, que os índios é que devem ser ouvidos para melhor encaminhar a questão: Pergunte-se a qualquer um deles por que não requerem sua emancipação, por mais conhecedores que sejam dos códigos nacionais brasileiros. A resposta aqui terá fatalmente a evidenciar que, operacionalmente, sem a tutela (leia-se assistência), deixam eles de ser índios para o Indigenismo Oficial, prejudicada, assim, a estratégia fundamental de, sendo brasileiros, continuarem Xavantes, Parecis, Terenas, etc., etc. O qual tal resposta estabelece é exatamente a tutela como um instrumento de finalidade dupla para o índio: continuar índio e ser brasileiro. 196 Conclui-se que se o Estatuto do Índio for interpretado em favor dos povos indígenas, com a nova linha conceitual trazida pela Constituição 197 (entendendo, portanto, que integração não é aculturação, mas uma forma de interação de cada grupo indígena com a sociedade envolvente, interação que não desmerece a cultura indígena 195 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, março de 1999, Programas Regionais para uma Nova Política Indigenista. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/inst/docs/download/rtf/prog_reg.pdf>, grifado. 196 BASTOS, Rafael José de Menezes. Sobre a noção de tutela dos povos e indivíduos indígenas pela União. In: SANTOS, 1982, p. 56. 197 Essa linha conceitual será melhor desenvolvida no próximo item. 71 nem a enfraquece), pode ser considerado recepcionado e, portanto, vigente, inclusive quanto à tutela, que deve ser entendida como proteção dos direitos indígenas, e não como um instituto do direito privado que visa suprir a incapacidade civil, o que faria da tutela um meio de controle, opressão e desvalorização. Assim, a tutela, se utilizada como garantia dos direitos dos índios, não deve ser extinta – ela apenas precisa mudar de nome e de tática, de modo a ser um instrumento de proteção e de eficácia dos seus direitos diferenciados. Para isso, o Estado deve deixar de utilizar a tutela como meio de controle da voz indígena, para que ela seja a segurança de que a sociedade brasileira irá sempre ouvir o que os mais de duzentos povos dentro dela têm a dizer. 3.2 As mudanças trazidas pela Constituição Federal de 1988 A Constituição de 1988 inova a matéria dos direitos indígenas com dois artigos inseridos dentro do seu capítulo VIII, “Dos Índios”: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. §1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. §2º. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. §3º. O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. §4º. As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. §5º. É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. §6º. São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. §7º. Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. 72 Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. 198 Outros artigos também são importantes, como o da competência da Justiça Federal para processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas (art. 109. XI); a responsabilidade do Ministério Público Federal de defender judicialmente os direitos indígenas (art. 129, V); sobre o ensino fundamental, deve ser respeitada a escolha das comunidades indígenas à utilização de suas línguas maternas e a processos próprios de aprendizagem (art. 210, §2º.); e sobre o exercício dos direitos culturais, o Estado deve proteger as manifestações das culturas indígenas (art. 215, §1º.). Mantém-se a competência da união para legislar sobre as populações indígenas (art. 22, XIV); é estabelecida a competência exclusiva do Congresso Nacional para autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais (art. 49, XVI); e é fixado, mas uma vez, o prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras indígenas (art. 67), como havia feito o Estatuto do Índio. 199 A Constituição de 1988 é considerada um marco dos direitos indígenas brasileiros. Com ela, é supostamente inaugurada uma nova fase desses direitos, uma nova linha teórica, conceitual e hermenêutica. Para Marés: A Constituição de 1988 reconhece aos índios o direito de ser índio, de manter-se como índio, com sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Além disso, reconhece o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Esta concepção é nova, e juridicamente revolucionária, porque rompe com a repetida visão integracionista. A partir de 5 de outubro de 1988, os índios, no Brasil, têm o direito de serem índios. 200 Reinaldo de Souza também considera que a nova Constituição suprimiu o caráter integracionista da legislação e da política indigenista oficial: “O objetivo de incorporar os índios cedeu seu lugar ao de lhes garantir respeito por suas formas culturais próprias, assumindo que a diversidade cultural protagonizada pelas sociedades indígenas constitui patrimônio cultural brasileiro (art. 216, CF)” 201 . Além disso, Reinaldo afirma que a tutela foi derrogada no que concerne a seu exercício em juízo, 198 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. 199 Id., Ibd. 200 MARÉS DE SOUZA FILHO, 1993, p. 310. 201 REINALDO DE SOUZA, pp. 194-195. 73 uma vez que o Ministério Público passou a ter a função institucional de defender em juízo os interesses das populações indígenas (art. 129, V, CF) e os próprios, suas comunidades e organizações também são partes legítimas para ingressar no Judiciário em defesa de seus direitos (art. 232). Pelo texto constitucional, a FUNAI pode ser admitida como litisconsorte ou ser chamada aos autos para assistência e sua tutela fica nos limites da assistência, ou seja, de tutela extrajudicial, com a prerrogativa de instituir a política indigenista, desde que sem substituir a vontade dos indígenas. O jurista Pinto Ferreira analisa os direitos dos índios e afirma que eles dizem respeito a cada índio como membro de uma coletividade, ou seja, têm natureza de direito comunitário. Isso é o que demonstra o texto constitucional ao atribuir aos índios e às suas comunidades, assim como às organizações pró-índios, a legitimação ativa para sua defesa em juízo: Verifica-se destarte que o legislador constituinte atribuiu capacidade processual ao índio, às suas comunidades e organizações. Entretanto as nações indígenas não são pessoas jurídicas e sim comunidades de organizações de classe. Mas de acordo com a Constituição são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. 202 Por conseqüência do art. 25 do Estatuto do Índio, a FUNAI também teria legitimidade para agir em defesa dos índios. Mas a CF de 1988 deu nova rota à matéria, segundo Pinho, determinando que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para o ingresso em juízo na defesa dos seus direitos e interesses, sempre com a interveniência do MPF – e que isso significa que a Constituição determinou que os indígenas não são mais relativamente incapazes: Portanto os índios não são mais incapazes, visto que o CPC determina que só é capaz quem tem capacidade de estar em juízo (art. 7º.), e que “os incapazes serão representados ou assistidos por seus pais, tutores ou curadores, na forma da lei” (art. 8º). 203 Para Silvio Coelho dos Santos, era preciso que a Constituição de 1988 garantisse a diversidade étnica e cultural do país e explicitasse a autonomia das minorias indígenas, o que não foi feito: 202 203 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo (SP): Saraiva, 1989, p. 452. FERREIRA, p. 453. 74 Isso poderia ter sido expresso da seguinte forma: o Brasil é uma República Federativa multiétnica e plurissocietária, constituída, sob regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios Nacionais, que reconhecem a autonomia das sociedades indígenas que imemorialmente estão localizadas em seu território, garantindo-lhes reconhecimento, solidariedade, proteção e relacionamento político simétrico. [...] Nos dispositivos referentes à organização territorial do Estado, deveria ser explicitado que o Estado brasileiro se organiza através dos Estados federados, dos Territórios, do Distrito Federal e de comunidades indígenas, resguardando-se a essas últimas autonomia para a gestão de seus respectivos interesses. 204 A Constituição admite, todavia, no seu art. 216, que a sociedade brasileira foi formada por diferentes grupos, cujos bens materiais e imateriais são patrimônio cultural. Poderia ser dito que basta o art. 231 para que seja reconhecido o caráter multiétnico do país, mas, mesmo que esse artigo tenha sido um avanço, a verdade é que a Constituição foi tímida para reconhecer o caráter plurinacional do Brasil. Marés diz que os artigos 210, §2º., 215, §1º. e 231 são os “dispositivos que elevam à categoria de direitos a diferença cultural e lingüística dos povos indígenas”, mas ainda assim não reconhecem de modo preciso, para esse autor, a diversidade cultural e étnica da nação brasileira. “Reconhecer a diversidade cultural e étnica de forma integral, sem restrições, seria dar igual status às diversas culturas diferenciadas e à cultura ‘nacional’ brasileira”. 205 Não foi também expressamente reconhecida a autodeterminação dos povos indígenas nem foram utilizados esses termos: “povo” e “autodeterminação”, da mesma forma que no Estatuto do Índio, como discutimos antes, mesmo que uma maior autonomia tenha sido alcançada constitucionalmente em 1988. A maior autonomia se percebe, por exemplo, quando a Constituição garante a defesa em juízo dos direitos coletivos dos povos indígenas. Marés de Souza Filho assevera que o art. 232 “é uma expressa autorização para o indivíduo índio, em nome próprio, postular direito coletivo, alheio, da comunidade, sociedade ou povo a que pertença”. Marés explica que ainda têm sido utilizada a via da ação civil pública, mas a Constituição alarga as possibilidades de demanda e não seria seu objetivo indicar restrições e formalidades, já que ela mesma reconhece a organização social das comunidades indígenas. 206 204 SANTOS, Silvio Coelho. Os povos indígenas e a constituinte. Florianópolis: Ed. da UFSC, Movimento, 1989, p. 8. 205 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, p. 158. 206 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, p. 156. 75 Marés destaca que o direito reconhece, com a Constituição, a capacidade civil da comunidade indígena, ou seja, a comunidade indígena tem capacidade de ser titular de direitos, inclusive da propriedade. Ele ensina que, pela primeira vez, a lei reconheceu que os povos indígenas são “coletivos”. Para Marés, os direitos coletivos dos povos indígenas podem ser divididos em três categorias ligadas entre si: os direitos territoriais, os direitos culturais e os direitos de auto-organização. Os direitos territoriais permitem que se reproduza a cultura; os culturais são a essência do povo; e os de auto-organização são a garantia do estabelecimento de poderes internos de representação, mantêm a cultura viva e preservam o território. 207 A opinião de José Afonso da Silva é de que a Constituição de 1988 protege o interesse dos índios em um limite razoável: “Não alcançou, porém, um nível de proteção inteiramente satisfatório. Teria sido assim, se houvera adotado o texto do Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, reconhecidamente mais equilibrado e mais justo”. 208 No capítulo específico dos índios, esse anteprojeto referia-se a “populações indígenas” e demonstrava expressamente compreender melhor o conceito de integração, sem vinculá-lo à aculturação. Isso se percebia com o primeiro artigo desse capítulo, que reconhecia as “populações indígenas como parte integrante da comunidade nacional”, mesmo que garantindo a “proteção destas populações e de seus direitos originários” 209 . A despeito disso, Afonso da Silva assevera que a Constituição deu um largo passo na questão indígena. Mesmo que tenha recusado o emprego da expressão “nações indígenas, baseada na falsa premissa e no preconceito de que nação singulariza o elemento humano do Estado ou se confunde com o próprio Estado”. Essa idéia, para o jurista, está “há muito superada, quer porque se verificou que existem Estados multinacionais ou multiétnicos, que dá na mesma, quer porque existe Estado sem nação (o Vaticano) e até porque pode existir nação sem Estado”, como os palestinos. Ele ensina: Por quê? Porque, para além desses fatores, há outro mais forte que é o sentimento de pertinência nacional que solidifica uma comunidade de destino político. Por isso, é que os suíços de origem alemã, como os de origem italiana e francesa, são de nacionalidade suíça pelo sentimento de pertinência à comunidade nacional da Suíça, sem prejuízo do sentimento de pertinência a 207 MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, pp. 182-185. AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 853. 209 BRASIL. Anteprojeto Constitucional. Elaborado pela Comissão Provisória instituída pelo Decreto 91.450, de 18 de julho de 1985. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/publicacoes/anais/constituinte/AfonsoArinos.pdf>. 208 76 uma específica comunidade cultural (alemã, italiana e francesa). Por tudo isso também é que ficou inteiramente superado o incorreto conceito de Estado como nação politicamente organizada. 210 Ele continua, afirmando que o conceito de nação de Pasquale Mancini pode ser aplicado às comunidades indígenas. Citando o autor de direito internacional, para quem nação “é a reunião em sociedades de homens [‘seres humanos’, quer ele dizer], na qual a unidade de território, de origem, de costumes, de língua e a comunhão de vida criaram a consciência social”, Afonso da Silva diz que “então se pode falar em nações indígenas”. 211 Mesmo não sendo um antropólogo de formação, José Afonso da Silva traz os conceitos antropológicos do que é ser índio, esclarece para todos que “é índio quem se sente índio” e dá a seguinte lição: Essa auto-identificação, que se funda no sentimento de pertinência a uma comunidade indígena, e a manutenção dessa identidade étnica, fundada na continuidade histórica do passado pré-colombiano que reproduz a mesma cultura, constituem o critério fundamental para identificação do índio brasileiro. Essa permanência em si mesma, embora interagindo um grupo com outros, é que lhe dá a continuidade étnica identificadora. Ora, a Constituição assume essa concepção, p. ex., no art. 231, §1º., ao ter as terras ocupadas pelos índios como “necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. A identidade étnica perdura nessa reprodução cultural, que não é estática; não se pode ter cultura estática. Os índios, como qualquer comunidade étnica, não param no tempo. A evolução pode ser mais rápida ou mais lenta, mas sempre haverá mudanças e, assim, a cultura indígena, como qualquer outra, é constantemente reproduzida, não igual a si mesma. Nenhuma cultura é isolada. Está sempre em contacto com outras formas culturais. A reprodução cultural não destrói a identidade cultural da comunidade, identidade que se mantém em resposta a outros grupos com os quais dita comunidade interage. Eventuais transformações decorrentes do viver e do conviver das comunidades não descaracterizam a identidade cultural. Tampouco a descaracteriza a adoção de instrumentos novos ou de novos utensílios, porque são mudanças dentro da mesma identidade étnica. 212 Ou seja, a interação dessas comunidades não destrói sua identidade cultural, mesmo que sua cultura se transforme, porque todas as culturas se transformam. A ressignificação cultural não implica necessariamente em descaracterização cultural. João Francisco Kleba Lisboa explica que o art. 231 deu aos povos indígenas o direito à diferença cultural: 210 AFONSO DA SILVA, p. 854. AFONSO DA SILVA, pp. 854-855. 212 AFONSO DA SILVA, pp. 855-856, grifado. 211 77 Isso deve ser lido como o reconhecimento do direito constitucional dos índios à diferença cultural e lingüística, o que marca um novo posicionamento do Estado em relação às sociedades indígenas. O que fica reconhecido é o direito destas a permanecerem vivendo de forma diferente da chamada “sociedade nacional”, de acordo com suas especificidades étnicas e culturais. 213 Para ele, agora os índios deixam de ser vistos como “atrasados” e “inferiores”, porque têm agora o direito à diferença: “Rompe-se, assim, com o projeto estatal brasileiro de integrar os índios à comunhão nacional, que vigorava até então baseado em uma perspectiva assimilacionista e etnocêntrica”. 214 E esse direito à alteridade só pode ser efetivado por meio dos direitos territoriais, como sabiamente explica Afonso da Silva: ele afirma que a questão das terras é o ponto central dos direitos constitucionais dos índios “pois, para eles, ela tem um valor de sobrevivência física e cultural”.215 Sem suas terras, a cultura dos povos indígenas não pode ser mantida, porque sua cosmologia é essencialmente ligada à natureza. Há muitos que, apesar disso, alertam para a quantidade de terras que os índios podem reivindicar. Manoel Gonçalves Ferreira Filho preocupa-se com o fato de a Constituição ter dado atenção excessiva para a questão das terras indígenas, mesmo que, na sua opinião, as Constituições sucessivamente tenham reduzido as áreas passíveis de serem indígenas: Pode parecer injusto que de Constituição para Constituição se reduza a área reservada ao indígena. Entretanto, tem a Lei Magna de escolher entre a proteção deste, cuja cultura condena à desaparição – salvo nos parques em que os antropólogos querem fechá-los como se fossem animais raros – e a necessidade de expansão econômica – esta mesma imposta pelo crescimento demográfico – do país; claro está que optará pelos interesses da comunidade brasileira toda inteira. Mesmo porque o índio pode vir a integrá-la. 216 Essa argumentação tem tantos problemas que somente alguns serão abordados. A começar pela sugestão ilusória de que a expansão econômica é um interesse da comunidade brasileira toda inteira: já estamos cansados de ver como o crescimento 213 LISBOA, João Francisco Kleba. O Direito perante o índio: terras indígenas, ocupação tradicional e alteridade no ordenamento jurídico brasileiro. Florianópolis. 62 p. Monografia (Bacharel em Direito). UFSC, 2008, pp 17-18. 214 LISBOA, p. 18. 215 AFONSO DA SILVA, p. 856. 216 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 118, grifado. 78 econômico do nosso país nada tem a ver com a distribuição de renda, na qual somos um dos piores do mundo. De qualquer forma, de que maneira estaria o índio a atravancar essa expansão? Os povos indígenas somam menos de 1% da população brasileira, estão em pleno crescimento vegetativo, é verdade, mas nada que vá ameaçar as tão necessárias terras do latifúndio agrícola. A questão a ser colocada, de verdade, é a seguinte: por que as terras mais preciosas são as ocupadas por indígenas? Se as terras indígenas totais somam 12,5% 217 , e se há ainda quantidade inestimável de terra a ser ocupada para quaisquer fins monopolistas a que a “sociedade brasileira” estima, por que tanta briga pelas terras dos índios? Há que se perguntar se não existe, acima de tudo, um etnocentrismo que impregna todos os setores do poder e da elite brasileiros, ou mesmo uma vontade de etnocídio, para ansiar sempre pelas terras daqueles que menos as têm. Isso faz lembrar de uma citação trazida por Ella Shohat e Robert Stam do ex-presidente norte-americano Andrew Jackson, que, com o mesmo espírito “progressista”, justificou a guerra contra os índios: Que bom homem preferiria um país coberto de florestas e alguns milhares de selvagens à nossa república, repleta de cidades grandes e pequenas, fazendas prósperas [e] ocupadas por mais de 12 milhões de pessoas felizes, que aproveitam todas as bênçãos da liberdade, civilização e religião? 