Dor orofacial e cuidados paliativos orais em

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dor orofacial
Arquivo pessoal
Dor orofacial e cuidados paliativos
orais em pacientes com câncer
E
MBORA O CÂNCER SEJA UMA DOENÇA QUE EXIJA
PROFISSIONAIS ALTAMENTE TREINADOS EM DIFE-
José Tadeu Tesseroli de Siqueira
* Cirurgião-dentista, supervisor da
Equipe de Dor Orofacial. Divisões
de Odontologia e Neurologia do
Instituto Central do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo
(FMUSP).
Contato:
[email protected]
Sumatra Jales
*Doutora em ciências pelo
Programa Neurologia da Faculdade
de Medicina da Universidade de
São Paulo (FMUSP); cirurgiãdentista da Equipe de Dor Orofacial
e da Divisão de Odontologia das
Unidades Médicas e de Apoio do
Instituto Central do Hospital das
Clínicas da FMUSP.
Contato:
[email protected]
Rita de Cássia B. Vilarim
* Cirurgiã-dentista da Divisão de
Odontologia do Instituto Central
do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo
(FMUSP).
Contato:
[email protected]
RENTES ÁREAS E ESPECIALIDADES, O SEU DIAG-
nóstico, e muitas vezes a qualidade de vida dos
pacientes, pode depender de profissionais da saúde
dedicados ao diagnóstico e controle da dor crônica
em geral.
A dor no câncer é um bom exemplo de como
vários fatores podem contribuir para a instalação e
a manutenção da dor crônica, inclusive no segmento facial. Além disso, ela contribui para o diagnóstico precoce do câncer, embora possa ocorrer
durante ou após o tratamento do tumor, exigindo
reavaliações constantes para identificar suas causas
e melhorar a qualidade de vida dos doentes.
Portanto, o câncer é uma doença que realça a
importância de avaliação padronizada dos pacientes
com queixas de dor, de modo a não se restringir
apenas a algumas estruturas da boca, mas a examinar toda a região de cabeça e pescoço, e também de
incluir exames subsidiários, como os de imagens e
os hematológicos. A despeito dos avanços no diagnóstico e tratamento do câncer de boca, esta ainda
é uma área que necessita de atenção, de modo a
conjugar a necessidade dos pacientes, por problemas decorrentes do tumor, com a possibilidade da
existência de doenças odontológicas comuns, muitas delas infecciosas, que comprometem mais ainda
sua precária condição de saúde.
Além da mucosite oral, muito estudada pela sua
importância clínica, existem duas outras situações
distintas que dizem respeito à dor orofacial decorrente do câncer, que ainda são precariamente abordadas entre nós mas que merecem atenção. A
primeira delas diz respeito à dor orofacial como sin-
toma inicial do câncer, quando o paciente nem
supõe que possa ter essa doença, e que o leva a procurar assistência médica ou odontológica. A segunda refere-se aos pacientes com câncer avançado,
já sem possibilidades de cura, e que compromete
a cavidade oral, como ocorre no câncer de cabeça
e pescoço.
O câncer de boca
A denominação “câncer de boca” é amplamente
conhecida e engloba tumores primariamente de origem epitelial. A frequência de tumores primários
de cabeça e pescoço é de cerca de 40% na boca,
25% na laringe, 15% na orofaringe e hipofaringe,
7% nas glândulas salivares e 13% em outras áreas.
O câncer de boca ocorre em cerca de 3% dos
cânceres que acometem o ser humano. A dor chega
a ocorrer em cerca de 60% dos pacientes que aguardam tratamento e em cerca de 30% dos pacientes
já tratados, e afeta as funções orais em diferentes níveis de complexidade. Esse tipo de câncer tem
ótimo prognóstico quando detectado precocemente, mas infelizmente nem sempre ele é identificado nas fases iniciais.
Entretanto, quando a dor é o primeiro e, muitas
vezes, o único sintoma inicial do câncer de boca,
nem sempre esse tipo de doença é considerado durante o diagnóstico diferencial da dor.
Dor orofacial no câncer
A dor orofacial é um sintoma frequente em pacientes com câncer de cabeça e pescoço. Neoplasias
de cabeça e pescoço, ao invadir as estruturas adjacentes, tais como a ATM e os músculos da mastigação, podem causar dor e disfunção mandibular.
