XXIII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT05 - Família e Sociedade A Família na Obra de Emílio Willems Judith C. Hoffnagel – UFPE Outubro de 1999. Caxambu - MG. 2 A Família na Obra de Emílio Willems Judith C. Hoffnagel – UFPE Natural de Alemanha, Emílio Willems imigrou para o Brasil em 1931 logo após ter terminado seu doutorado na Universidade de Berlim. Ensinou antropologia e sociologia na Escola de Sociologia e Política e na Universidade de São Paulo de 1936 a 1948.1 Em 1949 aceitou o convite da Universidade de Vanderbilt nos Estados Unidos para trabalhar no Institute of Brazilian Studies como Professor de Antropologia. Dos seus anos em Brasil, Willems diz: Em 1949 quando eu comecei ensinar estudantes americanos sobre a América Latina contemporânea, pude refletir sobre dezoito anos de residência contínua no Brasil, não como um professor visitante, mas como um imigrante que tinha a tarefa difícil de ganhar a vida e sustentar a família com o salário magro de professor. Embora frustrante, às vezes, a adaptação à vida da pequena cidade brasileira provou ser não somente inevitável mas também valiosa, e eventualmente me tornei um membro da classe média brasileira. Em vez de ser uma abstração, sua cultura se tornou a minha cultura. Eu estava “going native” [me tornando um nativo], mas sem deixar de ser antropólogo. A experiência certamente me deu ampla oportunidade para entender a cultura de dentro e estritamente nos próprios termos dela. Anos de residência em três estados diferentes—Santa Catarina, Paraná e São Paulo—gradualmente expandiram e aprofundaram minha familiaridade com o país [...] (1975:xi-xii). 1 Interessante notar que embora Willems estivesse em São Paulo trabalhando na USP e na Escola de Sociologia e Política na época da estada de Levi Strauss, Radcliffe-Brown, Herbert Baldus entre outros estrangeiros, é apenas este último que, no depoimento que deu sobre seus anos em Brasil (Corrêa 1987), é mencionado como tendo grande influência no seu trabalho. 3 Willems manteve contato com Brasil através de várias visitas, para pesquisar, lecionar e assistir a congressos. Em 1960, fez pesquisas sobre o protestantismo no Brasil e, em 1967, passou quatro meses no Paraná, coletando dados sobre a mobilidade social numa sociedade de fronteira. Em 1970, voltou a Brasil para pesquisar a urbanização e cultura urbana para seu livro Latin American Culture: an anthropological synthesis [A cultura latinoamericana: uma síntese antropológica]. Florestan Fernandes (1977:42), ao discutir a formação da sociologia no Brasil diz que Willems foi “talvez a principal figura na transformação da Sociologia no Brasil”, destacando o mérito de Willems ter combinado o trabalho de campo com pesquisas da reconstrução histórica. E esta combinação de trabalho etnográfico e reconstrução histórica caracteriza toda sua obra na medida em que a grande maioria dos seus trabalhos tratavam de descobrir como mudanças sociais e culturais tinham modificado ou estavam modificando a estrutura/organização social de grupos específicos. A obra de Willems inclui estudos sobre a aculturação, assimilação ou adaptação dos imigrantes no Brasil (com destaque para os imigrantes alemães e japoneses), estudos de comunidades rurais isoladas que enfatizam a mudança social e cultural como é evidente no título da monografia sobre uma comunidade rural de São Paulo—Cunha: Tradição e Transição em uma Cultura Rural do Brasil; estudos sobre a mudança no cenário religioso do país desenvolvido no livro sobre protestantismo—Followers of the New Faith:Culture Change and the Rise of Protestantism in Brazil and Chile [Seguidores da nova fé: mudança cultural e o surgimento de protestantismo no Brasil e Chile]. Aliada à abordagem etnográfica está uma orientação teórica estruturalfuncionalista “no sentido mais amplo possível”, onde são discutidas funções específicas das várias estruturas sociais. Como é explicitado no livro sobre protestantismo, esta 4 orientação teórica enfatiza “o que o protestantismo ‘faz’ nas sociedades brasileiras e chilenas e que condições específicas na tessitura destas sociedades têm sido instrumentais na geração do desvio protestante das normas religiosas tradicionais.” (1967:v) É interessante notar que no pioneiro estudo da comunidade de Cunha, publicado em 1948, Willems sente a necessidade de justificar o estudo antropológico de uma comunidade não-primitiva. Nos últimos vinte anos vêm-se multiplicando as pesquisas antropológicas dedicadas ao estudo de comunidades que não podem ser consideradas “primitivas”. De modo geral, essa dilatação do horizonte da Antropologia prende-se ao fato de ter sido meramente convencional a restrição das investigações anteriores aos chamados “primitivos”. No arsenal metodológico da ciência do homem não existe recurso nenhum que não possa ser aplicado a comunidades “civilizadas” [...] É natural que, inicialmente, se escolhessem comunidades que pela sua cultura se aproximasse do tipo