218 Os autores Shohat e Stam explicam que um discurso utilizado pelos europeus – e pelos brasileiros, como podemos ver – para justificar o colonialismo e o racismo virou senso comum. O colonialismo e o racismo são aliados que utilizam várias técnicas para estigmatizar a diferença com o propósito de justificar vantagens injustas e abusos de poder de natureza econômica, política, cultural e psicológica (também pode acontecer o contrário: estigmatiza-se, muitas vezes, a igualdade – “todos são iguais”, para manter as desigualdades de todos os tipos). O discurso eurocêntrico é a tentativa de reduzir a diversidade cultural a apenas uma perspectiva paradigmática, que vê a Europa como a origem única dos significados. Surgiu como discurso de justificação do colonialismo, como um discurso naturalizante (que finge que não é discurso) e normaliza relações de hierarquia geradas pelo colonialismo e pelo imperialismo, como uma epistemologia 217 218 No Capítulo 1, encontram-se mais dados sobre o assunto. SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosacnaify, 2006, p. 129. 79 oculta, colocando o ocidente como centro do mundo e origem da história. 219 Por isso Ferreira Filho fala que os índios vão desaparecer e vão se integrar e que eles não podem atrapalhar o desenvolvimento econômico “tão bom para a maioria do país”, quando na verdade isso é uma justificativa da elite para manter-se como elite. Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins são partidários do mesmo pensamento de Ferreira Filho, e parecem estarrecidos que a Constituição tenha reservado tanta terra (eles mencionam dez por cento) a tão poucos brasileiros (que eles aduzem ser 250 mil). Para eles, isso também é culpa dos antropólogos, que querem que os índios sejam “preservados em seu atraso civilizacional”. 220 Parece que a maioria dos juristas constitucionais concorda com essa linha de Bastos, Gandra Martins e Ferreira Filho. Cretella cita Carlos Maximiliano, para afirmar que não se poderia dar efeito retroativo sem limite no tempo à proteção possessória em favor dos índios, pois isso importaria devolver todo o território nacional aos silvícolas que são, hoje, a continuação na história das tribos aqui vivendo. 221 Ora, moralmente falando, errado foi tomar a terra dos povos que aqui moravam – o errado não seria pensar em devolvê-lo; não que sequer seja isso que os povos indígenas hoje querem. Mas é interessante observar como os argumentos são desvirtuados inclusive na doutrina e como o senso comum toma àqueles mais renomados constitucionalistas. Há um doutrinador que discorda de todos esses. José Afonso da Silva cita Manuela Carneiro da Cunha para esclarecer que o núcleo da questão indígena hoje no Brasil é justamente a disputa sobre as terras indígenas e suas riquezas. Para ele, por isso mesmo, a Constituição “buscou cercar de todas as garantias esse direito fundamental dos índios”. Em primeiro lugar, é declarado que essas terras são bens da União (art. 20, XI), o que já era realidade constitucional. Afonso da Silva explica que essa outorga cria propriedades reservadas, que são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis. O jurista ainda ensina que os direitos originários dos indígenas sobre 219 Na Introdução, há também uma argumentação sobre o assunto, especificamente sobre o discurso etnocêntrico no Brasil. 220 BASTOS, Celso Ribeiro; e MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 1118. 221 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 4564. 80 essas terras, reconhecidos pela Constituição (art. 231), consagram um conceito que tem origem no instituto do indigenato 222 . 223 Afonso da Silva reforça o conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, que se encontra no art. 231, §1º., com quatro condições: 1) habitadas em caráter permanente; 2) utilizadas para suas atividades produtivas; 3) imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; 4) necessárias a sua reprodução física e cultural, com uma ressalva apontada pelo constitucionalista: [...] tudo segundo seus usos, costumes e tradições, de sorte que não se vai tentar definir o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso gosto, mas segundo o modo de ser deles, da cultura deles. 224 Ele continua, desenvolvendo os conceitos de posse permanente dos §§1º. e 2º. do art. 231, diferenciando essa posse das terras ocupadas tradicionalmente pelos índios daquela regulada pelo Código Civil. A posse das terras indígenas é baseada no indigenato, no direito de ocupação que já tinham os índios antes da chegada dos europeus, no seu direito originário, que seria o ius possidendi, como explica o doutrinador. Afonso da Silva aponta, assim, que a relação entre o indígena e suas terras não se rege pelas normas do direito civil: Sua posse extrapola da órbita puramente privada, porque não é e nunca foi uma simples ocupação da terra para explorá-la, mas base de seu habitat, no sentido ecológico de interação do conjunto de elementos naturais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida humana. Esse tipo de relação não pode encontrar agasalho nas limitações individualistas do direito privado, daí a importância do texto constitucional em exame, porque nele se consagra a idéia de permanência, essencial à relação do índio com as terras que habita. 225 Para Marés, a solução jurídica da Constituição de 1988 sobre a questão das terras buscou esconder um direito ainda mais profundo dos povos: Esta solução jurídica encontrada tem coerência com o sistema, mas esconde a realidade de um direito muito mais profundo dos povos, que é o direito ao território. O território não se pode confundir com o conceito de propriedade 222 Conceito desenvolvido por Mendes Júnior – conforme explicado no Capítulo 2. AFONSO DA SILVA, p. 856. 224 AFONSO DA SILVA, p. 857. 225 AFONSO DA SILVA, pp. 859-160. 223 81 da terra, tipicamente civilista; o território é jurisdição sobre um espaço geográfico, a propriedade é um direito individual. 226 Mas é para reconhecer esse direito, que é anterior à própria lei, o direito originário, que serve a demarcação de terras do art. 231. Afonso da Silva, afirma que não é da demarcação de terras (art. 231) que decorrem os direitos indígenas, ela não é título de posse nem de ocupação, apenas está constitucionalmente exigida no interesse dos índios: “É uma atividade da União, não em prejuízo dos índios, mas para proteger seus direitos e interesses”. 227 A demarcação de terras indígenas é regulada pelo Decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996. Raimundo Sergio Barros Leitão elucida que a demarcação de uma terra indígena é apenas o reconhecimento do Estado da extensão da terra indígena. 228 A própria lei traz esse entendimento, já que no seu art. 2º. estabelece que: “§10º. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá: I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação” 229 . 230 No site da FUNAI 231 , temos uma explicação sobre as fases da demarcação, que na verdade é o processo de regularização da situação fundiária da terra indígena. O site faz referência também à Portaria nº. 14 do Ministério da Justiça, de 9 de janeiro de 1996 232 , que estabelece regras sobre o relatório circunstanciado de identificação e delimitação das terras indígenas. O início do processo é com a identificação e delimitação das terras, feitos por um grupo técnico, que estará em contato direto com o grupo indígena: Os estudos antropológicos e os complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário, realizados nesta fase, deverão caracterizar e fundamentar a terra como tradicionalmente ocupada pelos índios, conforme os preceitos 226 MARÉS, 2000, p. 122. AFONSO DA SILVA, p. 862. 228 LEITÃO, Raimundo Sergio Barros. Natureza jurídica do ato administrativo de terra indígena – a declaração em juízo. In: SANTILLI, p. 67. 229 BRASIL, Decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm>, grifado. 230 Para saber mais sobre as questões problemáticas sobre a mineração e a construção de hidrelétricas, entre outros interesses capitalistas, nas terras indígenas, fazemos referência ao Mapa da Injustiça Ambiental, trabalho desenvolvido por Fiocruz e Fase, disponível em: <http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php>. 231 FUNAI, site, “Como é feita a demarcação?”. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/indios/terras/conteudo.htm#como>. 232 Disponível em: <http://www.funai.gov.br/quem/legislacao/pdf/Portaria_FUNAI_n14_de_09_01_1996.pdf>. 227 82 constitucionais, e apresentar elementos visando à concretização das fases subseqüentes à regularização total da terra. É com base nestes estudos, que são aprovados pelo Presidente da FUNAI, que a área será declarada de ocupação tradicional do grupo indígena a que se refere, por ato do Ministro da Justiça - portaria declaratória publicada no Diário Oficial da União reconhecendo-se, assim, formal e objetivamente, o direito originário indígena sobre uma determinada extensão do território brasileiro. 233 Após a aprovação pelo Ministério da Justiça, a terra é declarada de ocupação tradicional do grupo indígena “especificado, indicando a superfície, o perímetro e os seus limites”. E em seguida é determinada sua demarcação física, quando “se materializam, em campo, os limites da terra indígena, conforme determinado na portaria declaratória expedida pelo Ministério da Justiça”. Depois disso, ocorre a homologação, que é a confirmação dos limites demarcados por meio da expedição de um decreto do Presidente da República. O fim do processo de regularização se dá com o seu registro no Cartório de Registro de Imóveis de onde o imóvel está situado e na Secretaria de Patrimônio da União do Ministério da Fazenda. 234 A delimitação de espaços de terra para uma comunidade indígena pode ser, entretanto, muito problemática. Muitos povos sempre tiveram, como parte de sua cosmologia, a prática de mudar de lugar quando fosse necessário para preservar a natureza e, também, de acordo com a religião. Os Guarani, em especial, como veremos no capítulo seguinte, tinham uma mobilidade significativa até a chegada dos europeus e, depois, até a fixação dos não-índios em propriedades privadas. À procura da “Terra Sem Mal”, eles iam em busca da imortalidade em vida, mas agora estão presos a pequenos pedaços de chão. 235 Outro problema que encontram, assim como muitos outros povos, é a revisão dos limites da demarcação, em decorrência do aumento demográfico. Na aldeia de M’Biguaçu (Biguaçu – Santa Catarina), os Guarani contam que à época da demarcação não lhes foi esclarecido o tamanho exato da aldeia, que hoje é muito pequena para a comunidade, impedindo que vivam conforme sua cultura, já que não há, sequer, espaço para plantação. Na aldeia de Morro dos Cavalos, os Guarani estão à espera da demarcação física do espaço já delimitado, ou seja, da retirada de não-índios de suas 233 FUNAI, site, “Como é feita a demarcação?”. Id., Ibd. 235 QUEZADA, Sergio Eduardo Carrera. A terra de Nhanderu: organização sociopolítica e processos de ocupação territorial dos Mbyá-Guarani em Santa Catarina, Brasil. Florianópolis. 161 f. Dissertação (Mestrado) Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. UFSC, 2007, p. 7. 234 83 terras. Enquanto isso, ficam limitados ao pequeno espaço íngreme de um morro, onde é impossível plantar e difícil morar. 3.3 O Código Civil, o etnocentrismo da doutrina e da jurisprudência e a necessidade de um novo Estatuto do Índio A Constituição traçou uma nova linha teórica para os direitos indígenas, mas seus conceitos estão sendo utilizados? Já demonstramos na seção anterior a opinião de alguns constitucionalistas, que, mesmo depois da Constituição, ainda reproduzem a visão integracionista do Estatuto do Índio. Aqui se coloca uma questão interessante, que talvez seja respondida de forma mais completa no capítulo seguinte: qual a afirmativa correta “a lei é o próprio senso comum de uma sociedade” ou “o senso comum de uma sociedade pode se formar a partir de uma lei”? O que acontece com o Estatuto do Índio parece ser precisamente isso. Para aqueles que estudam especificamente os direitos indígenas, inclusive num âmbito internacional, está mais do que superada a idéia de que os povos indígenas vão desaparecer – e é preciso, portanto, proteger os seus direitos. Apesar disso, por interesses capitalistas dos poucos que controlam o poder, ainda permanece um discurso etnocentrista que faz pensar que os valores mais importantes são os da economia, do progresso, do capitalismo. E, para esses donos do poder, povos como os indígenas são um empecilho. Isso é assunto para um debate muito mais profundo, mas aqui se coloca esse conflito para pensarmos sobre a urgência de promulgar-se um novo estatuto dos povos indígenas. Enquanto isso não acontece, é preciso deixar muito claro que a visão integracionista do Estatuto do Índio não foi recepcionada pela Constituição de 1988 e tampouco a sua tutela, do modo como é apresentada na lei. Enquanto isso não acontece, ainda vemos uma infinidade de doutrinadores e de juízes que reproduzem para todos os acadêmicos – especialmente os de direito – do país a velha visão integracionista e etnocêntrica contrária aos interesses dos povos indígenas. Aquela visão que já foi abordada diversas vezes neste trabalho, de que os índios querem terras demais, de que tudo isso é um conluio de antropólogos e indianistas e pessoas que fingem ser indígenas, de que não vale a pena riscar terras do mapa da economia, enfim, de que os direitos indígenas não são necessários, de que os índios não precisam de proteção especial. Ora, pode-se afirmar que é justamente em decorrência desse 84 pensamento etnocentrista que os indígenas precisam de proteção especial. Os incapazes – de compreendê-los – são esses etnocêntricos, não são os índios os incapazes, afinal. Essa proteção também não é compreendida por muitos doutrinadores e juízes brasileiros. O que acontece é um misto de confusão entre Estatuto do Índio e senso comum, com Código Civil e Constituição. E uma total falta de conhecimento antropológico, da mínima noção do que é cultura, o que prejudica muito as decisões de magistrados e as exposições dos doutrinadores. O Código Civil de 2002 estabeleceu, em seu art. 4º., onde são discriminados os “incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer”: que “Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.” 236 . Por ser tão recente, é chocante que ainda tenha mantido a velha confusão entre capacidade civil e tutela dos indígenas. É exatamente por esse motivo teria sido imprescindível derrogar expressamente a tutela que estabelece o Estatuto do Índio para substituí-la por outra, que significasse apenas proteção especial, de acordo inclusive com a nova ordem constitucional. Mas, nada foi feito, e o Código Civil de 2002 perpetuou a dúvida sobre a capacidade civil indígena. Agora, também podendo se basear no Código Civil de 2002, doutrinadores e juízes que não conhecem mais a fundo direitos indígenas reproduzem os conceitos defasados do Estatuto do Índio. É isso que realmente fazem, propagando idéias completamente racistas, em muitos casos, como a do Código Civil Comentado coordenado por Ricardo Fiuza que, sobre o parágrafo único do art. 4º., parece reproduzir ainda a visão colonialista: “Os índios, devido a sua educação ser lenta e difícil, são colocados pelo novo Código Civil sob a proteção de lei especial, que regerá a questão de sua capacidade”. Ora, é a justificativa do velho controle, apenas com outra roupagem e com um enfoque completamente racista, digo racista porque quem acredita nesse tipo de coisa realmente acredita que existem raças diferentes, para as quais a educação pode ser mais lenta ou mais rápida. O mais tenebroso é que a edição deste livro é de 2006, não do século XVI. E muitos acadêmicos de direito e operadores do direito mais ingênuos podem ler essas palavras e achar que elas têm algum fundamento, porque partem de um grupo de juristas renomados que comentam o Código Civil vigente. 237 236 BRASIL, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/2002/L10406.htm>. 237 FIUZA, Ricardo (Coord.). Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 10. 85 E a famosa doutrina de Pontes de Miranda, atualizada por Vilson Rodrigues Alves, edição de 2000, afirma, mesmo após a Constituição, que: “Os silvícolas [!] estão sob a proteção do Estado. O direito material regra a sua situação jurídica, assim como das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. Depois dessa introdução, que claramente foi retirada do Estatuto do Índio, todos os demais conceitos só continuam a reproduzir o estatuto na parte em que ele supostamente foi superado pela Constituição. O doutrinador continua, sem ressalvas, a trazer os conceitos de isolados, em vias de integração e integrados, do Estatuto de 1973 e da emancipação, quando “qualquer índio poderá pedir no Juízo competente a sua liberação desse regime tutelar, investindo-se na plenitude da capacidade civil”, ou seja, tudo isso é a parte que os teóricos dos direitos indígenas consideram ultrapassada e não recepcionada pela Constituição de 1988. 238 Carlos Roberto Gonçalves, apesar de imbuído dos novos moldes constitucionais, faz uma consideração equivocada sobre a origem da tutela: ele afirma que o Decreto 5.484/1928 é o primeiro diploma a regulamentar o regime tutelar dos índios. Na verdade, esse foi o decreto que acabou com a tutela orfanológica, trazendo um novo tipo de proteção aos índios que foi esquecido em 1973. A tutela orfanológica para os índios teve origem em meados do século XVIII, desde quando o governo pretendia transformá-los em trabalhadores rurais. Somente a esses que começassem a trabalhar seria aplicado o estatuto de órfãos, para controlar seus contratos de trabalho e sua remuneração. Mais tarde, em 1833, também foram atribuídos aos juízes de órfãos os bens dos índios – a confusão começa quando se entende que todos os índios estão sob o regime tutelar. 239 Gonçalves tenta fazer referência à Constituição, dizendo que esta não trata mais dos índios como silvícolas, mas continua reproduzindo os conceitos do Estatuto, em pleno ano de 2007: 240 A tutela dos índios constitui espécie de tutela estatal e origina-se no âmbito administrativo. O que vive nas comunidades não integradas à civilização já nasce sob a tutela. É, portanto, independentemente de qualquer medida judicial, incapaz desde o nascimento, até que preencha os requisitos exigidos pelo art. 9º. da Lei n. 6.001/73 [esse é o artigo que fala da emancipação] (idade mínima de 21 anos, conhecimento da língua portuguesa, habilitação para o exercício de atividade útil à comunidade nacional, razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional) e seja liberado por 238 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, pp. 267-272. Isso tudo foi explicado no Capítulo 2, quando se desenvolveu a origem da tutela. 240 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 99101. 239 86 ato judicial, diretamente, ou por ato da Funai homologado pelo órgão judicial. 