CAPÍTULO 8 “VOCÊ TAMBÉM ESTÁ ESCREVENDO BRASILEIRO”: UMA ANÁLISE DA COLOCAÇÃO DE CLÍTICOS EM CARTAS DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO A MARIO DE ANDRADE Marco Antonio Martins1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Introdução Em cartas enviadas a Luís da Câmara Cascudo, entre 1924 a 1944, Mário de Andrade assume que ele próprio, assim como o folclorista norte-rio-grandense, “estão escrevendo brasileiro”. A consciência de Mário de Andrade de que ele “não escreve mais português” é sobremaneira forte que chega a assumir que “nós não herdamos de Portugal uma língua: herdamos uma gramática”, como se pode observar nos fragmentos de duas das referidas cartas, transcritos a seguir. O homem não vive só. Agora me humanizo. O erro foi benéfico. Imensamente. Em todos os prejuízos o erro vale. Mas erro milhor do que a verdade: produz. É activo. Em certas linhas actuais, no romance Fraulein já estou milhorzinho. Vamos a ver onde vou parar. E tenho consciência de que fugindo do regionalismo (um perigo) não escrevo mais português. Estou escrevendo brasileiro. Deus me ajuda! (Mário, 26 de setembro de 1924 – grifo meu). Você também está escrevendo brasileiro. Procure vivificar ainda mais esse proposito. Lembrese que o português não pode ser, tal como ritmado (e ilegível) em Portugal, o nosso meio oral de expressão: outra terra, clima, novos costumes, preocupações, ideais. Aliás nós não herdamos de Portugal uma língua: herdamos uma gramatica. Foi o que marcou por muito tempo a ideia de sermos sintaticamente, vocabularmente nacionais. O preconceito ainda perdura mesmo nos mais francos (Mário, 4 de outubro de 1925 – grifo meu). 1 Professor Adjunto II do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFRN. Coordenador da equipe do Rio Grande do Norte do Projeto para a História do Português Brasileiro. 218 Com o objetivo de mostrar que de fato esses dois grandes representantes do movimento modernista e dos estudos do folclore brasileiro escrevem mesmo tendo em vista padrões da gramática do Português Brasileiro (PB) – para além dos padrões de uma outra gramática do Português, como o Europeu (PE), por exemplo – , apresento, neste capítulo, uma análise de um fenômeno já bastante descrito e analisado e que reflete propriedades de uma gramática vernacular brasileira: a sintaxe de colocação dos pronomes clíticos. Tomo para análise três contextos relevantes em relação à colocação de clíticos no que diz respeito ao diagnóstico da gramática do PB e da gramática do PE, quais sejam (i) orações finitas não dependentes com um único verbo – contextos XV e V1 – e (ii) construções com complexos verbais. Na análise, serão quantificadas apenas as ocorrências encontradas nas cartas de Câmara Cascudo, muito embora se faça menção aos padrões encontrados nas cartas de Mário de Andrade. O mesmo conjunto de cartas que forma o corpus em análise – as cartas trocadas entre Luís da Câmara Cascudo e de Mário de Andrade entre 1924 a 1944 – foi extraído de duas fontes: da dissertação de mestrado de Edna Maria Rangel de Sá Gomes, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFRN, em 1999, e a edição, publicada em 2010, organizada por Marcos Antonio de Moraes. Por se tratar da correspondência trocada entre dois grandes intelectuais, as cartas não serão consideradas como escrita informal, estilo que, via de regra, marca o gênero textual cartas pessoais. Tendo em vista o corolário proposto por Anthony Kroch para o estudo da mudança sintática via competição de gramáticas (KROCH, 1989, 1994, 2001, 2003), minha principal hipótese de trabalho é a de que serão encontrados, nas cartas, diferentes padrões empíricos de colocação de clíticos que poderão ser interpretados como reflexos de diferentes gramáticas do português: padrões conservadores da gramática do PE, associados a uma normatização sociolinguisticamente marcada; e padrões da gramática do PB, gramática vernacular de ambos os personagens envolvidos: o “príncipe do Tirol” e o paulista modernista, ambos nascidos em fins do século XIX, 1889 e 1893, respectivamente. Essa hipótese de trabalho prediz que, nas cartas, serão encontrados dados relacionados à gramática do PB – contruções com próclise a V1 e com próclise ao verbo não finito em estruturas verbais complexas –, assim como dados associados à gramática do PE – construções com ênclise em contextos XV. 219 O capítulo está dividido em três seções. Em 1, apresento alguns pressupostos teóricos que ajudam a entender a relação entre variação e mudança na sintaxe, ou sobre o “escrever tendo em vista diferentes gramáticas”. Em 2, retomo alguns estudos sobre os padrões empíricos de colocação dos pronomes clíticos em textos escritos por brasileiros, sendo que muitos desses foram desenvolvidos no âmbido do Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB) e publicados nos volumes que reúnem as apresentações nos seminários realizados no âmbito desse projeto. Meu objetivo, nessa seção, é apresentar um quadro geral dos padrões de colocação de clíticos na escrita brasileira, considerando três contextos bastante específicos, para um diagnóstico da implementação da gramática do português do (e no) Brasil. Em 3, apresento a análise dos padrões de colocação nas cartas de Câmara Cascudo e Mário de Andrade. 1. Gramática e padrões de variação (ou sobre o conceito de gramática) Um dos alicerces teóricos da teoria gerativa é o de que os indivíduos são geneticamente dotados de uma gramática numa visão biológica. Para Lightfoot (1999, p. 18), “[...] há uma entidade individual que se desenvolve na mente/cérebro das pessoas que incorpora o sistema de conhecimento linguístico que uma pessoa tem; nós chamamos essas entidades de gramática”2. Assumida essa perspectiva de análise, o que uma criança adquire quando entra em contato com uma determinada língua não é a língua(gem) como uma propriedade de algum organismo social, de uma comunidade, cultura ou nação, mas uma gramática particular. Nesse sentido, a mudança linguística no âmbito da teoria da gramática, desde os trabalhos pioneiros de D. Ligthfoot, tem sido associada ao processo de aquisição da língua materna. Há mudança linguística quando, no processo de aquisição, uma mudança na gramática dessa língua é atestada3. Uma grande questão que se levanta quando associamos mudança linguística à aquisição de uma outra gramática é como coadunar uma definição de mudança centrada nos pressupostos da teoria da gramática com o fato de que, num processo de mudança sintática, no curso do tempo, uma forma/estrutura é substituída por outra no uso. Do original: there is an individual entity which develops in a person’s mind/brain, which embodies the system of linguistic knowledge that a person has; we call these entities grammars. (Tradução minha). 3 Para uma revisão das diferentes correntes teóricas no que diz respeito à mudança sintática no âmbito do gerativismo, ver o capítulo 3 de Sônia Cyrino, neste volume. 