tribal. Assim surgiu uma série de trabalhos monográficos relacionados com a organização social e cultural de comunidades campesinas. Convém lembrar que o próprio Radcliffe-Brown estimulou, com todos os meios a seu alcance, essa espécie de pesquisas, e algumas entre elas representam frutos diretos e maduros da orientação do mestre de Oxford. Após listar e comentar vários destes estudos, Willems continua explicitando sua abordagem teórico-metodológico: Sem ligar às unilateralidades ou resíduos doutrinários porventura existentes nas obras deste ou daquele autor (que o identificariam como membro de uma determinada “escola”), o presente trabalho propõe-se investigar uma comunidade rural do Brasil, com recursos metodológicos que se encontram amplamente empregados nas obras citadas. Não se trata, porém de uma monografia no sentido um tanto 5 vago da palavra. Não pretendemos abarcar todas as esferas da cultura “caipira” de Cunha, mas somente aquelas em que o contraste entre tradição e transição se está tornando evidente. Um estudo pormenorizado dos aspectos tradicionais da cultura e organização social representa, por assim dizer, o “pano de fundo” sobre o qual se descortinam as mudanças que se fazem sentir com intensidade variável na vida da comunidade. [...] Quanto aos métodos ou técnicas aplicados para obter as informações necessárias à confecção deste trabalho, outros não puderam ser postos em prática senão a “observação participante” e a “entrevista”. Um dos aspectos tradicionais da cultura e organização social que recebe atenção na maioria dos estudos de Willems é a família. Insiste, em momentos diferentes, na variedade de organização familiar que existe no Brasil, questiona a validade da família patriarcal como sendo o único modelo de família mesmo nos tempos coloniais e mostra como as várias mudanças sócio-culturais, que são o foco da maioria dos seus estudos, afetaram esta instituição localmente, em comunidades e classes sociais diferentes. Em 1953, Willems publicou um artigo intitulado The Structure of the Brazilian Family [A estrutura da família brasileira]. Numa nota de rodapé, o autor esclarece que este estudo preliminar é baseado nas experiências e observações de dezenove anos de residência em vários partes do Brasil. Os dados mais significantes foram coletados em associação íntima com numerosos brasileiros de diferentes regiões, classes sociais e origens étnicas. Uma série de pesquisas de campo providenciou a oportunidade de obter dados sobre a organização de grupos familiares e de parentesco em comunidades mais ou menos isoladas no sul do Brasil. (p.339). O artigo começa com uma crítica aos estudos sobre a família brasileira. “É provável que estudantes da família brasileira estejam impressionados com a incomum habilidade que alguns sociólogos têm mostrado para a reconstrução histórica.” Nesta 6 reconstrução, diz Willems, há uma estrutura patriarcal e essencialmente rural de dominância total na época colonial que ainda se mantém na primeira metade do século XIX, mas que se torna algo indistinto no tempos de nossos avós e gradualmente desaparece na medida em que chegamos ao presente. Para o autor, isto significa que “não somente o objeto de muito pesquisa histórica, a família patriarcal da aristocracia rural, desapareceu, mas desapareceu também o interesse dos sociólogos nas formas que o sucederam.” (339) Com a ressalva de que não seria justo acusar autores como Oliveira Vianna e Gilberto Freyre do que podia ser chamado “class-blindness” com respeito aos seus estudos da família brasileira, uma vez que é duvidoso que eles pretendiam estudar outra coisa a não ser a família da classe dominante, Willems reclama dos estudiosos que generalizam sobre a família brasileira em termos de uma estrutura patriarcal e extensa, “porque não se sabe se a família das classes inferiores que representam a grande maioria do povo brasileiro, é realmente organizada nas mesmas linhas.” (339) De fato, o autor afirma que seus próprios dados sugerem fortemente que a família das classes baixas rurais, “é, em muitos aspectos, diferente da de todas as outras classes sociais” (339). Não somente é diferente mas estas diferenças são mais pronunciadas do que se esperaria encontrar numa camada social que se diz participar da mesma cultura geral. O artigo continua com uma descrição contemporânea (início da década de 50) da família das classes média e alta e da família da classe baixa. Assim a família da classes média e alta é interpretada “como uma estrutura dialética baseada nos papéis assimétricos adscritos a homens e mulheres” (340). Nessa estrutura, o papel da mulher é centrado num conjunto de valores caracterizado como o complexo da virgindade e o papel do homem é centrado num conjunto de valores caracterizado como o complexo da virilidade. A 7 descrição de cada um destes complexos se refere aos padrões de comportamento sexual esperado de homens e mulheres e suas posições e diretos na organização familiar. Comentando