241 Depois, Gonçalves continua falando de integração nacional e de emancipação, no sentido dos conceitos do Estatuto do Índio que a Constituição superou. Ele até chega a falar que a tutela do índio “não integrado à comunhão nacional” tem a finalidade de protegê-lo, e, quanto à parte da proteção, isso está correto, mas ainda com a velha noção da integração como assimilação e como perda de direitos indígenas – quando na verdade todos os indígenas, mesmo em contato com a sociedade não-indígena, têm direito a essa proteção, como já discutimos neste capítulo. O Código Civil, ao remeter o assunto da capacidade civil dos indígenas à legislação especial, em um artigo que fala dos relativamente incapazes, certamente está afirmando que os indígenas ainda não são plenamente capazes para os atos da vida civil, o que mantêm a vil mistura entre os conceitos de tutela e de capacidade civil. Ou seja, diferentemente do que alguns afirmam, o Código Civil de 2002 não trouxe mudanças significativas quanto ao Código Civil de 1916 sobre o assunto. Em 1916, apenas a lei dizia explicitamente que os “silvícolas” eram relativamente incapazes (art. 6º., III) e que “Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País.”. Quando hoje o Código Civil faz referência a um Estatuto que diz a mesma coisa: que os índios não são plenamente capazes para os atos da vida civil – e que é tomado ao pé da letra por doutrinadores e operadores do direito, chegamos à conclusão de que o Código Civil de 2002 manteve a capacidade relativa dos índios – até que eles se “integrem à comunhão nacional”, se “civilizem”, ou seja, deixem de ser índios e de ter proteção do Estado. Teria inovado, sim, se não tivesse feito qualquer referência aos indígenas, com o que poderíamos concluir que eles são plenamente capazes para todos os atos da vida civil. Essa referência à legislação especial pode ser ainda mais problemática. Os distintos doutrinadores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho entendem que, quando a Lei 6.001/1973 tem um artigo que determina: “Art. 8º São nulos os atos praticados entre o índio não integrado e qualquer pessoa estranha à comunidade 241 GONÇALVES, pp. 100-101. 87 indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente” 242 , está considerando o índio absolutamente incapaz: Portanto, havendo o Novo Código Civil remetido a matéria para a legislação especial, parece-nos que o índio passou a figurar, em regra, entre as pessoas privadas de discernimento para os atos da vida civil (absolutamente incapazes), o que não reflete adequadamente a sua situação na sociedade brasileira. 243 Os autores consideram que os índios deveriam ter sido excluídos do rol dos relativamente incapazes 244 – mas eles ainda confundem tutela com incapacidade civil, porque dizem que a incapacidade pode ser invocada para proteger os índios, quando na verdade deveria ser a tutela (entendida enquanto proteção, assistência, e não opressão, como já falamos). Nas decisões judiciais também encontramos diversos absurdos. Falta aos juízes compreender o verdadeiro conceito de integração cunhado por Darcy Ribeiro, que já apresentamos neste capítulo, e o conceito mais básico de cultura, que não é fixa, estática e impermeável, mas fluida e ressignificante. Do mesmo modo que nós não deixamos de ser entendidos como brasileiros quando absorvemos aspectos culturais de outros países 245 , ou seja, não deixamos de nos sentir brasileiros por isso, e não deixamos de ter as conseqüências jurídicas de tanto – também os povos indígenas não deixam de sê-lo por seus membros utilizarem celular, roupas ou falarem português. Sem estabelecer, aqui, se o problema vem da legislação sozinha ou do próprio senso comum no qual ela foi baseada, a verdade é que o problema existe: há uma confusão total na jurisprudência entre os conceitos de cultura, de integração, de assimilação, de tutela, de capacidade civil em relação aos indígenas, que gera extrema insegurança aos seus povos, mesmo apesar de uma Constituição Federal que lhes possibilita outra hermenêutica, muito mais saudável, se houver a compreensão mínima desses conceitos. A Constituição Federal estabelece que a competência da Justiça Federal para julgar a disputa sobre direitos indígenas. Apesar disso, o que vemos na jurisprudência é 242 BRASIL, Estatuto do Índio: Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6001.htm>. GAGLIANO, Pablo Stolze; e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 99. 244 GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, p. 100. 245 Sem entrar, aqui, na discussão de identidade cultural, que pode não corresponder com a identidade nacional. 243 88 que tanto na área civil, quanto na penal, muitas vezes é determinada a competência da justiça estadual com o pretexto de que o indígena está “integrado”. O Código Penal de 1940, no mesmo enfoque do Código Civil de 1916, estabelece sobre os inimputáveis: Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 246 Não é mencionada, no Código Penal, a palavra índio ou silvícola. Mas na sua Exposição de Motivos, anterior à reforma de 1984, assinada pelo ministro Francisco Campos e que integrava a lei, estava bem claro que: No seio da Comissão foi proposto que se falasse de modo genérico, em perturbação mental; mas a proposta foi rejeitada, argumentando-se em favor da fórmula vencedora, que esta era mais compreensiva, pois, com a referência especial ao “desenvolvimento incompleto ou retardado” e devendo-se entender como tal a própria falta de aquisições éticas (pois o termo mental é relativo a todas as faculdades psíquicas, congênitas ou adquiridas, desde a memória à consciência, desde a inteligência à vontade, desde o raciocínio ao senso moral), dispensava-se a alusão expressa aos surdos-mudos e aos silvícolas inadaptados. 247 Marés cita Nelson Hungria, que deixa bem claro por que o legislador não citou os índios: [...] o art. 22 [art. 26, depois da reforma de 1984] fala em “desenvolvimento incompleto ou retardado”. Sob este título se agrupam não só os deficitários congênitos do desenvolvimento psíquico ou oligofrênicos (idiotas, imbecis, débeis mentais), como os que são por carência de certos sentidos (surdosmudos) e até mesmo os silvícolas inadaptados [...] assim, não há dúvida que entre os deficientes mentais é de se incluir também o homo sylvester, inteiramente desprovido das aquisições éticas do civilizado homo medios que a lei penal declara responsável. 248 Marés continua: “Depois dessa preconceituosa declaração, que não admite a existência de outros padrões éticos, o jurista consegue ser ainda mais claro, expressando a vergonha da lei em manifestar a existência de índios no Brasil”, ao que cita: 246 BRASIL, Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, institui o Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto-lei/del2848.htm >. 247 BRASIL, Código Penal de 1940, exposição de motivos anterior à reforma de 1984 apud MARÉS DE SOUZA FILHO, 2000, p. 110. 248 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1958, p. 336 apud MARÉS DE SOUZA FILHO, pp. 110-111. 89 [...] dir-se-á que tendo sido declarados, em dispositivos à parte, irrestritamente irresponsáveis os menos de 18 anos, tornava-se desnecessária a referência ao desenvolvimento mental incompleto; mas explica-se: a Comissão revisora entendeu que sob tal rubrica entrariam, por interpretação extensiva os silvícolas, evitando-se que uma expressa alusão a estes fizesse supor falsamente, no estrangeiro, que ainda somos um país infestado de gentios. 249 Ainda, o Estatuto do Índio fixa sobre as normas penais que: Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola. Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado. Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte. 250 Se a legislação penal considera os índios como inimputáveis e a legislação especial considera que depende do seu grau de integração para que a sua pena seja atenuada, eis que juízes e tribunais tentam fixar a competência da justiça estadual para julgar os crimes dos índios já integrados (é nessa linha a Súmula 140 do STJ 251 , cuja validade é muitíssimo questionada por muitos outros operadores do direito252 ), fazendo uma interpretação restritiva da Constituição Federal – e ainda reproduzido o conceito errado de integração, entendendo-se que não são mais índios aqueles que falam português, utilizam celular, têm título de eleitor, compreendem a lei. Essa possibilidade de alterar a competência determinada pela própria Constituição é muito perigosa, pois em muitos casos em que no fundo se discutem lutas por terras indígenas e crimes decorrentes dessas lutas, ou seja, disputa sobre direitos indígenas; por interesses muitas vezes específicos de elites locais as decisões tentam depreciar os indígenas e dizer que no fundo não se tratam de indígenas. Demonstra-se, com as decisões monocráticas e acórdãos abaixo elencados – também da esfera criminal – como o conceito de “integração” ainda é utilizado de forma 249 HUNGRIA, p. 337 apud MARÉS DE SOUZA FILHO, p. 111, grifado. BRASIL, Estatuto do Índio, grifado. 251 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Súmula 140. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?processo=140&&b=SUMU&p=true&t=&l=10&i=1>. 252 Veja decisão do próprio STJ, disponível em: <http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/destaques-do-site/decisao-stjcabe-a-justica-federal-julgar-os-crimes-que-envolvam-direitos-indigenas>. 250 90 equivocada, com ajuda do etnocentrismo dos julgadores e de sua falta de conhecimento antropológico e de conhecimento mais específico sobre direitos indígenas. 253 254 Para começar, uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região que confunde a tutela com a capacidade processual de todos os índios e de suas comunidades: EMENTA: CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PROCESSUAL. DANO MORAL. ATO PRATICADO POR COMUNIDADE INDÍGENA. ILEGIMITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL E DA FUNAI. Inviável atribuir à Administração Federal responsabilidade pelas consequências da agressão praticada por índios no local em que se realizavam os festejos natalinos da Comunidade de Linha Cachoeirinha, na madrugada de 26-12-2006. A condição de tutelado atribuída ao indígena se restringe aos índios e as suas comunidades ainda não integrados à comunhão nacional (art. 7º, Lei nº 6001/1973), sendo os demais “partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses”(Constituição Federal, art.232). Atualmente, o que diferencia a comunidade indígena do restante da nação são as suas tradições, usos e costumes, estando eles, no mais, integrados. Ilegitimidade passiva da União Federal e da FUNAI para responder por danos morais reconhecida, eis que o ato passível de indenização não foi praticado por agentes públicos. Sucumbência mantida, fixada na esteira dos precedentes da Turma. Prequestionamento quanto à legislação invocada estabelecido pelas razões de decidir. Apelação improvida. 255 Integrados ou não, os indígenas e suas comunidades têm capacidade processual, porque assim diz a Constituição Federal em seu art. 232: que todos são partes legítimas para ingressar em juízo. Que interpretação forçada! A tutela nada tem a ver com a capacidade processual dos indígenas, sua proteção permanece, e a incidência do Estatuto do Índio, mesmo que a Constituição tenha lhes reconhecido esse direito de ingressar em juízo pela sua coletividade. Esta próxima decisão, do Superior Tribunal de Justiça, serve de base para várias decisões do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, como pudemos ver na pesquisa. Nela, a relatora confunde capacidade civil com integração e tutela, porque afirma que indígena em pleno gozo de seus direitos civis – possuindo inclusive título de 253 Importante reforçar que não se está, aqui, fazendo defesa de índios que cometem crimes ou mesmo querendo trazer à tona qualquer parcialidade a favor desses, mas de como eles são julgados a partir dos conceitos já apontados – e de como essa confusão de conceitos pode, no fim das contas, prejudicar a parte indígena em julgamentos no geral (não nestes especificamente). 254 Também quer-se ressaltar que existem diversas decisões contrárias a essas, de juízes e juízas que compreendem os conceitos apontados, mas a idéia aqui é atacar as decisões que demonstram uma visão mais leiga do assunto. 255 TRF4, AC 2007.71.04.006854-6, Terceira Turma, Relatora Silvia Maria Gonçalves Goraieb, d. 07/01/2010. 91 eleitor – deve ser considerado integrado e não pode ser julgado conforme o Estatuto do Índio: EMENTA: PENAL – HABEAS CORPUS – LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE – PACIENTE QUE É ÍNDIO JÁ INTEGRADO À SOCIEDADE – POSSUI TÍTULO DE ELEITOR – INAPLICABILIDADE DO ESTATUTO DO ÍNDIO – IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO DA PENA NO REGIME DE SEMILIBERDADE – ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS EM QUE FOI ACENTUADA A CENSURABILIDADE DA CONDUTA – REGIME INICIALMENTE FECHADO DEVIDAMENTE JUSTIFICADO – ORDEM DENEGADA. 1. O Estatuto do Índio só é aplicável ao indígena que ainda não se encontra integrado à comunhão e cultura nacional. 2. O indígena que está em pleno gozo de seus direitos civis, inclusive possuindo título de eleitor, está devidamente integrado à sociedade brasileira, logo, está sujeito às mesmas leis que são impostas aos demais cidadãos nascidos no Brasil. 3. O regime de semiliberdade não é aplicável ao indígena integrado à cultura brasileira. 4. O estabelecimento do regime inicial de cumprimento da pena deve observar não só o quantitativo da pena, porém a análise de todas as circunstâncias judiciais, considerada, ainda, eventual reincidência. 5. Se foi feito contra a conduta do réu rigorosa censurabilidade, justificado está o regime inicialmente fechado, necessário para reprovação do crime e ressocialização do apenado. 6. Ordem denegada. 256 No acórdão seguinte, o relator afirma que é entendimento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que é de sua competência o julgamento de crimes de índios integrados. Para serem considerados integrados, diz o relator, basta que seja eleitor e cadastrado na Receita Federal, “portanto, capaz de entender e discernir as relações e valores do ‘mundo dito civilizado’”. Ou seja, quer dizer que quando o indígena entende os valores do tal mundo civilizado, seja lá o que por mundo civilizado entenda o relator, ele deixa de ser indígena? Ainda por cima, tenta o relator fundamentar a competência da Justiça Estadual no art. 109, XI, que fala expressamente que disputa sobre direitos indígenas devem ser julgadas por juízes federais. Neste caso, vale dizer que o crime foi de um índio contra outro índio: EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO PRIVILEGIADO COMETIDO POR INDÍGENA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA 140 DO STJ. INIMPUTABILIDADE PENAL DO ACUSADO TENDO EM VISTA SUA QUALIDADE DE ÍNDIO. HIPÓTESE AFASTADA. INDIVÍDUO PLENAMENTE INTEGRADO À SOCIEDADE. PRELIMINARESREJEITADAS. 256 STJ, HC 88853/MS, Rel. Ministra. JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 18/12/2007, DJ 11/02/2008, p. 1. 92 DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. INOCORRÊNCIA. DECISÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA QUE SE FUNDOU NO AUTO DE EXAME CADAVÉRICO E NAS PALAVRAS DO ACUSADO E DAS TESTEMUNHAS. VERSÃO DEFENSIVA ISOLADA. JURADOS QUE ADOTARAM UMA DAS VERSÕES EXISTENTES NOS AUTOS. SOBERANIA DAS DECISÕES DO JÚRI. CUMPRIMENTO DA PENA EM PENITENCIÁRIA. POSSIBILIDADE. APELO DESPROVIDO. É entendimento assente neste Tribunal que a Justiça Estadual é competente para o julgamento dos crimes cometidos por índios plenamente integrados à sociedade, como todos os que habitam as reservas indígenas no Estado de Santa Catarina. Inteligência, aliás, do art. 109, XI [que diz o contrário!!!!], da CF/88, conforme a Súmula 140 do STJ. Incabível a alegação de inimputabilidade penal do agente só pela sua condição de índio, mormente quando comprovado nos autos estar plenamente integrado à sociedade, como eleitor e contribuinte cadastrado na Receita Federal, portanto, capaz de entender e discernir as relações e valores do “mundo dito civilizado”, incluindo, por evidente, a antijuridicidade do crime de homicídio. Desnecessária, pois, a realização de exame de insanidade mental pelo “duplo critério bio-psicológico”, se não há nos autos qualquer suspeita de que o réu apresente qualquer anomalia de interesse psiquiátrico-forense. Ante o princípio constitucional da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, a decisão do Conselho de Sentença somente pode ser anulada para ensejar novo julgamento quando for arbitrária e se afastar por completo da lei ou das provas contidas nos autos, o que não ocorreu no caso. O art. 56, parágrafo único, da Lei n. 6.001/73 não impede que o índio integrado à sociedade, quando condenado pela prática de crime, cumpra a reprimenda no estabelecimento penal designado, embora recomende que o faça no lugar mais próximo de sua reserva indígena, na medida do possível. 257 Do corpo deste acórdão, o relator tenta basear a sua decisão com base na “integração” do índio, ou seja, quer dizer que o denunciado e a vítima não podem ser considerados índios, assim como a sua tribo, porque comercializam produtos, têm acesso a meios de comunicação e participam da vida política e social, havendo inclusive pessoas da tribo presas: Cabe ressaltar que o Magistrado da Comarca de Abelardo Luz enfatizou à fl. 134 que os índios da tribo a que o apelante pertence são integrados à sociedade e comercializam produtos; têm acesso aos meios de comunicação e participam da vida política e social, havendo, inclusive, daquela mesma tribo, alguns índios presos por fatos semelhantes. Importante ressaltar, para a próxima decisão, que o crime foi cometido dentro da aldeia contra pessoas vindas de fora dela: 257 TJSC, Apelação Criminal n. 2002.026621-9, de Abelardo Luz, Relator: Des. Jaime Ramos. d. 11/03/2003. 93 EMENTA: Pronúncia. Homicídio qualificado tentado praticado por silvícola. Alegação de incompetência da justiça estadual. Demonstração, nos autos, de que o réu é pessoa aculturada, com curso primário, e exerce profissão de motorista. Súmula nº 140, do Superior Tribunal de Justiça. Preliminar afastada. Recurso improvido. “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima” (Súmula nº 140 do STJ). A Constituição Federal, ao prever a competência da Justiça Federal para processar e julgar processos em que figurem indígenas, diz respeito, tãosomente, à disputa sobre os direitos indígenas, não abrangendo, nem tacitamente, a esfera penal, mormente quando o réu, apesar de registrado como descendente indígena, é pessoa totalmente adaptada à sociedade, com profissão definida e primeiro grau de escolaridade. 