2 220 Uma possibilidade de resposta para essa questão é apresentada por Anthony Kroch (KROCH, 1989, 1994, 2001, 2003) quando o autor oferece um modelo de análise em que todo processo de mudança na sintaxe pode ser entendido como um período em que duas (ou mais) gramáticas convivem em uma comunidade, num tipo de “diglossia internalizada”. A mudança entendida como um processo pressupõe que, para que a gramática de uma língua mude, seja necessário um período em que formas variantes convivam por um período de tempo em uma mesma comunidade – uma variante conservadora e uma variante inovadora. A variação linguística empiricamente observada em textos históricos, nesse sentido, refletiria não duas (ou mais) opções geradas por uma mesma gramática, mas diferentes estruturas geradas por diferentes gramáticas. De acordo com Kroch, a diglossia e o bilinguismo são evidências de que um falante possui uma competência que abarca o domínio de diferentes sistemas linguísticos, isto é, o domínio de mais de um sistema, ou de mais de uma gramática. A variação linguística pode, nesse sentido, ser entendida, muitas vezes, como o reflexo de “escolhas” que são somente probabilisticamente influenciadas por fatores tais como o contexto e a situação. O autor apresenta dois fortes argumentos a favor de sua proposta. O primeiro diz respeito ao fato de que, como muitos estudos sobre diacronia mostraram, toda mudança segue uma curva em S; ou seja, a mudança refletida em dados empíricos nunca se dá de maneira abrupta, de modo que formas conservadoras vão sendo substituídas gradativamente por formas inovadoras. Por um determinado período de tempo, há variação entre duas (ou mais) formas. Outro argumento está centrado no fato de que o ser humano é sensível a frequências de uso em suas mais variadas atividades, o que inclui a atividade linguística. De modo que há, no processo de aquisição, pelo qual a criança adquire a língua vernacular e as outras opções linguísticas que ela aprende em outras instâncias (sociais, regionais etc.), uma assimetria (pensada aqui como uma “falha” de transmissão). Em outras palavras, por algum motivo cuja origem é sócio e psicolinguística, a frequência de uso de uma dada forma (atrelada às feições de uma determinada gramática) é interpretada erroneamente, o que motiva uma pequena e 221 constante assimetria entre um sistema/uma gramática (o/a vernacular4) e outro/outra (adquirido/adquirida tardiamente). Segundo essa proposta, sempre que a frequência superficial de uso de uma dada forma/estrutura estiver mudando, os falantes são competentes para associar corretamente tais mudanças com suas origens (causas) gramaticais. A proporção da mudança, desse modo, segue uma escala logística (frequência de uso) que motiva um efeito de cadeia – correlacionado ao problema empírico do encaixamento linguístico, como proposto em Weinreich, Labov e Herzog (1968). Adiante, uma das formas se torna obsoleta por preferências estilísticas ou flutuações estatísticas ou as duas formas se tornam estáveis no sistema devido a diferenças de sentido e/ou de propriedades gramaticais. O conjunto de contextos que mudam ao mesmo tempo em uma língua não é definido pelo agrupamento de uma propriedade superficial, como o aparecimento de uma palavra ou de um morfema particular, mas pela estrutura sintática, cuja existência pode somente ser o produto de uma análise gramatical abstrata independente dos falantes. Nessa perspectiva, a reflexão sobre o processo de mudança linguística é um convite à “garimpagem” de tais fenômenos “superficiais” em busca da origem, ou da fonte, de tal “desvio” no curso do sistema. Segundo Kroch (2001), a unidade da gramática se vê nas inclinações das curvas e tudo muda junto porque a origem da mudança é uma só. 3 A colocação de clíticos na escrita brasileira e o diagnóstico da gramática do PB 3.1 Padrões empíricos Apresento, nesta seção, uma revisão de estudos que descreveram e analisaram a sintaxe de colocação dos pronomes clíticos na história do PB. Como já mencionado, muitos desses estudos foram desenvolvidos, por diferentes pesquisadores, no âmbito do Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB). Mais especificamente, 4 O vernáculo é a língua sempre mais automatizada, mais psicologicamente rápida e mais acessível nos processos de produção e processamento da fala. Para Labov (2003 [1969], p. 241), um estilo mais formal está, necessariamente, associado a um processo mental atrelado a uma maior atenção à fala que aquele de um estilo mais casual e espontâneo do uso da linguagem, para o qual, segundo o autor, o mínimo de atenção é dado. 222 retomarei resultados de autores que consideram textos brasileiros do século 19 (CARNEIRO, 2005; DUARTE; PAGOTTO, 2005; MARTELOTTA et al., 2009; CARNEIRO; ALMEIDA, 2009); textos dos séculos 19 e 20 (PAGOTTO, 1992; MARTINS, 2009); e textos do século 20 (SCHEI, 2003). Nesta retomada, me voltarei apenas a três contextos em que a variação ênclise (Vcl)/próclise (clV) é reveladora da gramática do PB: orações finitas não dependentes em que o verbo é antecedido por um sujeito não focalizado, um advérbio modal ou um sintagma preposicional – contexto XV; orações finitas não dependentes em que o verbo está na primeira posição absoluta na oração/período – contexto V1; e orações com complexos verbais – contexto V1V2. CONTEXTO XV(SV) Analisando textos brasileiros do século 19, Carneiro (2005) apresenta dados interessantes em relação à próclise no contexto XV. A autora descreve os padrões de ordenação de clíticos num corpus de cartas pessoais escritas por brasileiros, nascidos no litoral e no sertão baiano no período que compreende o século 19, entre 1809 e 1907, mais especificamente. De modo geral, a autora encontra padrões diversificados na ordenação de clíticos. Retomarei, no entanto, no que segue, apenas aqueles relacionados aos contextos de variação diacrônica em orações com verbos simples. Carneiro observa, ainda, que a proporção de clV nas cartas é sensível ao local de nascimento (costa ou sertão baiano) e ao grau de instrução dos remetentes (com ou sem formação superior ou equivalente). Os resultados mostram que a proporção de clV é bastante elevada nas cartas de brasileiros cultos nascidos no final do século 18 e início do século 19 na costa (67% e 60%), e não tão significativa nas cartas de brasileiros semicultos nascidos no início do século 19 no interior (39%). Paradoxalmente, é nos textos destes últimos que Carneiro encontra uma maior recorrência de construções características da gramática do PB. Considerando o ano de publicação das cartas, os percentuais de próclise nesse contexto encontrados por Carneiro são de 69% para a primeira metade e 49% para a segunda metade do século 19 e 34% para a primeira metade do século 20. Retomarei esses percentuais no gráfico da figura 1, a seguir. 223 Duarte e Pagotto (2005)5 observam a colocação de clíticos em cartas pessoais dos avós Ottoni, escritas entre 1879 e 1892, na segunda metade do século 19, portanto. No que diz respeito às construções XV, os autores encontram: (i) 10 construções em que o verbo é antecedido por um sintagma preposicional, dentre as quais 8 são ocorrências nas cartas da avó, todas com próclise, e 2 nas cartas do avô (1 com próclise e 1 com ênclise); e (ii) 9 construções com SN sujeito pré-verbal, dentre as quais, 5 são extraídas das cartas da avó (4 ocorrências (80%) com próclise e 1 ocorrência (20%) com ênclise) e 4 são extraídas das cartas do avô (2 ocorrências (50%) com próclise e 2 (50%) com ênclise). Se somarmos as próclises nos dois contextos, encontramos um percentual de 74% de clV em contexto XV nas cartas da segunda metade do século 196. Também tomando um corpus constituído de cartas pessoais do século 19, a equipe do PHPB do Rio de Janeiro apresenta, em Martelotta et al. (2009), uma análise de fenômenos morfossintáticos – sobre ordem e tratamento – em 18 cartas de homens ilustres a Rui Barbosa, num período correspondente aos anos de 1866 a 1899. No que se refere à colocação de clíticos nas “cartas a Rui Barbosa”, os autores encontram 475 ocorrências, 387 com formas verbais simples e 88 com complexos verbais. No que diz respeito às construções com formas verbais simples, encontram 41 ocorrências que são classificadas como estruturas V2, em que o verbo é antecedido por um sujeito, um sintagma preposicional ou um advérbio. Destas, 20 (49%) são construções com próclise. Os resultados relacionados ao contexto V1 e aos complexos serão retomados a seguir. Ainda considerando textos escritos por brasileiros no século 19, Carneiro e Almeida (2009) publicam resultados sobre a colocação de clíticos em 15 atas escritas na Bahia por um ex-escravo no ano de 1862. Considerando o contexto XV, em que o verbo é antecedido por um sujeito neutro, um advérbio não modal e um sintagma preposicional, as autoras encontram 9 ocorrências, dentre as quais, 6 são enclíticas (67%) e 3 proclíticas (33%). O percentual de ênclise nessas construções leva as autoras a afirmarem que o jovem ex-escravo, apesar de apresentar um baixo percentual de próclise, não escreve como um português nascido no mesmo período. 