a tendência de mulheres casadas não tomarem com muito seriedade as atividades sexuais extra conjugais dos seus maridos, Willems diz que “tal atitude deve ser interpretada à luz de expectativas diferentes que caracterizam o pensamento de mulheres sobre o casamento e a família” (342). E apesar da importância crescente do padrão de amor romântico, “ela ainda parece está interessada principalmente em aceder ao status desejável de mulher casada e mãe” (342). Essa atitude é parte integral de uma distinta cultura feminina com suas próprias instituições, padrões emocionais e compensações. Estas duas culturas distintas, do homem e da mulher, servem à função, segundo Willems, de manter uma distância social e cultural entre esposos que impede uma maior intimidade entre eles. Se não fossem essas culturas distintas, provavelmente teria um aumento de fricção e conflito dentro da família e “um consenso doméstico não podia ser alcançado” (342). Sugere que, embora a industrialização e a urbanização não conseguiram até então modificar as posições antitéticas dos sexos, outras mudanças periféricas na estrutura da família das classes média e alta têm ocorrido. Por exemplo, para a classe média, que cede à pressão econômica, há pouca resistência por parte dos homens em permitir que suas mulheres e filhas suas trabalhem em profissões outras além do ensino. Em conseqüência, estes homens estão perdendo o controle total sobre suas mulheres e filhas. Willems pergunta até que ponto ou em que grau a família brasileira pode ser descrita ainda como uma família extensa. Se entendida em termos de co-residência, então a família extensa no Brasil “está desaparecendo rapidamente. Porém, no sentido de grupos solidários de famílias nucleares aparentados residindo na mesma localidade, a família extensa está longe de ser extinta.” (343) Há diferenças regionais no tipo e 8 quantidade de ajuda que se pode esperar de membros da família extensa, mas há algumas formas de ajuda e de proteção que podem ser esperadas de parentes em qualquer parte do Brasil. Ajuda para conseguir um emprego e ajuda eleitoral são entre estas formas. A estrutura da família brasileira da classe baixa é diferente, diz Willems. Baseando-se, principalmente, nos estudos das comunidades de Cunha e Buzios, o autor caracteriza a família da classe baixa da seguinte forma: Não há nada que se assemelha a um período de namoro. Depois que um jovem se entende com uma jovem, ele procura o consentimento do pai dela, o qual é raramente negado. Como não há propriedade para considerar, o casamento segue imediatamente. Com respeito à forma de casamento, a cerimônia religiosa é o padrão preferido, mas nas localidades que recebem visitas de padres católicos apenas raramente, há uma grande tolerância para a união consensual. A virgindade não é visto como uma condição prévia para uma união estável e, consequentemente, as regras para a supervisão ou segregação dos sexos são menos elaboradas. Ciúme e reações violentas com respeito à infidelidade feminina são relativamente inexistentes.2 Um conceito de honra pessoal e familiar contrasta nitidamente com o padrão predominante nas outras classes. O casamento é relativamente instável. A iniciativa de romper com os laços matrimoniais é freqüentemente tomada pela mulher, que, via de regra, não encontra dificuldade em associar-se a outro homem. Grupos de parentesco maior, além da família extensa, são funcionalmente de pouca importância e a família extensa não é vista como 2 Tanto no livro sobre Cunha como no livro sobre Búzios, Willems parece surpreso com a aparente ausência do complexo de machismo na classe baixa. Relata em ambos os livros vários casos de mulheres que são infiéis ou que simplesmente deixam seus maridos sem qualquer conseqüência maior. Nota, porém, que pelo menos no caso de Cunha, as mulheres dos agregados têm mais autonomia econômica do que as mulheres das outras classes, conseguindo com seus próprios trabalhos ganhar algum dinheiro e sobre qual tem o poder e sugere que é por essa razão que não temem em deixar os maridos. 9 um padrão particularmente desejável. Especialmente na comunidade de Búzios, há pouco da solidariedade que caracteriza a família da classe média e alta. Os fatos listados acima, diz Willems, sugerem que à família da classe baixa do Brasil rural falta a maioria das características que são de importância estrutural e funcional nas classes média e alta. A frouxidão de sua estrutura é provavelmente condicionada pelo fato de que não há nenhum foco cultural distinto nesta classe. As classes média e alta, diz o autor, se fortaleceram com grandes propriedades, cujo desenvolvimento e proteção constituem a principal preocupação. Mas não houve nada para a família do peão—não houve propriedade ou instituições específicas de qualquer tipo que podiam ter servido como o centro de uma estrutura familiar mais integrada. Willems conclui seu trabalho sobre a estrutura da família brasileira fazendo algumas comparações com a estrutura de outras famílias. Quanto à família em outros países da América Latina, há, aparentemente, grandes semelhanças. 