258 E do corpo do acórdão, para tentar justificar a integração do índio, o juiz aponta que: “[...] há até indicação de que o acusado tinha inclinações políticas”, como se indígena não pudesse envolver-se com a política sem deixar de ser índio. Como ficam as lideranças indígenas de todo o país, então? E continua o juiz, com uma fundamentação agora errada quanto ao artigo 9º. do Estatuto do Índio: [...]Quanto à alegada inobservância aos preceitos da Lei nº 6.001/73, o Estatuto do Índio, melhor sorte não socorre ao recorrente, pois totalmente integrado à sociedade, nos termos de seu art. 4º, inciso III, e investido de plena capacidade civil (art. 9º) [este é o art. da emancipação, que só se dá quando o índio requer em juízo, ou seja, alusão completamente errada do juiz]. Essa confusão conceitual pode ser muito perigosa para os povos indígenas, pois pode ser utilizada para desmerecer uma comunidade indígena, afirmando que ela está “integrada” (ou seja, erroneamente acreditando que estar integrado é estar aculturado), mesmo que essa afirmação seja feita a partir dos olhos etnocêntricos de alguns julgadores. Especialmente, quanto às terras indígenas, essa confusão conceitual pode ser utilizada para garantir o direito à propriedade de uns em detrimento do direito indígena de outros. A procuradora-geral da República interina, Deborah Duprat, traz decisões de ações possessórias que lhe causam perplexidade, baseadas no direito de propriedade mesmo havendo prova de serem terras indígenas. Uma delas é o Mandado de Segurança 25.463 259 , no qual o Supremo Tribunal Federal à época concedeu a medida em relação à 258 TJSC, Recurso Criminal n. 2003.006604-7, de Ibirama, Relator: Maurílio Moreira Leite, Segunda Câmara Criminal, Data: 03/06/2003. 259 A decisão pode ser acessada aqui: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28marangatu%29%20NAO%2 0S.PRES.&base=baseMonocraticas>. 94 área indígena Ñande Ru Marangatu, dos Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul, “cuja demarcação fora homologada pelo Decreto s/n de 28 de março de 2005”. Ela afirma que “o fundamento da decisão foi a existência de uma ação judicial, anterior ao decreto presidencial, onde se discute o domínio das terras e a nulidade do processo administrativo”. Mesmo que não houvesse “na ação em curso na justiça federal, decisão liminar que impedisse o regular desenvolvimento do procedimento demarcatório, tanto que esse chegou ao seu termo”. 260 Para, ela, nessa decisão, há certa dose de preconceito e discriminação. Duprat menciona a Ação Cível Originária 312 261 , que tramita desde 1983 no STF, “em que se pretende a nulidade dos títulos incidentes sobre o território tradicional dos Pataxó Hã-hã-hãe, do sul da Bahia”. A procuradora lamenta que, por todo esse longo período de tempo, “os índios vêm sendo impedidos de ocupar integralmente o seu território, sob o pretexto, recorrentemente invocado por juízes e tribunais, de que o Supremo ainda não definiu os exatos limites de suas terras”. Ela ainda diz que essa questão “sequer era objeto da ação”. Ela aponta outras ações, entre elas a de Raposa Serra do Sol, sobre a qual falamos no Capítulo 1. A procuradora-geral ressalta que não só os índios tiveram que esperar por mais de vinte anos o decreto de homologação do presidente, o STF afirmou sua competência para conhecer de ação popular contra a portaria declaratória da demarcação e demais ações correlatas, e a justiça federal em Roraima continuava a conceder medidas liminares, em ações possessórias, a favor de não-índios. Ou seja, há também confusão sobre as competências para julgar originariamente determinadas ações relativas aos direitos indígenas. Duprat compreende a aflição dos indígenas: Todas essas decisões judiciais estão inspiradas, de uma forma ou de outra, no mito da propriedade privada, reputado direito fundamental, tal qual o é o direito à identidade. Ambos são ponderados como se princípios fossem, e a prevalência de um ou outro fica a depender das peculiaridades do caso sob exame. [...] Esse quadro de indefinições, de decisões contraditórias no âmbito de um mesmo tribunal, às vezes de um mesmo julgador, gera, nesses povos, sentimento de discriminação perfeitamente compreensível. Pior ainda, 260 DUPRAT, Deborah. Decisões que causam perplexidade. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/o-papel-do-judiciario/decisoes-que-causam-perplexidade>. 261 A decisão pode ser acessada aqui: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1454490 >. 95 subtrai-lhes a eleição do seu próprio destino: estão condenados a viver num tempo orientado pelos outros. 262 Diante de tudo exposto, fica clara a falta de interesse e de compreensão de doutrinadores e de julgadores do cenário jurídico brasileiro sobre os direitos indígenas, o que faz com que esses povos fiquem em grande vulnerabilidade. 262 DUPRAT, Id., Ibd. 96 4 UMA OUTRA VISÃO SOBRE OS DIREITOS INDÍGENAS 4.1 O pluralismo jurídico, as reivindicações dos povos indígenas para a lei e o direito comunitário indígena Neste capítulo vamos demonstrar que uma outra visão para os direitos dos povos indígenas brasileiros deve levar em conta o pluralismo jurídico, tanto para legitimá-los como os atores sociais que devem construir seu direito positivado, quanto para valorizar, respeitar e permitir oficialmente o direito comunitário, que está em permanente construção dentro de suas terras. A construção de uma legislação infraconstitucional, especialmente de um novo estatuto, que satisfaça todos os mais de duzentos povos indígenas do Brasil não é impossível. Eles estão cada vez mais articulados em comissões estaduais e nacionais e podem, sim, ser efetivamente consultados. Acreditamos que se esses povos não forem ouvidos, mais uma vez será desenvolvida uma legislação especial que não atende suas necessidades, virando novamente um instrumento de opressão. Até hoje, as leis apresentaram as necessidades dos indígenas ou as necessidades da elite da sociedade que os envolveu? É fácil saber a resposta. O direito indígena que se consagrou até a Constituição Federal de 1988, inclusive com ela, é o direito que parte do Estado – e só dele. Além disso, é importante perceber que o artigo 231 da Constituição diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras”. Ou seja, escolheu-se não reconhecer expressamente os direitos dos índios, não se quis admitir que os povos indígenas têm seu próprio direito. Poderia ter-se colocado: “são reconhecidos aos índios seus direitos, sua organização social [...]”. Ao mesmo tempo, o artigo 57 do Estatuto do Índio permite que seja: “tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte” 263 . Vemos que o “caráter cruel ou infamante?” é o que o não-indígena considera cruel ou infamante. Ou seja, o direito indígena comunitário é permitido desde que não contrarie o que os não-indígenas consideram moralmente correto. 263 BRASIL, Estatuto do Índio. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6001.htm>. 97 Os povos indígenas sempre tiveram seu próprio direito, mas ao mesmo tempo tinham uma sociedade que os envolvia que legislava sobre eles. Essas leis da sociedade envolvente raramente reconheciam as necessidades dos indígenas, que nunca cessaram de lutar por melhores condições e um direito positivo que os beneficiasse. O direito de dentro da aldeia funcionava na medida em que se baseava principalmente em suas necessidades, mas o direito de fora da aldeia espelhava as necessidades dos nãoindígenas, especialmente dos donos do poder. A estrutura jurídica imposta no nosso país tem origens muito antigas. Consagrou-se com a desagregação do feudalismo até o século XVI, a constituição da burguesia a partir de então e a ascensão da sua elite ao poder, com a industrialização no século XVIII, quando os burgueses utilizaram o liberalismo com o qual outrora derrubaram o feudalismo aristocrático para aplicar, na prática, somente os aspectos da teoria liberal que lhes interessava. O liberalismo burguês foi (e é) ao mesmo tempo revolucionário e conservador, enquanto no século XIX luta contra a monarquia absoluta, e no século XX contra ditaduras e regimes totalitários, em ambos os momentos é contra as autoridades populares, a democracia e o socialismo, ou seja, contra as reivindicações populares. 264 Alguns traços essenciais do liberalismo e, consequentemente, do capitalismo são livre iniciativa empresarial, propriedade privada, economia de mercado (núcleo econômico); Estado de Direito, soberania popular, supremacia constitucional, separação dos poderes, representação política, direitos civis e políticos (núcleo político-jurídico); e liberdade pessoal, tolerância, crença e otimismo na vida, individualismo (núcleo éticofilosófico). A burguesia precisava de “forte autoridade central que protegesse seus bens, favorecesse seu progresso material e resguardasse sua sobrevivência enquanto classe dominante”. Wolkmer cita Karl Marx e Friedrich Engels para explicar que a burguesia: [...] suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção, da propriedade e da população. A conseqüência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas em uma só nação, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária. 265 264 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 2001, pp. 37-39. 265 WOLKMER, 2001, p. 40, grifado. 98 Para a burguesia se manter e configurar o Estado moderno ocidental, ela precisou criar uma organização estatal revestida pelo monopólio da força soberana (coação física legítima), da centralização, da secularização – com a manifestação de um direito laicizado – e da burocracia administrativa. Com a expansão do capitalismo, formou-se, assim, o direito estatal, aquele que parte somente do Estado – “legislado diretamente por um poder unitário e soberano”. 266 A concepção de que o Estado moderno deve ter o monopólio exclusivo da produção das normas jurídicas, ou seja, de o Estado ser o único agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas de relações sociais corresponde à doutrina do monismo. Wolkmer destaca que: “A validade dessas normas se dá não pela eficácia e aceitação espontâneas da comunidade de indivíduos, mas por serem produzidas em conformidade com os mecanismos processuais oficias”. Ele explica, ainda, que a burguesia utiliza um discurso de imparcialidade das leis para se beneficiar: Naturalmente, o moderno Direito Capitalista, enquanto produção normativa de uma estrutura política unitária, tende a ocultar o comprometimento e os interesses econômicos da burguesia enriquecida, através de suas características de generalização, abstração e impessoalidade. [...] Ao estabelecer uma norma igual e um igual tratamento para uns e outros, o Direito Positivo Capitalista, em nome da igualdade abstrata de todos os homens, consagra na realidade as desigualdades concretas. 267 Wolkmer divide o monismo jurídico em quatro fases. Na primeira fase, seu surgimento se dá junto com o Estado absolutista, o Capitalismo mercantil, o fortalecimento do poder aristocrático e o declínio da Igreja e do corporativismo medieval, a partir do século XVI. Prevalece a teoria de Thomas Hobbes, considerado um dos primeiros que reduziu o direito ao direito positivo. Desde a Revolução Francesa até as principais codificações do século XIX, nesse contexto histórico, se dá a segunda fase, quando o monismo se solidifica, deixando de ser um reflexo da vontade exclusiva dos soberanos absolutistas, para ser o “produto da rearticulação das novas condições advindas do Capitalismo concorrencial, da crescente produção industrial, da ascensão social da classe burguesa enriquecida e do liberalismo econômico”, formando-se, assim, o discurso de que o direito seria expressão do Estado enquanto vontade da ação soberana. O pensamento jurídico é fortemente influenciado por Rudolf von Jhering e se volta para o pleno domínio da dogmática positivista. Para Jhering, o direito é um 266 267 WOLKMER, 2001, pp. 43-45. WOLKMER, 2001, pp. 48-49, citando Jesus Antonio Della Torre Rangel, grifado. 99 sistema de normas imperativas caracterizadas pela coação cujo soberano único é o Estado, ou seja, fonte única do direito. O direito estatal se iguala ao direito positivo – para o qual somente o direito positivo seria verdadeiramente direito. Até que, no século XIX, com a fase monopolista da produção capitalista, de 1920 a 1960, o monismo atinge uma “legalidade dogmática com rígidas pretensões de cientificidade”, o que corresponderia à terceira fase. Aqui prevalece a teoria de Hans Kelsen, que descarta o dualismo Estado-direito, fundindo-os de modo que o direito é o Estado e o Estado é o direito positivo, ou seja, o Estado só existiria enquanto Estado de Direito. Kelsen é o expoente máximo do formalismo jurídico no Ocidente. A última fase do monismo, para Wolkmer, inicia-se a partir de 1960, com as novas necessidades de globalização do capital monopolista. Nesta fase, para o autor, chega-se ao esgotamento do paradigma de legalidade que sustentou a modernidade burguês-capitalista por mais de três séculos. 268 Como afirmamos no Capítulo 1, para Wolkmer, a teoria jurídica convencional, baseada na dogmática jurídica, é pouco eficaz, porque surgiram, ao longo do tempo, novos direitos alheios à legislação, que não são resultado de uma evolução histórica, linear e progressiva, em gerações cumulativas – mas um processo permanente de reivindicação dos atores sociais que não são atendidos. No fundo, não são novos direitos, porque sempre existiram, apenas não foram reconhecidos. 269 Wolkmer explica como os direitos foram positivados ao longo dos séculos: com a possibilidade que certos atores sociais tiveram de hegemonizar suas necessidades. A tradição linear de conquista de direitos realça o valor atribuído às necessidades essenciais de cada época em um determinado lugar, como, por exemplo, a “priorização de ‘necessidades’ por liberdade individual, na Europa Ocidental do século XVIII, de ‘necessidades’ por participação política no século XIX, e por maior igualdade econômica e qualidade de vida no século XX”. O que se considera nessa tradição linear do surgimento de novos direitos é a “afirmação de necessidades históricas na relatividade e na pluralidade dos agentes sociais que hegemonizam uma dada formação societária”. Ou seja, a ordenação clássica das gerações de direitos leva em consideração as necessidades que as elites conseguiram impor, em cada “fase” histórica. Por isso, Wolkmer diz que o surgimento de “novos” direitos são exigências contínuas das várias comunidades, ou seja, nem sempre são inteiramente “novos”, “por vezes, o ‘novo’ é o 268 WOLKMER, 2001, pp. 50-59. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos “novos” direitos. In: ______; MORATO LEITE, José Rubens (orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 17. 269 100 modo de obter direitos que não passam mais pelas vias tradicionais – legislativa e judicial –, mas provêm de um processo de lutas específicas e conquistas das identidades coletivas plurais” 270 . Pode-se entender, então, que as necessidades de muitos dos hoje chamados “novos direitos” já existia há muito tempo e de alguma forma foi defendida por alguns grupos sociais; assim como há outras necessidades que ainda não se transformaram em direitos na legislação, mas que são direitos mesmo assim. Apenas não tiveram força para se impor aos grupos hegemônicos, e por isso não entrariam na divisão clássica das gerações de direitos até a terceira “geração”. Mas já estavam lá, por exemplo, as exigências dos vários povos indígenas de terem seus direitos respeitados, suas necessidades supridas, por exemplo, desde muito antes de surgirem os supostos direitos de primeira “geração”, com a Revolução Norte-Americana e Francesa. Os povos indígenas também sempre tiveram seus próprios direitos, mesmo que desde a invasão esses direitos não tenham sido respeitados. Wolkmer ensina que ainda que se admita a hegemonia do projeto jurídico unitário, particularmente do direito estatal, não se pode deixar de reconhecer a existência do pluralismo jurídico e de uma tradição bem mais antiga de formulações jurídicas comunitárias aqui no Brasil. O paradigma monista nunca satisfez às sociedades como um todo, apenas a partes delas, com o propósito não declarado de beneficiar a elite burguesa. Isso é o que o enfraquece cada vez mais, a impossibilidade de responder eficazmente a demandas e conflitos cada vez mais complexos. Apesar de ainda não satisfazer à sociedade como um todo, é um paradigma que se mantém muito poderoso: Isso significa que, embora a dogmática jurídica estatal se revele, teoricamente, resguardada pelo invólucro da cientificidade, competência, certeza e segurança, na prática intensifica-se a gradual perda de sua funcionalidade e de sua eficácia. É por essa razão que se coloca a inevitável questão da crise desse modelo de legalidade. [...] Entretanto, a despeito do declínio dessa concepção jurídica no mundo, a variante estatal normativista resiste a qualquer tentativa de perder sua hegemonia, persistindo, dogmaticamente, na rígida estrutura lógico-formal de múltiplas formas institucionalizadas. 271 Esse paradigma jurídico é o modelo que domina oficialmente no nosso país. Como um meio de manutenção do poder capitalista, o monismo e seu positivismo jurídico consegue, também no Brasil, beneficiar uma pequena elite. A lei desconsidera 270 271 WOLKMER, 2003,p. 18-19. WOLKMER, 2001, p. 59, grifado. 101 as diferenças e desigualdades sociais e o Judiciário é direcionado e podado por esse positivismo. Na verdade, o que acontece aqui é o capitalismo periférico, “que estabelece a dependência, submissão e controle das estruturas sócio-econômicas e político culturais locais e/ou nacionais aos interesses das transnacionais e das economias dos centroshegemônicos”. Para entender as desigualdades do Brasil é preciso, assim, conjugar esses fatores internos e externos, considerando a dominação mundial e também de agentes e grupos do Estado. 272 Desde a invasão européia, o direito estatal foi “segregador e discricionário com relação à população nativa” e esteve ligado à “hegemonia das oligarquias agroexportadoras ligadas aos interesses externos e adeptas do individualismo liberal, do elitismo colonizador e da legalidade lógico-formal”. Explica Wolkmer que as necessidades da elite sempre foram impostas aos povos nativos, desde a colonização, que ignorou seu direito nativo para impor o direito da metrópole: Constata-se que em momentos distintos de sua evolução – Colônia, Império e República – a cultura jurídica nacional foi sempre marcada pela ampla supremacia do oficialismo estatal sobre as diversas formas de pluralidade de fontes normativas que já existiam, até mesmo antes do longo processo de colonização e da incorporação do Direito da Metrópole. [...] Desde o início da colonização, além da marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e informal, uma ordem normativa gradativamente implementa as condições e as necessidades essenciais do projeto colonizador dominante. 273 Como constatamos no Capítulo 2, de fato as formas de direito que existiam com os povos nativos foram completamente desconsideradas, inclusive a maior parte dos europeus considerava que os nativos não tinham nem fé, nem rei, nem lei. Wolkmer destaca, mesmo assim, que os traços reais de uma tradição de pluralismo jurídico sempre puderam ser encontradas nas comunidades de índios, mesmo nas reduções indígenas no Brasil Colonial, constituindo-se nas formas mais remotas de um “direito insurgente, eficaz, não-estatal”. Ele afirma, enfim, que: [...] na evolução do ordenamento jurídico nacional coexistiu, desde as origens de nossa colonização, um dualismo normativo corporificado, de um lado, pelo Direito do Estado e pelas leis oficiais, produção das elites e dos setores sociais dominantes, e, de outro, pelo Direito Comunitário não272 273 WOLKMER, 2001, pp. 79-82. WOLKMER, 2001, p. 84, grifado. 102 estatal, obstaculizado pelo monopólio do poder oficial, mas gerado e utilizado por grandes parcelas da população, por setores discriminados e excluídos da vida política. 