PRIMEIRA SEÇÃO PRELÚDIO AO PROBLEMA COSMOLÓGICO “KcCL ó (pLXÓ piXóoopóç 7níç rtv”. “também o amante do mito é de algum modo filósofo Aristóteles, Metafisica A 2, 982 b 18s. Baixo-relevo que representa Anaximandro (como se lê na inscrição no alto), pensativo, rosto apoiado na mão esquerda. 1. OS MITOS TEOGÔNICOS E COSMOGÔNICOS Já foi há muito tempo observado que o antecedente da cosmologia filosófica é constituído pelas teogonias e cosmogonias mítico-poéti cas, das quais é muito rica a literatura grega, e cujo protótipo paradigmático é a Teogonia de Hesíodo, a qual, explorando o patri mônio da precedente tradição mitológica, traça uma imponente sínte se de todo o material, reelaborando-o e sistematizando-o organica mente. A Teogonia de Hesíodo narra o nascimento de todos os deu ses; e, dado que alguns deuses coincidem com partes do universo e com fenômenos do cosmo, além de teogonia ela se torna também cosmogonia, ou seja, explicação fantástica da gênese do universo e dos fenômenos cósmicos. Hesíodo imagina, no proêmio, ter tido, aos pés do Hélicon, na Beócia, uma visão das Musas, e ter recebido delas a revelação da verdade da qual ele se faz, mediatamente, arauto. Em primeiro lugar, diz ele, gerou-se o Caos, em seguida gerou-se Gea (a Terra), em cujo seio amplo estão todas as coisas, e ias profundidades da Terra gerou-se o Tártaro escuro, e, por fim, Eros (o Amor) que, depois, deu origem a todas as outras coisas. Do Caos nasceram Erebo e Noite, dos quais se geraram o Eter (o Céu superior) e Emera (o Dia). E da Terra sozinha se geraram Urano (o Céu estrelado), assim como o mar e os montes; depois, juntando-se com o Céu, a Terra gerou Oceano e os rios. Procedendo no mesmo estilo, Hesíodo narra a origem dos vários deuses e numes divinos. Zeus pertence à última geração: de fato, foi gerado de Crono e de Rea (que, por sua vez, tinham sido gerados da Terra e de Urano); e, como Zeus, fazem parte da última geração todos os outros deuses do Olimpo homérico, vale dizer, os deuses que o grego então venerava. Ora, como dissemos, é indubit que a Teogonia de Hesíodo e, em geral, as representações teogônico-cosmológicas são o anteceden te da cosmologia filosófica; todavia, é igualmente indiscutível que entre essas tentativas e a cosmologia filosófica (mesmo a mais primi tiva, isto é, a de Tales) há uma ní diferença. Para compreender a diferença entre uma e outra, voltensos às três características que acima indicamos como distintivas da filosofia, ou seja, a) a representação da totalidade do real, b) o método de explicação racional, c) o puro 42 OS PROBLEMAS DA PHYSIS, DO SER E DO COSMO OS MITOS TEOGÔNICOS E COSMOGÔNICOS 43 interesse teórico. Ora, não há dúvida de que as teogonias possuem a primeira e a terceira dessas características, mas carecem da segunda, que é qualificante e determinante. Elas procedem com o mito, com a representação fantástica, com a imaginação poética, com intuitivas analogias sugeridas pela experiência sensível; portanto, permanecem aquém do lógos, ou seja, aquém da explicação racional. E quando Aristóteles disse que o amante do mito é de algum modo filósofo, disse-o referindo-se exatamente ao fato de que, como a filo sofia, o mito nasce para satisfazer a admiração ou o puro desejo de saber, não por fins pragmáticos mas o mito permanece mito, parente da filosofia, não filosofia. E dado que sobre este ponto, recentemente, se discutiu, e alguns acreditaram poder negar a existência dessa diferença, é bom que nos detenhamos em reafirmar alguns conceitos que consideramos essen ciais. Jaeger escreveu: “Na Teogonia hesiodiana reina de alto a baixo o mais obstinado intelecto construtivo, com toda a coerência de um ordenamento e