3 Há, também, uma grande semelhança com a família portuguesa, “maior, talvez, do que a maioria dos autores brasileiros saibam”(345), diz Willems. As investigações de Willems sobre a história da família portuguesa o convenceram de que alguns dos traços da família colonial e imperial brasileira, que Oliveira Vianna considerou ser autóctone, têm seu paralelo em Portugal. Em comparação com a família norteamericana, há diferenças no tipo de relação que se estabelece entre os esposos, e o isolamento da família nuclear norteamericana contrasta com a integração estrutural da família nuclear brasileira. Mas sugere que o aumento do isolamento ecológico da família nuclear brasileira pode, eventualmente, 3 Willems sugere que talvez as diferenças que ele encontrou entre as classes sociais sejam características apenas do Brasil, não tendo nada na literatura que aponta para o mesmo fenômeno nos outros países da América Latina. Nota, porém, que há uma escassez de dados sobre a família na América Latina como um todo. 10 levar aos isolamentos estrutural e funcional. Há, além dessas diferenças, outra de maior importância. A posição da família no sistema social dos dois países. O sistema brasileiro, como o da América Latina em geral, é largamente controlado pela família. Assim, “provavelmente não há uma única instituição principal no Brasil que não seja em grande medida controlada ou desviada por interesses familiares.”(345) É verdade, diz Willems, que nas áreas de grande imigração estrangeira, a posição das oligarquias não foi suficientemente forte para evitar o desenvolvimento de uma nova elite econômica e política, mas é também verdadeiro o fato de que a nova elite tem adotado os mesmos padrões de ‘familismo’ e nepotismo que caracterizou a estrutura de poder tradicional. É interessante comparar esta visão da família brasileira contemporânea (começo da década de 50) de Willems com a de Antônio Candido publicado em inglês em 1951. Para Candido: Como um sistema de prestígio e retribuição, parentesco além do grupo conjugal não existe mais. As designações de parente e primo praticamente têm desaparecido [...]a hospitalidade está desaparecendo como um sistema inter e intra-familiar de solidariedade e de troca de serviços [...] o desaparecimento de vendetas e conflitos entre famílias é um signo evidente da desintegração da consciência coletiva do parentesco a favor de uma organização doméstica restrita, da estrutura conjugal, adaptadas a novas condições sociais e econômicas. [...] a família não é mais um grupo econômico e político, nem também é o grupo importante na organização social. [...] a tendência é para uma transformação rápida do que resta da organização patriarcal com os seguintes traços emergindo: igualdade de status entre homens e mulheres; uma participação cada vez maior das mulheres em atividades econômicas; o aumento do controle de natalidade; aumento do número de desquites, e de casamentos com desquitados; diminuição da autoridade paternal e uma conseqüente diminuição de distâncias dentro da família; o afrouxamento dos laços de parentesco e 11 consequentemente uma mudança da família extensa para o grupo conjugal. Outros traços, contudo, são vigorosamente preservados: tolerância para o adultério discreto por parte do homem; intolerância para o adultério por parte das mulheres; um tabu violento contra a perda da virgindade da parte das mulheres, mesmo nos centros mais urbanizados.” (309) Como se pode ver na síntese que Candido oferece das mudanças e as permanências da estrutural tradicional patriarcal, há divergências nas visões dos dois autores. Candido é categórico quando diz que como “um sistema de prestígio e retribuição, o parentesco além do grupo conjugal, não existe mais”. Isto não é a visão de Willems, embora este autor admita que em certas partes do país esta função da família tem sido reduzida nas últimas décadas. E, também é claro que Willems questiona se alguns dos traços mencionados por Candido, tais como “tolerância para o adultério discreto por parte do homem; intolerância para o adultério por parte das mulheres; um tabu violento contra a perda da virgindade da parte das mulheres”, eram, em qualquer época, características da família da classe baixa rural. De fato, Candido não discute diferenças na organização da família em termos de classes sociais especificamente. A impressão que se tem do artigo é que há um padrão de família válido para todos os brasileiros. Quando menciona as classes baixas, é em termos gerais e de uma perspectiva histórica: “[...] a grande massa amorfa gradualmente se organizou, misturando-se com a prévia massa amorfa de pessoas degradadas para formar as classes baixas da nova sociedade, cuja maioria se inclui no regime da mais ou menos estável família monogâmica, através de casamento legal ou consensual.”4 (304-5) 4 Willems