274 Wolkmer coloca que a passagem de necessidade para reivindicação “é mediada pela afirmação de um direito”. Ou seja, a consciência das necessidades acabam levando a reivindicações por direitos 275 , do que podemos entender que direitos devem ter origem em reais necessidades – sendo o direito muito mais do que leis e produzido pela própria sociedade. Essas necessidades não devem ser entendidas somente pelo seu aspecto economicista, dizem respeito também a necessidades culturais, religiosas, políticas, filosóficas, biológicas. Tais reivindicações não deixam de ser direitos por não estarem na legislação oficial ou, se estiverem, por não serem efetivamente aplicados. 276 As coletividades estão, portanto, sempre em busca desses “novos” direitos como, da “afirmação contínua e a materialização de necessidades [...] que emergem informalmente em toda e qualquer ação social, [...] não estando necessariamente previstas ou contidas na legislação estatal positiva”. Fazem parte desses “novos” direitos o “direito das minorias e das diferenças étnicas”, no qual se incluem os direitos do índio, e o “direito a satisfazer as necessidades culturais”, onde se encontra o direito à sua diferença cultural. 277 Esses direitos sempre existiram, porque sempre existiu a necessidade de sua satisfação, e com eles a legislação falhou muitas vezes, vindo a acertar de modo mais amplo somente com a Constituição de 1988 – que mesmo assim, foi omissa com relação a muitos pontos e ainda não é completamente eficaz por falta de legislação infraconstitucional e também por falta de interesse da sociedade nãoindígena. Para alcançar uma nova ordem político-jurídica mais pluralista deve-se considerar a autonomia de outros sujeitos coletivos para fazer o direito: “A imprevisibilidade, a autenticidade e a autonomia que transgride e escapa do ‘instituído’ deve ser redimensionada num pluralismo comunitário-participativo, cuja fonte de direito é o próprio homem projetado em suas ações coletivas”. 278 Por isso, Wolkmer propõe primeiro mudar o paradigma que fundamenta a cultura política e jurídica, cujo principal referencial teórico deve ser o pluralismo jurídico. 279 274 WOLKMER, 2001, pp. 89-90. grifado. WOLKMER, 2001, pp. 91-92. 276 WOLKMER, 2001, pp. 158-159. 277 WOLKMER, 2001, pp. 166-167. 278 WOLKMER, 2001, pp. 167-168 279 WOLKMER, 2001, p. 171. 275 103 O marco teórico da nova cultura no direito, para Wolkmer, “está internalizado no fenômeno prático-teórico do pluralismo jurídico comunitário participativo já existente em nível subjacente”, que se revela em expressões informais ainda não reconhecidas “pela cultura oficial instituída” e que é uma “resposta à ineficácia e ao esgotamento da legalidade liberal-individualista e às formas inoperantes de jurisdição oficial”. 280 É claro que o pluralismo jurídico já teve muitos significados e foi utilizado por muitos movimentos e teorias, não cabe aqui fazer a sua revisão histórica, apenas atentar ao fato de que a própria burguesia tentou parecer plural, mesmo construindo um sistema que só a beneficiou. Aqui tratamos do pluralismo jurídico que realmente diminuiria as desigualdades. Wolkmer designa um significado de pluralismo jurídico na atualidade como: “[...] a multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais”. 281 A base teórica do pluralismo jurídico pode ser utilizada para defender que os indígenas são os sujeitos coletivos mais legitimados para construir a nova legislação infraconstitucional, porque os únicos capazes de dizer suas reais necessidades. Outro ponto importante que o pluralismo jurídico possibilita é o de afirmação da existência de direitos indígenas dentro das comunidades indígenas, ou seja, cada comunidade, cada povo, tem seu próprio direito, que deve ser reconhecido pelo Estado brasileiro. De fato, entre os objetivos do pluralismo jurídico um deles é de reconhecer que o direito estatal é apenas uma das formas jurídicas que podem existir dentro de uma sociedade. Outro objetivo é de reconhecer os “novos” atores sociais e a reivindicação de “novos” direitos. 282 Para tanto, é preciso aceitar uma ética da alteridade que rompa com os formalismos técnicos e as universalidades “revelando-se a expressão autêntica dos valores culturais e das condições histórico-materiais do povo sofrido e injustiçado da periferia latino-americana e brasileira”. Wolkmer ensina que a ética da alteridade não se prende a regras gerais prontas para serem aplicadas, mas “traduz concepções valorativas que emergem das próprias lutas, conflitos, interesses e necessidades de sujeitos 280 WOLKMER, 2001, pp. 335-336. WOLKMER, 2001, p. 219, grifado. 282 WOLKMER, 2001, pp. 222-223. 281 104 individuais e coletivos insurgentes em permanente afirmação”. O reconhecimento dessa alteridade tem um cunho emancipatório para os povos oprimidos, podendo materializar seus intentos e transformar as nações dependentes do Capitalismo periférico que envolve esses povos. 283 Refletir a autonomia desses atores dos novos direitos, onde se inserem os povos indígenas, implica em aceitar essa alteridade ética: A inserção da “autonomia”, no nível da juridicidade, defendida pelos movimentos sociais, permite instituir uma noção de Lei, Direito e Justiça não mais identificada com o imaginário de “regulamentação estatal”, consagrado nos códigos positivos, nos documentos legais escritos e na legislação dogmática, mas numa práxis concreta associada a vários e diversos centros de produção normativa de natureza espontânea, dinâmica, flexível e consciente. A “autonomia” não só advém como resposta às imposições repressoras de uma ordem jurídica injusta, comprometida com o poder e com os privilégios, como, igualmente, condiz com a eficácia de outra ordenação instituída pela auto-regulação societária, uma ordenação autônoma, apta a redefinir democraticamente as regras cotidianas e institucionais de convivência. 284 Uma boa legislação só será construída com maior autonomia dos povos indígenas para dizerem o que querem para ela e também de resolverem seus conflitos segundo suas normas dentro das aldeias. Nesse sentido, Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque bem discorre sobre a autodeterminação dos povos indígenas: Os povos indígenas tornar-se-ão livres se puderem planejar a sua própria existência de acordo com sua vontade. Nestes planos, incluem-se não somente a manutenção de sua organização sócio-política, econômica e cultural, mas a elaboração e reconhecimento de normas não opressoras no âmbito estatal. Em outras palavras, normas possibilitadoras do pleno desenvolvimento indígena em consonância com suas próprias visões de mundo sobre “desenvolvimento” Propiciando aos povos indígenas que não sejam impedidos de usufruir de seus recursos naturais através de normas; que não os limitem a possuir uma educação de “branco” para “índio”; que não induzam a uma cultura jurídica de exclusão social, ao contrário, que abram a perspectiva para a construção de um pluralismo jurídico indigenista. 285 Vemos que, portanto, a lei nacional não reconhece nem respeita plenamente os direitos indígenas comunitários; nem supre as necessidades dos povos indígenas brasileiros. 283 WOLKMER, 2001, pp. 337-338. WOLKMER, 2001, pp. 337-338. 285 ALBUQUERQUE, pp. 157-158. 284 105 Suas reivindicações são feitas, porém, com cada vez mais lutas e manifestações. Neste ano, por exemplo, povos indígenas de todas as regiões já se manifestaram contra o decreto presidencial de reestruturação da FUNAI, aprovado nos últimos dias de 2009 para tentar evitar alarde 286 , que extingue vários centros administrativos importantes e em bom funcionamento. A FUNAI passou a idéia, que a grande mídia reproduziu, de que nada ia mudar com a reestruturação da FUNAI, seria apenas uma mudança de nomenclatura. Mas a verdade é que muitos núcleos administrativos dos quais muitas comunidades dependiam e funcionavam bem foram extintos, como o de Curitiba (PR). Enquanto isso, um novo núcleo administrativo será criado em Florianópolis (SC). Antes disso, as comunidades do litoral de Santa Catarina se submetiam à regional de Curitiba. A reestruturação será melhor para essas comunidades catarinenses que se submetiam à regional distante delas, mas e as comunidades de Curitiba, que já estavam acostumadas com aquela administração, por que deveriam ser prejudicadas? Desde essa aprovação, já houve muita manifestação dos índios, ocupando sedes da FUNAI e exigindo reuniões com membros do Congresso Nacional e com o Presidente Lula. 287 Muitas manifestações ainda acontecem, também, para impedir a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), sobre a qual falamos no Capítulo 1. Os povos indígenas também fazem cada vez mais uso da internet para reivindicar por melhores condições e direitos. Orivaldo Nunes Júnior, indigenista mais conhecido como Nuno Nunes, relata que: No Brasil temos várias organizações [indígenas] que utilizam a internet para divulgar suas causas, por exemplo, a COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), que mantém seu sítio com as informações da sua região e é uma das mais fortes organizações indígenas das Américas. O CIR (Conselho Indígena de Roraima) também tem um sítio explicativo de suas atividades, que foi fundamental no processo de demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol em final de 2008. 288 Ele conta também o caso da Terra Indígena Morro dos Cavalos, onde os Guarani fizeram suas reivindicações sobre a sua demarcação na internet: 286 BRASIL, Decreto 7.065, de 28 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7056.htm>. 287 Mais desse conflito pode ser acompanhado no seguinte blog: <http://www.merciogomes.blogspot.com/>. 288 NUNES JÚNIOR, Orivaldo. INTERNETNICIDADE: Caminhos dos uso de Novas Tecnologias de Informação e Comunicação por Povos Indígenas. 2009. 111 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Educação, Ufsc, Florianópolis, 2009. p. 45. 106 De posse destes meios que estão à disposição de qualquer pessoa que acesse seu sítio na internet, desde que saiba os caminhos, imaginemos o que poderia fazer uma comunidade indígena que atravessava etapas do processo de demarcação com dificuldades, mas que contava com uma sala de informática conectada à rede na escola de sua aldeia. Foi neste momento que, na Escola Indígena Itaty, em Morro dos Cavalos, surgiu o sítio www.terraguarani.org.br (funcionando de 2005 a 2007). Este sítio era elaborado durante as aulas de Comunicação e Informática da turma de jovens da aldeia de Morro dos Cavalos. Ali experienciamos a elaboração de páginas da web em softwares livres, alimentando-as com as novidades da Campanha para Demarcação. Com o auxílio dos amigos ativistas pró softwares livres, conseguimos um servidor gratuito para armazenar o sítio, ligado à mídia independente. A utilização deste meio foi farta, e também colocávamos no sítio www.midiaindependente.org as notícias e novidades da Campanha. Também mantínhamos uma caixa de e-mails que utilizávamos para divulgar as notícias aos parceiros pródemarcação. Esta experiência passou a ser um grande contribuinte para a Demarcação da Terra Indígena Guarani de Morro dos Cavalos, que veio a ocorrer em Abril de 2008, com a publicação da Portaria Declaratória do Ministério da Justiça. 289 Nuno conta sua experiência de várias reuniões em que participou, onde pôde conhecer a experiência de comunidades Guarani do Mato Grosso do Sul, que mantinham rádio e jornal. Ele ressalta, também, que nas reuniões os indígenas sempre levavam computadores e gravadores e máquinas fotográficas digitais para registrar informações e posteriormente levar para suas comunidades. O indigenista relembra que à época da constituinte os indígenas também utilizavam tecnologias áudio-visuais para registrar as promessas de que suas reivindicações seriam atendidas: No mesmo exemplo, historicamente, temos os indígenas que utilizavam as tecnologias áudio-visuais, em Brasília à época da Constituinte (anos 80), com gravadores em mãos para registrar as promessas dos políticos (marca registrada do Cacique Mário Juruna), mais tarde com filmadoras para registrar também o momento e a face de quem falava, trazendo as notícias para as comunidades e eternizando-as, não só em sua cultura, mas na cultura nacional brasileira. 290 Especialmente depois da Constituição de 1988, os povos indígenas sentem-se mais seguros para impor suas vozes, inclusive para se identificar como indígenas 291 . Os caciques de Morro dos Cavalos e de Biguaçu ilustram bem esse sentimento com 289 NUNES JÚNIOR, pp. 45-46. NUNES JÚNIOR, p. 50. 291 No Capítulo 1, trazemos dados do IBGE que comprovam um grande aumento na quantidade de indígenas no último Censo. Atribui-se a essa aceleração no crescimento uma maior vontade de autodeclaração, além do crescimento vegetativo. 290 107 afirmações como: “se eu tenho direito, não tenho que ter medo” e “está tudo aqui, na Constituição”. Ou seja, os “novos” direitos indígenas positivados na Constituição só dão mais segurança aos “novos” sujeitos de direito, os indígenas, de exigir mais direitos, de impor que suas necessidades sejam transformadas em direito, legitimadas e garantidas pelo Estado. Para Stephen Grant Baines, o crescimento muito rápido de organizações indígenas tem desempenhado um papel fundamental na pressão para a concretização e consolidação de direitos indígenas. Ele afirma que os novos direitos da Constituição deixaram o diálogo entre índios e não-índios menos desigual, o que facilita mais ainda novas reivindicações: Após a consolidação do movimento indígena ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, e com os novos direitos reconhecidos para os povos indígenas na Constituição brasileira de 1988, abriu-se a possibilidade de haver relações interétnicas menos assimétricas do que no passado. 292 Ele relembra que a própria Constituição de 1988 foi uma conquista dos povos indígenas: O crescimento do movimento indígena a partir da década de 1970, a crescente pressão política por parte das lideranças indígenas a nível nacional e internacional para assegurar seus direitos, e uma intensa mobilização dos índios no processo constituinte junto com organizações de apoio, culminaram em várias modificações na Constituição brasileira de 1988. Estas modificações trouxeram potencial para mudar as relações entre os povos indígenas e o Estado. 293 Não podemos esquecer, entretanto, que esse direito reconhecido é meramente o direito estatal, que ainda é um direito hegemônico, como acima explicado. Por mais que a cada nova lei, mesmo com mínimas inovações lhes favorecendo, os indígenas, e também todas as pessoas que os apóiam, tentam interpretar a lei de modo a ampliar os seus benefícios. Ou seja, mesmo que a lei diga pouco, parece que é feita uma união de forças entre indígenas e seus apoiadores para interpretá-la como se fosse um novo marco – a cada pequena alteração favorável, um novo marco. Mas a verdade é que existe uma força contrária muito poderosa, que na própria legislação já colocou seus interesses. A Constituição de 1988, considerada um marco – e realmente é um marco, 292 BAINES, Stephen Grant. Identidades indígenas e ativismo político no Brasil: depois da Constituição de 1988. Série Antropologia, Universidade de Brasília, 2008. Disponível em: <http://vsites.unb.br/ics/dan/Serie418empdf.pdf>, p. 7. 293 BAINES, Id., Ibd, pp. 8-9. 108 mesmo que tenha dito tão pouco, porque os povos indígenas tinham menos ainda – deixa de reconhecer os direitos comunitários indígenas, a autonomia dos povos indígenas, a plurinacionalidade do país; e, ainda por cima, coloca ressalvas de situações em que a União poderá utilizar recursos que estão dentro das terras indígenas (parágrafos do art. 231). É justamente porque a legislação constitucional e infraconstitucional precisa trazer muitos outros reconhecimentos aos povos indígenas brasileiros, que eles continuarão reivindicando que suas necessidades virem lei estatal, “novos” direitos, como diz Wolkmer. Ao mesmo tempo, eles mantêm sua própria forma de direito dentro das aldeias, e aquele direito estatal protege este direito comunitário. Se a lei do Estado reconhecesse a autonomia e os direitos comunitários indígenas, esses povos ficariam ainda mais fortalecidos para lutar por “novos” direitos. Por isso, também, a Constituição disse tão pouco. Carlos Frederico Marés de Souza Filho afirma que era necessário admitir a diversidade de sociedades dentro do Estado brasileiro: Vejamos, os direitos humanos, enquanto garantias individuais de liberdade contra a opressão, de vida, de dignidade e integridade pessoais reconhecidas pelas Constituições, na medida em que estas ganham caráter normativo e impositivo, são valores que podem ser realizados dentro do sistema jurídico concebido pelo Estado, tornando-se assim uma universalidade. Quando pensamos em sociedades inteiras que estão fora dos sistemas jurídicos nacionais, que se regem por suas próprias leis, temos que reconhecer que aquela universalidade criada pela Constituição impositiva é parcial, porque não alcança toda a população, mas somente a que está integrada, ainda que de forma relativa, ao sistema. 294 Não podemos esquecer o etnocentrismo que ainda guia os legisladores brasileiros. Além de não quererem conferir tanta autonomia aos povos indígenas, certamente acharam que estavam incluindo no art. 231 os seus direitos comunitários, por fazerem referência à organização social. Mas quando vemos a Constituição boliviana, que tanto destoa da nossa nesse assunto, percebemos o quanto de etnocentrismo e de hegemonia de poder a nossa Constituição deixa transparecer. A justiça comunitária dos povos indígenas bolivianos 295 é uma realidade reconhecida pela Constituição Política da Bolívia: 296 294 MARÉS DE SOUZA FILHO, pp. 194-195. Não é porque na Bolívia a maior parte da população seja indígena que não podemos utilizar seu exemplo para os nossos povos indígenas. A idéia aqui é mostrar que a legislação brasileira acerca desse tema é muito precária e deveria aprender com a boliviana. 295 109 CAPÍTULO CUARTO JURISDICCIÓN INDÍGENA ORIGINARIA CAMPESINA Artículo 190. I. Las naciones y pueblos indígena originario campesinos ejercerán sus funciones jurisdiccionales y de competencia a través de sus autoridades, y aplicarán sus principios, valores culturales, normas y procedimientos propios. II. La jurisdicción indígena originaria campesina respeta el derecho a la vida, el derecho a la defensa y demás derechos y garantías establecidos en la presente Constitución. Artículo 191. I. La jurisdicción indígena originario campesina se fundamenta en un vínculo particular de las personas que son miembros de la respectiva nación o pueblo indígena originario campesino. II. La jurisdicción indígena originario campesina se ejerce en los siguientes ámbitos de vigencia personal, material y territorial: 1. Están sujetos a esta jurisdicción los miembros de la nación o pueblo indígena originario campesino, sea que actúen como actores o demandado, denunciantes o querellantes, denunciados o imputados, recurrentes o recurridos. 2. Esta jurisdicción conoce los asuntos indígena originario campesinos de conformidad a lo establecido en una Ley de Deslinde Jurisdiccional. 