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Então os clínicos devem ficar atentos para essa possibilidade, principalmente quando a dor é persistente ou recorrente, pois em pacientes
ainda não diagnosticados os sintomas assemelham-se àqueles produzidos por afecções ou doenças benignas.
A dor orofacial no câncer pode ocorrer em três situações distintas:
Pré-diagnóstico: sintoma inicial;
Pós-diagnóstico: durante ou após o tratamento;
Em doentes sob cuidados paliativos.
Dor orofacial como sintoma inicial de câncer: antes
do diagnóstico
Quando a dor é o motivo de procura por atendimento, e ainda não
foi relacionada com o câncer, ela é tipicamente aguda, ou seja, de início
recente, e pode ser o sintoma inicial que leva o paciente a procurar
atendimento médico ou odontológico. Assim, é indispensável que o
câncer seja incluído no diagnóstico diferencial das dores orofaciais.
Embora os estudos sobre dor como manifestação inicial de cânceres
de cabeça e pescoço, incluindo a boca, sejam escassos, são inúmeros
os relatos de casos clínicos mostrando que tumores frequentemente
são confundidos com outras dores benignas, como dor de dente ou
dor na ATM ou disfunção mandibular. A ATM também pode ser afetada por tumores e apresentar quadro clínico semelhante ao produzido
por distúrbios do disco articular ou osteoartrite. Tumores malignos da
orofaringe têm progressão lenta e geram dor que simula a dor da disfunção mandibular.
Os tumores malignos da base do crânio, representados geralmente
por carcinomas ou sarcomas da rinofaringe, podem erodir a estrutura
óssea ou invadir a cavidade craniana pelos orifícios naturais e comprimir ou destruir o gânglio trigeminal, as divisões periféricas ou a raiz
do nervo trigêmeo e originar dor facial, geralmente constante, e anormalidades sensitivo-motoras trigeminais e frequentemente lesão de outros nervos cranianos. Os processos neoplásicos da face, cavidade oral,
nasal ou seios da face também podem causar dor facial nociceptiva
que, na maioria das vezes, apresenta características diferentes das de
neuralgia trigeminal.
Infelizmente esse tema ainda é abordado precariamente quando se
discute o diagnóstico diferencial das dores orofaciais, mas espera-se
que os clínicos envolvidos nessa atividade fiquem atentos a esse importante problema, pois o diagnóstico precoce melhora o prognóstico
do doente. O câncer é um bom exemplo da importância de avaliação
padronizada dos pacientes com queixas de dor, de modo a não restringir o exame apenas a algumas estruturas da boca, mas de examinar
toda a região de cabeça e pescoço, e também de incluir exames subsidiários, como de imagens ou laboratoriais.
Dores recorrentes, atípicas ou que não respondem a nenhum tipo
de tratamento devem ser motivo de reavaliação periódica. A avaliação
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inicial do doente com suspeita de dor orofacial por câncer deve seguir
a rotina para o diagnóstico de dor, lembrando que os exames de imagem ou complementares são indispensáveis.
Dor orofacial durante ou após o tratamento do câncer:
após o diagnóstico
Como verificado na etiologia da dor do câncer, a dor depende do
tipo, localização, estágio de evolução e tratamento do tumor. Ela também pode instalar-se cronicamente após o tratamento e controle
da doença.
A dor orofacial nesses pacientes pode ser multifatorial e estar relacionada ao câncer, ao seu tratamento ou a morbidades associadas.
Quando decorrente do câncer de boca, pode ser devido a massa tumoral, compressão, ulceração, inflamação e invasão tumoral. Quando
decorrente do tratamento, pode ocorrer durante ou após o tratamento
e pode ser devido a efeitos agudos e tardios. Entre eles, merece destaque a mucosite oral, que contribui para o agravamento da dor e a piora
da qualidade de vida desses pacientes. Outros fatores podem contribuir
para a dor orofacial, como infecções, lesões cicatriciais, bem como fibroses decorrentes de cirurgias e outros tratamentos.
A ressecção cirúrgica tumoral pode causar lesão nervosa resultando
em dor neuropática crônica. As dores musculoesqueléticas crônicas
podem estar presentes e afetar ombro (31%-38,5%), pescoço (4,9%34,9%), articulação temporomandibular (4,9%-20,1%), cavidade
bucal (4,2%-18,7%) e a face, além de outras regiões da cabeça e pescoço (4,2%-15,6%).