não cita este trabalho de Candido (1951) no seu artigo de 1953. Não se sabe se teve acesso ao artigo de Candido antes de escrever seu artigo. Embora haja dois anos entre a publicação dos dois artigos não se sabe o período entre a aceitação de um trabalho e a publicação. Considerando porém, que Willems também publicou um artigo na mesma coletânea do artigo de Candido, é mais provável que tinha lido 12 Em outros trabalhos, Willems estuda as mudanças na estrutura e função da família em termos de mudanças em outros aspectos da vida sócio-cultural. Assim, nos seus estudos sobre a aculturação e assimilação das populações imigrantes e sobre o protestantismo, há sempre menção em maior ou menor grau dos efeitos destas atividades na organização familiar. Falando do processo de assimilação dos imigrantes japoneses, por exemplo, Willems nota que “a comunidade e ainda mais a família exerce um controle efetivo sobre seus membros mais jovens e os previne duma assimilação rápida. Resistência aos casamentos mistos é particularmente forte, e muitos que prefeririam um esposo brasileiro sacrificam suas preferências pessoais à vontade paterna que é altamente respeitada. Assim, os casamentos deste tipo têm sido raros e, na medida que a estrutura patriarcal da família japonesa fica intacta, não se espera um aumento substancial do casamento misto”. Há, contudo, nas cidades maiores onde é mais fácil escapar do controle paterno, segundo Willems, sintomas do início da desintegração da estrutura tradicional da família japonesa e há casos da completa desintegração de algumas famílias japonesas onde os chefes da família já “perderam controle sobre seus filhos” (1951:223). O livro Followers of the New Faith (1967) é uma tentativa “de compreender a emergência e desenvolvimento do Protestantismo proselítico dentro do contexto de duas culturas latinoamericanas”. A hipótese trabalhada no livro, que protestantismo “causa” mudança cultural, tem como pressuposição básica que a aceitação e a prática de um código de comportamento tende a redefinir as relações sociais que protestantes Candido antes de escrever seu trabalho e que Candido é incluído entre os (não nomeados) estudiosos de que Willems reclamou porque “generalizam sobre a família brasileira em termos de uma estrutura patriarcal e extensa” quando não se sabe, por absoluta falta de investigações científicas, se este padrão se aplica às classes baixas, histórica ou contemporaneamente. Em trabalho posterior (1975), Willems cita o artigo de Candido, mas apenas com respeito a aspectos históricos da família colonial. 13 estabelecem ou mantêm entre si e com os não-protestantes e que, uma vez que estas redefinições estão preocupadas principalmente com responsabilidades recíprocas, as mudanças que produzem tendem a afetar a estrutura familiar e a socialização da criança, o comportamento econômico, a estrutura de classe e a estrutura de associações voluntárias. (p14) Willems começa sua discussão da família protestante com o seguinte comentário: Qualquer tentativa de analisar as mudanças estruturais inerentes a emergência de protestantismo seria incompleta sem considerar a família. Familismo latinoamericano, ou a predominância institucionalizada de família e parentesco sobre todos os outros setores da sociedade, é, claramente, em desacordo com uma congregação forte e auto-determinante. Isto implica não somente uma mudança na ordem de importância institucional do sistema de valores tradicionais, mas também mudanças naqueles aspectos da família normalmente definidos como ‘patriarcalismo’. Segundo Willems, mesmo nas localidades mais tradicionais, quase todas as denominações protestantes assumem uma atitude de “intransigência moral” com respeito aos tradicionais privilégios sexuais do homem. Esta mudança acarreta outras. Por exemplo, a mulher pode denunciar as transgressões sexuais do marido às autoridades da igreja e estas assumem a responsabilidade para castigá-lo frente a comunidade religiosa. A submissão do homem à autoridade da igreja com respeito ao que é essencialmente um problema da família, implica uma mudança na posição relativa da família dentro da estrutura social geral. “Nem o protesto de uma esposa ofendida nem a aceitação por parte do marido de uma autoridade supra-família para ajuizar assuntos tão íntimos como o comportamento sexual teria sido concebível na velha ordem social. Tradicionalmente, o homem era o árbitro supremo de seu próprio comportamento sexual.” (170) Dar tal 14 autoridade a alguém fora da família implicaria prejudicar não somente o status do pai/marido dentro da família, mas também o status da família dentro da comunidade. Assim, a aceitação da autoridade dos pastores para conciliar problemas familiares implica que a família protestante “reconhece sua posição subordinada vis-à-vis a congregação, bem como certas mudanças na sua estrutura interna.” (171) Outras práticas comuns nas famílias protestantes, segundo Willems, contribuíram para uma