3. Esta jurisdicción se aplica a las relaciones y hechos jurídicos que se realizan o cuyos efectos se producen dentro de la jurisdicción de un pueblo indígena originario campesino. Artículo 192. I. Toda autoridad pública o persona acatará las decisiones de la jurisdicción indígena originaria campesina. II. Para el cumplimiento de las decisiones de la jurisdicción indígena originario campesina, sus autoridades podrán solicitar el apoyo de los órganos competentes del Estado. III. El Estado promoverá y fortalecerá la justicia indígena originaria campesina. La Ley de Deslinde Jurisdiccional, determinará los mecanismos de coordinación y cooperación entre la jurisdicción indígena originaria campesina con la jurisdicción ordinaria y la jurisdicción agroambiental y todas las jurisdicciones constitucionalmente reconocidas. É verdade que esses direitos indígenas devem respeitar o direito à vida e demais direitos constitucionais (art. 190, II), mas claramente vemos que a realidade constitucional boliviana é muito melhor para os povos indígenas que a brasileira, desde seu artigo primeiro, que diz: Artículo 1. Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad y el 296 Um exemplo recente da aplicação da justiça comunitária boliviana aconteceu com o ex-ministro da Educação Félix Patzi, que foi obrigado a fabricar tijolos por ter sido flagrado dirigindo bêbado. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1102201009.htm>. 110 pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país. 297 Em seu artigo 11, sobre o sistema de governo, o inciso II determina: II. La democracia se ejerce de las siguientes formas, que serán desarrolladas por la ley: 1. Directa y participativa, por medio del referendo, la iniciativa legislativa ciudadana, la revocatoria de mandato, la asamblea, el cabildo y la consulta previa. Las asambleas y cabildos tendrán carácter deliberativo conforme a Ley. 2. Representativa, por medio de la elección de representantes por voto universal, directo y secreto, conforme a Ley. 3. Comunitaria, por medio de la elección, designación o nominación de autoridades y representantes por normas y procedimientos propios de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, entre otros, conforme a Ley. 298 Sobre a representação política, o artigo 210 dispõe que: Artículo 210. I. La organización y funcionamiento de las organizaciones de las aciones y pueblos indígena originario campesinos, las agrupaciones ciudadanas y los partidos políticos deberán ser democráticos. II. La elección interna de las dirigentes y los dirigentes y de las candidatas y los candidatos de las agrupaciones ciudadanas y de los partidos políticos será regulada y fiscalizada por el Órgano Electoral Plurinacional, que garantizará la igual participación de hombres y mujeres. III. Las organizaciones de las naciones y pueblos indígena originario campesinos podrán elegir a sus candidatas o candidatos de acuerdo con sus normas propias de democracia comunitaria. 299 Além disso, a carta política boliviana reconhece a propriedade coletiva dos povos indígenas sobre as terras que ocupam (art. 394, III), garante que protegerá e promoverá a organização econômica comunitária dos povos indígenas (art. 307), determina que a ratificação dos tratados internacionais deve respeitar os direitos dos povos indígenas (art. 255, II, 4). O capítulo sétimo da Constituição boliviana, que vai do art. 289 ao 296, trata somente da autonomia indígena originária campesina e reconhece o modo de fazer justiça de cada comunidade indígena. O art. 289 determina que: 297 BOLÍVIA, Constituição Política do Estado. Disponível em: <http://www.vicepresidencia.gob.bo/Portals/0/documentos/NUEVA_CONSTITUCION_POLITICA_DE L_ESTADO.pdf>. 298 BOLÍVIA, Constituição Política do Estado. Id., Ibd. 299 BOLÍVIA, Constituição Política do Estado. Id., Ibd. 111 Artículo 289. La autonomía indígena originaria campesina consiste en el autogobierno como ejercicio de la libre determinación de las naciones y los pueblos indígena originario campesinos, cuya población comparte territorio, cultura, historia, lenguas, y organización o instituciones jurídicas, políticas, sociales y económicas propias. No artigo 290, II, é dito que o autogoverno dos indígenas se dará de acordo com suas normas, instituições, procedimentos, e o artigo 292 determina que cada autonomia indígena elabore seu Estatuto, de acordo com suas normas e procedimentos. É verdade que esses artigos estabelecem que deve haver uma harmonia entre essa autonomia indígena e a Constituição, mas já é muito mais autonomia que nossos povos indígenas têm aqui no Brasil. É possível, inclusive que os municípios se convertam em “autonomias indígenas”, mediante referendo (art. 294, II). Talvez a dificuldade de admitir que os indígenas têm direitos comunitários venha ainda da idéia etnocentrista de que seu direito não é tão racionalmente construído quanto o direito positivo brasileiro. Como se a sua forma de regulamentar o mundo não fosse tão válida quanto a nossa. Está na hora de superar esse etnocentrismo e reconhecer a complexidade das culturas indígenas. Claude Lévi-Strauss tem uma passagem muito interessante, na introdução de seu livro “História de Lince”, que exemplifica o que queremos dizer. Nesse livro, Lévi-Strauss relata diversos mitos de povos indígenas variados das Américas, e nessa passagem, especificamente, ele compara o pensamento indígena com o pensamento racional: Alguns podem achar que o modo de explicar o mundo dos indígenas, a partir do mito, que é repetido sem muito se renovar há milênios, não é válido já que existe o pensamento racional, o método e as técnicas científicas deveriam têlo suplantado. Lévi-Strauss mostra que o pensamento científico não está tão distante assim do mítico, justamente porque ficou tão específico, que pode ser apreendido somente pelos especialistas. O pensamento mítico volta a ser o único intercessor entre os especialistas do conhecimento científico e os não-especialistas. Ou seja, o pensamento racional e científico do Ocidente acaba tendo como ponto final o mito: os conhecimentos positivos transbordam de tal forma os poderes da imaginação que esta, incapaz de compreender o mundo cuja existência lhe é revelada, tem como único recurso voltar-se para o mito. 300 Ele explica, com alguma mordacidade, que é o próprio pensamento racional que torna o pensamento mítico indígena atual: 300 LÉVI-STRAUSS, Claude. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 10. 112 Para o homem, volta a existir, portanto, um mundo sobrenatural. Os cálculos e experiências dos físicos certamente demonstram sua realidade. Mas essas experiências só adquirem sentido quando transcritas em linguagem matemática. Aos olhos dos leigos (ou seja, de quase toda a humanidade), esse mundo sobrenatural apresenta as mesmas propriedades que o dos mitos: tudo acontece de um modo diferente do que no mundo comum e, freqüentemente, ao inverso. Para o homem comum - todos nós - esse mundo permanece inatingível, exceto pelo viés de velhos modos de pensar que o especialista consente em restaurar para o nosso uso (e às vezes, infelizmente, para seu próprio). Do modo mais inesperado, é o diálogo com a ciência que torna o pensamento mítico novamente atual. 301 É preciso, no Brasil, superar a idéia de que a “sociedade brasileira” é melhor e mais apta a dizer o direito do indígena do que ele mesmo ou que seu direito é tão superior ao direito comunitário indígena que este não seja merecedor de ser chamado de direito. 4.2 O direito indígena pelo indígena: um estudo de caso em duas aldeias Guarani da Grande Florianópolis 4.2.1 Ocupação Guarani na Grande Florianópolis Há três mil anos, os grupos Guarani, descendentes da família lingüística TupiGuarani, saíram da região amazônica e se espalharam por o que hoje é o sul do Brasil e o delta do Rio da Prata (leste do Paraguai, nordeste da Argentina e Uruguai). São pelo menos 2.900 sítios arqueológicos distribuídos por toda esta área, comprovando a sua ocupação milenar. No Brasil, o território do atual estado de Paraná foi o primeiro a ser ocupado pelas levas Guarani, enquanto o litoral catarinense foi conquistado tardiamente (de 1.500 a 900 A.P. – antes do presente).302 No primeiro encontro entre europeus e índios Guarani, em 1504, quando o francês Binot Palmier de Gonneville chega ao que hoje é conhecido como São Francisco do Sul 303 , o povo Guarani somava dois milhões de habitantes 304 . Na Grande Florianópolis, o primeiro contato aconteceu em 1515, quando a expedição do espanhol 301 LÉVI-STRAUSS, p. 12. NOELLI, Francisco. Distribución geográfica de las evidencias arqueológicas guaraní. In: Revista de Indias, LXIV, 230, Madrid, 2004, pp. 17-34. 303 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vinte Luas. Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil: 1503-1505, São Paulo: Companhia das Letras. 1996. apud QUEZADA, Sergio Eduardo Carrera. A terra de Nhanderu: organização sociopolítica e processos de ocupação territorial dos Mbyá-Guarani em Santa Catarina, Brasil. Florianópolis. 161 f. Dissertação (Mestrado). Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. UFSC, 2007, pp. 35. 304 NOELLI, p. 16. 302 113 Juan Díaz de Solís naufragou e chegou à bacia do rio Massiambu (que fica no que hoje é o município de Palhoça) 305 . Existem evidências arqueológicas de que o povo Guarani já habitava a Ilha de Florianópolis 900 anos atrás. Mas o viajante Hans Staden observou, na década de 1540, que os Guarani se deslocavam sucessivamente para a região continental, à medida que as expedições estrangeiras chegavam. Por fim, em 1635 a ilha estava praticamente despovoada de Guarani, que haviam formado aldeias no continente. 306 De qualquer modo, existem provas de que os Guarani ocupavam boa parte do Sul do país. Este mapa 307 , de 1616, feito por Willem Blaeu, mostra a região abaixo do Trópico de Capricórnio: 305 BERTHO, Ângela Maria de Moraes. Os índios Guarani da Serra do Tabuleiro e a Conservação da Natureza. Tese. Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC: Florianópolis. 2005, 223 p. 306 DARELLA, Maria Dorothea Post. Ore Roipota Yvy Porã “Nós Queremos Terra Boa”. Territorialização Guarani no Litoral de Santa Catarina-Brasil. São Paulo, 2004. 405 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, pp. 124 e 129-131. 307 Disponível em: <http://www.wdl.org/pt/item/1101/zoom.html> - informação retirada do blog <http://acordaterra.files.wordpress.com/2010/03/mapa1616guaranicarios.jpg>. 114 Nos séculos seguintes, a interiorização Guarani foi imposta pela ocupação européia. Na verdade, os Guarani, assim como vários outros povos indígenas, caracterizam-se pela mobilidade. Isso significa que, de tempos em tempos, as comunidades indígenas procuram novos espaços, de acordo com a sua religião, mas também para respeitar a recuperação da natureza. Ou seja, a mobilidade é uma tática de preservação ambiental diretamente ligada à preservação da própria comunidade. Apesar disso, dessa vez, não foi a mobilidade que os fez procurar novos espaços, muitas comunidades simplesmente fugiram dos brancos que chegavam, para o interior do continente. 308 A mobilidade era uma manifestação cultural forte dos Guarani, mas hoje já não lhes sobram terras para poder mover-se livremente. É claro que as manifestações culturais se resignificam, e a mobilidade, de certa forma, sempre continua, estando presente na procura constante dos Guarani por terras ancestrais, ou mesmo, por terras onde poderiam manter sua forma de vida. Foi isso que fez com que os Guarani voltassem e faz com que ainda tentem voltar a esses assentamentos antigos que lhes têm significado importante, com o objetivo de manter viva sua cultura. 309 Muitos teóricos afirmam, ainda, que a estratégia Guarani mudou, sendo que por um longo período esses índios preferiram se valer da invisibilidade, para, progressivamente e especialmente, após a promulgação da Constituição de 1988 escolherem ficar visíveis e acessíveis para lutar por melhores direitos.310 308 QUEZADA, p. 35. QUEZADA, p. 53. 310 ASSIS, Valéria de. & GARLET, Ivori José. Análise sobre as populações Guarani Contemporâneas: demografia, espacialidade e questões fundiárias. Revista de Indias, 2004, vol. LXIV, núm. 230. pp. 35-54, p. 41. 309 115 Há quem diga que os Guarani nunca saíram da Grande Florianópolis, inclusive pelas provas arqueológicas da rota milenar que atravessa a região vinda do Sul, pelo litoral. De qualquer modo, a povoação da região da Grande Florianópolis aumentou efetivamente após a década de 1930, com levas vindas especialmente do Sul. O litoral catarinense está sofrendo uma “re-guaranização”. 311 De dois milhões para 65 mil Guarani. Esse foi o resultado da invasão portuguesa. Apesar disso, a população indígena, no geral, aumenta progressivamente com o passar dos anos, como demonstram as últimas pesquisas do IBGE. 312 Tal aumento esbarra na pouca quantidade de terras que querem reservar aos índios. Sem o direito à terra tradicional, os povos indígenas não conseguem concretizar todos os demais direitos culturais, como de alimentação diferenciada, de educação diferenciada, não conseguem viver conforme seu “modo de ser”, sua cosmologia, ou seja, sua concepção de mundo. Com os índios da Grande Florianópolis não é diferente, sendo a terra sua principal reivindicação. Sem terra, a principal fonte de renda dessas comunidades acaba sendo a doação, com uma pequena quantia proveniente da venda do artesanato, o que interfere na auto-estima das aldeias, mas não atrapalha a sua luta. Em Morro dos Cavalos, durante todo o processo de demarcação, que começou em 1993, houve muitas manifestações de racismo. A área já foi declarada, ou seja, teve seus limites reconhecidos pelo Ministério da Justiça pela Portaria 771 de 2008. Apesar disso, até agora em meados de 2010 ainda não aconteceu a demarcação física para retirar os não-indígenas do restante da área declarada, e no espaço que os Guarani se encontram não há como plantar ou mesmo construir mais casas. A aldeia de M’Biguaçu foi a primeira aldeia Guarani a ser demarcada em Santa Catarina, em 1993. O cacique, Hyral Moreira, conta, no entanto, que na época a FUNAI não explicou em detalhes o que seria a demarcação e o seu tamanho efetivo. Hoje, 30 famílias estão em 58 hectares, sem espaço para plantio, com o detalhe de que atrás da terra indígena existem pedreiras funcionando há muitos anos. Não se deixando abalar, assim como os demais povos indígenas, os Guarani cada vez mais se organizam. Em Santa Catarina, foi criada a Comissão Guarani Nhamongetá, e existem também comissões regionais temáticas e a comissão nacional, Yvy Rupa. É assim que os índios de Morro dos Cavalos estão reivindicando a aplicação 311 312 QUEZADA, p. 36. ASSIS & GARLET., pp. 36. 116 de seus direitos com a exigência da demarcação física e os índios de M’Biguaçu lutam para a ampliação da demarcação. Desse modo é que brigam por uma saúde indígena melhor, por mais estrutura em suas escolas; para que sejam respeitados e ouvidos em decisões que vão afetar suas terras, como construções ao seu redor. E lutam por esses direitos positivados para poder manter sua cultura, e, com isso, o seu direito comunitário, que sempre existiu, desde muito antes da invasão européia. 4.2.2 Introdução às entrevistas etnográficas Wolkmer defende que o pluralismo jurídico comunitário-participativo é interdisciplinar: “Conceber o pluralismo, hoje, enquanto conceito nuclear de uma visão democrático-popular de juridicidade, é não descartar uma preocupação basicamente interdisciplinar”. Para ele, isso explica o fenômeno de desregulamentação do direito e também o de auto-regulamentação. Pensar a efetivação do direito envolve outros ramos de conhecimento, como a política, a sociologia, a filosofia. 313 A antropologia também é um ramo que pode ser muito importante para o pluralismo jurídico, especialmente para conhecer melhor os direitos indígenas, com as suas técnicas etnográficas de entrevista. A antropóloga Mariza Peirano explica que a antropologia é uma imersão no universo social e cosmológico do “outro”, e essa imersão é realizada pela pesquisa de campo. A etnografia é o resultado da pesquisa de campo, que também pode ser chamada de pesquisa etnográfica, de etnologia ou mesmo de etnografia, e é um procedimento básico da antropologia. Peirano afirma que a pesquisa etnográfica não se limita a uma única técnica de coleta de dados, porque cada pesquisa é específica. Quando o pesquisador se propõe a fazer uma pesquisa guiado pelos pesquisados, que é como se dá o mergulho no seu universo de interpretações, surgem situações imprevisíveis. Essas situações dependem da teoria e do senso comum que o pesquisador leva a campo e as novas conclusões a que chega com a observação daqueles que estuda. É nesse ponto que, para a autora, se dá o processo de descoberta antropológica: [...] uma descoberta que é um “diálogo” não entre indivíduos – pesquisador e nativo – mas, sim, entre a teoria acumulada da disciplina e o confronto com uma realidade que traz novos desafios para ser entendida e interpretada; um exercício de “estranhamento” existencial e teórico, que passa por 313 WOLKMER, 2001, pp. 344-345. 117 vivências múltiplas e pelo pressuposto da universalidade da experiência humana. 314 A pesquisa etnográfica, assim, implica em um confronto de diferenças: “todo o bom antropólogo aprende e reconhece que é na sensibilidade para o confronto ou o diálogo entre ‘teorias’ acadêmicas e nativas que está o potencial de riqueza da antropologia” 315 . Por isso, é condição da pesquisa de campo que cada caso é um caso – e isso, em vez de servir de argumento para desmerecer a etnografia, é o que realmente a fortalece, na visão da autora: Tanto Louis Dumont quanto Lévi-Strauss afirmaram, em diferentes ocasiões, que as etnografias constituem, mais que os sistemas teóricos que elas suscitaram, a verdadeira herança da antropologia. No Brasil, em momento de particular lucidez, foi o que Darcy Ribeiro também confirmou: seus diários de campo sobreviveriam a todas as teorias que ele propôs, no seu entender, exatamente para serem refutadas. Desta forma, estes autores replicam Frazer, quando este notou a perenidade dos dados etnográficos em contraste com o caráter efêmero das conquistas teóricas. 316 Os dados etnográficos são assim tão duradouros porque as técnicas de pesquisa de campo antropológica objetivam desvendar o mundo dos pesquisados pelos seus próprios olhos, o que permite que outros pesquisadores possam posteriormente reanalisar tais dados. Miriam Goldenberg, cientista social brasileira, descreve no livro A arte de pesquisar a mudança de foco das ciências sociais com a pesquisa qualitativa, ao refutar o Positivismo de Émile Durkheim, que, por sua vez, defendia a adoção do método científico das ciências naturais pelas ciências sociais. Wilhem Dilthey, que influenciou Max Weber, primeiro grande expoente dessa mudança de foco, deu início à idéia de que os fatos sociais não são suscetíveis de quantificação e que as ciências sociais devem se preocupar com a compreensão de casos particulares e não com a formulação de leis generalizantes, como fazem as ciências naturais. Goldenberg também demonstra que a riqueza da pesquisa qualitativa é justamente a consciência do pesquisador de não ter como se desvincular de seus conceitos prévios à pesquisa: 314 PEIRANO, Mariza. “A favor da etnografia”. In: A favor da etnografia. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1995. p. 9, grifado. 315 PEIRANO, 1995, p. 10. 316 PEIRANO, 1995, p. 14. 118 Cientistas sociais como Max Weber, Pierre Bourdieu e Howard Becker acreditam ser fundamental a explicitação de todos os passos da pesquisa para evitar o bias do pesquisador. Recusam a suposta neutralidade do pesquisador quantitativista e propõem que o pesquisador tenha consciência da interferência de seus valores na seleção e no encaminhamento do problema estudado. A tarefa do pesquisador é reconhecer o bias para poder prevenir sua interferência nas conclusões. Para os autores citados, não existe outra forma para excluir o bias nas ciências sociais do que enfrentar as valorações introduzindo as premissas valorativas de forma explícita nos resultados da pesquisa. 