A toxicidade do tratamento oncológico compromete a respiração,
comunicação e alimentação. A ingesta oral fica comprometida pela dificuldade de deglutição (disfagia e odinofagia), alteração do paladar,
trismo, xerostomia e mucosite, bem como devido à presença de feridas
intra ou extraorais. Medidas terapêuticas e cuidados paliativos são necessários nesses pacientes, particularmente em fase terminal, em que
a condição pode se tornar dramática.
Mucosite oral
A mucosite oral é a inflamação com ulceração dolorosa frequente
na mucosa bucal. É a mais dolorosa complicação decorrente da quimioterapia e radioterapia da região de cabeça e pescoço. É consequência de dois mecanismos principais: a toxicidade terapêutica utilizada
sobre a mucosa e a mielossupressão gerada pelo tratamento. Sua fisiopatologia pode ser descrita de forma simplificada em quatro fases interdependentes: inflamatória/vascular, epitelial, ulcerativa/bacteriológica e de reparação. A mucosite grave obriga à interrupção do tratamento, funciona como fator limitante da dose, compromete a higiene,
a ingesta oral e a nutrição do doente e pode persistir por uma a duas
semanas após o término do tratamento.
Características clínicas: os pacientes sentem dor e
queimação na boca, que piora com a mastigação, e
são visíveis úlceras pseudomembranosas de diferentes dimensões em diversas áreas da boca.
Tratamento da mucosite: é sintomático na maioria
das vezes, baseia-se em minuciosa higiene bucal,
orientação dietética, tratamento de infecções associadas, agentes tópicos e analgésicos. A menos que
as infecções secundárias tornem-se graves, a mucosite começa a diminuir dentro de poucas semanas
após o término do tratamento. A solução de clorexidina reduz o quadro clínico, tornando-o menos
intenso e com graduações menores de mucosite, reduzindo o desconforto e a dor. A aplicação de anestésico local é útil para aliviar a dor. O laser de baixa
potência tem demonstrado eficácia na redução de
intensidade e frequência das mucosites orais quando aplicado previamente à radioterapia.
Osteorradionecrose
É definida como a exposição do osso irradiado
na ausência de recorrência tumoral ou de tumor
residual. É a mais grave complicação tardia da radioterapia e decorre da obliteração vascular e diminuição do suprimento vascular nos tecidos irradiados; essa redução da vascularização diminui o
potencial de cicatrização e aumenta o risco de infecções oportunistas.
Infecções odontogênicas crônicas (periapicais
ou periodontais) podem predispor à osteorradionecrose dos maxilares em doentes irradiados e
aumentar esse risco após a radioterapia. Sempre
que possível, eliminar previamente os focos; as
exodontias pós-irradiação devem ser minimamente traumáticas.
Características clínicas: pode se manifestar como
uma pequena exposição óssea assintomática que
pode permanecer estável por anos e cicatrizar com
tratamento conservador. Em outros casos, pode
progredir gradualmente, produzir sequestros e
apresentar fístulas gengivais e cutâneas. A sintomatologia é complexa e variada, porém evolutiva. Dor
é a queixa mais frequente; disestesia e parestesia
podem ocorrer ao comprometer o nervo alveolar
inferior. Halitose em níveis variados pode ser outro
sintoma importante, além de trismo, edema e fís-
tulas gengivais ou cutâneas, simples ou múltiplas e
fraturas patológicas.
Tratamento da osteorradionecrose: para os casos brandos, a limpeza periódica com irrigações, antibioticoterapia e a proteção temporária da área exposta
são preconizadas. Na presença de sequestros ósseos, seu tratamento consiste no debridamento, remoção dos sequestros e antibioticoterapia. O
oxigênio hiperbárico promove neoformação vascular e aumento do número de células, favorecendo a
cicatrização dos tecidos comprometidos.