5 Esse trabalho é retomado num artigo em conjunto com os demais membros da equipe do PHPB do Rio de Janeiro, publicado no volume VI dos Anais do Projeto para a História do Português Brasileiro (LOPES et al., 2006). 6 Importante se faz destacar que Duarte e Pagotto encontram uma diferença significativa na escrita do avô, Christiano Benedicto Ottoni, nascido em 1811, e da avó, Bárbara Balbina de Araújo Maia Ottoni, nascida em 1822. Na escrita de Bárbara, há o predomínio de próclise. 224 Pagotto (1992) apresenta uma análise diacrônica da ordenação de clíticos em português com base numa amostra extraída de um corpus de natureza vária (cartas e documentos oficiais) e numa diacronia que contempla os séculos de 16 a 20. A análise do autor contempla, num total de 1.436 orações, diferentes contextos sintáticos e, consequentemente, diferentes padrões de variação de ordenação. Tendo em vista os contextos de variação diacrônica – orações com verbo simples em sentença matriz – em que estão excluídos os casos em que o verbo é precedido por elementos “atratores”, como refere o autor, e por gerúndios e infinitivos, os dados analisados por Pagotto somam 436. Sobre esses contextos, os resultados obtidos por Pagotto mostram que: primeiramente, a próclise é o padrão de ordenação em textos escritos até o início do século 19 (83% e 84%, referentes ao século 16; 92% e 88%, referentes ao século 17; 85% e 85%, referentes ao século 18; e 89%, referente à primeira metade do século 19); em segundo lugar, apenas nos textos do final do século 19 e início do 20 há uma queda gradativa da próclise (55%, referente aos textos do final do século 19 e 29%, referente aos textos do início do século 20); em terceiro lugar, há, nos textos da segunda metade do século 20, novamente, um aumento na proporção da próclise (54%). Em relação ao primeiro quadro, Pagotto assume que o padrão proclítico atestado nos textos não pode refletir a gramática do PB tendo em vista que os textos analisados desse período são, claramente, de autores portugueses. Em relação ao segundo quadro, o autor interpreta a queda da próclise nos textos do século 20 como reflexo da pressão do padrão enclítico da gramática do PE. O terceiro quadro parece revelar, enfim, nos textos da segunda metade do século 20, o padrão proclítico da gramática do PB. Para sumarizar, no que diz respeito ao contexto XV, especificamente, as taxas de clV atestadas por Pagotto em textos dos séculos 19 e 20 são: 89% e 55% em textos do século 19; e 29% e 54% em textos do século 20. Esses percentuais relacionados aos textos dos séculos 19 e 20 serão retomados e sistematizados nos gráficos da figura 1, a seguir. Também considerando textos dos séculos 19 e 20, Martins (2009) descreve e analisa os padrões de colocação em uma amostra de 482 dados extraídos de 24 peças de teatro escritas por brasileiros nascidos no litoral sul de Santa Catarina. Os percentuais encontrados pelo autor mostram que há uma evolução da próclise em contextos XV – orações finitas não dependentes em que o verbo é antecedido por um sujeito, um sintagma preposicional ou um advérbio não modal: de 22% no texto do primeiro autor 225 representante do século 19 para 94% no texto do último autor representante do século 20. Considerando apenas a data de publicação dos textos, o percentual de XclV no curso dos dois séculos é: 32% nos textos da segunda metade do século 19 e 49% e 95% nos textos das primeira e segunda metades do século 20 (MARTINS, 2009, p. 200). Schei (2003) observa a colocação de clíticos em seis textos literários do século 20. Em orações finitas não dependentes iniciadas por sujeitos, a autora encontra taxas de próclise de 88%, 84%, 66%, 97%, 84% e 62%. Os resultados obtidos pela autora reforçam a análise de que, em textos de brasileiros nascidos no século 20, o padrão de colocação de clíticos em contextos XV (especificamente SV) é a próclise. Como Schei considera obras literárias publicadas na segunda metade do século 20, considere-se a média simples de clV nos textos, que é 80%. Os resultados descritos acima em relação à colocação de clíticos na diacronia do PB em contexto XV, tendo em vista diferentes corpora constituídos por textos escritos por brasileiros, estão sistematizados nos gráficos da Figura 1 a seguir. Figura 1: Próclise em contexto XV na diacronia do Português Brasileiro 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 século 19.1 século 19.2 século 20.1 século 20.2 Carneiro (2005) - cartas pessoais Pagotto e Duarte (2005) - cartas pessoais Martelotta et at. (2009) - cartas pessoais Carneiro e Almeida (2009) - atas Pagotto (1992) - cartas e documentos oficiais Martins (2009) - peças de teatro Schei (2003) - textos literários Os gráficos na Figura 1 reforçam a tese de que a escrita brasileira do final do século 19 e início do século 20 reflete padrões divergentes no que se refere à ordenação 226 de clíticos. Há uma queda das construções XclV nos textos desse período. É importante considerar que, como já informado, a natureza dos textos é bastante diversificada nas análises retomadas – cartas e documentos oficiais, textos literários, cartas pessoais, atas e peças de teatro. Muito provavelmente não apenas o período, mas os gêneros textuais considerados influenciam na recorrência do uso da próclise nesse contexto. CONTEXTO V1 A próclise em orações com o verbo em primeira posição absoluta é uma das inovações da gramática do PB, uma vez que a ordem clV nesse contexto não é atestada na história do português7. Em muitas das análises feitas com corpora constituídos de textos brasileiros do século 19, não foram atestados dados de próclise em contexto V1 (clV). Dentre essas análises está aquela apresentada por Pagotto (1992)8. Por outro lado, estudos que se voltam à história do português brasileiro têm mostrado que a próclise nesse contexto é já atestada em textos do século 19. Passo à descrição desses estudos. Carneiro (2005), numa amostra extraída de um corpus constituído de cartas brasileiras por ela editado, encontra 13 ocorrências de clV num total de 379 dados (3,4%). A autora considera orações com um único verbo, não incluindo as orações segundas coordenadas – sentenças raízes declarativas afirmativas, principais (8 ocorrências de 244 dados, 3,28%) e imperativas (2 ocorrências de 67 dados, 2,99%) – e orações com grupos verbais – construções passivas (3 ocorrências de 68 dados, 4,41%). Os resultados apresentados por Carneiro são interessantes no sentido de que registram a ocorrência de próclise com o verbo em primeira posição absoluta em textos escritos por brasileiros nascidos já no século 19. Os exemplos a seguir dão rosto aos números. (1) 7 A análise de Galves, Brito e Paixão de Sousa (2005) apresenta resultados diacrônicos acerca da alternância clV/Vcl na história do português em textos escritos por portugueses nascidos no período correspondente aos séculos 16 a 19. Com base no banco de dados Tycho Brahe Parsed Corpus of Historical Portuguese, as autoras apresentam uma análise de 5.369 orações afirmativas não dependentes extraídas de textos escritos por autores nascidos entre os anos de 1542 e 1836. No que se refere às construções com o verbo em primeira posição absoluta, nos resultados apresentados por Galves, Brito e Paixão de Sousa (2005), não há referência a nenhuma ocorrência da ordem clítico-verbo em textos escritos por portugueses nascidos no curso dos séculos 16 a 19. 8 É importante referir que o estudo de Pagotto registra apenas uma ocorrência em um texto (muito provavelmente) do século 20. 