317 Sendo assim, Goldenberg ensina que se evitam os problemas teóricometodológicos da pesquisa qualitativa não tomando como referência o modelo positivista das ciências naturais, mas levando-se em conta a especificidade dos objetos de estudo das Ciências Sociais. Em contraposição aos dados quantitativos, “Os dados qualitativos consistem em descrições detalhadas de situações com o objetivo de compreender os indivíduos em seus próprios termos. Estes dados não são padronizáveis como os dados quantitativos”. 318 É a possibilidade de trazer dados desse tipo que faz com que a acadêmica opte, na presente pesquisa, por trazer entrevistas etnográficas realizadas com duas comunidades Guarani, que serão estruturadas como estudo de caso, preenchendo os seguintes requisitos especificados também por Goldenberg: O estudo de caso não é uma técnica específica, mas uma análise holística, a mais completa possível, que considera a unidade social estudada como um todo, seja um indivíduo, uma família, uma instituição ou uma comunidade, com o objetivo de compreendê-los em seus próprios termos. O estudo de caso reúne o maior número de informações detalhadas, por meio de diferentes técnicas de pesquisa, com o objetivo de apreender a totalidade de uma situação e descrever a complexidade de um caso concreto. Através de um mergulho profundo e exaustivo em um objeto delimitado, o estudo de caso possibilita a penetração na realidade social, não conseguida pela análise estatística. 319 No clássico livro sobre métodos de entrevista “Learning how to ask: a sociolinguistic appraisal of the role of the interview in social science research”, o antropólogo Charles Briggs, atualmente professor da Universidade da Califórnia (EUA), fala sobre a sua experiência no trabalho de campo de mais de uma década com mexicanos do norte do Novo México, em uma comunidade denominada Córdova. Brigss tentou, primeiro, utilizar a entrevista padrão, com roteiro de perguntas pré317 GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 45, grifado. 318 GOLDENBERG, 2005, p. 53, grifado. 319 GOLDENBERG, 2005, pp. 33-34, grifado. 119 elaboradas, mas só obtia respostas vagas, como “quem sabe?”, “é isso”. Ele explica que seu erro foi tentar impor, nas entrevistas, as suas normas comunicativas, que eram diferentes das normas dos entrevistados: [...] o uso de técnicas de entrevista pressupõe um modelo de interação social. O entrevistador especifica os assuntos a serem cobertos, enquanto o entrevistado supre as informações. O foco dos participantes é conduzir as informações necessárias da maneira mais eficiente, explícita, completa e exata possível. É claro que o repertório discursivo dos consultados pode não incluir uma categoria análoga e a direção de um evento pode ser completamente diferente. 320 Ele só conseguiu respostas mais completas depois que se tornou conhecido dos nativos, estabeleceu-se dentro da comunidade como um aprendiz, compreendeu melhor o seu processo educacional, ou seja, como transmitiam conhecimento e o que era necessário para que isso acontecesse; e quando passou a perceber a importância do processo metacomunicativo para obter informações – isto porque “Os nativos presumivelmente também cantam, dançam, rezam, ceiam, trabalham e assim por diante sobre esses assuntos [os dados que os entrevistadores pretendem obter nas entrevistas].” 321 Na comunidade estudada por Briggs, havia uma hierarquia retórica que só permitia perguntar aos mais velhos quando se tivesse algum conhecimento anterior, e, além disso, era necessário repetir uma parte da afirmação dos mais velhos, para fazer uma pergunta. O antropólogo assevera que as técnicas padrão de entrevista invertem as normas da conversa por três motivos. Primeiro porque os pesquisadores entram na sociedade sem saber das normas de comportamento e de discurso; e em vez de adquirir competência comunicativa por meio da observação, os entrevistadores pulam esse estágio para fazer perguntas que atendam somente aos seus interesses. Em segundo lugar, o controle da interação fica nas mãos do entrevistador, que introduz tópicos e que decide quando mudar de assunto. Por fim, a falta de familiaridade do entrevistador com situações referenciais e meios aceitos de conduzir a informação torna suas perguntas inapropriadas para a coesão do discurso do entrevistado e para a situação social. 322 Para ele, “em vez de aprender os meios em que os nativos adquirem informação, nós normalmente impomos nossas normas comunicativas aos nossos consultados. Essa 320 BRIGGS, Charles. Learning how to ask. A sociolinguistic appraisal of the role of the interview in social science research. Cambridge University Press, 1986, p. 46. Tradução própria, grifado. 321 BRIGGS, p. 118. 322 BRIGGS, p. 89. 120 prática gera uma hegemonia comunicativa”.323 Briggs afirma: A minha tese é de que qualquer tipo de entrevista será prejudicada por sérios problemas metodológicos se não se sensibilizar para o relacionamento entre as normas comunicativas que são pressupostas na entrevista e aquelas que são efetivamente características da população em estudo. 324 Para que isso seja possível, Briggs divide a metodologia da entrevista em quatro fases: 1) aprendendo como perguntar, 2) formulando a metodologia adequada, 3) refletindo sobre o processo de entrevista e 4) analisando as entrevistas. Na primeira fase, que é das primeiras semanas ou meses de trabalho de campo, o pesquisador precisa adquirir a compreensão básica das normas comunicativas da sociedade em questão, aprendendo a língua e observando as relações entre os membros da comunidade. Na segunda fase, Briggs propõe uma integração sistemática das rotinas metacomunicativas da comunidade a ser estudada na estrutura metodológica do trabalho. Ele sugere que, de fato, se faça uma análise prévia dos padrões comunicativos da sociedade. Esse é o momento em que descobrem-se as pessoas certas para falar sobre determinados assuntos e como falar com elas. Por isso, diz, é quase sempre necessário modificar a metodologia no decorrer da pesquisa. Briggs cita Morris Freilich, que recomenda que os antropólogos façam a pesquisa de campo primeiramente de forma “passiva”, com o objetivo de reformular os seus planos para realmente descobrir como podem focar, em um segundo momento, nos seus próprios interesses, de maneira mais “ativa”. Na terceira fase, é preciso analisar a efetividade das entrevistas, identificando problemas de comunicação entre entrevistador e entrevistado, para saber se é preciso uma reformulação nos planos de pesquisa. A quarta fase é, para Briggs, a que mais apresenta problemas nas ciências sociais, porque se pressupõe muitas vezes ser possível retirar das entrevistas informações puras e comparáveis. Ele relembra que a entrevista é um evento comunicativo entre duas ou mais pessoas que têm suas próprias referências culturais, sociais e lingüísticas. Por isso, Briggs destaca que “a estrutura comunicativa de toda a entrevista afeta o significado de cada afirmação [do entrevistado]”. 325 Para começar, o entrevistado precisa aceitar a forma de interação. E nenhuma afirmação que o entrevistado fizer pode ser tirada do contexto da própria entrevista e de como ela 323 BRIGGS, p. 121. BRIGGS, p. 94, grifado. 325 BRIGGS, pp. 102-103. 324 121 estava acontecendo no momento da afirmação. 326 Ou seja, veja-se que para apreender como vive uma sociedade diferente da nossa, é necessário ter muita paciência e interesse. Consideramos que os direitos indígenas serão melhor apreendidos com o cuidado das técnicas antropológicas e a os dados consistente que sua metodologia e teoria permitem. Com a ajuda da antropologia, as reivindicações dos povos para a legislação estatal e os seus diferentes direitos comunitários podem ser melhor captados. Este trabalho pretende, portanto, com as entrevistas que realizou, apenas mostrar a relevância de ouvir os povos indígenas com cuidado. É claro que aqui sequer se realizou a pesquisa etnográfica que seria necessária para esgotar o assunto nas duas comunidades, que exigiria muito mais tempo e muito mais entrevistas. Quer-se, no entanto, demonstrar a relevante atitude de escutar para a construção de um pluralismo jurídico indígena no Brasil. Sendo assim, foi realizada desde janeiro de 2010 uma pesquisa etnográfica nas aldeias citadas, com os recursos de entrevistas de profundidade (com uso de gravador) e observação. Entretanto, desde abril de 2009, a acadêmica mantém contato com as aldeias, em especial com a de Morro dos Cavalos. A pesquisadora não conseguiu seguir exatamente todos os passos de Briggs, porque não aprendeu a falar guarani, apesar de conhecer algumas palavras, e deveria ter feito mais observação. Mas considera que conseguiu fez uma boa escolha com a técnica de entrevista escolhida: de “história de vida”, que é aquela que consiste em uma narrativa auto-biográfica do entrevistado. Basicamente, o entrevistador pede para que o entrevistado conte sua história de vida, com poucas intervenções ou perguntas. O sociólogo alemão Fritz Schütze conceitua a entrevista narrativa como uma “entrevista aberta profunda” que “tem a intenção de reconstruir acontecimentos sociais a partir da perspectiva dos informantes”. 327 A metodologia da entrevista autobiográfica, para Schütze, parte da hipótese de que a narração das experiências pessoais como história de vida sem prévia preparação possibilita uma aproximação máxima ao que realmente foi experimentado. 328 326 BRIGGS, pp. 94-103. MEINCKE, Sonia Maria Könzgen. A construção da paternidade na família do pai adolescente: contribuição para o cuidado de enfermagem. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, UFSC, Florianópolis (SC), 2007. p. 81. Disponível em: <http://www.ssrevista.uel.br/n1v2.pdf#page=135>. 328 APPEL, Michael (2005). La entrevista autobiográfica narrativa: Fundamentos teóricos y la praxis del análisis mostrada a partir del estudio de caso sobre el cambio cultural de los Otomíes en México. Forum: 327 122 Maria Angela Silveira Paulilo reúne conceitos de vários autores sobre a técnica de história de vida: Para BOSI (1994), o que interessa quando trabalhamos com história de vida é a narrativa da vida de cada um, da maneira como ele a reconstrói e do modo como ele pretende seja sua, a vida assim narrada. [...] HAGUETTE (1987) considera que a história de vida, mais do que qualquer outra técnica, exceto talvez a observação participante, é aquela capaz de dar sentido à noção de processo. Este “processo em movimento” requer uma compreensão íntima da vida de outros, o que permite que os temas abordados sejam estudados do ponto de vista de quem os vivencia, com suas suposições, seus mundos, suas pressões e constrangimentos. [...] CAMARGO (1984) complementa que o uso da história de vida possibilita apreender a cultura “do lado de dentro”; constituindo-se em instrumento valioso, uma vez que se coloca justamente no ponto de intersecção das relações entre o que é exterior ao indivíduo e aquilo que ele traz dentro de si. [...] O mesmo pensa CIPRIANI (1988) quando considera o “livre fluir do discurso”, condição indispensável para que vivências pessoais despontem profundamente entranhadas no social, o processo de “escavação do microcosmo” deixa entrever o “macrocosmo”, o universal mostra-se invariavelmente presente no singular. [...] BECKER (1994) acrescenta que a história de vida aproxima-se mais do terra a terra, a história valorizada é a história própria da pessoa, nela são os narradores que dão forma e conteúdo às narrativas à medida que interpretam suas próprias experiências e o mundo no qual são elas vividas. [...] A história de vida é, geralmente, extraída de uma ou mais entrevistas denominadas entrevistas prolongadas, nas quais a interação entre pesquisador e pesquisado se dá de forma contínua, situação assim descrita por THIOLLENT (1982): “o entrevistador se mantém em uma ‘situação flutuante’ que permite estimular o entrevistado a explorar o seu universo 329 cultural, sem questionamento forçado” (THIOLLENT, 1982:86). Com as oito entrevistas que realizou, a acadêmica analisou os dados segundo seis linhas diferentes, que já foram planejadas antes do início das entrevistas, compondo o instrumento de coleta de dados. As linhas são: 1) sentimento de in-betweenness (explicado logo abaixo); 2) sentimentos de discriminação e de marginalização; 3) percepções sobre a legislação do Estado; 4) reivindicações para essa legislação, necessidades; 5) articulação entre as aldeias; e 6) leis existentes dentro da aldeia, direito comunitário. Na aldeia de M’Biguaçu, o cacique é Hyral Moreira, liderança indígena ativa em toda a região Sul do país. Ele é presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena, Qualitative Social Research, 6(2). Disponível em: <http://www.qualitativeresearch.net/index.php/fqs/article/view/465/995>. 329 PAULILO, Maria Angela Silveira. Serviço Social em Revista. Publicação do Departamento de Serviço Social, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Universidade Estadual de Londrina. – Vol. 1, n. 1 (Jul./Dez. 1998). 123 que representa cinco estados: RJ, SP, PR, SC e RS; membro da Comissão Catarinense Guarani Nhamongetá e acadêmico de direito da Univali. Como o cacique estuda direito, acrescentou-se no instrumento de coleta de dados, quanto a esse entrevistado em especial, a influência do estudo acadêmico nas suas atitudes como cacique e como liderança indígena. Nesse caso, adicionou-se o seguinte item: 7) importância do estudo de direito para a visão de direitos indígenas. As entrevistas foram semi-estruturadas quanto ao registro dos dados, ou seja, à anotação e à análise dos dados, que também fazem parte do conceito de “coleta de dados”; e não-estruturadas, não-direcionadas, quanto à entrevista em si, que foi realizada com a técnica de história de vida. Em uma entrevista semi-estruturada o pesquisador tem uma lista de questões ou tópicos a serem pesquisados, normalmente denominado de guia da entrevista, mas o entrevistado tem uma grande liberdade de resposta. Além disso, questões podem ser retiradas e colocadas, de maneira flexível, mas acredita-se em dados melhores para a pesquisa a partir da história narrada por cada um, que possibilita uma exposição mais livre e real das representações e interpretações do entrevistado. Para terminar esta introdução, explica-se o conceito de “in-betweenness”, que é a tendência a sentir-se em trânsito entre dois ou mais lugares, entre duas ou mais culturas 330 . Principalmente por estarem tão próximos há tanto tempo da sociedade nãonativa opressora, os índios Guarani sabem muito de como é se sentir culturalmente deslocados. 4.2.3 Resultado das entrevistas etnográficas Os itens do instrumento da coleta de dados têm conceitos que se conectam, portanto as linhas de dados serão analisadas em conjunto. Também serão ressaltados aspectos mais importantes das entrevistas individualmente. O sentimento de in-betweenness ficou bem claro, especialmente para os mais jovens, entre vinte e quarenta anos. Todos os Guarani entrevistados viveram por algum tempo fora da aldeia e depois voltaram. No mundo “dos brancos”, sofreram muito com a discriminação do etnocentrismo e esse foi o principal fator que os fez voltar para a aldeia. Em alguns casos, especialmente em Morro dos Cavalos, a impressão é de que 330 Para saber mais sobre esse conceito: HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e Mediações Culturais. SOVIK, Liv (Org.). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. 124 ainda não podem viver completamente do jeito que gostariam, porque não têm espaço para plantar, nem para construir novas casas e, assim, viver conforme seus costumes, dependendo ainda de doações para se manter. Ou seja, não sentem-se completamente felizes nem fora, nem dentro da aldeia – ficam neste entremeio, tentando se encontrar. A não ser nos casos em que a aldeia os satisfaz, especialmente em M’Biguaçu, ou pela expectativa de que a aldeia vai melhorar, como em Morro dos Cavalos. Percebe-se que esse sentimento de trânsito se deu especialmente na juventude dos entrevistados. Alguns deles foram morar com outras famílias ainda pequenos, e não se adaptaram, procurando suas famílias Guarani alguns anos depois. Outros foram procurar emprego fora da aldeia e acabaram ficando, também não se adaptando. Mas conforme foram ficando mais velhos, criaram a o sentimento de “volta à origem” e investiram na busca e no fortalecimento da sua cultura Guarani. Atualmente, pode-se dizer que dentro das comunidades o mais importante é viver conforme o modo de ser Guarani e isso é realçado em todas as áreas, que acabam se entrecruzando: a educação, a religião, a alimentação, os rituais de cura. Seu Alcindo Moreira, um dos entrevistados, pajé da aldeia de M’Biguaçu, conta que a cada quinze dias reúne as crianças dentro da opy (casa típica Guarani de reza), e que esta é a principal escola dos pequenos e o principal ambiente cultural dos adultos. Ele diz que está ainda forte, aos 100 anos, porque sempre vai à opy. Hyral Moreira, outro entrevistado da mesma aldeia, fica feliz porque seus filhos nunca precisarão sair da aldeia, como ele saiu, mesmo que considere ter aprendido muitas coisas que lhe foram importantes. Eunice Antunes, entrevistada da aldeia de Morro dos Cavalos, foi para Curitiba (PR) em busca de emprego, lá se casou, mas não aguentou o preconceito da família do ex-marido e da própria sociedade. Quando voltou, já para uma aldeia Guarani próxima de Morro dos Cavalos, porém, sentiu-se discriminada na própria aldeia, por não ser mais “tão Guarani”, especialmente por professores não-indígenas que trabalhavam na escola. O sentimento de marginalização e de discriminação foram apontados com exemplos principalmente de situações da infância e da adolescência fora da aldeia e geralmente na escola não-indígena. A impressão geral, no entanto, é de que todos aprenderam a lidar com esse sentimento e não dão mais tanta importância a ele, porque se sentem muito felizes sendo Guarani e também porque aprenderam a se defender desse tipo de visão limitada. Hyral afirma que não se rebaixa ao nível das pessoas que demonstram algum tipo de preconceito e culpa principalmente os governantes do país, diz que a população em geral não conhece a questão indígena. No período de visitação à 125 aldeia, uma matéria preconceituosa foi publicada na revista Veja 331 , com uma visão etnocentrista a respeito da aldeia de Morro dos Cavalos, caracterizando-os como “Made in Paraguay”. Rapidamente as duas comunidades se reuniram e decidiram que iam entrar com uma ação judicial. Antes disso, de qualquer modo, mandaram um e-mail de resposta à revista. No geral, parece que se sentem muito protegidos dentro da suas comunidades, como se nada lhes atingisse lá dentro. Mesmo assim, em Morro dos Cavalos, também neste período, o cacique anterior, Augustinho Moreira, mudou-se para outra aldeia com medo das ameaças de não-indígenas que haviam cortado madeira ilegalmente da terra indígena. A Polícia Federal prendeu essas pessoas e devolveu a madeira para a comunidade, mas aqueles não cessaram de ameaçá-la, e, com medo, seu cacique fugiu. Em Palhoça, já houve muitas manifestações contrárias à comunidade Guarani, tentando impedir a demarcação sob os argumentos de que eles não são índios, que são “importados do Paraguai” 332 , e outras caracterizações que já apontamos aqui neste trabalho, como o fato de utilizarem roupas, etc. A Constituição de 1988 lhes dá muita força, como já supomos neste capítulo, porque a cada atitude discriminatória contrária, eles reagem procurando o Ministério Público Federal para entrar com a ação competente. Esse é um dos bons reflexos da legislação na vida das comunidades e uma demonstração de como reivindicam. Um dos problemas com a legislação oficial, no caso com sua efetivação, é com a demarcação de terras. Ambas comunidades têm problemas com isso, como já falamos. Em Morro dos Cavalos a demarcação física ainda não aconteceu, ou seja, ainda não foram retirados os não-indígenas das suas terras. Isso impede seu acesso ao mar, a um rio e a boa parte de suas terras onde é possível plantar. Em M’Biguaçu, o espaço é extremamente exíguo e a plantação tem que ser bem pequena. Hyral é o que tem a percepção mais vasta da legislação estatal, certamente porque faz faculdade de direito. Hyral afirma que os arts. 231 e 232 da constituição são 331 Disponível em: <http://veja.abril.com.br/050510/farra-antropologia-oportunista-p-154.shtml>. Esta matéria gerou muita polêmica, porque o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e o ex-presidente da FUNAI Mércio Gomes afirmaram que suas entrevistas foram inventadas. Claramente também inventaram a parte relativa à comunidade de Morro dos Cavalos, com o subtítulo “Made in Paraguay”, porque o índio que entrevistaram não mora na aldeia há muitos anos e, também, afirmam que os Guarani de lá foram importados e só falam em espanhol, o que também é uma mentira. 