de uma pesquisa racional. Na sua cosmologia, por outra parte, há ainda uma força inata de intuição mítica, a qual permanece eficaz, além do limite no qual costumamos apontar o começo do reino da filosofia ‘científica’, nas doutrinas dos ‘fisicos’ e sem a qual nos resultaria incompreensível a maravilhosa fecundidade filosófica daquele antiquíssimo período científico. As forças naturais de atração e de repulsão da doutrina de Empédocles, o Amor e o Odio, têm a mesma origem espiritual do Eros cosmogônico de Hesíodo. O início da filosofia cien tífica não coincide, pois, nem com o do pensamento racional nem com o fim do pensamento mítico. Encontramos ainda a mais genuína mítogonia no núcleo da filosofia de Platão e de Aristóteles, como no mito platônico da alma ou na intuição aristotélica do amor das coisas para com o motor imóvel do mundo” Mas Jaeger é vítima de uma ilusão de ótica: ninguém nega que antes do advento da filosofia existisse a razão e ninguém afirma que na Teogonia hesiodiana (assim como na épica homénca) não existam mais que mito e fantasia e nada de razão; assim como ninguém nega, ao contrário, que na filosofia permaneçam por muito tempo elementos míticos e fantásticos. Mas o ponto essencial está no papel determinante que desempenham uns e outros fatores; e veremos logo que, enquanto em Hesíodo ou nos autores de teogonias, o papel determinante é dado ao elemento fantásticopoético-mitológico, em Tales será, ao invés, dado ao lógos e à razão: e é precisamente por isso que a tradição chamou Tales de primeiro filósofo, dando-se perfei tamente conta de que no seu discurso algo mudara radicalmente com relação ao discurso dos poetas, e que esse algo assinalava a passagem do mito ao lógos. De resto, note-se que na Teogonia hesiodiana falta exatamente o ponto que qualifica a cosmologia filosófica, vale dizer, a tentativa de individuar o primeiro princípio imprincipiado, a fonte absoluta de tudo. E o próprio Jaeger, contradizendo a tese da qual falamos acima, revela-o escrevendo: “O pensamento genealógico de Hesíodo considera advindo também o caos. Ele não diz: no princípio era o caos, mas: primeiro adveio o caos, depois a terra etc. Neste ponto se apresenta a questão de se não deve haver também uni início do devir que, por sua vez, não seja advindo. A tal questão Hesíodo não responde, nem sequer a põe. Isso pressupõe uma lógica de pensamento ainda muito longe dele” Mas, note-se, não põe a questão e não pode pô-la, justamente por que a fantasia, que se alimenta cio sensível e das analogias extraidas do sensível, quando chega ao caos se apaga, e, não sabendo mais imaginar formas ulteriores, se detém; e a fantasia pode se representar como ge rando o próprio caos, vale dizer, a realidade primeira, justamente porque vê que tudo é gerado (deuses e coisas); para representar-se isso em sentido contrário, ela deveria ir contra si mesma e, portanto, negar-se. E é exatamente isso que fará a filosofia desde o seu nascimento: irá contra a fantasia, a imaginação e os sentidos e inferirá suas figuras especulativas com a força do lógos, contestando o mito e as aparências sensíveis, criando algo completamente novo. E quando se diz que a Teogonia é de grande importância para o advento da futura filosofia, diz-se algo justo: mas o advento da filosofia pressupõe a aquisição do novo plano do lógos, isto é, uma revolução, como em seguida veremos. 4. Jaeger, Die Theologie der frilhen griechischen Denker, Stuttgart 1953; trad. ital. de E. Poc La teologia dei prirni pensatori greci, La Nuova Italia, Florença 1961, p. 16 (citado sempre da execelente tradução italiana). 1. Aristóteles, Metafísica A 2, 982 b 18s. 2. Ibidem. 3. Jaeger, Paideia, 1, p. 286. r