227 a. ME parece que não proponho, nem tenho pe-|-dido nenhum deproposito, para que ate hoje| não tenha sido attendido, e tenha de ver a offi-|cina continuar no estado pouco lisongeiro| em que a consideram.| carta 158 b. ME diz a consciencia que ainda| não commetti acto algum com| relação a sua pessôa pelo qual|2r. se posso dizer que eu hoje sou menos| dedicado a si, entretanto que aqui| se diz o contrario, e se me tem como| um dos mais dedicados e afeiçoados| seu. carta 442 c. ME| disse o Vigário Sabino que a mortandade que| fêz Moreira Cezar, calcula-se em dois mil| pois não se pode contar, isso dito por dois| individuos que o conselheiro fez prisioneiro, eque| depois soltou-os que tinhão marchado com o ga-|do. carta 464 d. NOS dê suas| noticias. carta 463 h e.LHE dirigi carta por o Coronel Porfirio do-| Geremoábo que passou para Bahia em 7 do-| corrente que não acusa recebida.|carta 464 f. ME| responda se a relação tem pode-|res de impedir que se faça inventario| porque o Gallo <ou outra pessoa> me disse que eu requerese| a relação alegando motivo justo| que não havia bens a inventario eu ig|noro Porque o que tenho é para os filhos, afim| de ver se posso realizar a educação| delles, para que se repartir? carta 472 (CARNEIRO, 2005, p. 148-150) Outro estudo é o de Duarte e Pagotto (2006), que investiga o comportamento da próclise e da ênclise em 41 cartas dos avós Ottoni, escritas no “turbilhão” que marca o contexto sócio-histórico do Brasil do século 19. No que diz respeito às construções com o verbo em primeira posição absoluta, das 14 ocorrências encontradas, apenas 3 (34%) são dados com o pronome clítico em posição inicial. Todos os três casos de próclise nesse contexto são de cartas da avó Ottoni (3 ocorrências de 5 dados, 60%), conforme em (2), a seguir; nas cartas do avô, as 9 ocorrências são de ênclise (100%). (2) a. Melembro | muito de você com muitas | saudades equanto estou fa-| zendo doce de caju estou sem | [sic] melembrando de que você | sempre queria meajudar. (Carta 30, avó) b. Os abraça Sua Dindinha e Abiga Barbara. (Carta 36, avó) c. Teabraça e a | Christiano Sua Avo e Amiga Barbara. (Carta 41, avó) (DUARTE, PAGOTTO, 2005, p. 76-77) Nas cartas de ilustres a Rui Barbosa, Martelotta et al. (2009) encontram 35 orações em que o verbo ocupa a primeira posição absoluta – 28 construções com ênclise 228 (80%) e 7 construções com próclise (20%). Observe-se que o percentual dessa construção característica da gramática do PB é bastante significativo, assim como aquele encontrado pela equipe do PHPB do Rio de Janeiro nas cartas dos avos Ottoni. Nas atas escritas por um ex-escravo na Bahia em 1862, Carneiro e Almeida (2009) não encontram nenhuma ocorrência de próclise em contexto V1 (0%). 15 orações foram encontradas e, em todas as ocorrências, apenas a ênclise foi utilizada. Considerando uma amostra extraída de 24 peças de teatro escritas por brasileiros nascidos em Santa Catarina, excluindo as orações segundas coordenadas, Martins (2009) encontra, em textos da segunda metade do século 19, 3 ocorrências de próclise a V1 num total de 523 dados (0,6%) e, em textos da primeira e segunda metades do século 20, respectivamente, 2 ocorrências de 75 dados (2,7%) e 77 ocorrências de 133 dados (58%), conforme dados em (3). (3) a. ME chamaste, meo coração? [Os ciúmes do capitão (1880) de Arthur C. do Livramento (1853-1897)] b. Ai! Que eu estou sufocado! ME largue! [Os ciúmes do capitão (1880) de Arthur C. do Livramento (1853-1897)] c. TE recordas se Valentim era ruivo?... [Os ciúmes do capitão (1880) de Arthur C. do Livramento (1853-1897)] d. Maria Rosa – Já sei; já sei que a festança vai ser grossa, pois foi convidada toda aquela gente rabujenta e de altos coturnos que aqui esteve no dia em que os patrões festejaram as bodas de prata. / Maneca (Aproximando-se) – Mas, TE digo, Maria Rosa, com muita sinceridade: não tenho inveja de nada disso... [Hilda, a filha do suposto traidor (1918) de Ildefonso Juvenal (1884-1965)] e. Não me culpes. ME perdoa. Foste mais forte, confesso. [Ilha dos casos raros (1928) de Nicolau Nagib Nahas (1898-1934)] (MARTINS, 2009, p. 171) Considerando os diferentes autores analisados, nos textos literários do século 20 observados por Schei (2003, p. 159), há taxas de próclise em contexto clV de: 74% no texto de Autran Dourado; 6% no texto de Rubem Fonseca; 2% no texto de Lya Luft; 0% no texto de Josué Montello; 51% no texto de Rachel de Queiroz e 24% no texto de Moacyr Scliar. Observe-se uma grande oscilação em relação ao uso de clV nos textos: a 229 próclise, nesse contexto, alcança 74% no texto de Dourado e não é encontrada no texto de Montello. Para sumarizar, a média de próclise a V1 nos textos literários da segunda metade do século 20, considerados por Schei, é de 26%. Os resultados descritos em relação à colocação de clíticos na diacronia do PB em contexto V1, tendo em vista diferentes corpus constituído por textos brasileiros, estão sistematizados nos gráficos da Figura 2, a seguir. Figura 2: Próclise em contexto V1 na diacronia do Português Brasileiro 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 século 19.1 século 19.2 século 20.1 século 20.2 Carneiro (2005) - cartas pessoais Duarte e Pagotto (2005) - cartas pessoais Martelotta et al. (2009) - cartas pessoais Carneiro e Almeida (2009) - atas Martins (2009) - peças de teatro Schei (2003) - textos literários Todos esses resultados são interessantes no sentido de que registram a ocorrência de próclise com o verbo em primeira posição absoluta em textos escritos por brasileiros dos séculos 19 e 20. Como já dito, esse é um contexto categórico de Vcl na história do português, de modo que a ordem clV em construções V1 absolutas é entendida como uma forte característica da gramática do PB. CONTEXTO V1clV2 A sintaxe de colocação de clíticos em construções verbais complexas tem propriedades bastante particulares. Na sequência V1 finito + V2 não finito (temático), em que um clítico pode estar enclítico/proclítico ao verbo finito ou enclítico/proclítico ao 230 verbo (temático) não finito, as possibilidades de ordenação estão, pois, associadas ao alçamento ou não do clítico ao verbo finito da estrutura, o que tem sido denominado, em sintaxe gerativa, como subida de clíticos. Os exemplos (4) e (5), a seguir, sistematizam as diferentes possibilidades de ordenação dos pronomes clíticos nesse contexto. (4) I. CONSTRUÇÕES COM ALÇAMENTO DE CLÍTICOS Variante I.1: clV1(X)V2 – próclise ao verbo finito com ou sem a presença de material interveniente entre V1 e V2; Variante I.2: V1cl(X)V2 – ênclise ao verbo finito com ou sem presença de material interveniente entre V1 e V2; identifica-se essa construção quando há alguma marca gráfica que garante que há ênclise a V1 ou quando há a presença de material interveniente entre V1 e V2; (5) II. CONSTRUÇÕES SEM ALÇAMENTO DE CLÍTICOS Variante II.1: V1(X)V2cl – ênclise ao verbo não finito com ou sem a presença de material interveniente entre V1 e V2; Variante II.2: V1(X)cl-V2 – próclise ao verbo não finito com ou sem a presença de material interveniente entre V1 e V2; identifica-se essa construção tendo em vista duas situações: a. quando há material interveniente entre V1 e V2 (o que garante que o clítico esteja proclítico a V2) e b. quando há constituintes oracionais que desencadeariam necessariamente a próclise; Variante II.3: V1clV29 – em tese, não é possível atestar se há ênclise a V1 ou próclise a V2 nessas construções. Considerando apenas as construções relativas às variantes em II, sem alçamento do clítico, que têm sido interpretadas como um forte diagnóstico da gramática do PB (PAGOTTO, 1992; CYRINO, 1993; NUNES, 1993), passemos à descrição dos resultados encontrados em textos brasileiros. 9 As construções ambíguas são consideradas variantes da variável SEM ALÇAMENTO DE CLÍTICOS porque, me parece, é mais provável que o clítico esteja proclítico ao verbo não finito. 