Xerostomia/hipossalivação
A xerostomia é definida como a sensação subjetiva de boca seca resultante da redução do fluxo
salivar e é a complicação mais comum resultante
da radioterapia e quimioterapia para tratamento
do câncer de cabeça e pescoço. Resulta da lesão
das glândulas salivares e sua magnitude é dose-dependente. Quando as glândulas salivares estão presentes no campo irradiado, a xerostomia torna-se
presente já na segunda semana (1500 a 2000cGy),
alterando a saúde geral do paciente, que fica com
dificuldade para se alimentar, falar e dormir.
Como o grau de xerostomia depende do volume
de tecido irradiado, a radioterapia com intensidade modulada (IMRT) – um avanço recente –
permite a administração de alta dose de radiação
ao tumor-alvo, reduzindo a exposição dos tecidos
normais adjacentes. O uso de drogas citoprotetoras como a amifostina também reduz a xerostomia radioinduzida.
Características clínicas: a mucosa torna-se ressecada,
eritematosa, atrófica e ulcerada. O paciente pode
queixar-se de ardor, disfagia, disartria e ardência na
mucosa bucal.
Tratamento da xerostomia: é puramente sintomático,
com a administração de substitutos salivares e
orientação dietética. Reforço à higiene bucal devido
ao elevado risco de cárie pela perda da capacidade
protetora da saliva.
“A mucosite grave
obriga à interrupção
do tratamento,
funciona como fator
limitante da dose,
compromete a
higiene, a ingesta
oral e a nutrição
do doente“
Candidose
A candidose bucal é uma infecção comum em
pacientes sob tratamento de neoplasias malignas
das vias aerodigestivas superiores. A colonização da
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mucosa bucal pode ser encontrada em até 93% desses pacientes, enquanto a infecção por Candida pode ser vista em 17%-29% dos indivíduos submetidos à radioterapia.
Características clínicas: os pacientes podem ser assintomáticos ou apresentar uma grande variedade de sintomas, como queimação, disgeusia
e, se acometer o esôfago, disfagia.
Tratamento da candidose: uso de antifúngicos tópicos como a nistatina
100.000UI, e, para os casos resistentes, a anfotericina B. Não se deve esquecer de minimizar fatores contribuintes para essa condição, como a hipossalivação, reduzindo assim o risco de infecção crônica ou recorrente.
Dor orofacial em doentes sob cuidados paliativos
Pacientes com câncer de cabeça e pescoço, particularmente quando
atinge a cavidade oral, têm sérias restrições funcionais e grande comprometimento das funções orais. Esses problemas tornam-se complexos
quando o câncer é incurável e os pacientes são submetidos a cuidados
paliativos. Nessa condição, os sintomas habituais agravam-se e nem
sempre são curáveis, necessitando de atenção e cuidados especiais.
Dor, ulceração, sangramento e trismo são os mais importantes sintomas em casos de câncer de boca avançado. A respiração e a comunicação também podem ser afetadas pela presença de tumores
volumosos, comprometimento neuromuscular secundário ao crescimento tumoral ou edema de faringe e laringe.
A falta de tratamento ou o tratamento inadequado resultam em
desconforto e prejuízos nutricionais, comprometendo mais ainda a
qualidade de vida desses doentes. O cirurgião-dentista contribui fornecendo intervenções próprias de sua área de atuação profissional,
além de cuidados de suporte que assegurem uma boca mais saudável,
livre de infecção e dor.
Doenças bucais e morbidades associadas
A existência de doenças orais, como raízes dentárias infectadas ou
doença periodontal, odontalgias e mialgias mastigatórias, deve ser detectada e tratada, pois contribui para agravar o estado de saúde do paciente de câncer.
Para minimizar as complicações orais, a prioridade nesses pacientes
é a higiene oral, minimamente, de modo a manter a saúde oral, reduzir
a irritação, a lesão tecidual e promover melhor conforto.
Reavaliações periódicas são sempre necessárias e a boca deve ser
examinada para avaliar possíveis recidivas do tumor e também para
investigar a condição de saúde bucal, já que doenças odontológicas
podem causar infecção e dor e confundir o quadro clínico.
Conclusão
Profissionais que tratam pacientes com dor orofacial não podem
desconsiderar o câncer como uma de suas causas. No primeiro momento a dor pode ser o alarme da ocorrência do tumor e um indicador
que leva ao diagnóstico. Num segundo momento, é necessário que o
especialista em dor orofacial conheça essa área e se prepare para intervir em todas as etapas que requeiram sua participação.
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