redução da distância social tradicional entre os membros da família. A prática do culto doméstico, onde a família se reúne diariamente após a refeição, para rezar e estudar a bíblia, leva a uma cooperação e intimidade entre marido e mulher e entre pais e filhos.5 Outra atividade que Willems vê como diferente nas famílias protestantes é um pai ensinando as primeiras letras aos filhos em comunidades onde as escolas são distantes ou inexistentes. O pai-professor aparentemente assume uma responsabilidade além daquelas que os pais não-protestantes reconheceriam como responsabilidade pessoal. No seu livro Latina American Culture: an anthropological synthesis (1975), Willems dedica considerável espaço à família. O livro está dividido em duas partes: I: Gênesis of the cultural traditions [Gênesis das tradições culturais] e II: Cultural change and persistence in the context of an emerging industrial civilization [Mudança cultural e persistência no contexto de uma civilização industrial emergente]. Em ambas as partes, há um capítulo dedicado à família. É interessante que, na primeira parte, Willems começa sua descrição da família com uma advertência: 5 Willems contrasta este padrão de união familiar com os hábitos alimentares da classe baixa rural do Brasil “onde membros da família, especialmente os homens, procuram se isolar e engolir sua comida sem dizer uma palavra” (172). 15 Uma vez que não é nossa tarefa moralizar sobre a família latinoamericna, mas em vez disso, compreendê-la, a noção do que a família é ou deve ser de acordo com o modelo anglo-saxônico ou qualquer outro, é irrelevante. Freqüentemente, preconceitos etnocêntricos destorcidas produziram latinoamericanas. visões das instituições O caso da família é particularmente complexa porque há um hiato entre o padrão ideal e real, entre os preceitos cristãos e o comportamento real. Para alguns, a família patriarcal é o único tipo de família existente na sociedade tradicional latinoamericana. Uniões consensuais são ignoradas ou vistas como meros desvios do casamento ‘normal’ e referências aos hábitos sexuais das classes baixas são freqüentemente discutidos em termos de ‘caos’, ‘anarquia’ ou ‘promiscuidade’ sexual. Obviamente, tais visões refletem um preconceito que muitas vezes é compartilhado por latinoamericanos que sabem pouco sobre a subcultura das classes baixas de suas próprias nações.” (52) Neste capítulo, Willems repete muito do que tinha discutido no seu artigo de 1953 sobre a família patriarcal tradicional. Contudo, conceitua com mais precisão o que entende por família extensa. Não é a co-residência (que podia existir ou não), mas a “solidariedade, coesão, ou esprit de corps que caracterizou a família extensa. Era um tipo de laço moral que permitiu um número de parentes consangüíneos e afins, agirem in corpore. Era essa rede estreita de relações com suas expectativas, responsabilidades e privilégios que manteve o grupo vivo e impediu que suas partes componentes se dissolvessem”. (57) Caracteriza a família do estrato mais alto da sociedade tradicional por “seu tamanho grande, sua estabilidade e continuidade através do tempo, sua complexidade estrutural, seu alto grau de solidariedade, e sua multiplicidade de funções.” Na medida em que desce na estrutura social, diz Willems, “estes traços 16 perdem gradualmente algo de sua importância. A família tende a ser menor, um tanto instável, relativamente simples e desempenha menor número de funções” (55). Willems inicia a segunda parte dedicada à família com uma ressalva a respeito dos dados que são caracterizados como sendo baseados em “evidências limitadas”. Uma busca nos dados publicados desde a década de 40, faz Willems sugerir a persistência em vez da ruptura do complexo de parentesco tradicional. Mas, como a maioria destes estudos foram feitos por antropólogos sociais e sociólogos rurais que têm ‘uma propensão’ para comunidades campesinas tradicionais, é possível que é esta escolha limitada de campo de pesquisa que é responsável pela ênfase à persistência da tradição. (338) As mudanças na estrutura e na organização da família nas classes altas e baixas são consideradas por Willems em termos das categorias de família nuclear (marido, mulher e filhos) e de kindred. O kindred é diferenciado da família extensa na medida de que “o kindred é percebido não em termos de uma rede estabelecida de relações de obrigação idêntica para todos os participantes, mas em termos da perspectiva de um individual particular, como sendo o total de todos aqueles parentes (consangüíneos, afins e rituais) com que ele interage contínua ou periodicamente.” (338) A família nuclear: As duas mudanças principais que afetaram a família nuclear ou conjugal são a maior autonomia nas suas relações com o grupo de parentesco maior e a alteração em sua estrutura interna. Essa ‘emancipação’ relativa da família nuclear, diz Willems, deve ser vista como um processo de descentralização, através do qual o grupo de parentesco