231 O estudo de Carneiro apresenta 8 dados em cartas da Bahia da primeira metade do século 19 (cartas datadas entre 1809 e 1850); destes, 2 (25%) são construções em que o clítico está proclítico ao verbo temático (cf. variante II.2) ou dados ambíguos (cf. variante II.3). Em relação às cartas da segunda metade do século 19 e início do século 20 (datadas entre 1851 e 1904), Carneiro encontra 211 construções em alçamento de clíticos; destas 68 (32%) são dados com próclise ao verbo temático (cf. variante II.2) ou dados ambíguos (cf. variante II.3) (CARNEIRO, 2005, p. 205). Com esses resultados, atesta a autora, em cartas pessoais escritas na Bahia do século 19, um padrão inovador e característico da gramática do PB. Nas cartas dos avós Ottoni, Duarte e Pagotto (2006) encontram 29 construções com complexos verbais em que a alternância ênclise/próclise ao verbo finito ou ao verbo temático é atestada. Tomamos para discussão as ocorrências com ênclise/próclise ao verbo principal nas cartas, sem alçamento de clíticos. Há 19 construções: 6 ocorrências com próclise – 31% – e 13 ocorrências com ênclise – 69%. As cartas analisadas pelos autores são datadas da segunda metade do século 19 e revelam, portanto, como os exemplos a seguir mostram, um padrão da gramática do PB na escrita do século 19. O percentual de próclise nesse contexto será retomado no gráfico da figura 3, a seguir. (6) a. equando estou fa-| zendo doce de caju estou sem[pre] melembrando de que você | sempre queria meajudar | e is sábados sempre fa-|co Pão doce e melembro de | de que sevoce estivesse aqui avia meajudar. (Carta 30, avó) b. por saber que vocês estão estudando bem e se adiantando. (Carta 33, avó) c. deo-me | Ella occasiaõ de verificar que tens te adiantado. (Carta 6, avó) d. A melhor letra e mesmo a redação da tua carta mostra que vaes te adiantando. (Carta 13, avô) (DUARTE; PAGOTTO, 2005, p. 79) Martelotta et al. (2009), nas cartas de homens ilustres a Rui Barbosa, registram o diferenciado comportamento da colocação dos clíticos em relação ao tipo de complexo verbal: em construções com auxiliares, há o predomínio da próclise quer ao verbo finito – sempre com a presença de um operador – quer ao verbo temático; em construções com dois verbos plenos, a ênclise ao verbo temático é mais recorrente. Os autores 232 encontram 88 construções com clíticos em complexos verbais, incluindo as estruturas com auxiliares e com dois verbos plenos. Desse total, 29 (33%) são construções reveladoras da gramática do PB – com próclise ao verbo temático. Nas atas baianas escritas por um ex-escravo em 1862, Carneiro e Almeida (2009) encontram 28 construções com clíticos e complexos verbais: 21 com alçamento e 7 sem alçamento de clíticos. Sobre as construções sem alçamento de clíticos com próclise ao verbo não finito, nas palavras das autoras (p. 115), “[...] a inovação brasileira registrada nas Atas é de 24,24%” (grifo meu). Os resultados apresentados por Pagotto (1992) dizem respeito a um corpus constituído de cartas e documentos oficiais dos séculos 16 a 20, como já referido. Retomarei os percentuais obtidos pelo autor de próclise ao verbo temático, tendo em vista a distinção entre construções SEM e COM atratores. As construções sem atratores são contextos ambíguos, e por mim classificadas na variável II.3; as construções com atratores são aquelas com efetiva próclise ao verbo finito, características da gramática do PB. Os percentuais obtidos são: para as construções sem atratores – 0% e 11% em textos da primeira e segunda metade do século 18, respectivamente; 0% em textos de todo o século 19; e 38% e 67% em textos da primeira e segunda metade do século 20 –; para as construções com atratores – 0% e 3% em textos do século 18; 0% em textos de todo o século 19; e 11% e 69% em textos da primeira e da segunda metade do século 20. Como se pode observar, a construção inovadora da gramática do PB, com próclise ao verbo não finito em estruturas verbais complexas, é já atestada em textos do século 18 por Pagotto (11% em contextos SEM e 3% em contextos COM atratores). Por esse motivo, defende Pagotto que esse seja o século em que houve uma mudança paramétrica que está na origem da gramática vernacular brasileira. O autor não encontra, porém, nos textos analisados, nenhuma ocorrência em textos do século 19. Em peças de teatro dos séculos 19 e 20 escritas por brasileiros nascidos no litoral de Santa Catarina, Martins (2009) apresenta dois quadros interessantes no que diz respeito às 365 construções SEM alçamento de clíticos encontradas: (1) quando consideradas apenas as construções não ambíguas, V1(X)clV2 – quais sejam (i) estruturas em que há material interveniente entre V1 e V2 ou (ii) estruturas em que há constituintes oracionais antes de V1 que desencadeariam necessariamente a próclise –, a média das taxas de próclise a V1 sai de 4,4 % em textos do século 19 e atinge 11% em 233 textos da primeira metade do 20 e 35% na segunda metade desse século; (2) quando consideradas todas as construções V1clV2, incluindo os casos “ambíguos”, aqui sob a rubrica de variante II.3, evidencia-se um aumento ainda mais significativo de 17% em textos do século 19, que atinge 20% e 84% em textos da primeira e da segunda metades do século 20, respectivamente. Os percentuais de próclise ao verbo não finito em complexos verbais na diacronia do português brasileiro estão sistematizados nos gráficos da Figura 3. Figura 3: Próclise ao verbo não finito em contexto V1V2 na diacronia do Português Brasileiro 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 século 19.1 século 19.2 século 20.1 século 20.2 Carneiro (2005) - cartas pessoais Pagotto e Duarte (2005) - cartas pessoais Martelotta et al. (2009) - cartas pessoais Carneiro e Almeida (2009) - atas Pagotto (1992) - cartas e documentos oficiais Martins (2009) - peças de teatro 3.2 A derivação da próclise no PB Apresento, muito brevemente, nesta seção, a análise teórica que assumo para a derivação da próclise na gramática do PB. De um modo geral, em muitas das propostas teóricas para a derivação da próclise em português, a ordem clV está relacionada a duas propriedades: (a) à restrição ao clítico em primeira posição, segundo a Lei de ToblerMussafia (aplicada nos domínios da sintaxe ou do componente morfofonológico) e (b) à projeção de uma categoria funcional “extra” na sintaxe. 234 Assumo a análise de Galves, Torres Morais e Ribeiro (2005), segundo a qual os pronomes clíticos em PB estão ligados a uma categoria lexical, diferentemente do PE e do Português Clássico (PC), em que estes se ligam à categoria funcional Flexão. Essas autoras defendem que a gramática do PC tem ativa a restrição ao clítico em primeira posição que se aplica no nível XP: a próclise é derivada em construções XV em que X ocupa uma posição interna à estrutura oracional (GALVES, 2004; PAIXÃO DE SOUSA, 2004; GALVES; BRITO; PAIXÃO DE SOUSA, 2005; GALVES; TORRES MORAIS; RIBEIRO, 2005); a ênclise é derivada nos demais contextos. Essa restrição estaria ainda ativa na gramática do PE, e se aplicaria em um domínio diferente em relação à gramática do PC: no primeiro X-linha da estrutura oracional. A próclise é derivada, então, em PE, na presença da projeção de uma categoria funcional entre CP e IP nos domínios da oração e a ênclise nos demais contextos. Em PB, em tese, não se aplicaria, sob qualquer situação/domínio, a restrição ao clítico em primeira posição. A gramática dessa língua teria perdido tal restrição. Para a análise apresentada em relação aos padrões empíricos encontrados nas cartas de Câmara Cascudo, assumo, portanto, a hipótese de que a próclise em PB seria derivada devido à perda da restrição ao clítico em primeira posição e a propriedades do componente morfofonológico da gramática dessa língua (GALVES; TORRES MORAIS; RIBEIRO, 2005). Em tese, a próclise em dois contextos bastante específicos poderia ser tomada como reflexo de uma gramática vernacular brasileira, em que a restrição ao clítico em primeira posição não se aplica sob qualquer domínio: PB: (i) próclise ao verbo em posição inicial sentencial; e (ii) próclise ao verbo não finito em complexos verbais. 