332 A revista Veja já havia publicado, em 2007, matéria intitulada “Made in Paraguai”, onde também tenta desqualificar a comunidade Morro dos Cavalos. Existe um senhor que reivindica as terras da comunidade como se suas fossem, ele tentou mobilizar a cidade e os meios de comunicação contra os Guarani. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/140307/p_056.shtml . 126 tão gerais que podem ser interpretado contra os indígenas, a constituição tinha que ser mais específica. Critica a falta de conhecimento de direitos indígenas da maioria de magistrados e de advogados. Fala que o problema é na aplicabilidade da lei, diz que podem ser criadas várias leis específicas que não terão eficácia pela falta de interesse dos operadores do direito. Considera que o Estatuto do Índio não foi recepcionado pela Constituição, diz que contraria a Constituição e não tem aplicabilidade nenhuma. Para ele, a Lei 6.001/1973 é preconceituosa. Ele diz que nunca viu ninguém deixar de ter sua cultura por fazer parte de outra sociedade (fazendo referência à questão da integração como assimilação). Hyral faz uma afirmação ácida: “a sociedade brasileira que não conseguiu assimilar a população indígena”. Ele não consegue acreditar na mentalidade da população e dos próprios governantes, que ele diz que é uma mentalidade do Império. Lamenta da falta de valorização dos povos indígenas, que considera ser a etnia que têm menos visibilidade no país. Ele brinca que quando se formar na faculdade de direito vai “incomodar” muita gente e satiriza que não haveria quantidade de dinheiro para pagar todos os danos que as populações indígenas já sofreram e ainda sofrem no Brasil: “o dano é irreparável”, afirma. Hyral acha que os verdadeiros culpados estão no governo, porque têm o poder para mudar a realidade indígena, apenas não querem. “O governo teria até como mudar a visão da sociedade”. Ainda por cima, diz, o governo joga a culpa nos próprios índios, colocando-os como se fossem um obstáculo. Ao mesmo tempo, Hyral critica as pessoas que comentam sobre a questão e não têm o menor conhecimento do assunto, como jornalistas que fazem afirmações etnocentristas: “eu comento sobre as coisas que eu sei, sobre as que eu não sei eu nem comento”. Hyral tem 33 anos e nasceu em Morro dos Cavalos. Morou até os 13 anos lá e depois foi para M’Biguaçu. É liderança indígena desde os 16 anos, quando se tornou vice-cacique e é cacique desde os 22. Morou fora da aldeia, o que achou bom para conhecer a realidade do mundo externo, para conseguir ajudar o seu povo. Ele está fazendo faculdade de direito para ajudar a sua comunidade e quer estudar mais especificamente a capacidade civil indígena, que o Código Civil de 2002 não resolveu. Foi morar fora da aldeia com cerca de dois anos, com padrinhos, com quem ficou até os nove anos. Fez o ensino fundamental durante esse período também em uma escola de fora da aldeia. Ele considera a experiência boa, foi bom para a sua formação, aprendeu muita coisa. Acompanhava o padrinho, que era mestre de obras, e aprendeu com ele também a ser pedreiro, inclusive algumas casas da aldeia foi ele quem fez. Ainda mantém contato com os padrinhos. Foi ruim deixar de ter contato com sua 127 cultura, mas quando ele voltou, sua readaptação o deixou fortalecido. Também diz que fora da aldeia é difícil saber em quem confiar e sofreu com o preconceito. Hoje ele diz que aprendeu a lidar melhor com o preconceito, diz que não vai se rebaixar ao nível de uma pessoa preconceituosa. Ele diz que ninguém vai mudar o que ele é e ele não tem por que negar a sua origem. Um dos pontos ruins de ter morado fora da aldeia, ele considera, é de ter perdido tempo longe da cultura. Por outro lado, ele diz que o filho dele jamais vai ter que passar por isso hoje. Ele fala das dificuldades que têm com a FUNAI, diz que estão processando o órgão. Explica, no entanto, que entraram com a ação contra a instituição, que não deixa de haver boas pessoas lá dentro. Diz que nunca tiveram ajuda da FUNAI, mesmo com a demarcação, que foi de uma terra muito pequena. Hyral afirma que a comunidade não se submete a decisões de fora dela. O fato de estar estudando direito facilita as reivindicações. E sobre o direito de dentro da aldeia, ensina que cada comunidade tem suas regras específicas. Fala que mesmo que existisse o direito, antes de 1988, esse direito de dentro da aldeia não era permitido. Hyral conta que M’Biguaçu tem um Conselho de seis membros que, junto com ele, aprova regras e decisões. O Conselho também leva informações para o cacique sobre as questões administrativas, se é necessário ajudar alguma família, por exemplo. Hyral diz que o cacique ficou mais com a questão administrativa, após a criação do Conselho. As regras mais importantes da aldeia são referentes à própria organização da comunidade. As famílias que não trabalham fora precisam ajudar a própria comunidade, com trabalhos feitos dentro da aldeia, por exemplo. Também é decidida a permissão de novas famílias virem morar na aldeia ou de alguém ser excluído da comunidade. Seu Alcindo, com 100 anos, é chamado de biblioteca viva, ele já percorreu todo o estado de Santa Catarina e é muito admirado nas duas comunidades. Apesar de não me relatar sua vida, o que ele disse que faria em outra oportunidade, e espero tê-la, nossa conversa me ajudou a elucidar as linhas do meu instrumento de coleta de dados. Seu Alcindo não sente-se em trânsito entre duas culturas, ele sente-se firmemente envolvido pela cultura indígena, que ele ajuda a preservar dentro da sua comunidade e que parece ser o elemento mais importante de sua vida. Ele se mostra muito chateado com a falta de disciplina de muitas outras comunidades, que deixam a “cultura do branco” entrar, como o vanerão e a pinga, ele diz. Para ele, isso é ruim para a cultura indígena. Ainda mais se essas comunidades deixarem de ensinar a cultura indígena, a religião. Ele explica que de quinze em quinze dias todas as crianças vão para a opy (casa religiosa) ouvi-lo falar sobre ser Guarani. Isso ajuda também os outros Guarani, que, 128 assim, se mantêm saudáveis. Mas nas outras comunidades, critica Seu Alcindo, não se faz mais isso, não se usa a opy, não se ensina as crianças. Em M’Biguaçu, é regra que a primeira escola é a opy. E ninguém pode tomar pinga ou ficar dançando vanerão, ele reitera. Outra regra é que quem sai da aldeia, que desdenha a aldeia, como ele diz, não pode nunca mais voltar. Ele conta que até ajuda as outras aldeias, quando lhe pedem ajuda com a saúde de alguém, por exemplo. A pessoa vai até a opy de M’Biguaçu e seu Alcindo ajuda a curá-la. Ele diz que é tão forte e está tão bem porque está sempre na opy. Seu Alcindo demonstra ter muito orgulho de ser Guarani e parece se sentir superior ao “branco”. Para ele, o “branco” não é verdadeiro. Muita gente de outras aldeias também não são, ele diz. Parece que sua força e sua segurança provêm de como ele ajuda a preservar sua cultura, do reconhecimento da sua dedicação. O professor de Guarani Adão Antunes, de Morro dos Cavalos, diz que escola indígena não funcionou enquanto não havia professores indígenas e currículo diferenciado. Suas reivindicações são mais quanto à educação indígena. O que falta para a escola: diferenciar o calendário, querem poder implementar outro tipo de escola, com mais aulas fora da sala de aula (para contar histórias na opy, por exemplo). Querem também criar mais séries. Sobre a comunidade, lamenta que não conseguem plantar nada, não têm como fazer lavoura. Quem trabalha come com a família, com os vizinhos, divide com quem precisa. A FUNAI dá uma cesta básica por mês para cada um. Outra dificuldade é casa de moradia, cada casa tem duas, três famílias morando. A FUNAI, diz, é um órgão que, em vez de ajudar, atrapalha – tudo tem que passar pela FUNAI, ela assume o compromisso, e não faz. “É um órgão que já tinha que estar extinto. Tão aí pra ganhar nas costas do índio, e não fazem nada”, reclama. Eunice Antunes é professora Guarani em Morro dos Cavalos (SC). Nasceu na Aldeia de Limeira (Entre Rios – SC). Estudou fora da aldeia, onde foi bem recebida no começo. Mas conforme foi crescendo, começou a sentir preconceito por ser indígena. Depois estudou na aldeia até a quinta série. Foi para Curitiba (PR) trabalhar como empregada doméstica com 14 anos, onde chegou a se casar com um não-indígena. Com a família do marido também sentiu muito preconceito por ser Guarani e resolveu voltar para a aldeia. Mas ao chegar na aldeia de Massiambu (Palhoça – SC), diz que sentiu preconceito por não ser tão Guarani, dos brancos que estavam dentro da aldeia, na escola, e da Secretaria de Educação. Por isso, foi morar em 2004 em M’Biguaçu. No 129 ano passado, foi para Morro dos Cavalos (SC). Faz curso de magistério para investir na sua profissão. Sente uma revolta com a lei dentro da aldeia, acha que as mulheres estão ficando pra trás. Diz que muitas vezes as mulheres trazem problemas e não são tão levadas a sério dentro da comunidade. “Acham que a mulher é sempre menos do que o homem”, ela afirma. Ela tem vontade de fazer um movimento de mulheres dentro da comunidade, mas muitas ainda têm muito receio. Ela quer saber por que as mulheres têm menos direitos dentro da aldeia. A atitude dela, de se impor, ela afirma, já fez com que tivesse que sair de uma aldeia, porque o cacique não aceitava que ela, como mulher, se impusesse, e mandou-a com sua família embora. “É mania de poder dos homens”, diz. Ela conta de um caso que aconteceu com o marido dela, decorrente de um desentendimento com o cacique de uma aldeia, em que o cacique aplicou-lhe o castigo de trabalhar em uma plantação por três dias. Nessa aldeia, Eunice sentia que o cacique trazia muito as leis de fora para a comunidade, confrontando a lei estatal com a indígena. Ela explica que a lei Guarani é baseada na religião, respeito pela natureza, pelo outro, pelas crianças, pela água. São determinados vários rituais, desde quando são crianças. A professora diferencia a lei indígena da lei indigenista. O cacique batalha pela comunidade lá fora com as leis indigenistas, para proteger a lei indígena aqui dentro. Muita gente que conhece a lei indigenista, ela diz, quer parar de seguir a lei indígena. “Acho que não pode colocar as leis indigenistas dentro da comunidade, isso é ruim para as leis indígenas”. Ela conta, também, que o pajé é o professor, o conselheiro, o agrônomo, o médico, tudo gira em torno dele, muitas regras são mitológicas e partem dele. “Não há preço que pague a pureza do ensinamento da lei interna”. Ela acha que é possível usar as duas leis, uma respeitando a outra, mas “a lei indígena é bem mais fácil de seguir”. Ela conta que em uma reunião do magistério, falando sobre a educação indígena diferenciada, um mais velho criticou: “Toda nossa história oral, nossa memória perdeu para isso aqui”, apontando para uma caneta. Para ele, a educação indígena estaria piorando com os recursos dos brancos. Geraldo Moreira tem 34 anos e nasceu em Morro dos Cavalos. Mora há vinte anos em M’Biguaçu e é vice-cacique e professor. Hoje faz Pedagogia à Distância na Univali. Sua família já chegou a morar fora da aldeia, com medo dos confrontos da demarcação em Morro dos Cavalos. Depois disso, foram para M’Biguaçu. Moraram 130 quatro anos fora da aldeia, mas sofreram muito com o preconceito. Na aldeia só falta espaço, diz que “daqui a vinte anos não sei o que vai acontecer”. Ele reclama que: “de 1.500 ha que tem ao redor, nos deram somente 60ha”. Apesar disso, explica que estão reivindicando a ampliação. Sobre o direito comunitário, Geraldo elucida que as normas são feitas pelas lideranças e que cada aldeia tem as suas regras. Adriana Moreira nasceu na Aldeia de Cacique Doble (Cacique Doble – RS) e lá ficou por 22 anos. Estudou até a terceira série, com dez anos começou a trabalhar na roça e também fazia faxina em casas de fora da aldeia. Chegou a morar dois anos na casa de um casal para quem trabalhava de empregada doméstica. Está desde 2003 em M’Biguaçu, onde mora o pai e boa parte da família. Diz que na sua infância não tinha como ir à escola, que só havia fora da aldeia. Fica feliz que hoje as aldeias têm mais escolas indígenas. Destaca que existe a regra do mutirão, quando todas as famílias ajudam a fazer alguma atividade dentro da aldeia, como limpar. Adora a aldeia de M’Biguaçu, diz que a vida é muito boa lá. Márcio Moreira, de 22 anos, mora em Morro dos Cavalos. Ele também teve a experiência de ir morar com outra família e de querer voltar para a aldeia, diz não ter conseguido se adaptar e quis voltar para sua família biológica. Participa de alguns Conselhos de fora da aldeia, para defender os interesses da comunidade. Dentro da aldeia, é o responsável pelo coral das crianças. Está se articulando com jovens de outras aldeias, até de outros estados, para formar um grupo jovem Guarani. Sobre o direito comunitário, explica que quem que mora dentro da aldeia tem que ajudar todos os outros. Se a família que não tiver ajudando deixar de ajudar três vezes, segundo ele, tem que conversar com a família. “A gente pergunta por que essa família não tá ajudando dentro da comunidade. Tem que ajudar a limpar, a construir. Teve uma família misturado com não-indígena que a gente mandou embora, porque não quiseram respeitar a regra”, diz. Dentro da comunidade não pode andar de noite. Isso quem fala são os mais velhos, os rezadores. Ele explica que é “porque a gente não vê de noite os seres que a gente não vê. Então é perigoso, pode ter alguma coisa no caminho e a gente não sabe. Então tem que ficar dentro de casa”. Márcio também fala que quando um menino gosta de uma menina, primeiro tem que comunicar a família dela e depois o cacique. Principalmente tem que pedir autorização da família, o cacique só aconselha. Outro ponto importante que ele aborda é que cada aldeia tem suas regras e sua forma de resolver os problemas. 131 CONCLUSÃO As entrevistas realizadas pretenderam mostrar a relevância de ouvir os povos indígenas com cuidado. Obviamente o assunto não foi esgotado, considera-se que muitas outras entrevistas teriam que ser feitas para compreender completamente todas as linhas pesquisadas dentro das aldeias; mas o objetivo era demonstrar a relevante atitude de escutar para a construção de um pluralismo jurídico indígena no Brasil. Só com a disposição de ouvir os povos indígenas uma melhor legislação será construída para eles e, nesse sentido, por eles. Apenas com o interesse de aprender sobre seu direito comunitário, esse direito pode ser legitimado e reconhecido. Com as entrevistas, mesmo assim, pode-se concluir que o direito comunitário indígena de fato existe. Vimos que a antropologia é muito importante para apreender como vive uma sociedade diferente da nossa. O cuidado das técnicas antropológicas e os dados consistentes de sua metodologia e teoria permitem trazer as reivindicações dos povos para a legislação estatal e descobrir os seus diferentes direitos comunitários. Concluímos também que é preciso, para isso, superar a idéia de que a “sociedade brasileira” é melhor e mais apta a dizer o direito do indígena do que ele mesmo ou que seu direito é tão superior ao direito comunitário indígena que este não seja merecedor de ser chamado de direito. Este trabalho trouxe o pluralismo jurídico apresentado por Antonio Carlos Wolkmer para questionar, também, toda a produção jurídica na área de direitos indígenas já realizada desde a invasão européia. Foram abordadas as principais leis produzidas pela Metrópole e depois pelo Império e pela República. Com isso, demonstramos como os interesses não-indígenas foram sobrepostos às necessidades dos povos indígenas desde o começo. De acordo com os interesses da Metrópole, da Colônia, do Império e da República, leis foram feitas e desfeitas, os índios ora foram considerados escravos, ora não foram; ora amigos, ora inimigos, porque a sociedade envolvente queria tomar suas terras ou o seu trabalho; ora capazes, ora incapazes, conforme o governo quis controlar também sua autonomia. Também demonstramos que a tutela que o Estado deveria exercer, com o sentido de proteção, foi propositalmente e etnocentricamente confundida com a capacidade civil, e que ainda hoje esse erro é mantido nas interpretações da doutrina e da jurisprudência, a partir da total falta de interesse em aprender mais sobre o assunto. 132 O etnocentrismo também faz com que esses falsos intérpretes demonstrem que nada sabem sobre cultura, quando dizem que índios deixam de pertencer à cultura indígena quando usam roupas, falam português, têm participação ativa política, usam celular. Além disso, vimos que esse discurso que não relativiza culturas é utilizado para tentar descaracterizar grupos indígenas e tomar suas terras para a produção capitalista da elite. Enfim, concluímos que os índios brasileiros estão hoje ainda em péssimas condições em decorrência de quinhentos anos de produção legislativa rara, rasa e desfavorável; de construção hermenêutica e doutrinária fraca e etnocentrista; e da impregnação do monismo jurídico, que impede a sociedade de perceber quem são os sujeitos coletivos mais qualificados para construir seu próprio direito: os povos indígenas. 133 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2007. AGOSTINHO, Pedro. Incapacidade Civil Relativa e Tutela do Índio. In: SANTOS, Silvio Coelho. (Org.). O índio perante o direito. Florianópolis (SC): Ed. UFSC, 1982. ALBUQUERQUE, Antonio Armando Ulian do Lago. Multiculturalismo e o direito à autodeterminação dos povos indígenas. Florianópolis, 2003. 330 f. Dissertação (Mestrado). UFSC. Centro de Ciências Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito. 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