maior gradualmente perde seu controle sobre as unidades nucleares componentes. Neste sentido, a família nuclear expande cada vez mais sua autonomia funcional. Esta autonomia é relacionada, por sua vez, a mudanças na estrutura interna da família nuclear, e Willems sugere que os fatores que mais afetaram a família nuclear, são 17 a educação feminina e os prospectos cada vez mais amplos de emprego para as mulheres. O fato da mulher trabalhar a livra de algumas das restrições do controle tradicional da família. Ao contribuir para o orçamento familiar, ela está implicitamente demonstrando sua independência potencial. Com referência às classes baixas, Willems diz que há uma falta tão grande de estudos confiáveis que é quase impossível dizer se a família da classe baixa tem mudado ou não. Mais uma vez, o autor adverte: “Declarações ocasionais referindo à ‘desorganização’ da família urbana devem ser recebidas com cautela. De fato, esses chamados indicadores da ‘desorganização’ tais como a união consensual e a ilegitimidade, freqüentemente representam as percepções da cultura de classe média.” A união consensual, para Willems, seria melhor vista como uma alternativa viável ao casamento civil ou religioso em vez de um desvio dos padrões das classes alta e média. Não há, lembra o autor, evidências que mostram que a união consensual é menos estável do que o casamento convencional. O kindred: Willems tenta mostrar que a autonomia crescente da família nuclear não significa, necessariamente, a desintegração e eventual desaparecimento do grupo de parentesco como uma unidade interacional. Baseando-se em vários estudos publicados sobre família e parentesco na América Latina, o autor discute as funções do kindred nas classes alta e baixa, sugerindo que “o papel mais independente assumido pela família nuclear pode estar relacionado funcionalmente ao apoio que ela recebe do kindred” (342). Assim, por exemplo, alguns estudos mostram a importância do kindred para as migrações internas. Parentes, já localizados nas cidades recebem os migrantes, dão ajuda na procura de habitação e emprego. Willems nota, porém, que dada a natureza recíproca de todas as relações de parentesco e a exploração do kindred pessoal têm limitações, 18 especialmente nas classes baixas. Pessoas, neste nível, têm pouco a oferecer e se são freqüentemente abordadas para ajuda econômica, por exemplo, é provável que o parentesco agirá como um mecanismo de nivelamento, redistribuindo entre os membros mais pobre de um kindred toda a poupança que uma família nuclear tem conseguido acumular. Este aspecto de nivelamento e redistribuição pode, diz Willems, explicar a diferença entre o tamanho do kindred entre as classes alta e baixa. Há evidências que na classe baixa, o reconhecimento de parentesco raramente vai além da primeira geração ascendente. O kindred normalmente consiste dos pais e avós de um homem e de sua esposa, os irmãos dos pais dele e dela, seus irmãos e primos de primeiro e segundo grau. Na classe alta, a posse e o controle de vastos recursos econômicos e políticos favorece o reconhecimento de um maior número de parentes. Nesta classe, há maior chance que o parentesco possa ser usado para aumentar, em vez de redistribuir riqueza. Há, por exemplo, uma certa vantagem em ter o maior número possível de parentes distribuído nos vários negócios agrícolas, comercias e industriais, nos postos mais altos da administração pública, nas forças armadas, no governo, e até na Igreja. Willems destaca que alguns estudos mostram que para esta classe é ainda o grupo de parentesco maior (ancestral) e não o kindred que protege a riqueza e status dos seus membros, mas sugere que estes grupos estão diminuindo, principalmente porque não conseguem se manter como unidades interacionais dada a dispersão do número de ramos que se espalharam através do tempo. Comentando que a maioria dos estudiosos de parentesco na América Latina ficam surpresos pelo número de parentes consangüíneos e afins que um indivíduo (rural ou urbano) é capaz de lembrar, Willems diz: 19 Extraordinária que seja essas memórias genealógicas, a questão que se levanta refere-se às implicações destes registros mnemônicos. Todos estes parentes, presumivelmente orgulhosos do sua descendência comum de um ancestral famoso, realmente constituem uma unidade interacional? Ou será que eles só se encontram em aniversários e velórios? Eles se encontram para qualquer tipo de empenho corporativo? De fato, diz Willems, há evidências de que, em várias partes da América Latina, o grupo de parentesco ancestral está no processo de se tornar um kindred pessoal. Por exemplo, ao questionar vários membros de um mesmo grupo de parentesco ancestral, é comum receber um conjunto de parentes diferentes por cada pessoa questionada. Citando um estudo feito por Berlinck (1969:141), em São Paulo, que chegou a conclusão de que em cidades como São Paulo, entre as classes média e alta, “a estrutura de parentesco extensa é um