4. Nas cartas, a escrita de quem “também está escrevendo brasileiro” Para os propósitos deste capítulo, apresentarei apenas a análise da próclise naqueles contextos significativos para o diagnóstico da gramática do PB: próclise em orações em que o verbo ocupa a primeira posição absoluta e próclise ao verbo não finito em complexos verbais; e da gramática do PE: próclise a um constituinte pré-verbal 235 realizado por um sujeito DP, um advérbio não modal ou um sintagma preposicional, em contextos XV10. Considerando esses contextos, nas cartas de Câmara Cascudo, endereçadas a Mário de Andrade no período de agosto de 1924 a junho de 1944, somam-se 188 ocorrências: 137 orações finitas afirmativas não dependentes com verbo simples (contextos XV e V1) e 51 orações com complexos verbais (contexto V1V2). No que segue, apresento os resultados relativos aos diferentes contextos. CONSTRUÇÕES COM VERBOS SIMPLES A Tabela 1, a seguir, sistematiza os padrões de próclise em orações com verbo finito nas cartas de Câmara Cascudo, considerando o cruzamento entre o ‘tipo de construção’ e a ‘década em que as cartas foram escritas’. 10 Considerando o contexto XV, na amostra, a próclise é categórica quando X é realizado por: (i) pronomes interrogativos (5 ocorrências); (ii) pronomes indefinidos (5 ocorrências); (iii) pronomes demonstrativos (2 ocorrências) – ou pelos seguintes advérbios: MUITO (6 ocorrências), AINDA (2 ocorrências), SEMPRE (1 ocorrência), AQUI (2 ocorrências), JÁ (7 ocorrências), SÓ (4 ocorrências), QUASE (1 ocorrência) e BEM (1 ocorrência). Ocorrências na amostra da próclise, nesses contextos, são exemplificadas, respectivamente, em (i), a seguir. (i) a. Quem ME affirma é um primo com seis annos de amazonia e dr em caça ao jacaré em Marajó e Xingú. (Cascudo, 9 de março de 1925) b. Todos O abraçam. ! (Cascudo, 02 de março de 1933) c. O comercio, os pequenos agricultores, as classes mais ou menos letradas, são consideradas suspeitas e postas de lado. Isto SE dá de ponta a ponta. A excepção única era Dinarte Mariz, prefeito revolucionário de Caicó que era apoiado por todos os elementos. (Cascudo, 04 de janeiro de 1933) d. Sempre LHE direi que recebi sua carta e que outro leu por mim o sr. Plinio Salgado. (Cascudo, 26 de junho de 1926) e. E aqui SE diz – por falta dum grito perde-se a boidada. (Cascudo, 8 de agosto de 1926) f. Já LHE mandei três coisas e V. apitas que estou deixando esfriar? (Cascudo, 02 de março de 1933) g. Só ME serve para padrinho você e quero aproveitar enquanto você é brasileiro. (Cascudo, 14 de março de 1934) h. Recebi uma linda carta do Ribeiro Couto. Quasi ME põe bom do finsin da coliti que eu estava inventando ter. (Cascudo, 17 de abril de 1927) i. V. já deve ter recebido o retrato do Nandinho, um foto bem feito mas o único que ele deixou apanhar no seu segundo aniversario. Recebemos as explicações e bem AS compreendemos. (Cascudo, 06 de junho de 1933) No contexto XV, a ênclise é categórica quando X é uma oração dependente (5 ocorrências) ou sujeitos complexos (5 ocorrências, cf. dados da amostra em (ii)). (ii) a. Quando V. publicar artigos em qualquer jornal e sobre qualquer thema, mande-NOS se for possivel. (Cascudo, 26 de junho de 1926) b. Um episodio em que entra um padre obriga-ME a fazer força na retorica para conseguir um ambiente de seriedade. (Cascudo, 08 de outubro de 1933) 236 Tabela 1: Frequência de clV, segundo o cruzamento entre as variáveis ‘tipo de construção’ e ‘década em que a carta foi escrita’ Tipo Construção 1920-1929 1930-1939 1940-1944 Total V1 1/36 3% 0/30 0% 1/5 20% 2/71 3% XV 4/25 16% 11/34 – 32% 4/7 57% 19/66 29% Total 5/61 8% 11/64 17% 5/12 42% 21/137 15% Considerando as três décadas de correspondência, há um aumento no uso da próclise em relação às construções XV 8% < 17% < 42% – os 66 dados dizem respeito a construções com sujeito (54 orações), com os advérbios ‘agora’ e ‘depois’ (9 orações), com sintagmas preposicionais (3 orações), conforme, respectivamente, os dados a seguir. (7) a. Sua carta de 1º de maio surpreendeu-ME. (Cascudo, 19 de maio de 1925) b. Analia e Maria e Bibi lembram-SE ao seu otô Maro. Arity e Giguê abanam o rabo. (Cascudo, 10 de abril de 1933) c. Creio que V. deve escrever ao Dr. Lamartine. Elle LHE deu um terreno que virou caza. (Cascudo, 30 de maio de 1933) d. Vossê NOS fará uma caridade escrevendo qualquer coisa para o outro numero e mandando, com licença da palavra, um clichê. (Cascudo, 14 de novembro de 1933) (8) a. A casa grande dessiliou-se. Agora inaugura-SE o estylo-bolo de noiva com requififes e pendurucalhos nas paredes. Vaqueiros? Sumiram-SE. (Cascudo, 26 de junho de 1926) b. Agora ME ocupo nas ferias em estudar feitiçaria pagelança. (Cascudo, 08 de junho de 1933) c. Carta de Iº chegou ha dois dias. Não zangue. Estou cada vez mais o mesmo. Fixe. Estou relendo “Amor” Depois conversa-SE. (Cascudo, 28 de março de 1927) d. O Artur Ramos ofereceu-me a revista da sociedade de Etnografia que ele fundou no Rio. Que me diz, Macunaima? Depois LHE falarei do CIRCULO PAN-AMERICANO DE FOLK LORE, outra maluquice minha, que está grudando gente desde o Canadá até Argentina e tem sido falado em revistas universitarias americanas e radios. (Cascudo, 19 de maio de 1941) 237 (9) a. À mesa de jantar sentamo-NOS 30 pessoas... (Cascudo, 04 de setembro de 1925) b. Foto. E por falar em foto – breve LHE mando o meu retrato. Eu estava demorando por que esperava ir este anno ahi e fazer uma bruta bruta fita na Lopez-Chaves. (Cascudo, 12 de outubro de 1925) Por ser um contexto interessante no que diz respeito à sintaxe dos clíticos e às gramáticas do português, e também por representar um maior número de dados nas cartas, em se tratando das construções XV, vou focar minha discussão nas construções SV. A Tabela 2, a seguir, sistematiza o número de ocorrências por década. Tabela 2: Frequência de clV, segundo o cruzamento entre as variáveis ‘natureza do sujeito no contexto SV’ e ‘década em que a carta foi escrita’ Natureza de S 1920-1929 1930-1939 1940-1944 Total DP 1/18 6% 4/24 17% 3/5 60% 8/47 17% Pronome Pessoal 1/1 100% 5/6 83% SEM DADOS 6/7 86% 2/19 11% 9/30 30% 3/5 60% 14/54 26% Total Há poucas ocorrências com sujeitos pronominais, mas, no geral, a próclise é majoritária nesse contexto (100% e 86%). Já com sujeitos DPs, há um aumento significativo no uso da próclise no curso das décadas de correspondência na seguinte direção: 6% < 17% < 60%. Os dados em (10) a seguir exemplificam a próclise nesse contexto. (10) a. Sua carta chegou aqui justamente 24 horas depois do meu casamento. Li com todo cerimonial requerido. O telegramma NOS alegrou muito. (Cascudo, 09 de maio de 1929) b. Antes do prato de peixe, d’agua do açude, o dono da casa rezou e aquelles homens SE ergueram rezando tambem... E que noitada!... E as "prosas". Quanta coisa linda... (Cascudo, 04 de julho de 1925) c. Como você sabe, gregos, romanos, cantadores medievais, todos cantavam com acompanhamento instrumental, ao mesmo tempo. E anda hoje, quando vemos, nos palcos, os falsos sertanejos cantando "desafios" ouvimos o acompanhamento imediato. 238 Esse pormenor OS afasta irremediavelmente, do sertão nordestino. No litoral e brejos, os ganzás sôam, initerruptos. (Cascudo, 22 de fevereiro de 1933) (11) a. Mamãi envia uma benção especial e affectuosa. Dahlia e Cotinha SE recommendam. O bôlo de macacheira espera-o fumegante e temendo. (Cascudo, 09 de maio de 1933) b. No “Remate dos Males” achei muito do que gostar-gostou como synonimo de tercoisa-por-sua, de si-mesmo. Pra admirar quasi tudo mesmo o seu lyrismo que é um lyrismo subtil, de nervos a dentro, mysterioso e evocador de coisas palpaveis e invisiveis. Mas as louvações são doidas de boniteza. A “tarde” é uma delicia e os momentos tambem. Improviso do mal da America tambem. E especialmente as bodas de Germaninha, um milagre de alegria pela alegria irresponsavel, interesseira e animal dos outros, alegria-pura, irreprimivel, “acima dos resultados” e possivelmente do desejo das “torcidas”. A cantiga do ar ME agradou immenso porque estamos nós no Norte alli dentro com violão, peixe frito e cachaça. Achei um Mário com a marotte nos vulcões, bailando sobre vulcões que não sei que é. Assim como o tresentos que não entendi. V. não teria posto em pratica o surrealismo da praia da redinha como explicou a Baroncio e a mim entre cajús e vinho branco? (Cascudo, 07 de janeiro de 1931) c. Mamãi, papai, Cotinha, minha mulher SE recomendam afetuosamente. (Cascudo, 24 de maio de 1933) d. Silvio romero coligiu a pag - 11, com o nome de “O CONº DE ALBERTO” ( contos populares do Brasil ) e a Bela Infanta SE chama “dona Sylvana”. (Cascudo, 09 de maio de 1937) e. Os trabalhos do Conselho Nacional de Geografia SE encerraram onte-ontem mas se abre um novo ciclo de encargos, as encomendas oficiaes e particulares, engolindo tempo e força. (Cascudo, 28 de julho de 1933) f. Os “contos” ME fizeram cabelo branco. Arranjei 100, alguns tirados do Silvio Romero (1), Lindolfo Gomes, Silva Campos e Rodrigues de Carvalho (I) e Gustavo Barrozo, José Carvalho, Manoel Ambrosio. (Cascudo, 13 de abril de 1943) Observe-se que, das quatro construções com próclises nas cartas da década de 1930, duas são em orações em que Câmara Cascudo fecha a carta e usa uma expressão bastante particular no fechamento/despedida em cartas pessoais. “Lembrar-se” e “recomendar-se” são expressões muito recorrentes nos fechamentos da carta de Câmara 239 Cascudo e esse é um contexto em que a ênclise diante de um sujeito é bastante frequente, cf. dados a seguir11. (12) a. Analia e Maria e Bibi lembram-SE ao seu otô Maro. Arity e Giguê abanam o rabo. (Cascudo, 10 de abril de 1929) b. Cotinha e as pequenas lembram-SE a V. Dahlia recomenda-se. (Cascudo, carta 30) c. Nandinho lembra-SE. (Cascudo, 25 de julho de 1932) d. Minha mãe e mulher e o netinho recomendam-SE. (Cascudo, 24 de julho de 1936) e. Vavá recomenda-SE e eu abraço-o com toda efusão e abundancia de sinceridade. (Cascudo, 09 de maio de 1937) Importante se faz dizer que, talvez, por se tratar de uma expressão cristalizada, uma fórmula associada ao fechamento do gênero carta, seja um contexto em que a ênclise ainda seja atestada com certa frequência na correspondência de Câmara Cascudo. Nos gráficos da Figura 4, a seguir, retomo os percentuais de próclise encontrados em textos brasileiros em contextos XV, considerando diferentes estudos em diferentes corpora, a fim de comparar com o percentual encontrado nas cartas aqui analisadas. 11 Para uma análise dessas construções nas cartas, sob o escopo da teoria das Tradições Discursivas, ver o cap. 5 de Alessandra Castilho neste volume. 240 Figura 4: Próclise em contexto XV na diacronia do Português Brasileiro e nas cartas de Câmara Cascudo a Mário de Andrade 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 século 19.1 século 19.2 século 20.1 século 20.2 Carneiro (2005) - cartas pessoais Pagotto e Duarte (2005) - cartas pessoais Martelotta et at. (2009) - cartas pessoais Carneiro e Almeida (2009) - atas Pagotto (1992) - cartas e documentos oficiais Martins (2009) - peças de teatro Schei (2003) - textos literários CARTAS DE LUIS DA CÂMARA CASCUDO Observe-se que o percentual encontrado na escrita de Câmara Cascudo durante as décadas de 20, 30 e 40 do século 20, de 29%, é relativamente próximo àqueles apresentados em textos do mesmo período, 43% em cartas e documentos oficiais no estudo de Pagotto (1992) e 54% em peças de teatro no estudo de Martins (2009). Importante se faz dizer que a correspondência de Câmara Cascudo a Mário de Andrade é resultado da interação entre dois grandes intelectuais e apresenta, portanto, significativas marcas de uma escrita padrão, associada no início do século 20 (e ainda hoje!) aos padrões da gramática do PE. Justifica-se com isso, pois, o grande percentual de ênclise encontrado nas cartas do “príncipe do Tirol” no contexto XV (e, mais especificamente, no contexto SV). Em relação às construções com o verbo em primeira posição absoluta, das 71 ocorrências, apenas dois dados com próclise foram encontrados nas cartas de Câmara Cascudo a Mário de Andrade, cf. resultados sistematizados na Tabela 1. Os dados estão transcritos em (13). (13) 241 a. Voltando henfim de Recife encontrei um monte de cartas e uma pilha de livros. Livros mandados vir de Paris e outros presenteados pelos camaradas argentinos. E uma carta sua. E hoje recebi outra a lapis. E ME esqueci de olhar resto da correspondencia. (Cascudo, 9 de dezembro de 1925) b. Lembre-me aos seus, a quem tanto devo inesquecivelmente. TI abraço, bestão querido! (Cascudo, 04 de agosto de 1933) Os percentuais de próclise nesse contexto, em textos brasileiros e nas cartas de Câmara Cascudo, estão retomados nos gráficos da Figura 5. Figura 5: Próclise a V1 na diacronia do Português Brasileiro e nas cartas de Câmara Cascudo a Mário de Andrade 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 século 19.1 século 19.2 século 20.1 século 20.2 Carneiro (2005) - cartas pessoais Duarte e Pagotto (2005) - cartas pessoais Martelotta et al. (2009) - cartas pessoais Carneiro e Almeida (2009) - atas Martins (2009) - peças de teatro Schei (2003) - textos literários CARTAS DE LUIS DA CÂMARA CASCUDO Observe-se que, assim como nas peças de teatro escritas por brasileiros nascidos no litoral de Santa Catarina, o percentual de próclise a V1 é bastante baixo nas cartas de Cascudo, 3%. Mais uma vez, fica evidente que, nas cartas, a escrita é formal e segue um padrão distinto daquele licenciado pela gramática vernacular do missivista. Na correspondência dos avós Ottoni trocada com os netos – e, portanto, muito mais “descuidadas” em relação à norma padrão –, Duarte e Pagotto (2005) encontram um percentual de 34% de clV. 242 Muito embora não tenha sido quantificada, a ocorrência de próclise em V1 nas cartas de Mário de Andrade é muito frequente, desde as primeiras correspondências enviadas a Câmara Cascudo, conforme dados em (14). (14) a. Me acostumei. (Mário de Andrade, 26 de maio de 1925) b. Se lembre sempre de mim quando vir fotografias da nossa terra aí dos seus lados. (Mário de Andrade, 26 de maio de 1925) CONSTRUÇÕES COM COMPLEXOS VERBAIS Encontrei, nas cartas de Câmara Cascudo, 51 construções com complexos verbais, distribuídas entre orações com e sem alçamento de clíticos, conforme resultados sistematizados na Tabela 2. Tabela 2: Frequência de clV em complexos verbais CONSTRUÇÕES COM ALÇAMENTO DE CONSTRUÇÕES SEM ALÇAMENTO DE CLÍTICOS CLÍTICOS clV1(X)V2 / V1cl(X)V2 V1(X)V2cl / V1clV2 16/ - 31% 35/ - 69% Total 51 Construções com alçamento e próclise, cf. (15), ou ênclise, cf. (16), ao verbo finito não são as mais frequentes na amostra – 31%. No entanto, observe-se que essas construções, que aparecem na escrita de Câmara Cascudo não são possibilidades derivadas pela gramática do PB e, quando aparecem em textos brasileiros na atualidade, estão restritas à escrita monitorada. (15) a. Do “Zeppelin” nem LHE quero falar. (Cascudo, 30 de maio de 1930) b. Primeiro o dr. Lamartine, sem que me falasse, não A tinha pago e segundo não queria eu que você ficasse enrolado nos jornaes daqui como recebendo presentes do Estado. Elle era natural e Você o recebera sem saber. (Cascudo, 07 de janeiro de 1931) 243 (16) a. O acaso tem-ME fornecido notas de tal maneira preciosas que sou um dos raros conhecedores do velho passado potiguar. (Cascudo, 8 de agosto de 1926) 35 construções SEM alçamento de clíticos foram encontradas. É importante destacar que as próclises nesse contexto são particularmente significativas nesta análise, tendo em vista que a próclise ao verbo não finito é um forte diagnóstico da gramática do PB por não ser licenciada por outra gramática do português. Foram 26 ocorrências com ênclise, no contexto V1(X)V2CL, e 9 ocorrências com próclise, no contexto V1CLV2, cf., respectivamente, dados em (17) e (18), a seguir. (17) a. No domingo 21 de abril V. deve vestir-SE, ir para o espelho e comprimentar à la home façon de Brunell. Caso-me ! 