mecanismo viável e adaptável, e consequentemente mantido no sistema”, Willems salienta que uma vez que os dados de Berlinck tratavam de situações hipotéticas e não reais de contato e ajuda, poder-se-ia dizer que seus dados sugerem que o kindred tem sido mantido, “não por causa de seu papel adaptável real, mas porque ainda acredita-se ser capaz de desempenhar este papel” (346). Para Willems, o tamanho, a relevância funcional e a composição do kindred são sujeitos a variações de tempo e espaço. Willems chega as seguintes conclusões sobre as mudanças e persistências da família latinoamericana: “Migrações internas de grande escala, urbanização rápida e industrialização estão aparentemente afetando a estrutura familiar tradicional numa maneira que deixa de se conformar com os estereótipos correntes. Evidências disponíveis indicam que a família extensa, pelo menos na forma de um kindred pessoal, tem , até agora, sobrevivido as mudanças; mas, dentro da estrutura extensa, a família nuclear ganhou maior autonomia. Ao mesmo tempo, a posição das 20 mulheres tem mudado na medida em que as oportunidades de educação e emprego reduzem os controles anteriormente exercidos por pais, irmãos e esposos. [...] Há alguma evidência da continuação da viabilidade família extensa como uma instituição capaz de fornecer serviços valiosos ao seus membros, tanto nas áreas rurais como urbanas [...] Sua sobrevivência [...] parece depender do controle, mesmo limitado, dos recursos econômicos. Contudo, o grupo de descendência, que era uma vez a forma dominante de grupo de parentesco nas classes mais altas, parece ter cedido para o kindred, cuja composição é aparentemente voltada mais efetivamente para as necessidades dos indivíduos”. Considerações finais: Que a família na obra de Willems tem um certo destaque não deve nos surpreender dada a importância atribuída à família na formação social do Brasil por historiadores e outros estudiosos e pelo fato de que a família, enquanto instituição social, era parte imprescindível de qualquer estudo etnográfico nos anos 30 e 40, quando Willems fazia seus estudos no Brasil. Seus primeiros estudos etnográficos, de comunidades rurais e relativamente isoladas, contudo, o deixou insatisfeito com a idéia corrente na época de um padrão de família único para todo Brasil, aquele da família patriarcal. Além de apontar para as mudanças em curso nesta família tradicional nas classes mais altas, nota que este padrão de família não está presente entre as classes baixas estudadas por ele e questiona se alguma vez tivesse existido para estas classes. Talvez pode-se dizer que a principal contribuição de Willems para o estudo da família é ter chamado atenção para a falta de estudos ‘científicos’ (estudos etnográficos de campo) e para a necessidade de estudos que levassem em conta diferenças de classe e diferenças regionais. Apesar de suas queixas do estado dos estudos sobre a família, Willems mesmo nunca se dedicou a fazer um estudo específico sobre a família brasileira ou latinoamericana em geral. É também interessante notar algumas inconsistências na sua 21 obra. No seu estudo sobre protestantismo, por exemplo, para destacar as mudanças na estrutura da família protestante, o modelo contra qual as mudanças são medidas, é aquele da família patriarcal tradicional, apesar da maioria dos protestantes pertencerem às classes média baixa e baixa. Foi, justamente, para estas classes que Willems questionou se uma vez tivesse existido este padrão de família. BIBLIOGRAFIA 6 Candido, Antônio. 1951. The Brazilian Family. In T.L. Smith & Marchant, eds. Brazil: Portrait of Half a Continent. New York, Bryden, pp. 291-312. Corrêa, Mariza. 1987. História da antropologia no Brasil: 1930-1960, testemunhos. São Paulo, Vértice. Fernandes, Florestan. 1977. A sociologia do Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis, Vozes. Willems, Emílio. 1948. Cunha, Tradição e Transição em uma cultura Rural do Brasil. São Paulo, Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo Willems, Emílio. 1951. Immigrants and their assimilation in Brazil. In T.L. Smith & Marchant, eds. Brazil: Portrait of Half a Continent. New York, Bryden, pp. 209225 Willems, Emílio. 1952. Buzios Island. A Caiçara Community of Southern Brazil. Monographs of the American Ethnological Society, no. 20. New York. The Society. (In cooperation with Gioconda Mussolini) Willems, Emílio. 1953. The Structure of the Brazilan Family. Social Forces 31:339345. Willems, Emílio. 1961. Uma Vila Brasileira: Tradição e Transição. São Paulo, Difusão Européia do Livro. Willems, Emílio. 1966. Antropologia social. 2 ed. São Paulo, Difusão Européia do Livro Willems, Emílio. 1967. Followers of the New Faith: Culture Change and Rise of Protestantism in Brazil and Chile. Nashville, Vanderbilt University Press. Willems, Emílio. 1975. Latin American Culture. An Anthropological Synthesis. New York, Harper & Row. 6 Para a bibliografia completa de Willems, vê Corrêa 1987.