16 horas! (Cascudo, 10 de abril de 1929) b. Todos os rapazes conhecem V. e muito o admiram. Poderia V. auxilia-LOS em alguma cousa ? Eles não poderão pagar monetariamente uma colaboração valiosa como a sua. (Cascudo, 15 de agosto de 1931) (18) a. O inimigo era o meu rythmo. Butava por elles as minhas esferas angulares. Esse olhar de attenção curiosa que se cerca está ME alimentando, mastigando. Estou, moralmente, de sobrecasaca. (Cascudo, 30 de dezembro de 1925) b. Luís Emilio Soto escreveu-me. Encantado com V. Meu livro vai SE arrastando. (Cascudo, 28 de abril de 1926) c. Estou ME emocionando que é um dispotismo... (Cascudo, 22 de janeiro de 1931) d. Escrevo às pressas para pedir-lhe um obsequio de identificar na indicação inclusa onde é que vende o tal sal que meu pai precisa urgentemente. Aqui as farmacias vendem abusivamente e a porção que troxe de Recife está SE esgotando rapidamente. (Cascudo, 02 de março de 1932) e. O curioso é que esta gente não responde aos documentos apresentados mas as “possiveis” idéas do pobre Lopez. Desta maneira está SE formando uma mentalidade adversa ao Brasil, baseada na inversão da historia. Este mez ainda mandarei um artigo para o Diario. E uma resposta ao Dr. Carbonell, reitor da Universidade de Caracas. Tambem março, seguramente, enviarei os 25 themas de CONGOS velhamente 244 promettidos. E uns sambas, cocos e zambês. Está satisfeito, seu ingrato? (Cascudo, 02 de fevereiro de 1928) f. Seis toadas typicas, espassas no poema creariam o ambiente. O ambiente inaccessivel as ouças mineiras, gauchas, goyanas et as suite. Eu estou ME convencendo que de futura escrever-se-há musica exclusivamente. Como expressão mental. (Cascudo, 02 de fevereiro de 1928) Como exemplificam os dados em (19), encontrei, nas cartas, apenas construções classificadas como contextos ambíguos (variante II.3 (V1clV2)) por não apresentarem evidências de que o clítico está anteposto ao verbo não finito – em tais construções não há material interveniente entre os verbos e nem operadores de próclise ao verbo finito que pudessem garantir que o clítico se alçaria para os domínios da Flexão. As 9 ocorrências de 35, que representam um percentual de 25% do total encontrado, dizem respeito, portanto, a construções ambíguas. O fato de não serem identificados fatores que garantam que ocorra próclise a V2, no entanto, não pode ser interpretado como se tais construções não refletissem o padrão proclítico da gramática do PB. Digo isso porque tais dados NÃO são encontrados em textos reconhecidamente escritos por portugueses. Martins (2009) apresenta uma análise da colocação de clíticos em 21 peças de teatro escritas por portugueses, nos séculos 19 e 20, em que construções dessa natureza, como os dados em (13) ilustram, não são encontradas. Assumo, portanto, que tais construções são sim reflexos da gramática do PB. A título de comparação, retomo nos gráficos da Figura 6, a seguir, os percentuais de próclise ao verbo não finito em textos brasileiros, cf. descrito na seção 3, e aquele encontrado nas cartas de Câmara Cascudo. 245 Figura 6: Próclise ao verbo não finito em contexto V1V2 na diacronia do Português Brasileiro e nas cartas de Câmara Cascudo a Mário de Andrade 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 século 19.1 século 19.2 século 20.1 século 20.2 Carneiro (2005) - cartas pessoais Pagotto e Duarte (2005) - cartas pessoais Martelotta et al. (2009) - cartas pessoais Carneiro e Almeida (2009) - atas Pagotto (1992) - cartas e documentos oficiais Martins (2009) - peças de teatro CARTAS DE LUIS DE CÂMARA CASCUDO Observe-se que a escrita de Câmara Cascudo apresenta um percentual de 25% de orações com próclise ao verbo não finito, numa média relativamente próxima daquela encontrada por Pagotto (1992) e Martins (2009) para textos do mesmo período. Como se tem mostrado em relação aos padrões de colocação de clíticos nos complexos (PAGOTTO, 1992; NUNES, 1993; CYRINO, 1993; LOPES et al., 2006; MARTELOTTA et al., 2009), o tipo de complexo é significativo no uso da próclise ou da ênclise. O mesmo ocorreu na análise das cartas de Câmara Cascudo. A próclise, quer ao verbo finito, na presença de um constituinte proclitizador, quer ao verbo temático é mais recorrente em construções com auxiliares. Em específico, das 9 ocorrências de construções inovadoras do PB, com próclise ao verbo não finito, todas são com auxiliares, cf. dados em (18) apresentados anteriormente. Já a ênclise é mais recorrente ao segundo verbo no infinitivo em construções com dois verbos plenos, cf. dados em (17). Conclusões 246 A hipótese de que o folclorista norte-rio-grandense Luís da Câmara Cascudo, assim como assume Mário de Andrade, “também está escrevendo brasileiro”, apresentada na introdução deste capítulo, predizia que encontraríamos, nas cartas, construções características da gramática do PB: (i) próclise a V1 e (ii) próclise ao verbo não finito em estruturas verbais complexas; e da gramática do PE: (iii) próclise em orações finitas não dependentes, em que o verbo é antecedido por um sujeito, um advérbio não modal ou um sintagama preposicional. Tendo em vista os resultados apresentados, conclui-se, pois, que Câmara Cascudo utiliza sim padrões de uma gramática vernacular brasileira em que não se aplica, sob qualquer situação, a restrição ao clítico em primeira posição. Há, nas cartas, um percentual de 29% de próclise em contextos XV, que deve estar associado à gramática do PB. Digo deve, porque a próclise nesse contexto é também o padrão da gramática do Português Clássico; no entanto, não há indícios na escrita de Cascudo, na primeira metade do século 20, de construções associadas ao PC. Foram encontrados percentuais de 3% e 25% de próclise, respectivamente, ao verbo em início de período em orações com um único verbo, e ao verbo não finito em orações com complexos verbais. É importante mencionar que as cartas de Câmara Cascudo a Mário de Andrade não refletem a escrita prototípica de um brasileiro na primeira metade do século 20. Uma comparação com os percentuais de próclise nesses mesmos contextos nas cartas de Mário de Andrade podem revelar, por exemplo, que o paulista modernista usa com mais frequência padrões do “escrever brasileiro”. Há que se considerar, ainda, que as cartas em questão não são de escrita não formal. Pelo contrário, há nas cartas um grau de formalidade bastante revelador do padrão gramatical espelhado na gramática do PE. E, para retomar Mário de Andrade, podemos sim dizer que herdamos de Portugal, assim como os próprios portugueses, uma gramática e não uma língua. Herdamos uma gramática que, tendo em vista fatores sociolinguísticos variados, aqui encontrou um ambiente propício para mudanças. O estudo sistemático de textos escritos por brasileiros, assim como de aspectos sócio-históricos em que esses textos foram produzidos em terras brasileiras, nos moldes como o trabalho do Projeto para a História do Português Brasileiro vem sendo realizado, nos permitirá traçar um panorama do processo de formação do Português Brasileiro. 247 REFERÊNCIAS CALLOU, D.; CAVALCANTE, S. R. O.; DUARTE, M. E. L.; LOPES, C.; PAGOTTO, E. Sobre norma e tratamento em cartas a Rui Barbosa. In: AGUILERA, V. (Org.). Para a História do Português Brasileiro, v. VII: Vozes, veredas, voragens. Londrina: EDUEL, 2009, p. 45-92. CARNEIRO, Z. Cartas brasileiras (1809-1904): um estudo linguístico-filológico. 2005. 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